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E viveram felizes para sempre!?

Embora aqui eu esteja lidando com uma narrativa romântica que se desenvolve no momento presente, narrativas de amor romântico com recortes raciais de negritude possuem uma longa estrada nos Estados Unidos. Como Collins (2000) chama atenção, as narrativas de mulheres negras em torno de figuras masculinas, e mais propriamente de seus parceiros, povoam o imaginário social desde a escravidão (onde mulheres negras recém-emancipadas procuravam seus maridos, mas também pais, irmãos e filhos perdidos), passando pela poesia e pelo romance, e tocando também no mundo da música:

A música das mulheres negras é igualmente repleta de canções sobre o amor sexualizado. Seja na voz brincalhona de Alberta Hunter proclamando que seu “homem é um homem útil”, nos gritos lúgubres de Billie Holiday, cantando “My Man”, na tristeza que Nina Simone evoca em “I Love You Porgy” ao ser forçada a deixar seu homem, ou na voz poderosa de Jennifer Holliday, que grita: “Você vai me amar”, as vocalistas negras identificam os relacionamentos de mulheres negras com homens negros como fonte de

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Figura 28 – Beyoncé e Jay Z em Sandcastles

força, suporte, e sustentação (Harrison, 1978, 1988; Russel, 1982). (COLLINS, 2000, p. 152, tradução nossa66).

Para além do romantismo em si, essas narrativas também se apresentam como uma tentativa de “consertar” o homem negro e apontar as desigualdades/conflitos de gênero presentes nos relacionamentos. Nesse sentido, Collins (2000) pontua que antes do caso do juiz negro Clarence Thomas que assediou sexualmente a procuradora negra Anita Hills em 1992 – o que gerou grande repercussão no país pelo testemunho público da vítima no momento em que o juiz havia sido indicado para integrar a Suprema Corte –, era a música o lugar onde as narrativas de amor e de reivindicação por respeito ganhavam consistência. Seu papel era crucial porque através das canções clássicas do gênero blues nos anos 1920, quase todas marcadas pela voz feminina negra, foi possível iniciar o registro escrito das experiências dessas mulheres até então presentes apenas na dimensão da oralidade. Como continua revelando Collins (2000), num contexto em que a alfabetização não era possível para um grande número de mulheres negras, a música representava os primeiros documentos permanentes que exploravam o ponto de vista da classe trabalhadora negra, suas experiências coletivas, individuais, políticas e também afetivas. As canções podem ser vistas, assim, como modo de expressão da mulher negra articulada através da tradição oral da negritude. O blues surge nesse contexto como o lugar por excelência a fornecer o texto mais consistente onde mulheres negras relatavam suas vivências ao mesmo tempo em que exigiam uma mudança por parte dos homens negros:

Em “Do Right Woman-Do Right Man”, quando Aretha Franklin (1967) canta que uma mulher é apenas humana e não um brinquedo, mas é carne e sangue exatamente como um homem, ela faz eco da afirmação de Sojourner Truth de que mulheres e homens são igualmente humanos. Aretha canta sobre saber que ela está vivendo em um “mundo do homem”, mas ela encoraja seu homem a não “provar” que ele é um homem usando ou abusando dela. Enquanto ela e seu homem estiverem juntos, ela quer que ele mostre algum “respeito” por ela. (COLLINS, 2000, p. 154, tradução nossa67).

66No trecho original: “Black women’s music is similarly replete with songs about sexualized love. Whether the

playful voice of Alberta Hunter proclaiming that her “man is a handy man,” the mournful cries of Billie Holiday singing “My Man,” the sadness Nina Simone evokes in “I Loves You Porgy” at being forced to leave her man, or the powerful voice of Jennifer Holliday, who cries out, “You’re gonna love me,” Black vocalists identify Black women’s relationships with Black men as a source of strength, support, and sustenance (Harrison 1978, 1988; Russell 1982)”

67 No trecho original: In “Do Right Woman—Do Right Man,” when Aretha Franklin (1967) sings that a woman

is only human and is not a plaything but is flesh and blood just like a man, she echoes Sojourner Truth’s claim that women and men are equally human. Aretha sings about knowing that she’s living in a “man’s world” but she encourages her man not to “prove” that he’s a man by using or abusing her. As long as she and her man are together, she wants him to show some “respect” for her.”

Esse tom político das letras continuaria sendo sustentado ao longo dos anos em canções do hip hop representadas por Salt ‘n’ Pepa’s, Queen Latifah e também pela própria Beyoncé, como acontece na música If Were a Boy (2008). Entretanto, no caso dessa última cantora, parece-me que a potência está não no discurso que se apresenta numa canção e que logo se desfaz em tantas outras a depender do personagem encenado, mas na própria representação que ela consegue criar em torno do casal negro. Representação essa que também tem ganhado as telas dos cinemas com casais como os que aparecem em Moonlinght (2016) e Hidden Figures (2016). No caso do primeiro filme, temos uma dupla quebra: a narrativa do amor romântico se desenrola a partir de um casal homossexual e negro. No segundo, histórias biográficas de mulheres negras são contadas a partir da atuação profissional tendo como plano de fundo as experiências pessoais dessas mulheres, inclusive seus relacionamentos afetivos. Obama e Michelle, tanto na vida como no filme feito com base em sua história, também ajudam a traçar essa reconfiguração com o efeito de ser o casal que existe para além do roteiro fílmico e que por anos esteve a frente da instância máxima de governabilidade dos EUA.

No Brasil, essa perspectiva tem como representante o casal Taís Araújo e Lázaro Ramos68, sobretudo após atuarem juntos no programa Mister Brau, chegando a serem apontados pela mídia britânica como a Beyoncé e o Jay Z brasileiros, tendo em vista a influência e capacidade que eles possuem de abrir espaço para o “amor negro” em espaços ainda majoritariamente brancos, como é o cenário midiático. O que essas novas imagens nos trazem é a possibilidade de que casais negros não só tenham seus espaços nas narrativas cinematográficas e no imaginário social do romantismo, mas também que sejam reconhecidos, “shippados” e, talvez um dia, celebrados tais como outros casais brancos que pavimentaram o caminho do amor romântico na mídia, como pontuamos no início desse texto. Podemos assim pensar na capacidade dessas construções fictícias (tanto aquelas que aparecem nas telas de cinema quanto as que são construídas com vestígios de ficção, tais como acontece em torno de JaYoncé, Obama e Michelle, e Taís Araújo e Lázaro Ramos) de abrir caminhos para a ressignificação das narrativas e de sua experiência estética, mas também dos sujeitos que estão a representar esses enredos.

Quando a On The Run termina, Beyoncé e Jay Z saem abraçados do palco e vão sendo tomados por um fundo azul. Mais do que a celebração da união do casal, a imagem consegue

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“Jornal inglês compara Lázaro Ramos e Taís Araújo a Beyoncé e Jay-Z”, disponível em:

<http://ego.globo.com/famosos/noticia/2015/10/jornal-ingles-compara-lazaro-ramos-e-tais-araujo-beyonce-e- jay-z.html>. Acesso em 25 de dezembro de 2018.

dar abertura também para representar um “felizes para sempre” diferente do que costuma ser visto. Embora Beyoncé encene um lugar historicamente reservado às mulheres, há ali um ponto de fuga no roteiro convencional: o casal negro sendo celebrado. O conto de fadas – com todo o conservadorismo e tradicionalismo comumente conhecidos – se faz presente, mas ali ganha uma perspectiva negra. Num movimento cíclico, esse fato rompe com o modelo majoritário de ficção romântica (o casal não é branco), impondo uma nova ficção (casais negros também podem ser celebrados em narrativas românticas). Com isso, representações hegemônicas (tais como as que Aristóteles presava) são quebradas e novos sujeitos conquistam seu espaço, desobedecendo a certas hierarquias (como acontece no regime estético que Rancière propõe). A imagem de Beyoncé com a bandeira dos Estados Unidos enrolada na cintura com Jay Z ao seu lado (figura 30) pode, portanto, representar os ares de uma nova América, uma possibilidade de novas construções imagéticas, novos sujeitos e novas representações que ganham a mídia.

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4 A DEUSA DA FERTILIDADE É MAINSTREAM

A manicure puxou minhas cutículas para trás. Virou minha mão para cima, esticou a pele da palma e disse: “Vejo suas filhas. E as filhas dela”. Naquela noite, em um sonho, a primeira menina sai por uma fenda em minha barriga. A cicatriz se cura com um sorriso. O homem que amo puxa os pontos com as unhas. Deixamos as suturas negras ao lado da banheira. Eu acordo enquanto a segunda garota sai pela minha garganta. Uma flor desabrochando no buraco do meu rosto (Poesia da escritora somali Warsan Shire que aparece no disco Lemonade, no estágio da “esperança”).