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Capítulo 2- Autismo e sujeito Problemas conceituais Questões que o

2.5 Voltando a Maurício

Maurício35era um paciente portador de um caso muito grave de autismo que nos chega aos oito anos, já com a estrutura cristalizada. Estudava em Escola Especial, após ter passados dois anos na escola regular, com muitas dificuldades. Era excelente em matemática, mas em português, conhecia as letras, mas não sabia juntá-las, segundo relatório de sua professora. Veremos logo mais, no entanto, que Maurício já lia, porém apenas o que lhe interessava. Decorava propagandas de televisão, que repetia sem parar.

Veio pela primeira vez apenas com o pai, que contou que tinha dois filhos do primeiro casamento. Após ter ficado viúvo, casou-se com a mãe de Maurício, que não queria ter filhos, por medo de morrer no parto. Após a saída do pai, Maurício permaneceu sozinho na sala sem dificuldades desde nosso primeiro contato, correndo para o caminhão, lendo “Texaco” com uma entonação própria, cantada, mas monótona, com poucos picos prosódicos.

Esta entonação de voz diferente é uma das características mais interessantes que podem estar presentes no autismo, no nosso ponto de vista. A sonoridade da voz adquire um valor muito especial para essas crianças, constituindo-se em uma importante ferramenta durante os atendimentos clínicos, como veremos à frente.

Maurício veio na sessão seguinte com a mãe, que nos contou que ao engravidar, ficou apavorada. Ela falou: “Não é que não queria... tinha medo. Toda vida tinha medo de

ter filho... as pessoas falavam que parto era pé na cova... no dia que passei mal dele, não queria ir para o hospital de jeito nenhum.”

Maurício nos ignorava totalmente, brincando de bater o caminhão. Começamos a bater o pé no chão no mesmo ritmo em que ele batia o caminhão. Sem olhar, Maurício tentou segurar as pernas para que parássemos de bater o pé. O contato ainda era insuportável e ele evitava entrar em sintonia através do ritmo. Um parar diante da possibilidade da alienação fundante?

Havia papel e lápis de cor sobre a mesa. Fazia rabiscos dizendo: “leão”. Questionamos, tentando usar a mesma entonação de sua voz, o que não conseguimos, a princípio: “Papai leão”? Irritou-se, jogando-se contra a parede. Acalmou-se com um balanceio.

Em outra sessão, voltou a rabiscar dizendo: “leoa”. Novamente intervimos: “mamãe

leoa”? Desta vez não se irritou, parecendo aceitar a fala. Talvez tenhamos conseguido nesta

segunda interpretação estar mais próxima da entonação de sua voz que, por isto, foi mais bem acolhida. Achamos interessante que o que mais agredia Maurício não era a interpretação em si, mas a qualidade tonal da voz dirigida a ele.36, 37

36 O conteúdo pode ser qualquer um. Lalangue seria mais importante para essas crianças?

37

Comentando sobra a entonação da voz, Marie-Christine Laznik diz à mestranda: ponto importante, o enunciado nada diz do desejo do Outro (um dia lhe explico como vejo atualmente o grande Outro, mas deixo para depois de sua tese). O que diz é a enunciação, termo um pouco largo, mas que seguramente inclui a qualidade tonal.

Nos próximos dois meses, repetia sempre a brincadeira com o caminhão, falando “texaco”, e o desenho de rabiscos (desenho um), falando “leoa”. Aceitava melhor as intervenções através da fala, porém se nossos olhares se encontravam, ficava agitado.

Após dois meses, iniciou a escrita repetida de números, após ter escrito Texaco (desenho dois). A mãe notou melhora clínica significativa da agitação e melhora do contato, além de intenção maior de se comunicar. Esta escrita de números se tornou constante em suas sessões por muitos anos.

O paciente iniciou melhora clínica a partir desta escrita de números. Com a leitura de um texto de Miller (1993), passei a entender esta escrita de números presente nos desenhos como o primeiro saber no real possível a Maurício. A seqüência de números de Maurício passou a uma gradativa conversão em palavras, ainda em seus desenhos.

Miller aponta neste texto uma dupla subtração necessária de gozo para a constituição do sujeito. A primeira, Lacan denomina de contagem, ou seja, tornar o gozo calculável. Isso justifica a numeração inicial. Nos desenhos vemos surgir, com o tempo, letras e depois palavras a partir dos números.

A segunda subtração de gozo é a extração do que Lacan chamou objeto a, impossível para Maurício devido à holófrase do par de significantes primordiais. No entanto, nessa época, passou a aceitar melhor a batida com o pé, no mesmo ritmo que ele batia o caminhão. Passou mesmo a se divertir com este jogo de sons, rindo e explorando nosso corpo com as mãos, ainda sem olhar.

Quando mais tarde ele mesmo propôs uma “batucada com lápis”, pensei que de certa maneira houve um deslocamento do corpo para um objeto externo, o lápis. Seria aqui um ensaio primitivo da tentativa de extrair o objeto a?38

Quatro meses após o início do tratamento, começou a escrita repetida do ônibus que pegava para ir às sessões. Iniciou também trabalho fonoaudiológico.

Seis meses após o início do tratamento, veio com a seguinte frase: “Texacoomundoconfia” e, algumas sessões depois, com “Texacovocêconfia”, sem separação entre as palavras. A manifestação holofrásica já indicava o aparecimento de um novo modo de ver o sujeito, permitindo a Maurício alienar-se?

Fizemos nova interpretação: “Você está dizendo que confia no nosso trabalho?” Tomamos a holófrase como “significante de transferência”. Antecipação de sujeito? O fato é que nessa época apresentou melhora clínica acentuada, passando a ler e a escrever na escola e aumentando em muito a interação social.

Insistia em escrever as frases holofrásicas, pedindo que escrevêssemos também, funcionando como espelho para ele (desenho três). Porém, insistíamos em escrever as palavras separadas, e ele imitava. Entretanto, ainda não era capaz de um movimento real de separação por si. Mas fazia-se necessário que primeiro uma função de terceiro sustentasse esta separação, antecipando-a.

Finalmente, escreveu pela primeira vez o nome próprio, repetindo-o sem cessar, batendo no peito. Foi uma sessão emocionante, quase como um autobatismo.

38 Sobre o ritmo e o corpo, Marie- Christine Laznik faz o seguinte comentário: esta questão do ritmo é tão

central na constituição do sujeito que nosso seminário fechado da Associação Lacaniana Internacional sobre o autismo, neste ano de 2006, trata apenas deste tema.

Posteriormente, escreve o nome completo, primeiro com o sobrenome materno, depois com o sobrenome paterno.

Logo após, o pai faleceu de maneira inesperada. Maurício regrediu quase à estaca zero, deixou de falar, voltou a apresentar balanceio de tronco, recusando-se a voltar à escola. Passou a recusar a medicação e às vezes não queria mesmo vir ao tratamento. Quando vinha, os desenhos voltaram a traços e números (desenho quatro). Voltou a predominar a ecolalia e a auto-agressão. Enquanto se recusava a vir, eu atendia a mãe em seu lugar.

A morte do pai motiva abalo no tratamento de crianças de qualquer estrutura. No entanto, chama a atenção a piora clínica do paciente. Realmente aqui podemos comprovar uma das observações clínicas de Laznik (1997) a respeito da hipersensibilidade dessas crianças às contingências da vida.

A mãe resolveu voltar para a casa dos pais no interior. Fizemos relatório para continuidade do tratamento na cidade mais próxima que tinha equipe de saúde mental. Mudou-se para o interior e, após alguns meses, retornaram por não encontrar tratamento para Maurício no local.

Após um ano da morte do pai, passou novamente a melhorar, voltando a ficar tranqüilo, escrevendo números no papel e, finalmente, voltou a escrever seu nome. Iniciou jogo de sons batendo um lápis no pé da mesa, esperando que copiássemos.

Nossa comunicação passou a acontecer através da “batucada” com os lápis. No início, batucávamos no ritmo, depois passamos a acrescentar novos ritmos, como para introduzir um terceiro elemento entre nós.

Aos poucos, surgiram outros nomes a partir dos números: o nome do pai, da mãe, da irmã, e colegas. Voltou a apresentar melhora clínica. Finalmente, surgiu a primeira

representação de figura humana, duplicada no verso (desenho 5 e, no verso, observar o desenho 6).

O que dizer da relação entre o circuito pulsional que se completa no terceiro tempo e as manifestações holofrásicas? Trata-se de interrogar que espécie de articulação existe entre a pulsão e a fala. Podemos ensaiar uma resposta a partir do destacamento da pulsão invocante.