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Na Teoria das Reminiscências de Platão105, o filósofo apresenta a sua concepção sobre a imortalidade da alma e defende a ideia de que nós renascemos múltiplas vezes neste mundo e que os homens já são conhecedores de todas as coisas, tem um passado, memórias e lembranças que podem ser evocadas a qualquer momento. Platão afirmava que, quando nosso espírito se instrui e se educa, ele não faz mais do que recordar-se das ideias, lembrando um modo vago daquilo que um dia contemplou com toda perfeição.

Podemos sonhar qualquer sonho, e o que importa é o significado deste sonho. Segundo Kenedy, presidente dos EUA, este sonho era uma visão de grandeza que buscava hegemonia no mundo, na época da Guerra Fria. Podemos sonhar o homem na Lua, porém como realizar tal façanha seria uma utopia na época? Com o tempo, o que era um sonho, acordado para os americanos, passou a ser um desafio, e, para as pessoas comuns, este sonho passou a fazer parte das utopias coletivas, e, por ser coletiva, no seu processo histórico, se concretizou. O significado deste sonho para o cidadão comun foi mais além do que esperado, não foi pisar na lua um sonho que trouxesse paz e felicidade aos homens, todavia, indiretamente, as consequências geraram uma série de tecnologias que beneficiaram e beneficiam o ser humano até os dias de hoje.

Os sonhos mereceram estudos de reconhecidos cientistas e filósofos, entre eles Freud, Young, Bacon e Fichte106, levando Bloch a refletir sobre a existência de pontos do consciente que não se apresentam claramente e que sempre foram considerados obscuros. Enquanto para Freud os sonhos noturnos são construções imaginárias simbólicas e mitológicas que liberam imagens de desejos comprimidos no subconsciente, que podem ser interrompidos abruptamente, aos sonhos diurnos, no entanto, não há interrupção, não há envolvimento107. Bloch preocupou-se com os sonhos diurnos, com a gênese do desejo, das fantasias, com os pontos que convivem na fronteira, que se estabelecem sob um limiar. É o que o autor chama de “relativamente consciente”, que permeia os dois lados e pode estar no desvanecimento, como em processo de alvorecer e despertar. É neste relativamente consciente, mas ciente de que está o pré-consciente, local onde surge algo novum, ainda não imaginado108.

Nessa seara, o filósofo de Tübigen estabelece uma relação entre os sonhos noturnos e os sonhos diurnos, e a grande diferença entre eles é que os sonhos diurnos oferecem racionalidade à esperança. Bloch ensina que “o conteúdo do sonho noturno está oculto e dissimulado, enquanto o conteúdo da fantasia diurna é aberto, fabulante, antecipador, e seu aspecto latente se situa adiante”109. Existe um olhar que se torna tanto mais aguçado quanto mais se torna consciente, e só, quando a razão toma a palavra, é que a esperança, na qual não há falsidade, recomeça a florescer110, aí, sim, poderemos estar diante de uma utopia concreta.

O filósofo, exigente quanto às fontes e referências, faz um inventário das imagens do desejo, das figuras de antecipação utópica111 dos sonhos acordados112 ou dos sonhos diurnos113, fazendo emergir em suas reflexões as várias utopias na caminhada da humanidade.

Bloch nos dá pistas para identificar alguém utópico-otimista e está sempre em busca de uma aurora, de um novo amanhecer. Este porvir é denominado “novum”, sinal de despertar da consciência e possui uma função concreta, que é a de afugentar a escuridão do estádio psíquico (Grund-befind-lichkeit) ao nível da “escuridão do momento vivido”, permitindo,

106 BLOCH, Ernst. Princípio esperança. Tradução de Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Editora UERJ/Contraponto,

2005, p. 139.

107 Ibidem, p. 84-86.

108 BLOCH, Ernst. Princípio esperança. Tradução de Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Editora UERJ/Contraponto,

2006, p. 115-116.

109 BLOCH, Ernst. Princípio esperança. Tradução de Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Editora UERJ/Contraponto,

2006, p. 100.

110 Ibidem, p. 143-144. 111 Ibidem, p. 20.

112 FURTER, Pierre. Dialética da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974, p. 84. 113 MÜNSTER, Arno. Filosofia da práxis e Utopia concreta. São Paulo: UNESP, 1993, p. 33.

assim, alcançar a clareza114. O filósofo perpassa a ideia de que é possível despertar as visões oníricas diurnas, imaginar, em diferentes momentos, desejos e fantasias, assim como ter a expectativa de sua realização.

Para Münster, o “sonho diurno é o topos interior, lugar do nascimento do desejo de algo que ainda-não-é, onde predomina a utopia”115, enquanto Furter sugere que tem que haver a vontade e a razão. Em sua obra, Dialética da Esperança, refere-se aos

sonhos acordados àqueles provocados pela vontade e estão, portanto, ao alcance de nossa razão. Logo, é possível modelar, manipular, criticar e até dialogar com tais representações. O sonho acordado é, assim, uma técnica que o homem possui para se distinguir do presente imediato e esboçar – de maneira imaginária – uma outra situação116.

Em sua ontologia, o filósofo enfatiza o poder da imaginação nos sonhos acordados que libera a função criadora da consciência como poder produtivo e serve para prospectar e explorar as possibilidades que existem virtualmente, as quais podem ser desenvolvidas e realizadas. Como observa Albornoz, esta é “uma função da consciência que, segundo a filósofa, o marxismo nem sempre reconheceu”117.

Bloch propõe uma reflexão para aqueles que sonham acordados as suas utopias, considerando que toda utopia nasce de um sonho diurno ou acordado e devemos ter o cuidado de não comprometer os sonhos diurnos com visões de um passado que não inovam e ratificam a mesmice.

A referência que o autor faz aos sonhos noturnos está ligada ao não mais-consciente. O sonho diurno tem um conteúdo objetivo que, para o sonhador, é algo novo que pertence à classe do ainda-não-consciente. Bloch aqui entende o ainda-não-consciente como pré- consciente do alvorecer, um conteúdo que ainda está no alvorecer da consciência que se vai surgir objetivamente no mundo118.

Assim, o autor acredita que o espírito de sonhar para frente é algo ainda-não- consciente que revela, com toda força, que o ainda-não-consciente em seu conjunto é a

representação psíquica do que ainda não veio a ser num determinado tempo e seu mundo no

114 BLOCH, Ernst. Princípio esperança. Tradução de Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Editora UERJ/Contraponto,

2005, p. 100.

115 MÜNSTER, op. cit., p. 26. 116 FURTER, op. cit., p. 82-83s.

117 ALBORNOZ, Suzana. Ética e Utopia: ensaio sobre Ernst Bloch. 2. ed. Porto Alegre: Movimento; Santa Cruz

do Sul, RS: Editora UNISC, 2006, p. 30.

118 BLOCH, Ernst. Princípio esperança. Tradução de Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Editora UERJ/Contraponto,

front desse mundo119. Este mundo do inconsciente torna-se o lucus, onde nasce o imprevisto, o novum que aponta para frente e surge como um espanto na realidade presente.

O projeto de Bloch, necessariamente, se propõe a atravessar a ponte dos “sonhos acordados”. De acordo com Furter, são provocados por nossa vontade e estão ao alcance da nossa razão, uma vez que o homem é um ser que se projeta para o horizonte, no qual realiza os seus sonhos e desejos120.

Ao sonhar à luz do dia, Münster121 explica que estamos antecipando o futuro, com “sonhos diurnos”, que estão repletos de conteúdos de consciência utópica e dão início a uma produtividade criadora.

É impossível que o ser humano viva sem sonhos diurnos, mas pode não saber aproveitá-los, por desconhecer a força e o poder que eles representam, para concretizar suas utopias. Sonhar acordado não é querer o passado, mas buscar o novum, e só o novum é capaz de mudar o mundo. Neste sentido, os sonhos diurnos transformam-se em utopias e encurtam distâncias, aproximando o homem da natureza.

119 Ibidem, p. 127.

120 FURTER, Pierre. Dialética da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974, p. 44. 121 MÜNSTER, Arno. Filosofia da práxis e Utopia concreta. São Paulo: UNESP, 1993, p. 33.

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