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Viver, escrever e inventar 15 um fim: o improrrogável

Olhando para trás, vemos que esta dissertação percorreu um caminho interessante. Inicialmente, se debatendo com as tantas possibilidades de escrita e análise, se lançou no desafio de uma escrita leve, com os contornos que a vida pede. Mas que vidas são essas? Numa mistura do que é meu, das mulheres que ouvi e daquelas que vieram antes, sabíamos que a infâmia preenchia boa parte de nós.

Depois, uma boa dose de História foi necessária, para situar-nos do quanto as mulheres já percorreram para que chegássemos até aqui. Fica claro que não desejamos tomar a história como um processo de evolução contínua e que caminharia sempre para o progresso, pelo contrário, na luta das mulheres, nem sempre saímos vitoriosas. Benjamin (2012) já apontava o quanto esse idealde progresso foi custoso. De uma “história geral” das mulheres, fomos paulatinamente olhando para a constituição do povo brasileiro e das mulheres do sul do Brasil. Mais uma vez, fica clara a relação de um passado que insiste em deixar suas marcas no presente, especialmente naquelas feridas que não foram tratadas. As infâmias de ontem e hoje soam como inflamações deixadas de lado, mas que, por vezes, como quando vai chover, começam a deixar um cheiro fétido, causando asco em quem se aproxima e anunciando o subterrâneo invisível.

Aportando no cais das poucas certezas sobre quem somos, chegamos no momento de pensar o que queremos em termos éticos, estéticos e políticos ao escrever as histórias dessas mulheres. Retomamos então algumas noções deixadas por Walter Benjamin sobre os cacos da história, colocamo-nos como trapeiros, juntando os dejetos de nosso tempo. Faz-se uma junção com a ideia de biografema de Roland Barthes, que visa justamente contar a história por meio dos detalhes ínfimos de uma vida, daquilo que passaria despercebido dos grandes relatos épicos da História.

Em seguida, nos debruçamos sobre o território em que essas histórias se passam. É nesse cenário, escrito a partir da estratégia biografemática de dar vida aos pontos comezinhos do cotidiano, que vemos aos poucos se deslindar as personagens de nossas histórias. É como se o puzzle do cotidiano estivesse montado para receber as mulheres infames desta pesquisa. Portas e janelas ficam escancaradas para receber ao sabor dos ventos e de algumas páginas de livros, comentários úmidos sobre o que se passa entre o que vivem as mulheres e o que se diz sobre elas. 15 Em referência ao já citado artigo de Baptista e Silva (2017).

Por fim, olhando para o escuro do nosso tempo, como Agamben sugeriu, vemos outras infâmias, das histórias silenciadas e jogadas para debaixo do tapete. Mescla-se ali, relatos das nossas vergonhas íntimas e públicas que, por não terem lugar nos discursos correntes, tendem a se repetir. O ressentimento volta como sintoma social, daquilo que no lugar de uma elaboração coletiva foi recalcado. São as histórias daqueles que, raivosos, clamam por menos direitos àqueles que tomam como privilegiados nas narrativas de nosso tempo. Nessa fita de moebius dos tempos atuais, dos narcisismos das pequenas diferenças, escutamos o infame silêncio que circunda as histórias que não se quer ouvir.

Nesse momento da escrita, desejosos de uma conclusão que nos apartasse de dúvidas e conflitos quanto a escolhas feitas ao longo do texto, tomamos partido na Comunidade do Improrrogável, este que

diz-nos respeito e fala-nos de um tempo de urgência, de tensões das quais gostaríamos de nos livrar e para as quais desejaríamos resoluções. Coloca-nos em um estado de luta contra algo, e, provavelmente, contra nós próprios, invadindo-nos com sua estridente sirene, como um grito de perigo lançado no meio da noite, alagando de medo, dor e sofrimento os espaços de nossa existência. (FONSECA, 2017, p. 12).

É assim que nos vemos diante de um texto a ser escrito, nesse íntimo momento em que sozinhos nos lançamos a pautar aquilo que pensamos ser improrrogável. Ao mesmo tempo, habitam questões como as que Costa e Amaral (2017) fazem no editorial do Dossiê O Improrrogável: exercícios de tateio:

O que estamos escrevendo com tudo isso que escrevemos? O que se espreita – ou engatinha ou rasteja ou agoniza – em mais um texto que hoje nos colocamos a escrever? Qual pacto ou contrato que este texto (e não outro) estabelece com o mundo de ontem e com o de hoje e com o de depois de amanhã? (p. 1).

As respostas a estas questões não então prontas, tampouco respondidas ao longo da dissertação, talvez só apareçam no porvir do texto. Mas de alguma forma, compomos e lançamos ao mundo fragmentos de vidas que aí estão. De alguma maneira, foram lançadas questões (mais do que respostas) às políticas públicas e ao modo como pensamos tais sujeitos e nós mesmos enquanto produtores/reprodutores de práticas no mundo.

Para além de uma posição ressentida quanto aos acontecimentos inelutáveis do mundo, tomamos o improrrogável, tal qual Fonseca (2017), em seu plano de urgência, mas que dada sua

complexidade, não encontra solução única e final. Essa busca de um por vir, de um direito ao devir, como Riobaldo que ao adentrar nas veredas do sertão, nos incita:Viajar! – Mas de outras maneiras: transportar o sim desses horizontes!16, apostamos em outras escritas enquanto tarefa

improrrogável.