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Viver o tempo da diferença: história do presente e práticas de liberdade

4. ONTOLOGIA DO PRESENTE E ACONTECIMENTO: AS PRÁTICAS DE LIBERDADE

4.2 Viver o tempo da diferença: história do presente e práticas de liberdade

A história contínua é solidária de um tipo de experiência com o tempo e com o passado que Foucault denominou uma experiência longitudinal com o passado, em que este é visto em uma relação de continuidade com o presente. Foucault, de modo diferente, propôs-se a pensar o passado sob a perspectiva sagital, o passado como flechas que se lançam no coração do presente. Qual é a diferença entre a consideração longitudinal e a sagital do passado, e quais as consequências dessa experiência distinta do tempo?

Na experiência longitudinal com o passado a memória obedece a um modelo metafísico e antropológico; metafísico na medida em que a lembrança do passado é tomada em seu sentido cronológico, como um desdobramento contínuo de um tempo único em direção ao presente; antropológico porque pressupõe a identidade fixa do sujeito em que essa memória pode se alojar, já que à memória

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cabe o reconhecimento do passado como identificação de um tempo situado em um único eixo.

De modo diferente, a experiência sagital com o passado se apoia sob uma noção de contra-memória, em que o tempo é tomado como diferença e, portanto, o passado é considerado em uma temporalidade múltipla com efeitos de desidentificação do sujeito em relação ao seu passado, já que não se trata, na lembrança, do sujeito se reconhecer no passado, mas de percebê-lo como diferença múltipla em relação a seu presente.

Em 1963, Foucault, falando sobre os escritores de Tel Quel, dá algumas pistas para uma melhor compreensão desse sentido sagital do passado quando afirma que há entre as obras desses autores uma articulação discursiva que tem a propriedade de:

[...] restaurar o tempo, não para fazer nele coabitarem as formas sucessivas em um espaço de percurso (como em Robbe-Grillet), mas de preferência para deixá-las vir em uma dimensão sagital – flechas que atravessam a densidade diante de nós. Ou ainda, elas vêm em acréscimo, o passado não sendo mais o solo sobre o qual estamos, nem uma ascensão até nós sob a forma da lembrança, mas, pelo contrário, sobrevindo a despeito das mais velhas metáforas da memória, chegando do fundo de tão próxima distância e com ela: ele adquire uma estatura vertical de sobreposição onde o mais antigo é paradoxalmente o mais próximo do cume, crista e linha de fuga, alto lugar de inversão22. Foucault insistiu, em vários momentos, sobre uma das questões mais importantes que ele via presente no pensamento contemporâneo, a necessidade de pensar e viver de modo diferente o tempo, já que “tudo o que organizava essa consciência [do tempo e da história], tudo o que lhe dava uma continuidade, tudo o que lhe prometia um acabamento se desmorona”23

. Daí a exigência em viver de modo diferente o tempo, o que significa para ele, sobretudo, viver o tempo da diferença.

22

FOUCAULT, M. Distance, aspect, origine. Dits et Ecrits I, n. 17, 1963, p. 276.

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O sentido do tempo como uma flecha que se lança em direção ao presente deve ser compreendido pelo menos em dois sentidos principais. Primeiro, que as flechas indicam a verticalidade como espacialização do tempo, um tempo de espaços múltiplos (já que plural); a dispersão do tempo em cronologias variadas que correspondem às configurações espaciais diversas de uma experiência passada. A cronologia linear é aqui substituída por uma topologia do tempo, em que tanto o passado quanto o presente não são vistos como momentos sucessivos, mas como espaços que possuem configurações diversas, em que a análise histórica se torna mais o trabalho de um cartógrafo do que de um historiador. Em segundo lugar, essa espacialização do tempo vem em direção ao presente como flechas, como armas que visam desestabilizar a tranquilidade de uma lembrança reconfortada em uma identidade única e centrada; flechas que têm como efeito indicar o presente em seu espaço de alteridade, de diferença em relação a outros espaços de tempo passado.

Há um texto de Foucault, publicado em 1982, sobre a música atonal e serial de Pierre Boulez24, em que se encontra uma importante análise do filósofo sobre a relação entre o passado e o presente, que se mostra bastante esclarecedora para os propósitos aqui considerados de entender essa difícil relação. Sendo convidado a falar sobre a música de Boulez, Foucault afirma que não é capaz de falar da música, mas tão somente falar da experiência propiciada pela música de Boulez, que foi aquela de se sentir estranho no universo do pensamento filosófico em que ele havia se formado. Para falar dessa experiência, Foucault destaca dois aspectos principais, primeiro, o sentido de estética como o trabalho sobre o formal e, em segundo lugar, a nova relação com o passado que ele percebe como característica da música de Boulez.

Primeiramente o problema do formal. Segundo Foucault, Boulez vê o século XX “por um ângulo diferente do pensamento que estabelecia o privilégio do vivido, do sentido, da experiência originária, dos conteúdos subjetivos, das

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significações sociais, com Boulez é a batalha do formal”25

; um certo envolvimento em torno de uma maneira de pensar que ele designou formal, presente, segundo ele, na música, na pintura, na arquitetura, na filosofia, na linguística e na mitologia do século XX. Segundo Foucault, a cultura é quase sempre pensada a partir dos seus valores e não se considera suficientemente o papel do formal. O formal é o aspecto propriamente estético da cultura, são “as maneiras de ver, de dizer e de pensar”26

. Fica evidente, no modo como Foucault apresenta Boulez, o quanto o seu pensamento se via próximo dessa definição de formal, quando seu trabalho se voltou totalmente para os dispositivos, entendidos como os modos do fazer histórico que concorrem para a constituição do sujeito.

O segundo aspecto destacado por Foucault neste texto, e mais importante neste momento, se refere à nova relação que Boulez estabeleceu, no âmbito da música, entre o seu presente e sua história, o seu passado. Trata-se mais especificamente da relação com a história de sua própria prática, ou mesmo poder-se-ia dizer, a relação do presente com a história do formal na música. Segundo o filósofo, Boulez não pensaria o passado como um modelo fixo que se pretendesse fazer variar através da música atual. Tratava-se, nessa nova relação com o passado de procurar:

[...] fazer de forma que nada se tornasse fixo, nem o presente, nem o passado. Ele os queria, todos os dois, em perpétuo movimento de um em relação ao outro; quando ele se aproximava mais de uma dada obra, reencontrando seu princípio dinâmico a partir de sua decomposição tão tênue quanto possível, ele não procurava constituir um monumento; ele tentava atravessá-la, „passar através dela‟, destruí-la em um gesto tal que ela pudesse agitar o próprio presente27

A relação entre passado e presente é de dinamismo recíproco, a relação com o passado não busca formas canônicas de identificação, seu objetivo é olhar o passado como a possibilidade de relações múltiplas e diferenciadas com 25 Ibidem, p. 220. 26 Ibidem, p. 220. 27 Ibidem, p. 221.

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o presente, já que o que movimenta presente e passado nessa relação é “o movimento que separa um do outro através da elaboração de um e de outro”28

. Essa relação não é relação de um presente que julga o passado ou é julgado por ele, é uma relação “que marca pontos de intensidade que seriam também objetos a refletir”29

. Foucault insiste em dizer que o papel da crítica do presente não é julgar o passado, mas estabelecer outra relação com o presente:

Eu não posso me impedir de pensar em uma crítica que não procuraria julgar, mas que ao fazer existir uma obra, um livro, uma frase, uma idéia [...] ela multiplicaria não os julgamentos, mas os sinais de existência; ela os provocaria, os tiraria de seu sono.30 Foucault termina este belo texto sobre Boulez, que se parece tanto com suas próprias perspectivas em relação à história, indicando as consequências para o pensamento de tal atitude perante a história; segundo ele o que Boulez esperava do pensamento era que:

[...] ele lhe permitisse sem cessar fazer outra coisa diferente do ele fazia. Ele lhe demandava abrir, no jogo tão regrado, tão refletido, que ele jogava, um novo espaço livre [...] mas o essencial para ele era isto: pensar a prática o mais próximo de suas necessidades internas sem se dobrar, como se elas fossem exigências soberanas, a nenhuma delas.31

Observa-se que se se pensa a história das práticas em sua singularidade e em sua contingência, como mostrou ser também o objetivo de Foucault, é para partindo das regras que organizam essas práticas, confrontá-las com as demandas de transformação do presente, demandas que são também aquelas da liberdade, afinal, como pergunta o próprio Foucault “qual é, portanto, o papel do pensamento em relação ao que se faz se ele não deve ser nem simples saber-fazer, nem pura teoria? Boulez o mostrava: dar a força de romper as regras 28 Ibidem, p. 222. 29 Ibidem, p. 222. 30

FOUCAULT, M. Le philosophe masqué. Dits et Ecrits IV, n. 285, 1980, p. 106.

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176 no ato que as coloca em jogo”32

. Nesse ponto se delineia de modo mais claro o duplo aspecto dessa nova relação entre o presente e o passado; por um lado ela visa à descrição das práticas que constituem nossa atualidade como diferença, de outro lado reafirma o papel dessa descrição como elemento imprescindível para a elaboração de novas práticas, já que estas são entendias como práticas de transgressão.

A relação com o passado visa estabelecer o que Foucault designou como a principal característica da filosofia contemporânea: realizar um diagnóstico do presente, de nossa atualidade. Ocorre que só é possível fazer o diagnóstico do presente na medida em que se possa indicar “em que nosso presente é diferente e absolutamente diferente de tudo o que não é ele, ou seja, de nosso passado”33

. O modo como Foucault entende o diagnóstico, como história do presente enquanto diferença, implica necessariamente o confronto do presente com o passado que dele difere. É frequente a utilização da palavra “diagnóstico” no vocabulário do filósofo francês, pois que a palavra indica, em sua generalidade, o trabalho de identificar a existência de um doença pelos sintomas, que são as manifestações da diferença no corpo provocada pela doença. Foucault define a filosofia como uma atividade diagnóstica: “por conhecimento diagnóstico eu entendo, em geral, uma forma de conhecimento que define e determina as diferenças”34

. É a diferença e não a continuidade com o passado, que permite ao presente se mostrar em sua forma própria. Segundo o filósofo, a história que ele procura contar é a “história da perpétua diferença; mais precisamente, contar a história das ideias como conjunto de formas especificáveis e descritíveis da não- identidade”35

.

Para se entender melhor o sentido do presente como diferença e como não identidade é proveitoso atentar-se para as críticas que Foucault endereça a

32

Ibidem, p. 106.

33

FOUCAULT, M. Foucault répond à Sartre. Dits et Ecrits I, n. 55, 1968, p. 665.

34

FOUCAULT, M. Les problèmes de la culture. Um débat Foucault-Preti. Dits et Ecrits II, n. 109, 1972, p. 369.

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outras maneiras de se conceber a diferença na história, presentes na história do pensamento ocidental. Foucault critica o modo dualista que opõe valores antagônicos para dar conta da diferença na história, como é o caso das oposições entre vivacidade da inovação e o peso da tradição, a inércia dos conhecimentos adquiridos ou a velha abertura de novos caminhos do pensamento; a oposição entre as formas menores do saber e suas formas desviantes (como o gênio); a oposição entre os períodos de estabilidade ou de convergência universal e os momentos de ebulição em que as consciências entram em crise, as sensibilidades se metamorfoseiam, e todas as noções são revisadas36. Note-se que em todas essas oposições está presente um juízo de valor que hierarquiza a relação entre o presente e o passado em sua diferença, seja no sentido de ver a diferença resultando em um progresso ou em uma decadência histórica.

O problema aqui é que neste caso a diferença entre o passado e o presente é determinada por aquilo que neles se opõe em relação ao outro, o que caracteriza um modo de subordinar a diferença à oposição hierárquica de valores históricos. A diferença histórica não é considerada em si mesma, mas dependente daquilo de que difere. Segundo Foucault, para compreender corretamente a relação do presente com o passado é necessário libertar a história “da tríplice metáfora que a encobre desde mais de um século (o evolucionismo, que impôs a ela a separação entre o regressivo e o adaptativo; a biológica, que separa o inerte e o vivo; a dinâmica, que opõe movimento e imobilidade)”37

. É sob estas metáforas que a diferença na história teria ficado aprisionada em um jogo de hierarquias valorativas, situação em que o próprio presente era visto como um dos pólos desse jogo dual.

Para Foucault essas metáforas utilizadas explícita ou implicitamente estão em crise no pensamento contemporâneo, pois elas impõem uma dimensão transcendental à história, “com a qual se identificou a filosofia desde Kant; a temática da origem, da promessa do retorno pelo qual evitamos a diferença de

36

Cf. Ibidem, p. 684.

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178 nosso presente”38

, impedindo que o presente se mostre como diferença irredutível a qualquer outro período histórico, impedindo assim que se possa pensar a diferença histórica do presente como diferença em si mesma.

Os dois textos de Foucault publicados em 1984 sob o título “O que é Iluminismo?”39

, em que ele discute a importância do texto de Kant sobre o Iluminismo40, são centrais para a compreensão da relação entre presente e passado para a constituição de uma história do presente enquanto diagnóstico da atualidade. Segundo Foucault, o que marca a novidade deste texto de Kant sobre o Aufklärung é a maneira pela qual Kant colocou a questão da atualidade.

Nesse texto Kant não considera o presente como uma época do mundo ao qual se pertence, nem como um acontecimento em que se percebem os sinais de algo a ocorrer no futuro ou ainda como uma aurora em que se anuncia o futuro de uma realização, ou seja, “ele não procura compreender o presente a partir de uma totalidade ou de um acabamento futuro. Ele procura uma diferença: qual diferença o hoje introduz em relação ao ontem?”41

. O presente deixa de ser um momento que só poderia ser compreendido a partir do passado ou do futuro, mas como aquilo que difere em si mesmo do passado e a partir do qual o efetivamente novo na história pode ser pensado.

A pergunta de Kant sobre o Aufklärung concerne a “pura atualidade”, e isso porque ele pergunta não só pelo significado do Aufklärung, mas se no momento atual se vive de acordo com ele42. Desse modo, Kant apresentou a pergunta pela atualidade de modo diferente porque a pergunta estabelece uma dupla condição para quem a pensa, saber em que medida ele faz parte desse processo e como ele tem certo papel a jogar nesse processo, ou seja, uma

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FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 231-232.

39 FOUCAULT, M. Qu‟est-ce que les Lumières. Dits et Ecrits IV, n. 339, 1984, p. 562-578;

FOUCAULT, M. Qu‟est-ce que les Lumières. Dits et Ecrits IV, n. 351, 1984, p. 679-688.

40

KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o Iluminismo? In: A paz perpétua e outros Opúsculos. Lisboa: Ed. 70, 1995, p. 11-19.

41 FOUCAULT, M. Qu‟est-ce que les Lumières. Dits et Ecrits IV, n. 339, 1984, p. 564.

42 Pergunta Kant: “vivemos nós agora numa época esclarecida? – a resposta é: não”. (KANT, I.

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relação com o presente em que se é elemento e ator ao mesmo tempo: “é necessário, portanto, considerar que o Aufklärung é ao mesmo tempo um processo do qual os homens fazem parte coletivamente e um ato de coragem a se efetuar de forma pessoal”43

.

A pergunta é um diagnóstico da atualidade ao mesmo tempo em que impõe uma tarefa ética e política de realizar a saída, a superação de uma condição de menoridade, entendida por Kant como o uso livre e autônomo da razão em relação ao poder constituído. Foucault assim explica o que para ele representa esse duplo aspecto de novidade que possui o texto de Kant: “a reflexão sobre o „hoje‟ como diferença na história e como motivo para uma tarefa filosófica particular me parece ser a novidade desse texto”44

, o que Foucault denominou como atitude de modernidade, como ethos filosófico ao qual ele se via ligado.

Não se trata de uma atitude “da” modernidade, entendida como um período preciso da história que se trataria de recuperar, nem se refere ao compartilhamento dos conteúdos históricos de determinado período denominado modernidade, aspectos que por sinal diferenciam bastante Foucault do pensamento kantiano, isso levando em conta as dimensões antropológica e teleológica que acompanham a visão de história de Kant45. Trata-se, de modo diferente, de uma atitude “de” modernidade, uma atitude filosófica em relação ao presente que o texto de Kant inaugura ou ao menos configura um esboço inicial que surge com o Iluminismo e que irá marcar toda uma vertente importante na história da filosofia a partir do século XIX46.

43 FOUCAULT, M. Qu‟est-ce que les Lumières. Dits et Ecrits IV, n. 339, 1984, p. 565. 44

Ibidem, p. 568.

45

Os vínculos entre a ideia de história e a teleologia kantiana foram analisados por este autor em ZUBEN, M. C. von. A idéia de história como progresso necessário em Kant. 1999, 129p.

Dissertação (Mestrado em História das ideias) – Departamento de História, Universidade de Brasília, Brasília, 1999. Foucault também se diferencia de Habermas no que se refere à leitura que este faz da modernidade, quando afirma que “[...] o problema de Habermas é antes de tudo o de encontrar um modo transcendental de pensamento que se oponha a toda forma de historicismo. Eu sou, em realidade, muito mais historicista e nietzschiano.” (FOUCAULT, M. Espace, savoir et povoir. Dits et Ecrits IV, n. 310, 1982, p. 280).

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Não obstante Foucault atribuir de modo destacado o papel histórico de Kant como pioneiro em relação à indagação sobre a atualidade, é a Nietzsche que ele atribui de modo mais vigoroso esse papel.

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Foucault enfatiza, portanto, que sua relação com a modernidade “não é uma relação longitudinal com o passado”, em que se trataria de perguntar o que se deve aceitar ou rejeitar em relação à modernidade, nem de analisá-la comparativamente em relação a outros períodos históricos, mas considerá-la a partir de uma relação “sagital com sua própria atualidade”, o que significa que “o discurso tem que levar em conta sua atualidade para, de um lado, encontrar seu lugar próprio, e de outro, para dizer-lhe o sentido, enfim, para especificar o modo de ação que ele é capaz de exercer no interior dessa atualidade”47

. Observa-se que compete ao discurso sobre a modernidade essa dupla tarefa de dizer a atualidade, e em dizendo-a abrir as possibilidades de ação sobre essa mesma atualidade.

Deve-se, portanto, entender esses dois textos de Foucault sobre o Iluminismo não como uma defesa feita por ele desse período histórico, mas como a ativação de uma questão, de um problema, ou da modernidade como problema filosófico, pois que ele procurou “fazer a genealogia não da noção de modernidade, mas da modernidade como questão”48

.

Vale notar o modo como Foucault caracteriza esse ethos filosófico, essa “ontologia histórica de nós mesmos”. Em primeiro lugar, diferenciando-se do sentido transcendental da crítica nos termos de Kant, Foucault diz que o ethos é uma atitude limite, já que “a crítica é certamente a análise dos limites e a reflexão sobre eles”, que é definida por ele da seguinte forma: “trata-se, em suma, de transformar a crítica exercida sob a forma de limitação necessária em uma crítica prática sob a forma da ultrapassagem possível”49. Nota-se que a expressão “crítica

prática” liga os dois aspectos inseparáveis implicados nessa atitude limite, qual seja, a análise histórica da constituição do sujeito no presente e a atitude ética e política de transgressão desses mesmos limites; o aspecto arqueológico da análise histórica e o aspecto genealógico de sua eterna contingência, a partir da qual se abre o espaço para as práticas de liberdade entendidas como “a