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Visibilidade religiosa e tramas subjetivas objetivadas

PARTE I A TRAGETÓRIA DA INVISIBILDADE À VISIBILIDADE

3.3 Visibilidade religiosa e tramas subjetivas objetivadas

A história concreta narrada pelos juremeiros do Quilombo Cultural Malunguinho e as ações desenvolvidas por meio do Kipupa e da Caminhada de Terreiros de Pernambuco fazem parte das circunstâncias históricas das relações que estabelecem o processo de visibilidade da Jurema. Foi por meio de um projeto político e intelectual de Gilberto Freyre – conjugado a todo um conjunto de práticas repressivas do Serviço de Higiene Mental, da polícia, do Governo do Estado de Pernambuco e do governo federal e, ainda dos intelectuais sob a influência freyreana – que a Jurema sofreu uma ocultação de seu reino existencial nas áreas urbanas da Região Nordeste e é por uma iniciativa política que a Jurema adentra o cenário religioso de Pernambuco. Ironicamente, a política estabeleceu a chave compreensiva para o movimento de invisibilidade a visibilidade da Jurema ou, antes, de visibilidade a invisibilidade ao expressar o percurso que o campo de pesquisa me fez assumir.

Na realização dos dois eventos havia exposições públicas que envolviam não só religiosos, mas representantes de instituições do governo. O prefeito de Recife

contribuiu com sua fala no início da Caminhada. A diretora da Secretaria de Igualdade Racial legitimou na política um discurso de origem religiosa que aborda questões relacionadas à religião, à política, à etnicidade, à identidade, à raça, todas essas amparadas na ideia de tradição das matrizes afro-indígenas. O discurso sobre a diversidade cultural e religiosa é levantado pela representante da Presidência da República. A instituição escola está presente com as professoras no Kipupa Malunguinho. Documentários foram realizados a partir das edições do Kipupa e atualmente um curta-metragem sobre Malunguinho percorre as salas de cinema do país.

As alianças estabelecidas para o processo de visibilidade da Jurema passam por instituições (arquivo público, escola, universidades prefeituras, secretarias, governos no âmbito estadual e federal), mídias, blogs, redes sociais virtuais, agentes religiosos e intelectuais. Como exemplo, no mês de abril de 2012 Alexandre L’Omi L’Odò foi convidado, pelo antropólogo José Jorge de Carvalho, a realizar um ritual religioso de Jurema na inauguração da Sede do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI), instituição ligada à Universidade de Brasília. Para legitimar a Jurema o QCM está num processo de se constituir em entidade jurídica, o que já aconteceu com a Caminhada dos Terreiros que institucionalmente é reconhecida como Associação Caminhada dos Terreiros de Pernambuco, desde o ano de 2011. De acordo com Mãe Lúcia de Oyá, membro do conselho religiosos da Associação, o status de entidade jurídica possibilita um maior poder de reivindicação para o desenvolvimento de políticas públicas para a comunidade de terreiro.

O QCM também vem discutindo a necessidade do povo de terreiro adentrar, como alunos, as universidades e eles próprios escreverem suas histórias. Essas ações levam, ainda, a entraves no próprio campo como conflitos entre os coordenadores da Caminhada e os coordenadores do QCM, o que culmina no nascimento da Rede Nacional do Povo da Jurema que, apesar de recente, é um novo instrumento de visibilidade e expressão da religiosidade que tende a ganhar cada vez mais força na disputa de poderes. Como marco da legitimidade da Jurema no campo religioso brasileiro, os membros do QCM solicitam o reconhecimento da “Jurema Sagrada [como] a religião primaz do Brasil”. Essa frase emblemática estampa uma faixa que sempre é exposta nas ações realizadas pelo QCM e nas atividades das quais atuam como participantes.

Da requisição da Jurema como a religião primaz do Brasil podemos inferir duas colocações. A primeira refere-se à consideração sobe a Jurema ser a primeira religião do país e a segunda à presença marcante da religiosidade na Região Nordeste, o que a dispõe em uma posição superior entre as outras formas religiosas, isso quando observarmos o significado do termo “primazia”. Entretanto, a primeira observação é a que se mostra instigante nesse momento em que a Jurema já possui um reconhecimento de seu lugar na seara religiosa nordestina. Ao trazer para o debate público o lugar da Jurema, os coordenadores do QCM vão de encontro à estabelecida religião brasileira, mais precisamente, à Umbanda. É o reconhecimento que essa religião possui que os juremeiros questionam como também a forte associação entre as características rituais das duas expressões religiosas. A Umbanda pode ser uma religião brasileira, mas não é a primeira. E por apresentar uma combinação entre vários elementos religiosos, inclusive indígenas, que a Umbanda, aos olhos do QCM, não pode ser considerada a primária religião do Brasil, mas à Jurema. A Umbanda apenas agregou parte da cosmologia juremeira, como me ressaltou o coordenador do QCM Alexandre.

Sobre esse último ponto, evidencio a fala de Tata Raminho de Oxóssi, juremeiro e babalorixá do terreiro de tradição jeje mais reconhecido pelo povo de santo nas cidades de Recife Olinda. Raminho diz que

A Jurema agora... o pessoal agora criou essa história de Umbanda... porque Umbanda é uma criação de Candomblé com Jurema... porque Jurema era só Jurema e Candomblé era Candomblé... misturaram agora [...] (Fala de Raminho de Oxóssi em entrevista realizada em 03 de janeiro de 2012).

Para os integrantes do QCM, opinião também expressa por muitos candomblecistas e juremeiros, a exemplo de Raminho, a Jurema é uma religião autônoma frente ao Candomblé e à Umbanda, assim é a Jurema que constitui a religião dos primeiros brasileiros, os índios, antes mesmo da chegada dos portugueses nesses nossos trópicos.

Assim, a religião é a grande fomentadora de agentes políticos que levam seus anseios para o espaço público e para a esfera pública. A Jurema, e também o Candomblé, já que não posso desmerecê-lo por compor a pertença religiosa de vários outros juremeiros para além do QCM, são religiões mágicas se seguirmos a s

perspectivas durkheimiana e weberiana expressa por Montero (1994; 2011; 2012). Entretanto, a responsabilidade moral e a busca pela igualdade de direitos em uma democracia também constitui o espaço da razão dos sujeitos religiosos em meu campo de pesquisa. A inventiva antropológica de minha investigação indica que o legado da sociologia weberiana precisa ser questionado na análise da realidade brasileira. O equívoco da interpretação de Montero (1994: 75) parte da premissa, oriunda de Weber, entre a espera de “um certo tipo de congruência entre a economia moderna e as crenças religiosas que a ela se associam”, o que a leva a considerar que o pensamento religioso brasileiro acaba por retroceder frente ao caráter racional da modernidade.

Problematizando a certeza teórica, assumida por Montero (1994:75), “da incompatibilidade entre pensamento mágico e pensamento racional”, apresento um contra argumento de que isso só é possível se desconsiderarmos os sujeitos religiosos como sujeitos morais. A ausência de responsabilidade moral nos leva compreensão de sujeitos míticos dentro de uma análise que considera apenas a identidade formada pela mitologia religiosa e por especificações rituais. Mas fora a Jurema como uma religião mágica que fomentou o processo de visibilidade no campo religioso dela mesma e, mais ainda, foram as religiões afro-indígenas que iniciaram ou potencializaram a vontade para a participação política dos religiosos no espaço público, exigindo a deliberação democrática na esfera pública. Para além de religiões étnicas, essas religiosidades mágicas são éticas.

Weber formulou muito bem o jogo de linguagem que apresentou em suas análises, porém é hora de descontruímos sua ciência canônica e revermos como os conceitos de modernidade, secularização, racionalização e religião, foram forjados pelo autor. Meu intento é demonstrar que a religião na modernidade pode afirmar um poder emancipador, ainda que incipiente, que o processo de racionalização e secularização, tal qual instrumentalizado pelas ciências sociais, não percebe ou ignora.