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O estudo do cinema psicanalítico – que apropriou-se do termo voyeurismo, criado pela psicanálise – tem seu ponto de partida na década de 70, quando as feministas estudiosas do cinema (e da representação feminina no cinema) passaram a usar recursos da semiologia, do estruturalismo e da psicanálise em suas análises teóricas.

Quando da criação deste novo campo de pesquisa dentro dos estudos cinematográficos, o aparato oferecido pela sociologia e pela política não era suficiente para este estudo teórico, que depende da análise primordial do olhar masculino - porquanto esse é o olhar que fora maciçamente lançado desde os primórdios do fazer cinematográfico – e seu poder controlador sobre o discurso e o desejo femininos.

Diante dessa necessidade, quando a crítica feminista lança mão de recursos semióticos, psicanalíticos e estruturalistas, torna-se possível a análise da representação feminina no cinema em paralelo à análise do próprio lugar social da mulher na sociedade ocidental.

Em seu pioneiro livro A Mulher e o Cinema: Os dois lados da câmera (1995), Ann Kaplan se apropria deste e de outros conceitos para analisar o olhar masculino no cinema e seus efeitos sobre produções cinematográficas importantes e representativas no que concerne à imagem feminina por eles construída.

Ela explica, de pronto, a exclusão da mulher da história tradicional, associando-a à representação feminina no cinema.

Primeiro, me parece que enquanto

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certos modelos relativos às mulheres estão ligados a contextos históricos específicos, outros modelos, relacionados ao casamento, à sexualidade e à família – os quais estou enfocando – transcendem as categorias históricas tradicionais. Isso acontece por boas razões: exatamente porque as mulheres, tendo sido relegadas à ausência, ao silêncio e à marginalidade, elas também foram, até certo ponto, relegadas para a fímbria do discurso histórico, se não for para uma posição totalmente fora da história (e da cultura), que tem sido definida como a história do homem (via de regra de classe média) branco. (p. 17)

A autora ressalva que a intenção de sua análise não pretende, através do olhar psicanalítico, “revelar verdades essenciais da psiquê humana que se manifestam em vários períodos históricos e culturas” (p.44), mas acredita que o cinema foi criado como uma “máquina que liberta o inconsciente”, e que, sendo tanto o cinema quanto a psicanálise recentes na história ocidental, o método psicanalítico é adequado para analisar a representação feminina no cinema ocidental do Século XX, como a ela se propõe a fazer.

Kaplan reconhece o histórico de opressão de gênero embutido no discurso psicanalítico, e, justamente por isso, considera-o uma ferramenta útil para a análise da figura feminina como o “outro” no cinema.

Devemos tomar conhecimento de como exatamente a psicanálise funciona para reprimir aquilo que potencialmente

poderíamos ser, para isso devemos dominar os termos de seu discurso fazendo um grande número de perguntas (...) A utilização da psicanálise para desconstruir os filmes hollywoodianos possibilita-nos ver claramente os mitos patriarcais que nos posicionam como o Outro (enigma, mistério), eterno e imutável. (p. 45)

Essas perguntas – o olhar no cinema é necessariamente masculino? O que significa ser uma espectadora feminina? Quais os mecanismos para que a mulher tome posse desse olhar? – lançadas pela autora em sua obra interessam a análise proposta neste trabalho para que enquadremos brevemente a figura feminina no cinema mainstream – o

cinema hollywoodiano

– a fim de estabelecermos um panorama comparativo entre o olhar lançado à mulher no cinema tradicional e o olhar lançado sob uma estética da diferenciação, como propõe Helena Solberg em seus filmes.

Para compreendermos a representação feminina no cinema com base no pensamento de Kaplan, é necessária, portanto, uma análise psicanalítica do processo cinematográfico – passando pela construção do filme e pela questão do espectador.

A autora traz conceitos-chave apropriados pela crítica cinematográfica psicanalítica, como o conceito de representação, ideologia e olhar cinematográfico.

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Esse segmento da crítica cinematográfica adota o conceito de Althusser de ideologia, segundo o qual esta “refere-se a uma série de representações e imagens que refletem as concepções de ‘realidade’ que uma sociedade adota.” (KAPLAN, p. 31)

Deste modo, a ideologia não se comunica com as crenças que as pessoas conscientemente mantêm. Antes disso, está relacionada aos mitos segundo os quais uma sociedade vive – como por exemplo os papéis sociais baseados no gênero – transformando esse mitos em realidade irrefutável, pois compõem uma (in)consciência coletiva.

O conceito de representação, por seu turno, contrapõe a ideia hollywoodiana de realismo cinematográfico, uma vez que este realismo “esconde o fato de que o filme é construído, perpetuando a ilusão de que o que a plateia vê é ‘natural’.” (KAPLAN, p. 31).

A crítica cinematográfica psicanalítica defende, sobretudo, a ideia de voyeurismo masculino intrínseco à atividade cinematográfica, e não compartilhado por nenhuma outra forma de arte. “O estado de ‘esquecimento’ semiconsciente em que o espectador entra permite que os prazerosos mecanismos do vouyeurismo e do fetichismo fluam livremente.” (KAPLAN, p. 31).

O prazer sexual em olhar é chamado de “escopifilia”, e é, segundo a autora, ativada pela própria situação do cinema: a

sala escura, o controle sobre o olhar do espectador e a mobilidade da imagem criam uma atmosfera de sonho jamais proporcionada por nenhuma outra arte.

A construção de uma figura feminina que corrobore com esse vouyeurismo foi uma tarefa cumprida com afinco pelo cinema hollywoodiano.

Em seu estudo “The Woman’s film’: possession and address”, citado por Kaplan, Mary Ann Doane destaca que mesmo no único gênero que constrói uma espectadora feminina – o melodrama – a mulher é obrigada a participar do que é essencialmente uma fantasia masoquista. Nos demais gêneros clássicos, o corpo da mulher é erotizado para atender a uma fantasia masculina.

A figura feminina no cinema mainstream faz jus a capítulo específico. As questões que urgem no que tange ao voyeurismo masculino e à representação feminina no cinema giram em torno da (im) possibilidade de criação de um olhar feminino no fazer cinematográfico: “Será que podemos imaginar uma mulher numa posição dominante que seja qualitativamente diferente da forma masculina de domínio? Ou há somente a possibilidade de ambos os gêneros ocuparem as posições que hoje conhecemos como ‘masculina’ e ‘feminina’?”

Ao tentar solucionar tais questionamentos, a autora observa que mesmo nos raros filmes em que homens são sexualmente objetificados - vide Os embalos de sábado à

noite e O cowboy do asfalto, por exemplo – as personagens

Comentado [E9]: itálico

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Comentado [E12]: que,

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femininas que comandam a ação quase sempre assumem características intrinsecamente relacionados ao masculino, como frieza e capacidade de manipulação.

Essa análise me parece corroborar – como é corriqueiro na crítica feminista tradicional – com a ideia de binariedade de gênero, tendo-se o “masculino” e o “feminino” como bem delimitados e, em certo ponto, segregados. Apesar de não condizente com a ideia contemporânea de não-binariedade, essa abordagem é importante especificamente no estudo em questão, porquanto o surgimento da sétima arte – e seu desenvolvimento até a contemporaneidade – dá-se em um contexto binário.

A ideia de que mulheres não podem ser representadas por personagens enérgicas, ambiciosas e manipuladoras está embutida no discurso da autora, que se refere à humanidade e à maternidade como características próprias das mulheres.

Essa máxima, entretanto, foi e ainda é energicamente refutada por teóricas feministas ao redor do mundo: a leitura do gênero feminino atribui às mulheres papéis sociais determinados, e cria armadilhas como a ideia de que a bondade e a maternidade são características femininas invariáveis, e a frieza, a ambição e a dureza nas decisões são características delegadas aos homens: essa divisão não é biológica. É, antes disso, cultural.

Tal confusão de autoimagem – vivenciada pela autora e estampada em diversas produções cinematográficas

feministas – como por exemplo Minha brilhante carreira justifica-se perfeitamente pela impossibilidade de mulheres criarem suas próprias narrativas nas artes.

Construir um olhar feminino no cinema é uma tarefa complexa porque não temos literatura para isto: Nossas narrativas foram, durante muito tempo e como temos visto, construídas pelos homens, e a divisão de personas baseadas no gênero está encruada em nossa cultura, como esclarece KAPLAN (1995):

O que podemos concluir com tal discussão é que nossa cultura está profundamente comprometida com os mitos das diferenças sexuais demarcadas, chamadas de “masculina” e “feminina”, que por sua vez giram em torno, em primeiro lugar, de um complexo aparato do olhar e depois de modelos de domínio e submissão. (p. 52)

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