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O retrato do santo protagonista e o começo de seu ministério em Viena ocupam o segundo e terceiro capítulos da obra. Como podemos observar, a primeira descrição de Desidério enquadra-se temporalmente entre seu nascimento e sua juventude, a etapa anterior a seu bispado41. O hagiógrafo começa falando sobre a família do santo, de sua linhagem, nascido de uma família romana de estirpe nobre, de sua virtude precoce e da educação que recebeu. Depois apresenta as qualidades naturais do santo passando assim a narrar seus atos e retomar, mediante litotes42, nas linhas seguintes, suas qualidades: um homem humilde, sóbrio, sincero, e que desconhece a ganância.

Neste momento conseguimos localizar alguns topói recorrentes neste tipo de literatura que segundo Ana Paula Tavares Magalhães figuram como importantes dentro do texto hagiográfico: A idéia de abandono – salvo poucas exceções, o santo nasce “de estirpe nobre”, e dessa forma é educado. Uma das características fundamentais que nos transparecem no texto hagiográfico da Alta Idade Média, diz respeito a uma relação de continuidade, que pode ser atestada pela antropologia, entre o chamado “mundo clássico” e a Idade Média. Essa continuidade seria operada por intermédio da ação de pelo menos três fatores, a saber: os elementos latinos, a religião cristã e a interação de ambos no interior dos reinos bárbaros que se formavam. (...) Assim, nosso santo é, em geral, um membro da aristocracia romana (como se vê em “nascido de uma família romana de estirpe nobre”), o que vem ainda, ao encontro da tese da romanização pela qual passaram alguns povos que adentraram o Império, bem como a indissociabilidade entre cristianismo e Império Romano, que devem ser vistos não como elementos

41 VD, 2

42MARTIN IGLESIAS, Jose Carlos. La Caracterizacion de los personajes y tópicos del gênero hagiográfico en la Vita Desiderii de Sisebuto. In: Separata de Helmantica, Vol XLVIII, num 145- 146.Salamanca: Universidad Pontificia de Salamanca, 1997, p.144.

opostos, mas justapostos. E ainda, como membro do patriciado romano (estamos falando em termos ideais, utilizando como base o critério da verossimilhança e não da veracidade) esse mesmo indivíduo “foi confiado ao estudo das letras” – querendo isso significar o aprendizado da língua e da literatura latinas (“aprendeu plenamente a arte da gramática”), para além da Sagrada Escritura. No entanto, ele deve abandonar algo, sejam bens terrenos ou direitos que lhe pertencem. Nesse caso, Desidério, que não sentia orgulho, nem gula, nem luxúria, nem fraquezas em sua fé, e nem amor ao dinheiro, “não tinha passado seus anos da juventude voltado para as coisas terrenas da luxúria43”.

No que diz respeito aos seus anos de juventude, como expõe Sisebuto, não tendo passado seus anos voltados às coisas terrenas da luxúria, vemos que o autor pode estar ressaltando um problema presente no contexto do reino visigodo do século VII, dentro das preocupações concernentes à Igreja e que o próprio poderia ter se abstido. Para tanto, atentemos ao que dita o IV Concílio de Toledo de 633 em seu cânone XXIV.

Qualquer idade para o homem, a partir da adolescência é inclinada para o mal; não há nada mais inconstante que a vida dos jovens. Por isso convém estabelecer que se entre os clérigos há algum adolescente na idade da puberdade, todos morem sobre o mesmo teto junto à Igreja, para que passem os anos da idade escorregadia, não na luxúria, mas sim nas disciplinas eclesiásticas, confiadas a algum ancião muito compromissado a quem tenham como mestre da doutrina, e testemunha de sua vida. E se houver entre eles algum órfão, que seja protegido pela tutela do bispo para que sua vida seja salva de qualquer atentado criminoso, e seus bens das injustiça dos malvados. E para aqueles que se opuserem a isto que sejam trancados em algum monastério, para que os ânimos inconstantes e soberbos sejam reprimidos com severa norma44.

Do ponto de vista lingüístico, como mostra-nos José Carlos Martín Iglesias, nesta descrição de Sisebuto, não há um traço na caracterização de Desidério que podemos considerar individualizador da figura do santo45. Em um primeiro plano, Sisebuto deixa de lado a descrição física do personagem, e não somente nesta passagem, como veremos.

Desta forma, a descrição de que o hagiógrafo se ocupa é a do retrato moral do

43 TAVARES MAGALHÃES, Ana Paula. A hagiografia como fonte para Antropologia. Aula Pós Graduação, dia 02/10/08.

44 CONCÍLIOS VISIGÓTICOS E HISPANO ROMANOS. Ed. Bilíngüe ( latim espanhol) de J. Vives. Barcelona, Madrid: Csis, 1963. pp.201-202

santo. Como na descrição de sua linhagem e de sua educação, a descrição moral é idealizada, o santo configura-se como um modelo de virtudes, o qual parece basear-se principalmente no padrão bíblico descrito em Mateus (25, 35-6) no que diz respeito a suas obras de caridade. Esta colocação somada ao procedimento de realce por meio da anáfora do não46, como sugere Martín Iglesias, configura-se como:

“Um martelo no ouvido do ouvinte, e ao mesmo tempo destaca o procedimento habitual da descrição positiva de traços, sendo que com isso Sisebuto buscou o que está em desuso, o que choque o leitor; e em um segundo momento recorda a lista dos dez mandamentos com o que teríamos aqui, também, ressonâncias bíblicas”47. Parece-nos claro que Sisebuto concebe um retrato, como dito acima, idealizador do santo, seguindo os moldes do gênero hagiográfico que se propôs a escrever. Busca exaltar através do santo protagonista um ideal religioso, e para isso apresenta o mediador como a encarnação de uma série de virtudes, mostrando que o plano religioso, neste momento, é o mais importante.

Com relação à nomeação de Desidério ao bispado, Sisebuto por um lado ressalta as qualidades extraordinárias do santo, o que garante a este uma enorme popularidade, fazendo com que diversas cidades desejem que seja seu bispo. Finalmente, opondo-se à idéia de grandiosidade, pois Desidério nega ser digno de tão grande ministério por não ter habilidade suficiente para tal tarefa, este aceita a Igreja de Viena, e segue uma caracterização do santo como um grande bispo.

Vita Desiderii IV

Aparecem, no texto de Sisebuto, dois personagens que, a nosso ver, configuram- se mais como protagonistas do que coadjuvantes em relação ao santo ao qual a Vita é dedicada: o rei Teodorico e sua avó Brunhilda. Vemos que estes dois personagens, até a morte de Teodorico, aparecem sempre juntos no relato hagiográfico. Sisebuto apresenta- os em meio à primeira conspiração orquestrada contra o santo. Assim, na caracterização

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CAP 2, 12- O orgulho, o inimigo de toda a virtude, não possuía, nem ele se sentia uma vítima da embreaguês forte. Ele não sofria com a gula, nem a luxuria insaciável o corrompia. Mentiras enganadoras não balançavam sua resolução, sua fé, nem o amor fatal do dinheiro o tentava.

do monarca visigodo:

“(...) de fato, durante o reinado de Teodorico, um homem digno de toda a loucura, e Brunhilda, a favorecedora das piores práticas, a mais íntima amiga dos maus, reuniram-se com uma mulher casada que era de linhagem nobre, mas de caráter infame, de nome Justa, mas detestável em suas ações, com honra em seu nome, mas mais vergonha em suas ações, desprovida de boas qualidades e extremamente carregada do mau, ignorante da verdade e nunca fora do crime”48.

Fica evidente que Sisebuto faz uma caracterização empenhada em acentuar o lado negativo dos monarcas borgúndios. No episódio que narra a conspiração contra o santo não fica claro existir ação direta dos reis nos feitos que culminaram com sua condenação.

Por um lado, devemos pensar que de fato a participação dos reis no exílio do santo foi maior do que o próprio hagiógrafo conseguiu descrever. Sobre a condenação de Desidério e sua ida ao exílio, Fredegário, cronista franco mostra-nos, diferentemente de Sisebuto, que Brunhilda teve participação na conspiração, deixando de lado o seu neto Teodorico:

“No ano de 602 um sínodo de bispos foi convocado para a cidade de Chalon, na Borgonha, Desidério, o bispo de Viena, foi removido de seu bispado em Viena e enviado ao exílio pela malícia de Brunhilda e Aridius, o arcebispo de Lyon”49.

Por outro lado, Gregório de Tours, influente prelado franco do período, em sua obra A História dos Francos, no livro IV, caracteriza Brunhilda diferentemente de Sisebuto e Fredegário:

“Quando o rei Sigiberto viu que seus irmãos estavam tomando esposas indignas deles, e para sua vergonha estavam casando-se com mulheres escravas , ele enviou um embaixador a Espanha com muitos presentes pedindo Brunhilda, filha do rei Atanagildo. Ela era uma bela donzela em sua pessoa, amável a se olhar, virtuosa e bem comportada, com bom senso e um endereço agradável. O pai não quis recusar, mas a mandou para o rei que nomeio aqui com grandes tesouros50.

Fazemos algumas ressalvas às colocações dos dois autores francos.

48 VD, 4.

49 FRÉDEGAIRE. Chronique des temps mérovingiens. Traducion, intrdoducion et notes par Oliver Devillers et Jean Meyers. Belgium: Brepols, 2001. Cap 4.24. A partir de agora citaremos FREDEGÁRIO Chorno capítulo e a passagem referente.

50 GREGOIRE DE TOURS. Histoire des Francs. Ed. francesa de R.Latouche Paris : Lês Belles Lettres,1996, Tomo 1. livro 4 cap 27. A partir de agora citaremos HF o livro e o capítulo referente.

Primeiramente sobre Fredegário, pois este pertence a uma facção nobiliárquica que não comungava dos interesses dos aristocratas da Austrásia, assim podemos entender a caracterização de Brunhilda como um ataque àqueles que não faziam parte de suas aspirações políticas. No que diz respeito a Gregório de Tour, tratando sobre a aliança entre o reino franco e visigodo e sua caracterização de Brunhilda, José Manuel Pérez Prendes Muñoz-Arraco, mostra-nos a problemática desta união:

“Os efeitos dessa união eram muito diversos. Talvez não sejam interessantes aqui os procurados pelo sogro Atanagildo, interessado em conseguir um bom relacionamento com os francos para centrar sua política em questões bizantinas e suevas. Mas muito menos conjuntural era o ponto de vista Sigiberto, para quem era vital prestigiar sua imagem, em contraste com a vida dissoluta de amores simultâneos de seus irmãos”51.

Desta forma, vemos que Sisebuto, em sua primeira caracterização dos monarcas francos, carrega de um sentido maléfico a figura de Brunhilda e Teodorico, que como veremos posteriormente, passará a uma nova caracterização no decorrer do relato hagiográfico.

Do ponto de vista da ACD vemos novamente um exemplo de reflexividade em que Sisebuto, ao construir em seu relato as identidades de Teodorico e Brunhilda, contesta-os diretamente, o que nos remete ao critério da fragmentação que, aplicado na análise da hagiografia, identifica a segmentação dos indivíduos em categorias sociais, o grupo dos perseguidores e o dos perseguidos, isolando aqueles cuja posição e postura afronta as relações de dominação. Esse seu isolamento ou fragmentação os enfraquece, destituindo-os de qualquer iniciativa que não sirva à manutenção do poder. Ademais, vemos por meio das estratégias predicativas um distanciamento direto entre os persecutores, o santo e o próprio hagiógrafo por meio da representação e adjetivação negativa do primeiro grupo em relação a Desidério e a Sisebuto.