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CAPÍTULO II PERSPECTIVA TEÓRICA

2.1 Vivência

A categoria vivência é de extrema importância na obra de Vigostki. Ela expressa as relações entre os processos psíquicos individuais e o meio social. Sua conceituação, no

entanto, é complexa e de difícil definição, pois sofreu transformações ao longo da obra de Vigostki (Toassa & Souza, 2010).

Segundo Toassa e Souza (2010), o termo vivência emerge na obra de Vigostki, relacionada a diversos processos psicológicos no desenvolvimento humano. Tal fato acompanha a etimologia da palavra perejivânie que corresponde a própria existência do sujeito. É um conceito que traduz a ideia de processo e ao mesmo tempo de produto, relacionado a interpretação pessoal da relação sujeito e meio social.

Na obra de Vigostki, o conceito de vivência aparece com sentidos diferentes, embora o segundo guarde algumas características do primeiro. Em um primeiro momento, a vivência tem um sentido mais próximo das emoções e distante dos aspectos racionais e corresponde a um processo psicológico em que a relação entre sujeito e objeto tem um forte impacto para o sujeito, pois trata-se de um acontecimento marcante, relacionando-se aos conflitos entre processos racionais e irracionais. As vivências não correspondem diretamente aos acontecimentos do mundo exterior, mas sim aos sentidos elaborados pelo sujeito após a experiência, vinculando-as aos sentimentos e sensações (Toassa & Souza, 2010).

No segundo momento, Vigostki modifica o olhar para as vivências, incluindo a ação do pensamento junto as emoções, minimizando um pouco a intensidade do impacto emocional. Nesse momento, Vigostki, ao estudar a consciência, o faz sem reduzi-la a um sistema exclusivamente racional, pois parte da vivência enquanto unidade de análise sistêmica, e, portanto, agrega tanto os aspectos racionais (pensamento) como irracionais (emoções e sensações) (Toassa & Souza, 2010).

As mudanças nos conceitos estudados por Vigostki sofrem influência do marxismo, que torna-se em sua obra uma referência essencial. Vigostki vai elaborando sua teoria histórico-cultural dos processos psicológicos superiores, a exemplo da consciência, tomando- a como sistema. Para esse entendimento, vai tomando como referência também a psicologia

da Gestalt, ao utilizar o método subjetivo-objetivo em que se pode utilizar dos pontos de vista descritivo e introspectivo para a análise da consciência e da personalidade. Com essas duas influencias, sua teoria elenca a importância do todo em relação às partes e a análise das relações entre as estruturas que compõem essa totalidade (Toassa & Souza, 2010).

Aproxima-se da ideia de que os sujeitos interpretam, experienciam, ou seja, vivenciam de formas diferenciadas, uma determinada situação objetiva. No entanto, a vivência, ou perejivânie, não pode ser reduzida ao termo experiência, que na obra de Vigostki assume outro sentido (Souza & Andrada, 2013). As vivências são acompanhadas das emoções e sensações do sujeito, e por isso, este jamais se posiciona de forma indiferente diante de uma vivência, enquanto que a experiência nem sempre marca o sujeito, desencadeando apenas lembranças. Isso significa que os sujeitos podem ter várias experiências ao longo da vida, no entanto, nem todas as experiências irão se constituir em vivências. As análises de Vigostki buscavam explicar de que forma uma experiência se transforma em vivência para o sujeito (Marques & Carvalho, 2014).

De acordo com Toassa e Souza (2010), para Vigotski, todo processo psicológico superior e sua ação no mundo apresentam uma face vivencial. Dessa forma a vivência agrega o sentido emocional e interpretativo, integrando os aspectos da vida psíquica.

O conceito de vivência corresponde a um verbo imperfectivo, ou seja, que indica uma ação inacabada, demonstrando o fluxo de determinado acontecimento, seja no passado, pretérito ou futuro, mas que não se pode precisar se este terminará, pois, representa tanto uma ação processual, quanto os resultados dessa ação. No caso da vivência, esta inconclusividade é também percebida pela necessidade de um complemento, ou seja, “a vivência é sempre vivência de algo” (Toassa & Souza, 2010, p. 760).

A vivência atua como unidade de análise da relação entre a consciência e o meio e está presente desde o nascimento, modificando-se qualitativamente, conforme o desenvolvimento

dos demais sistemas psicológicos. O desenvolvimento das vivências impulsiona outra unidade de análise da consciência – o processo de tomada de consciência, que por sua vez, está relacionado a forma como os sujeitos compreendem o meio e os acontecimentos (Souza & Andrada, 2013).

Ao abordar os conceitos de sistema e vivência, Vigostki destaca a importância do meio social para o desenvolvimento, porém sem reduzir a questão a um determinismo social, pois o fazia a partir de uma perspectiva materialista dialética, afirmando a constituição do psiquismo através da cultura, distanciando-se das psicologias que dicotomizam o meio e o indivíduo, o subjetivo e o objetivo. Para Vigostki, a superação dessa dicotomia poderia ser realizada através da utilização dos conceitos de estrutura e sistema (Toassa & Souza, 2010).

As vivências vão sendo definidas na obra de Vigostki como unidades de análise da relação entre a consciência e o meio e as circunstâncias que a envolvem. A vivência passa a ser utilizada como ferramenta para analisar o desenvolvimento da criança e sua relação com o meio, atuando como mediadora entre sujeito e meio no processo de tomada de consciência. Para Vigostki, no entanto, o meio não corresponde apenas ao ambiente externo, mas aos aspectos do ambiente que são subjetivados pelo sujeito. Sendo assim, a vivência é desencadeada por uma situação especifica, que Vigostki denominou de Situação Social de Desenvolvimento (SSD) e que corresponde a dinâmica entre interno e externo e que tornará um evento exterior em um evento psicológico (Souza & Andrada, 2013). Essa dinâmica é singular, tornando as vivências únicas para cada pessoa, pois cada pessoa irá atribuir um sentido próprio para elas (Marques & Carvalho, 2014).

Assim, esse conceito vai tomando importância na sua teoria, modificando alguns aspectos que se fizeram presentes num primeiro momento, como a oposição entre razão e emoção. O conceito então se amplia, contemplando todo o tipo de conteúdo mental, em que se inclui as diversas idades e situações da vida. Em sua obra, o conceito de vivência vai sendo

utilizado com adjetivos, sendo tratadas como vivências intelectuais, sociais, sensoriais, afetivas, etc. (Toassa & Souza, 2010).

Para Vigostki, “a criança vivencia sua realidade de um modo qualitativamente superior com relação à idade antecedente” (Toassa & Souza, 2010, p. 768). No entanto, nem sempre essa reestruturação pode ser efetivada no meio social, necessitando de ajustes entre as vivências e o meio, o que seria então o aspecto para a emergência das crises do desenvolvimento (Souza & Andrada, 2013). Essa ideia é central na teoria histórico-cultural de Vigostki, denominada de Lei Genética Geral do desenvolvimento humano, a qual determina que todo processo psicológico inicia “em-si, torna-se para-os-outros e depois para-si” (Vigotski, 1994 citado por Toassa & Souza, 2010, p. 770).

O conceito de vivência demonstra assim, que não há prevalência das características individuais ou do meio, mas é a relação entre os dois que impulsionam o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, como a consciência, de forma que cada crise do desenvolvimento integra as etapas antecedentes e posteriores (Souza & Andrada, 2013). Nessa relação, o meio social, para Vigostki, apresenta sentidos opostos (positivos e negativos) na relação da criança com um objeto (Toassa & Souza, 2010).

A vivência é dinâmica e dialética, processo que relaciona movimento, mudança e síntese, elaborados pelos sujeitos no meio social a partir das relações e situações experienciadas. As vivências, no transcurso da ontogênese, passam a articular o núcleo interno (representações, ideias, ou seja, os processos mentais singulares) e o núcleo externo (a percepção dos objetos), atuando assim como unidade dinâmica da consciência (Toassa & Souza, 2010; Souza & Andrada, 2013).

Essa articulação vai se expressando de forma mais nítida a partir da crise dos sete anos. Antes disso, a criança não faz a diferenciação entre sensações internas e externas, e por isso, manifesta suas emoções tal como as sente, de forma espontânea. Com a crise dos sete

anos, a criança incorpora um fator intelectual ao seu modo de agir, significando de forma consciente os acontecimentos ao seu redor, e, portanto, compreendendo suas vivências (Vigostki, 1933-1943/2009). Esse salto qualitativo faz com que a criança passe a desenvolver novas relações com a realidade e com seus sentimentos e afetos. O fator intelectual proporciona que a criança passe a atribuir sentido a sua vivência. Ao se apropriar da linguagem, as crianças passam a diferenciar o mundo interno e externo, e então a ter consciência de suas emoções e do que lhe afeta (Marques & Carvalho, 2014). Em tal mudança, a criança passa a atribuir sentidos mais complexos as suas percepções, que passam a ser mediadas por vários fatores, impulsionado o seu desenvolvimento (Souza & Andrada, 2013).

Os núcleos interno e externo apresentam predominâncias diferentes em cada vivência, sendo algumas mais marcadas pela percepção dos objetos, outras pelos processos mentais dos sujeitos. Essa diferença na articulação leva o sujeito a consciência de si e do mundo. Nesse sentido, a consciência das vivências é o próprio processo de tomada de consciência (Toassa & Souza, 2010).

A relação entre a vivência e a tomada de consciência ocorre através da linguagem. A linguagem é responsável por uma transformação significativa nas relações sociais, em que a criança vai se tornando consciente dos outros e de si mesma, formando conceitos e passando a atribuir sentidos para si e para o seu meio (Toassa & Souza, 2010).

Assim, no segundo momento de sua obra, o conceito de vivência vai assumindo o caráter de uma ferramenta metodológica a ser utilizada na análise do desenvolvimento humano (Toassa & Souza, 2010). Mas além de uma ferramenta, a vivência corresponde sobretudo a significação das experiências para os sujeitos, carregadas de conteúdo emocional e desencadeadas por uma determinada situação social de desenvolvimento (SSD). A vivência, então, poder ser entendida como essa unidade da consciência que revela a personalidade do

sujeito e como este manifesta suas motivações, afetos e pensamentos na relação com o meio social (Souza & Andrada, 2013).

Dessa forma, se o desenvolvimento é impulsionado pelas vivências, como a experiência das medidas socioeducativas afetam a consciência desses jovens? Busca-se então analisar de que forma as vivências proporcionadas pelo cumprimento das medidas socioeducativas trazem contribuições para o desenvolvimento desses jovens, trazendo novos elementos para a mudança de vida ou construção de projetos vida.