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Capítulo 3 – O niilismo e a técnica moderna

3.4. A vontade de poder

No pensamento moderno onde assistimos ao predomínio temático do conceito de consciência o ser torna-se objeto. O objeto é instância contrária (resistente). O objeto é desde o princípio visto a partir da energia com a qual a vontade aspira a superar a resistência. Trata-se aqui de uma vontade de domínio que se manifesta no conceito de “objeto”. Por isso, o saber- se-a-si-mesmo da metafísica moderna da subjetividade tanto é concepção [perceptio], como é também ambicionar e querer [appetitus]. Conceber e ambicionar pertencem conjuntamente a uma unidade cujo traço fundamental é a força [vis], caso em que a força é pensada como a realidade do real. É preciso indicar que “dentro da metafísica moderna, é Leibniz que pela primeira vez pensa o subjectum enquanto ens percipiens et appetens. No caráter de vis do ens, ele pensa pela primeira vez de um modo claro a essência da vontade do ser do ente”216. Com efeito, não há representação sem poder descarregado expansivamente sobre o mundo.

Para este querer, tudo se torna, à partida, e em seguida de uma forma irresistível, material da elaboração que se impõe. A terra e a atmosfera tornam-se matéria- prima. O homem torna-se material humano que é colocado ao serviço dos objetivos propostos. A instalação incondicionada do impor-se incondicional da elaboração propositada do mundo vai se configurando necessariamente nos moldes do mundo humano, num processo que surge da essência oculta da técnica. É apenas a partir da era moderna que esta essência começa a desenrolar-se como destino da verdade do ente na totalidade, ao passo que, até agora, as suas manifestações dispersas e as tentativas pontuais se mantinham integradas no extenso domínio da cultura e da civilização.217

É a partir do eu que Descartes funda a objetividade e quanto mais esse eu se torna profundo, insaciado e vazio, mais se torna ilimitado e agressivo o ímpeto da vontade humana que estabelece, por um desígnio ainda inapercebido, o mundo como um conjunto de objetos capazes de serem elaborados no processo de produção técnico-industrial. Os valores expressados pela vontade são as mediações necessárias à afirmação incondicionada do sujeito humano. A interpretação de Nietzsche dos entes como vontade de poder é, na opinião de

216 HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 282 217HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 333

Heidegger, um antropomorfismo em grande estilo. Nietzsche localiza o homem no centro do universo. Tudo deve apresentar-se a ele para ser julgado. “Niilismo seria, pois, no sentido heideggeriano, a indevida pretensão de que o ser, em vez de subsistir de modo autônomo, independente e fundante, esteja em poder do sujeito”218. Na verdade, Nietzsche consuma a metafísica da subjetividade ao fazer da vontade de poder o fundamento da certeza e ao definir a verdade como apoderamento e dominação. Em resumo, a subjetividade – enquanto vontade de poder que coloca a si mesma suas próprias condições – se assegura na própria permanência, na constante presença de si a si mesma.

É o homem que é solicitado pela vontade de poder, sem se dar conta da essência dessa vontade. É de suma importância compreendermos que, para Nietzsche, o ser daquilo que é passa a se manifestar de modo próprio como vontade. Para ele, a vontade deste querer não deve ser entendida como uma faculdade da alma humana. Esta vontade não é nada que possa ser apreendida psicologicamente porque ela agora se mostra como princípio que estabelece as condições do ente em sua totalidade. Por sua vez, Heidegger complementa: “aquilo que a vontade quer, ela esforça-se por consegui-lo não apenas como algo que ainda não tem. Aquilo que a vontade quer, ela já o tem. Pois a vontade quer a sua vontade. A sua vontade é o que por ela é desejado. A vontade quer-se a si mesma. Ela ultrapassa-se a si mesma”219. Esta vontade não tem um escopo externo a ser alcançado: ela tende apenas a si mesma, à sua própria expansão e potencialização. Em resumo, leitor de Schopenhauer, Nietzsche apresenta o mundo como representação da vontade. Porém, torna-se crucial percebermos que para Nietzsche esta vontade é constitutivamente vontade de poder.

Assimilado à vontade de poder o real se converte no valor de um infinito querer. Com efeito, Nietzsche detalha o último capítulo da história do ser preenchida agora pela doutrina da vontade de poder. Esta é considerada a extensão final da metafísica. Entendemos que a filosofia nietzschiana é uma proclamação da vontade de poder e conserva-se na pura afirmação da vida pelo super-homem, homem esse que é a partir da realidade efetiva determinada pela vontade de poder e para ela. Fundamentalmente, Nietzsche proclama com a sua doutrina da vontade de poder o começo da era da dominação incondicional da metafísica, pois o super-homem pode e deve se dispor a assumir o domínio sobre a terra.

Para Heidegger, ao afirmar a transvalorização dos valores supremos Nietzsche deseja instaurar a vontade de poder enquanto valor fundamental, uma vez que esta absorve o sentido do real. “O acabamento da metafísica realiza-se em meio à transvaloração de todos os valores até agora sobre o fundamento da ‘nova’ instauração dos valores. Esta valora a partir da

218 VATTIMO, Gianni; O fim da modernidade, p. 5 219 HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 270

vontade de poder e em função desta última enquanto o valor fundamental (‘princípio’)”220. Mas isto não quer dizer que temos simplesmente de colocar novos valores no lugar dos antigos. O próprio “lugar” desapareceu, uma vez que não há um mundo supra-sensível como sede privilegiada para os valores. Novos valores não devem vir do céu, e, sim, brotar da própria vida, isto é, da totalidade do real, colhida na sua dimensão essencial. Transvaloração dos valores significa agora não somente que o poder está estabelecido como o valor mais elevado, e sim que o poder coloca e sustenta os valores.

Tudo o que é, é enquanto condição de possibilidade de poder, isto é, enquanto valor. O ser enquanto vontade de poder só se deixa pensar se o pensamento for um pensamento valorativo; e isso de tal maneira que este pensamento precisa instaurar as condições de conservação e, isto significa ao mesmo tempo, de elevação do poder incondicionado.221

O que se passa com o ser, na era em que começa o domínio de uma vontade de poder incondicionada? Ora, uma vez que a presença em geral (isto é, o ser do ente) é aqui reclamada como uma condição da vontade de poder, o ser mesmo se torna um valor. Este, onde ainda é preciso, só pode valer como um valor. Benedito Nunes ajuda-nos a entender toda esta mudança de perspectiva quando, didaticamente, esclarece:

As coisas são reais, na medida em que correspondem ao termo ou ao objetivo de nossos impulsos, e é nessa correspondência que elas significam algo para nós. Não há nenhuma essência que possa ser separada dessa significação que a elas atribuímos. Então, o estado de existência das coisas, uma vez que estão ligadas à significação que lhes damos, passa a ser um estado de seu valor: as coisas não simplesmente existem; mediante a significação que lhes é dada, elas também valem. Seu valer é seu ser. embora elaboremos conceitos abstratos, segundo as exigências do intelecto, nunca desconsideradas por Nietzsche, a vontade de poder, rege esse conflito que nos mostra que não existem coisas em si: as coisas sempre correspondem ao que aspiramos.222

Podemos inferir que da vontade de poder à significação, da significação ao valor, tudo isso se movimenta no circuito das interpretações transitórias que fazemos das coisas. Para Heidegger, a própria idéia de valor não deixa de ser uma projeção da subjetividade moderna, tendo sempre como sua fonte a vontade de poder. É preciso, assim, compreender que a partir da vontade de poder anuncia-se pela primeira vez o próprio niilismo: o fato de não se ter nada a ver com o ser mesmo que agora se torna um valor. Paradoxalmente, o ser quando é alçado até o valor cai na mais profunda nulidade, tornando-se desprovido de qualquer valor. Deste

220 HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 68

221 HEIDEGGER; Nietzsche: niilismo e metafísica, p. 66

modo, todo o perguntar ontológico torna-se supérfluo. O próprio ser torna-se um peão no jogo jogado pela vontade de poder para assegurar sua própria subsistência e intensificação.

Importa, finalmente, reconhecer que, justamente pela caracterização de algo como “valor”, rouba-se a dignidade daquilo que assim é valorado. Isto quer dizer: ao avaliar algo como valor, aquilo que foi valorado é apenas admitido como objeto para a avaliação pelo homem. Mas aquilo que é algo em seu ser não se esgota em sua objetividade e, sobretudo, de modo algum, então, quando a objetividade tem o caráter de valor. Todo valorar, mesmo onde é um valorar positivamente, é uma subjetivação. O valorar não deixa o ente ser, mas todo valorar deixa apenas valer o ente como objeto de seu operar. O esdrúxulo empenho em demonstrar a objetividade dos valores não sabe o que faz.223

Pensando o ser como presença e como valor, Nietzsche permanece participante tanto do esquecimento metafísico do ser e de sua verdade quanto da não colocação em questão deste mesmo esquecimento. Por isso, Heidegger conclui que Nietzsche não realizou a superação do niilismo. Talvez tenha sido o responsável pela sua intensificação. A essência do niilismo é o processo em que, no fim, do ser como tal nada mais há. Recusamos o apelo do ser e tratamos o ser como um nada [nihil]. Permanecer no esquecimento do esquecimento do ser limitando-se a relacionar tão somente com o ente – eis o niilismo. Segundo Heidegger, a metafísica de Nietzsche ocultaria pura e simplesmente o esquecimento do ser através da incondicionalidade do pensamento valorativo, fazendo com que o abandono do ser característico do ente se torne dominante. Em resumo, niilismo, para Heidegger, é a época em que o ser não é mais reconhecido enquanto ser; época em que o esquecimento desse mesmo ser atinge a sua forma mais extrema, quando a subjetividade moderna vai se essencializar como vontade de domínio.

À vontade de potência cabe atribuir o ser, porque é essa mesma vontade que tudo comensura, e que tudo comensurando, de acordo com as forças instintivas, vitais, que tendem à dominação, converte o ser em fumaça. Só é real o que é objeto de avaliação; o real, que também pode ser chamado de vida e como tal conjunção e dispêndio de forças, está na dependência dos valores criados por nós. Somente podemos conceber um mundo que tenha sido feito por nós. Mas o valor é sempre uma conversão da vontade de potência. O cerne da interpretação de Heidegger consiste em haver apontado essa conversão, depois de mostrar como da simples vontade com que o idealismo germânico trabalhou resulta a vontade de potência.224

No acontecimento planetário do Gestell o niilismo, convergência do poder da técnica, alcança a fase da sua consumação. O desafio da técnica é já, na sua essência histórica, a conseqüência do ser do ente aparecer no modo da vontade de poder. A essência da técnica é algo que já corresponde ao império dessa vontade. O domínio sobre o ente no evento da provocação técnica revela este novo ímpeto do homem determinado pela vontade de poder que

223 HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 167 224 NUNES, O Nietzsche de Heidegger, p. 49

passa também a ser a fonte dos valores. Esta se torna, assim, a prefiguração da vontade técnica a qual pertence a capacidade de calcular, regular e organizar a usura do real. Segundo Heidegger, temos de saber que esta vontade de vontade, símbolo máximo de nossa época, não encontrará rapidamente o seu ocaso, ao contrário, se reforçará ainda mais com o abuso desenfreado dos entes realizado pela técnica. Para que a vontade possa ser contínua e uniforme é preciso como condição fundamental que ela assegure a totalidade dos entes como disponibilidade. A consolidação do ente como disponibilidade é uma condição necessária posta pela própria vontade de poder como garantia de si mesma. Já estamos em condições de perceber que a vontade de poder é um impulso e uma preparação fundamental ao Gestell.

Para Heidegger, Nietzsche aponta com sua doutrina da vontade de poder a chegada da era da dominação incondicionada da metafísica. A técnica moderna possibilita gradualmente a encarnação dessa doutrina em todos os entes, antes de mergulhar profundamente no próprio modo de ser da humanidade. Além disso, no niilismo, a razão enquanto traço essencial do homem não é absolutamente destruída. “Ao contrário, somente agora ela é colocada a serviço da vontade que quer a si mesma e assume para esta o asseguramento calculador de todo ente: isto é, o asseguramento calculador da verdade”225. Liga-se à vontade de poder o predomínio incondicionado da razão calculadora. A era tecnológica deve ser entendida como vontade de poder destituída de qualquer finalidade ou propósito que não seja sua própria expansão interminável. Com a técnica, encontramo-nos diante da tirania da vontade de poder e da completa realização do niilismo. Heidegger justamente deseja mostrar a relação entre a essência do niilismo completo e a realização técnica da metafísica: “a zona da linha crítica, isto é, o lugar da essência do niilismo perfeito deve, por conseguinte, ser procurada ali, onde a essência da metafísica desenvolve suas possibilidades extremas e nelas se concentra”226.

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