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Imagem retirada de uma rede social – sem autor.

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Teve aqui uma circunstancia de que a gente (policiais) tomava café na padaria e o dono chegou "poxa, vou pedir para vocês não tomarem mais café aqui que eu fui ameaçado em um churrasco com minha família, falaram que eu estava fechando com vocês”, veio com esse papinho aí, mas isso foi bem no início...[Entrevista realizada em julho/ 2011].

Pude observar com mais clareza a relação entre moradores e policiais no período em que morei de fato na CDD em 2013. Anteriormente já havia percebido que havia um afastamento. Mas pude sentir isso de fato somente posteriormente. Ouvi, certa vez, quando disse que havia ido até a base da UPP conversar com os policiais, que deveria evitar essas relações, pois poderiam pensar “errado” de mim. Isso significa que poderiam pensar que eu estava do lado dos policiais, dando informações para os mesmos.

Quando eu cheguei na CDD, pedi informações em uma base da polícia, como comumente faço quando vejo um policial ou guarda de trânsito na rua e preciso de uma orientação. No entanto, vivendo ali, comecei a sentir algo semelhante ao que os moradores sentiam e entender um pouco mais desta situação. Preferia pedir ajuda para qualquer pessoa na rua, evitava ao máximo manter qualquer relação, evitava contato visual, me sentia incomodada quando passavam olhando para o lugar onde eu estava, sentindo, inclusive, um receio como se “devesse” alguma coisa.

A situação descrita no trecho no início desta seção foi relatada por um policial. O fato de estarem frequentando demais a padaria de um morador criou uma situação difícil para o mesmo: estava entre a autoridade da polícia e a autoridade do tráfico. Ser próximo de um traficante não significa que você seja um também. Ser próximo de policiais pode dar margem a interpretações de que você está “fechando com cana”. Isso absolutamente não significa que os moradores de favelas são coniventes ou apoiam o tráfico de alguma forma. Neste caso o que é mobilizado é o de “dentro” e o de “fora”. Tais posições não são geográficas, pois, você pode ser de “fora” mas ter a postura de um de “dentro”, assim como o contrário. O policial é um de “fora” que incorpora todo o preconceito em relação a favelados. Ele que materializa a “sujeição criminal” (MISSE, 2010), a criminalização da pobreza na relação com moradores de favelas.

Certa vez, estava em um bar com um amigo que frequentava a CDD, mas não morava lá. Quando ele ia embora, me pediu para acompanhá-lo até o ponto de moto-táxi.

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Expliquei onde era e ele insistiu para ir com ele, pois tinha medo de se perder. Um homem sentado no bar disse “deixa disso rapaz, ela é mulher, se for te levar, vai ter que voltar andando sozinha”. Nisso o dono do bar gritou de trás do balcão “que isso, essa já é daqui mais do que muita gente”. Nesse momento percebi como essa demarcação “dentro” e “fora” existia, mas existia pela forma de se comportar, pelas relações, pela construção de uma subjetividade. É claro que, apesar disso poder mudar, nascer ali já te faz um de “dentro”.

Bom, hoje hoje, eu vou te falar a realidade. A CDD está ocupada pela UPP, né. Tipo assim, tem um lado que a gente pode falar positivo e tem um lado negativo. Porque tipo assim, as UPPs são pessoas que você não conhece, são policiais que você não conhece. Estão chegando novos na comunidade, então você não sabe qual é a reação. Tipo assim, eu não tenho medo nem vergonha de falar. Eu sou morador da CDD, cria da CDD. Eu não vou mentir, falar que “ah, eu não conheço bandido, não conheço ninguém”, conheço sim. A maior parte dos bandidos da comunidade são meus amigos. Cresceram junto comigo,estudaram junto comigo, jogaram bola junto comigo, soltaram pipa junto comigo. Então, tipo assim, eu segui o caminho da música, outros seguiram o caminho do crime, outros foram trabalhar, outros foram embora, não moram mais na comunidade, outros viraram polícia. Muitos amigos meus da comunidade também viraram polícia. Mas a vida segue, cada um com a sua vida. Só que é muito mais fácil para eu chegar até o cara que eu conheço, que foi criado comigo, para tentar resolver um problema, do que chegar numa pessoa que esta chegando agora na comunidade e eu não conheço e não sei quem é. Entendeu? Então assim, o cara que foi criado comigo,ele já sabe da minha vida, convive ali no dia a dia dentro da comunidade, então ele conhece a vida de todo mundo. O cara que está chegando é diferente, entendeu? Não tem aquele tratamento educativo. Você pode ver, tem vários “podrão”. Agora nem tanto, mas no começo das UPPs era muita reclamação dos moradores, por causa de abuso de autoridade

[Entrevista realizada em julho/ 2011].

O relato acima explicita o ser de “fora” e o ser “cria”. “Cria” é aquele nascido no local, o qual tem “moral de cria”. Este sempre vai ter mais respeito do que alguém de “fora”. Isso abrange as relações em sua totalidade. Pode ser um morador antigo com um conflito com um recém chegado. Pode ser um traficante que cresceu naquela favela em oposição a um que passou a atuar ali há pouco tempo. Obviamente essas situações podem mudar, uma “cria” perder a moral devido a uma “vacilação” e alguém de “fora” ganhar

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respeito. Tal inversão pode acontecer no caso de traficantes que não respeitam os moradores, por exemplo.

Um ponto ressaltado é que os “bandidos” respeitam morador. Já o policial “não tem aquele tratamento educativo, você pode ver, tem vários “podrão’”. “Podrão” aqui está no sentido de não respeitar, abusar. Ao necessitar de alguma ajuda, é muito mais fácil recorrer a algum traficante, com o qual há uma convivência, do que ao policial, o qual historicamente lida com esta população de forma truculenta (ressaltando mais uma vez que isso não significa ser conivente).

Se a favela foi sendo constituída ao longo do tempo como o “outro” da cidade, para os que ali vivem, a polícia é radicalmente esse “outro”. Apesar de sabermos que sempre houve negociação entre o crime e a polícia e que isto mantinha a situação estável, manter relações pessoais com policiais é um nível diferente. Não há uma proibição quanto a isso, mas sabe-se que não é algo bem visto.

Neste sentido, a pixação da imagem apresentada acima que diz “se tem uma coisa que me deixa bolado, é ver morador fechando com errado” assinada com a sigla do Comando Vermelho Rogério Lemgruber, expressa uma indignação que extrapola alguma possível lei do tráfico. Tal indignação está muito mais voltada para o “somos crias do mesmo lugar, sofremos igual” e para a decepção de ver aquela “cria” “fechando” com o opressor. Nesse sentido, relembro a música de Chico Science “e você samba de que lado, de que lado você samba”.