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Vontade: poder da vida

No documento O fenômeno da vontade em Hannah Arendt (páginas 138-141)

3. A VONTADE E O PENSAMENTO: UMA COEXISTÊNCIA

3.5 Vontade: poder da vida

Se em Nietzsche toda vontade é vontade de poder, e o poder é a essência da vontade, tem-se que, por vontade de poder não se deve entender outra coisa que não seja vontade de vontade, ou ainda, querer; um querer que quer a si mesmo. Em outras palavras, “a vontade é decisão para si – e sempre: querer para além de si” (Ibid., p. 39), ou seja, como mais querer. Posto que querer seja em si mesmo poder, “vontade é poder e poder é vontade”. A palavra “vontade”, isolada, não tem significado algum, nada explica, e Nietzsche quer evitar esta vacuidade. Porém, Heidegger atenta para o fato de Nietzsche não considerar o poder um complemento da vontade, mas a essência da própria vontade. Desta forma, o poder nunca deve ser pressuposto como meta para a vontade, pois seria o mesmo que considerá-lo como estando fora dela. Sendo assim, o “poder” não deve ser entendido como algo que a vontade quer, mas antes um poder que quer a si mesmo e que determina as condições de todo apoderar-se. Para Nietzsche, a “vontade” e o “poder” são o mesmo no sentido metafísico, isto é, eles se copertencem na essência originária da vontade de poder. Sendo assim, “vontade de poder significa: o apoderamento da 'superelevação' de si mesmo” (HEIDEGGER, 2007a, p , 505). É o apoderamento que traz a superelevação, ou seja, o devir, mas, o devir em um estado estável e de constância. Em outras palavras, para Nietzsche, o devir é o que permanece como propriamente ente. Disso decorre que a vontade de poder em sua essência é a “estabilização do devir na presença” (Ibid., p. 509).

Em Nietzsche, a vontade também pode ser assim definida: “querer é comandar,” ou seja, é na vontade que reside o "elemento" que comanda. Esta é a verdadeira representação da vontade para Nietzsche; todo querer é um querer-ser-mais, ou ainda, um querer-ser-mais-poder. É nisso que reside a elevação, ou, a intensificação, o transformar, o trazer-para-o-alto. Nietzsche (2008, p. 354) explica: “[...] O que o

homem quer, o que cada mínimo pedaço de um organismo vivo quer, é mais poder.” Querer é querer-ser-mais-forte. Pois, a vida, contrariamente ao que já se pensou, não tem apenas o ímpeto à autopreservação, posto que ela mesma seja autoafirmação.

Heidegger observa que ao identificar afeto, paixão e sentimento como vontade, Nietzsche coloca-se, em um primeiro momento, a caminho de caracterizar o que quer, e que tais aspectos servem para a caracterização da vontade em vista daquilo que os distingue. E ainda, que não seria incorreto considerar este aspecto biológico da vontade. Todavia, assinala que parece não ser este o âmbito que Nietzsche quer alcançar. Isto também é válido para a interpretação idealista de vontade. Em síntese, Heidegger salienta que se deve afastar toda a terminologia usual – idealista, não idealista, biológica, psicológica, racional, não racional – para poder aproximar-se da concepção Nietzschiana da vontade, qual seja, a essência do ente. Nesse sentido, vontade de poder é sempre essencial, quer dizer, nunca é a vontade de poder de uma entidade singular, ela diz respeito ao ser e à essência do ente.

Heidegger constata que não há no pensamento de Nietzsche um questionamento acerca da verdade – e que esta omissão perpassa toda a História do Pensamento Ocidental. Porém, como sua interpretação de Nietzsche está longe de ser neutra, se a pergunta pela verdade fosse direcionada ao pensar nietzschiano ter-se-ia como reposta que o “verdadeiro é o verdadeiramente ente, o em verdade real” (HEIDEGGER, 2007a, p. 137), ou seja, o que é conhecido. Dessa forma, é por meio do conhecimento que se tem acesso ao ente. O conhecer “é a terra natal da verdade”. Daí é que se pode entender a declaração de Nietzsche, “minha Filosofia é um platonismo invertido: quanto mais afastado do verdadeiramente ente, tanto mais puro, belo e melhor é” (NIETZSCHE apud HEIDEGGER, 2007a, p. 140. Grifos do autor). Logo, para Nietzsche, o verdadeiramente ente é o sensível, e não o supra-sensível como afirma o platonismo. Vale dizer que intrinsecamente a esta questão encontra-se a argumentação de Nietzsche sobre a arte como vontade de poder, que quer dizer, “a arte como vontade de aparência é a figura suprema da vontade de poder” (HEIDEGGER, 2007a, p.193). Esta temática não será abordada aqui em maiores detalhes, pois o que nos interessa é a constatação de Heidegger de que a inversão do platonismo na totalidade é a realização mais própria do pensamento filosófico de Nietzsche, “aquele pensador que percorreu o curso do pensamento até a “vontade de poder.” (Ibid., p. 369). Para Heidegger, este pensamento de Nietzsche pensa o ente em sua totalidade de tal modo que o fundamento metafísico da História da

época atual, e também da época futura, torna-se não apenas visível, mas ao mesmo tempo determinante por meio daí. E mais, Heidegger acredita que é por meio do pensamento da vontade de poder que Nietzsche antecipa o fundamento metafísico do acabamento da Modernidade, que é uma época final, pois tanto pode ser a conclusão da História Ocidental como a contrapartida para outro início.

Para Nietzsche, a vontade de poder é o princípio de uma nova instauração de valores. Isto fica mais claro quando Heidegger avisa que o subtítulo escolhido por Nietzsche ao curso de pensamento até a vontade de poder é a “tentativa de uma transvaloração de todos os valores”. Aqui, por valor, deve-se entender condição de vida, aquilo que suporta, e desperta a elevação da vida. Sendo assim, o que eleva a vida, ou que o ente em sua totalidade é um valor. Isso explica porque a sentença da metafísica de Nietzsche pode ser lida como sendo “a vida é vontade de poder” (HEIDEGGER, 2007a, p. 369). Na análise de Heidegger, esta sentença representa o acabamento da metafísica ocidental.

Se o ente na totalidade é vontade de poder, e a vontade de poder é o princípio de uma nova instauração de valores, podemos então experimentar a vontade em nós mesmos, reflete Heidegger, seja no querer ou no não-querer. E ainda,

Se a vontade de poder é o caráter fundamental de todos os entes, ele precisa ser “alcançado”, na medida em que se pensa esse pensamento, em todas as regiões do ente: na natureza, na arte, na História, na política, na ciência e no conhecimento em geral. Porquanto é um ente, tudo isso precisa ser vontade de poder (HEIDEGGER, 2007a, p . 384).

Heidegger compreende a expressão nietzschiana “vontade de poder” como uma dominação peculiar do ser “sobre” o ente na totalidade, quer dizer, sob a figura velada do ente abandonado pelo ser. E assinala que o esquecimento do ser deve ser entendido no sentido do permanecer de fora do pensamento que celebra o ser. Dessa forma, deve-se buscar a razão para o estabelecimento do homem como o mero homem, isto é, a razão para a humanização do ente. Nesse sentido é preciso haver a virada - ser-ente, sendo a verdade do ser o ponto de viragem da virada.

3.6 Vontade: poder de comando

No segundo volume de seu Nietzsche, logo nas primeiras páginas, Heidegger (2007b, p. 5) afirma: “a História da verdade do ser termina quando a sua essência inicial é perdida”. Grosso modo, Heidegger entende que o ser torna-se um mero construto e deixa de se mostrar como o ente supremo. É desta maneira que ele caracteriza o fim da metafísica, na qual o esquecimento do ser encontra o seu ápice, e a verdade do ser permaneceu indeterminada.

Mesmo tendo direcionado nossa atenção sobre a noção da “vontade de poder”, vale ressaltar a identificação que Heidegger faz das demais expressões fundamentais do pensamento de Nietzsche, quais sejam: “o niilismo”, “o eterno retorno do mesmo”, “o além-do-homem” e a “justiça”. Estas noções mostram o caminho percorrido por Nietzsche no âmbito da verdade do ente enquanto tal, e encontram-se resumidas nesta passagem:

“A vontade de poder” mostra-se como a expressão para o ser do ente enquanto tal, para a essentia do ente. “Niilismo” é o nome para a História da verdade do ente assim determinado. “Eterno retorno do mesmo” designa o modo como o ente na totalidade é a existentia do ente. O “Além-do- homem” aponta para aquela humanidade que é requisitada por essa totalidade. “Justiça” é a essência da verdade do ente enquanto vontade de poder (HEIDEGGER, 2007b, p. 197).

Heidegger assinala que em Nietzsche, a vontade pode ser concebida psicologicamente, mesmo que não seja de acordo com uma psicologia usual. É como se Nietzsche invertesse as tarefas, pois “exige a psicologia como uma morfologia e uma doutrina do desenvolvimento da vontade de poder” (HEIDEGGER, 2007a, p. 200. Grifo do autor). E reforça a noção nietzschiana da vontade de poder como o caráter fundamental do ente, ou a essência mais íntima do ser. Contudo, chamamos a atenção para a interpretação que o próprio Heidegger faz desta noção:

Qualquer um pode experimentar em si mesmo a qualquer momento o que significa “vontade: querer é aspirar algo. Todos sabem a partir de uma experiência cotidiana o que é o “poder”: o

No documento O fenômeno da vontade em Hannah Arendt (páginas 138-141)