• Nenhum resultado encontrado

CAPITULO 1 – A ANISTIA E A CRISE POLÍTICO-CONSTITUCIONAL DE

1.3. O itinerário legislativo do projeto de anistia

1.3.3. A volta ao Senado: O “perigo” comunista

De acordo com o art. 68 da Constituição de 1946, o projeto de decreto legislativo deveria voltar ao Senado para votação final, após modificações sofridas na Câmara dos Deputados. Retornando ao Senado, o assunto encontrou alguma resistência, mas nada que pudesse impedir a sua promulgação. O projeto recebeu parecer favorável das Comissões de Constituição e Justiça, Segurança Nacional e Finanças Públicas. No plenário, as objeções levantadas diziam respeito especificamente ao direito de reversão para aqueles que foram expulsos das Forças Armadas em 1935.

Inicialmente, o senador Daniel Krieger (UDN/RS) tentou esclarecer as implicações dos efeitos temporais da medida. Ao retroagir até 1934, o substitutivo da Câmara havia reaberto uma discussão sobre os comunistas. Para o senador, o projeto tratava de uma anistia

restrita, pois não se poderia anistiar duas vezes o mesmo fato. Portanto, não haveria razões para a preocupação:

Se apenas fosse uma anistia para beneficiá-los, não votaríamos (...). Somos visceralmente contra a ideologia comunista. Entendemos que eles não têm o sentido, a noção e o amor da Pátria, sentimentos para nós imperecíveis. Mas, Sr. Presidente, a anistia, naquilo que os abrange, tem um significado restrito, pois anistiados eles já tinham sido por decisão do Presidente Getúlio Vargas. (...) O substitutivo da Câmara apenas estabelece, em síntese, uma situação, dando àqueles participantes da célebre, malfadada e sempre condenada intentona de 35, a possibilidade de se reformarem nos postos que ocupavam à época em que se declararam em sedição contra a ordem jurídica e social do País.230

O senador gaúcho lembrava, ainda, que o único benefício que os comunistas poderiam receber seria uma retribuição pecuniária do Estado. Na sua interpretação, nenhum deles deveria voltar à ativa no Exército, pois haveria um obstáculo intransponível que era a idade.231

Outro a se manifestar sobre o assunto foi o senador Caiado de Castro (PTB). Mais uma vez, a crítica era feita aos comunistas. A despeito de ter apoiado a anistia do projeto do senador Cunha Mello, o congressista era radicalmente contra a retroatividade da anistia até 1934. Para ele, o seu “perdão” não iria ao ponto de “premiá-los com uma aposentadoria fácil”.232 Finalizava o senador com um forte discurso anticomunista:

(...) quero, neste momento, deixar meu voto de solidariedade às viúvas e órfãos dos que tombaram assassinados em 1931 e 1935, às viúvas e órfãos que dos que foram vítimas dos espiões mercenários, aqueles que sofreram e sofrem a perda gloriosa e prematura dos seus entes queridos; quero deixar meu voto de saudade aos que foram trucidados na calada da noite, alguns quando ainda dormiam, aos que jazem no fundo do oceano – mulheres, crianças, civis e militares, onde os levou a ganância, o impatriotismo e a loucura do dinheiro fácil.233

Em que pese os boatos de que o Senado rejeitaria o substitutivo da Câmara, o projeto foi aprovado, mediante votação simbólica234, e promulgado no dia 15 de dezembro.235 O texto aprovado pelo Congresso foi bastante diferente daquele proposto inicialmente. Saiu do Senado com importantes alterações, como a referência às Leis n. 1.079/50 e 1.802/52, a abrangência dos trabalhadores participantes de greves e a ampliação dos efeitos temporais até 1956, data da última anistia. Na Câmara dos Deputados, o projeto ganhou em radicalidade:

230 Diário do Congresso Nacional, Discurso do senador Daniel Krieger, seção II, 15/12/1961, p. 3054. 231

Diário do Congresso Nacional, Discurso do senador Daniel Krieger, seção II, 15/12/1961, p. 3054. 232 Diário do Congresso Nacional, Discurso do senador Caiado de Castro, seção II, 15/12/1961, p. 3055. 233 Diário do Congresso Nacional, Discurso do senador Caiado de Castro, seção II, 15/12/1961, p. 3055. 234

Diário do Congresso Nacional, Discussão única do projeto de decreto legislativo n. 11, de 1961, seção II, 15/12/1961, p. 3055.

retroagiu até 1934; incluiu militares, funcionários públicos, jornalistas, desertores, eleitores; estabeleceu a possibilidade de reversão dos militares e funcionários públicos punidos com a pena de expulsão/demissão. Como disse o deputado Arruda Câmara, a anistia de 1961 pretendia ser, enfim, a “total e absoluta pacificação da família brasileira”.236

A anistia de 1961 apagou a distinção entre defesa/violação da constituição ao construir uma narrativa de conciliação, de pacificação de dois “lados”. Paradoxalmente, serviu para “anistiar” aqueles que defenderam a legalidade. No caso dos militares, isso era a expressão de algo novo. Nas palavras do então coronel Nelson Sodré (1968, p. 382), “a massa de oficiais não se dispunha mais a acompanhar golpes de cúpula apenas pela obediência”. A recusa em cumprir ordens ilegais, que começou em casos isolados e logo se generalizou, criara um fato novo, “perigosíssima ameaça ao aparelho militar em uso, e sempre usado para golpes brancos, repousando na cega obediência”. Comentando sobre sua punição em agosto de 1961, Sodré (1988, p. 549) avaliou criticamente a concessão da anistia:

Essa punição foi apagada, depois, por uma das mais monstruosas anomalias a que as Forças Armadas brasileiras já assistiram: a anistia, decretada pelo Congresso, em outubro [sic]. Nessa medida, nós, os que nos batêramos em defesa da lei, éramos anistiados; os subversivos, os amotinados continuavam como sendo aquêles que estavam dentro da lei. Essa ignomínia definia a situação do país, quando o presidente João Goulart assumiu o governo. Não consenti que tal punição fosse cancelada de minhas alterações. Jamais usei condecorações, nem mesmo as referentes aos decênios de serviço sem punição. Aquela punição era a condecoração que me envaidecia. Não podia abrir mão dela.

Entretanto, a anistia de 1961 não se resumiu a esse aspecto. Ao estabelecer a possibilidade de retorno dos militares expulsos por motivos políticos às Forças Armadas – inclusive aqueles excluídos após o levante comunista de 1935 –, reabriu a discussão iniciada em 1945 e colocou para o governo um delicado problema político. Para os anistiados de 1945, a anistia concedeu uma nova chance de reaver algo que lhes havia sido retirado sem o devido processo legal e sem a observância dos seus direitos constitucionais. Porém, a previsão do direito à reversão foi acompanhada das mesmas restrições de 1945: a necessidade de exame individual dos casos e a discricionariedade dos ministérios militares. Ao olhar para o passado instituindo uma dimensão voltada para o futuro, a aplicação da anistia de 1961 espelharia mais uma etapa das ambiguidades desse instituto jurídico.