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VISÃO INTERDISCIPLINAR E AÇÃO INTERSETORIAL NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONJUGAL

2 CONTEXTUALIZANDO A VIOLÊNCIA CONJUGAL

2.3 VISÃO INTERDISCIPLINAR E AÇÃO INTERSETORIAL NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONJUGAL

O fenômeno da violência conjugal é um problema social, político, econômico e de saúde, com diversas e complexas facetas, exigindo, para o seu enfrentamento, saberes interdisciplinares e articulações intersetoriais.

A visão cartesiana de mundo decorrente da hegemonia do modelo positivista surge a partir do século XIX e se ancora no processo de industrialização que, com vistas a atender às necessidades de produção e comercialização e garantir os interesses do Capitalismo, exigia a formação de especialistas caracterizada pelo isolamento das disciplinas e a fragmentação do saber (BIANCHETTI; JANTSCH, 2002).

Na área da saúde, foi marcante a excessiva especialização técnica, com enfoque funcionalista e assistência curativa fundamentada na observação de sinais e sintomas de quadros clínicos (ARCOS; POBLETE; MOLINA, 2007; GARBIN et al., 2006; MOURA; REICHENHEIM, 2005). Desta forma, os profissionais de saúde não questionam a mulher vítima de violência a respeito da origem dos ferimentos, voltando-se apenas para a assistência curativa medicamentosa.

Branco (1999) assinala o despreparo dos serviços que atendem a mulheres em situação de violência, uma vez que o profissional acaba por receber as vítimas como fichas a serem preenchidas ou agem de forma inapropriada, muitas vezes culpando-as ou desconfirmando a denúncia feita. Assim, é necessário que os serviços de saúde estejam preparados para essa demanda até porque as mulheres buscam o serviço de saúde pelas conseqüências que a violência traz para a sua saúde.

Desta forma, ainda que os profissionais estejam sensíveis à necessidade de um melhor preparo para a atenção à mulher em situação de violência conjugal, as instituições não dispõem de plano de organização no sentido de adequar as novas formas de atendimento já propostas pelas políticas públicas através de leis, resoluções, normas técnicas, etc.

Alguns estudos vêm mostrando que os profissionais concebem a violência doméstica como um problema da esfera policial e jurídica não a reconhecendo, portanto, como sendo de sua competência profissional: dessa forma, eles mantêm uma postura de desinformação, indiferença, negação e preconceito (DAY et al., 2003). Tal postura retrata a visão da formação tecnicista que, neste momento histórico, não valorizava os impactos da

violência sobre a saúde. A propósito disso, Fagundes e Burnham (2001, p.15-16) mencionam que os currículos

[...] muito presos a um racionalismo estritamente instrumental, juntamente com a adesão ao modelo biotecnológico, que traz na sua configuração um negligenciamento das questões da relação do profissional de saúde com os usuários e pouca atenção às questões mais gerais que afetam a saúde, fazem com que os profissionais encontrem-se hoje com dificuldades de entender ou de tratar muitos dos importantes problemas de saúde.

Desta forma, a fragmentação do saber e a limitação às evidências físicas por parte dos profissionais de saúde nos fazem compreender a fragmentação do cuidado à mulher em situação de violência conjugal. Vale assinalar que a lesão física reflete apenas uma parcela mínima de um problema muito mais complexo.

Na década de 70, começam a surgir críticas à formação unidisciplinar e/ou à justaposição de saberes. Propõe-se a transição para um novo paradigma baseado em um saber interdisciplinar e um fazer intersetorial, que incorpore o princípio da responsabilidade social e possibilite, a partir da problematização da realidade, o desenvolvimento da capacidade crítico-reflexiva e, por conseguinte, a formação de profissionais capazes de identificar e contribuir para melhorar a situação de saúde da população (FREIRE, 1993; VILELA; MENDES, 2003).

Entretanto, embora a interdisciplinaridade seja extremamente necessária no campo da saúde pública, ela apresenta grandes obstáculos: forte enraizamento positivista e biocêntrico no tratamento das questões de saúde; departamentalização das instituições de ensino e pesquisa, na maioria das vezes sem qualquer comunicação entre si (VILELA; MENDES, 2003; GASTALDO, 2005).

Diante o exposto, torna-se pertinente aprofundar as reflexões sobre o papel da universidade, uma vez que se faz urgente construir, a partir da integração dos conhecimentos de diversas disciplinas, novas práticas pedagógicas de aprendizagem, a fim de permitir uma compreensão mais ampla acerca dos fenômenos e, por conseguinte, encontrar respostas para a complexidade dos problemas de saúde. As diretrizes curriculares devem contemplar o exercício da interação ensino-pesquisa-extensão como estratégia para a apreensão do conhecimento de todo graduando e a integração universidade-serviço- comunidade no sentido de viabilizar a identificação das necessidades de saúde da comunidade, considerando o contexto socioeconômico e familiar.

A inserção dos profissionais na realidade socioeconômica é de fundamental importância no processo de sensibilização e formação destes, uma vez que qualquer interação, seja com o outro ou com o contexto social, representa um espaço de questionamentos e desenvolvimento de aprendizagens plurais.

Segundo Fagundes e Burnham (2001), é preciso que as universidades e outras instituições educativas reorientem os eixos adotados em seus currículos, que desconsideram as necessidades mostradas nas práticas e considera seu saber superior com relação a outras formas de organizar o saber. Isso significa construir uma nova relação com o saber, com a capacidade de escutar a si mesma e a outros espaços sociais a partir de estratégias que incentivem e capacitem os profissionais para a identificação e intervenção sobre os problemas de saúde que afetam a maior parte da população, como é o caso da violência doméstica.

No entanto, a maioria das disciplinas dos cursos da área da saúde não contempla a temática violência doméstica nos currículos e programas dos cursos, o que está relacionado com o despreparo desses profissionais para atuarem diante do problema. Considerando que a violência conjugal é muitas vezes resultante de estereótipos de gênero naturalizados socialmente, uma das maneiras de proporcionar um maior preparo profissional para agir diante deste problema é incluir conteúdos que instiguem as discussões de questões de gênero no processo de formação. Esta inclusão, em todos os níveis de ensino, já foi regulamentada nacionalmente através da Lei 11340 em 2006, embora sua implantação requeira esforços políticos no sentido de refletir acerca dessa inserção curricular, sobretudo com relação à competência dos profissionais para esse fato, devido à visão sociocultural fortemente arraigada da desigualdade de gênero.

A este respeito à Lei Maria da Penha prevê, em seu Art. 8º, que

[...] a política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes: I – a integração operacional do poder Judiciário, Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação; II – a promoção de estudos e pesquisas [...] com a perspectiva de gênero [...]; IX – o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher (BRASIL, 2006a, p.2).

Segundo a Lei, a resposta à violência conjugal, seja para compreendê-la ou intervir, exige a articulação e a contribuição dos governos nacional e local, a sociedade civil organizada e os diversos profissionais da saúde, segurança pública, justiça e trabalho, bem como o seu envolvimento, configurando redes integradas de atendimento (BRASIL, 2006b; BRASIL, 2005a). Torna-se essencial que os profissionais tenham um olhar interdisciplinar para as necessidades de saúde que se mostram, além do conhecimento da rede intersetorial, a fim de garantir uma assistência integral à mulher em situação de violência conjugal.