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7 O curto-circuito entre vozes e performances

7.1 A voz irônica/ridicularizadora

Neste momento retomaremos a referência aos estudos de Bergson sobre o riso, para melhor compreendermos os efeitos do uso de tais artifícios para o público dos documentários estrangeiros e brasileiros. Em relação ao uso dramático do recurso Bergson argumenta que um dos artifícios geradores do efeito cômico, ou ridículo é o da inversão de papéis, em uma situação que se volta contra quem a criou:

Imaginemos certos personagens em dada situação: obteremos uma cena cômica fazendo com que a situação volte para trás e com que os papéis se invertam. [...], Mas nem é necessário que as duas cenas simétricas sejam representadas diante de nós. Basta que se nos mostrem uma, desde que haja certeza de que pensamos na outra. Assim é que nos rimos do acusado que dá lição de moral ao juiz, da criança que pretende ensinar aos pais, enfim, do que acabamos de classificar como "mundo às avessas". Teremos quase sempre diante de nós um personagem que prepara a trama na qual ele mesmo acabará por enredar-se. A história do perseguidor vítima de sua perseguição, do velhaco trapaceado, constitui o fundo de inúmeras comédias. (Bergson, 1983: 47)

Podemos identificar este efeito em alguns momentos dos documentários de Moore, Broomfield e Mograbi. Mas nos documentários brasileiros a inversão de papéis é mais intensa

na medida em que os entrevistados estão dispostos a projetarem uma imagem positiva e bem- sucedida de si mesmos para o espectador, diferentemente dos personagens dos documentaristas estrangeiros, que “fogem” de suas câmeras. Nos filmes brasileiros o documentarista incentiva o entrevistado a se comportar de maneira bastante à vontade, induzindo a sua expressividade. Posteriormente, ao intercalar o depoimento dos entrevistados com contrapontos visuais e/ou sonoros que revelam a sua ingenuidade em relação às reais intenções do documentarista, e os equívocos de seus argumentos, a inversão ocorre. O entrevistado passa então a desempenhar simultaneamente os papéis de “inimigo” e “vítima”.

Bergson também afirma que uma das principais diferenças entre a comédia e a tragédia, é que a segunda possui personagens densos, únicos, potentes, enquanto a primeira trabalha com tipos. Muitas vezes estes “tipos” nem nomes próprios têm, sendo definidos por seus vícios, como “o avarento” por exemplo. Além disso, comédias frequentemente apresentam muitos indivíduos que cultivam a mesma característica a ser ridicularizada:

Sobretudo, não ocorrerá a um autor trágico grupar em torno do seu personagem principal personagens secundárias que lhe sejam, por assim dizer, cópias simplificadas. O herói de tragédia é uma individualidade peculiar em seu gênero. Poderá ser imitado, mas nesse caso se passará, conscientemente ou não, do trágico ao cômico. Ninguém se parece com ele, porque ele não se parece com ninguém. Já pelo contrário, um notável instinto leva o autor cômico, ao compor o seu personagem central, a fazer gravitar em torno dele outros figurantes que apresentem os mesmos traços gerais. Muitas comédias têm por título um substantivo no plural ou um termo coletivo. "As mulheres sábias", "As preciosas ridículas", "O Mundo do Tédio" etc., outro tanto de encontros em cena de pessoas diversas reproduzindo um mesmo tipo fundamental. [...] Se o objetivo do autor cômico é nos apresentar tipos, isto é, caracteres capazes de se repetir, não lhe seria mais fácil nos apresentar vários exemplares diferentes de um mesmo tipo? Assim procede o naturalista quando trata de uma espécie: ele os enumera e lhes descreve as principais variedades (Bergson, 1983: 78).

Nos documentários de Moore, Broomfield, Mograbi e De Antonio os alvos são individualizados e diretamente responsabilizados por ações sociais danosas e/ou violentas. Roger Smith é responsabilizado por desempregar praticamente uma cidade inteira, Terre´Blanche por ações violentas e racistas, Thatcher, Palin e Hoover por ações que contrariam o interesse público e Sharon pelo genocídio de Sabra e Shatila. Ainda que as tentativas de ridicularização os associem a certos “tipos”, como o “barão capitalista” no caso de Roger Smith e o “autoritário ignorante” no caso de Terre´Blanche, tais expedientes não são suficientemente explorados a ponto de diluir o retrato personalizado. A opção por não utilizar esse mecanismo de ridicularização de maneira intensa fortalece o retrato do “inimigo”.

Bergson, ao justapor um número variado de entrevistados que atendem a determinado “vício” identificado pelo documentarista. Em Jesus no Mundo Maravilha o “vício” denunciado é o comportamento violento, em Violência S.A é o medo da violência, em Banco imobiliário e

Um lugar ao Sol uma certa “inconsciência social” e em Pacific o comportamento consumista

de turistas. Em Turn off temos apenas um entrevistado, que insiste em construir um retrato de si mesmo individualizado, inclusive dando grande destaque ao seu nome e suas origens. Mas a voz do documentarista, por sua vez, constantemente busca evidenciar traços de seu entrevistado que poderiam ser encontrados em indivíduos da mesma camada social a que pertence, na tentativa de formatar um “retrato de classe”.

Como apontamos anteriormente, alguns documentaristas dos filmes que analisamos argumentam que ocorre em suas obras uma espécie de “ridicularização por procuração”, na

medida em que os entrevistados não são vítimas da ironia do documentário por suas atitudes individuais, e sim por corporificarem grandes grupos ou classes sociais que são, de fato, os alvos dos documentários. Nesta linha argumentativa, Mascaro afirma, sobre Um lugar ao Sol:

Eu procuro sempre imaginar Um lugar ao Sol como um grupo de personagens em estado de exceção. Foram os últimos nove que aceitaram participar de um filme sobre morar em coberturas, dentro de um livro que mapeia pessoas que fazem parte de um guia de socialites. É um estado de exceção. Porque o inimigo de verdade não dá entrevista pra mim. Ele está cultivando nióbio em algum lugar… O inimigo de verdade tem outro rosto, está muito distante, não está no filme.50

Bergson pondera que, para um vício ser risível ou ridículo, ele precisa ter natureza exógena, ou seja, vir de fora. Se ele for parte constituinte e indissociável de um indivíduo, encontra-se no domínio do trágico:

Seja por constituição natural ou contração da vontade, o vício assemelha-se muitas vezes a certa curvatura da alma. Sem dúvida, existem vícios nos quais a alma se instala profundamente com tudo o que carrega em si de força fecundante, os quais ela arrasta, vivificados, num círculo móvel de transfigurações. Vícios como esses são trágicos. Mas o vício que nos tornará cômicos é, pelo contrário, aquele que se nos traz de fora, como um esquema completo no qual nos inserimos. Ele impõe a sua rigidez, em vez de valer-se da nossa flexibilidade. Não o complicamos: pelo contrário, ele é que nos simplifica (Bergson, 1983: 12).

Um esquema exógeno que pode ser explorado na produção do risível é relativo a ofícios

50 Entrevista de Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso concedida para o portal de crítica cinematográfica Cinética. Publicada em 27/09/2013). Disponível em <http://revistacinetica.com.br/home/conversa-com-gabriel-mascaro-e-marcelo- pedroso/>

e profissões. Cada profissão corresponde a uma categoria que abrange determinado grupo de pessoas, e possui suas próprias regras e condutas internas. Muitas vezes esses regimentos internos não dialogam com as condutas mais gerais e abrangentes da sociedade na qual essas profissões estão inseridas – ainda que o seu pleno funcionamento seja fundamental para o equilíbrio dessa mesma sociedade:

Toda profissão especial dá aos que a exercem certos hábitos de espírito e certas particularidades de caráter pelos quais eles se assemelham entre si, e pelos quais esses profissionais se distinguem dos outros. Pequenas sociedades se constituem assim no seio da grande. Sem dúvida, resultam da organização mesma da sociedade em geral. E, no entanto, correriam o risco, se isoladas em demasia, de prejudicar a sociabilidade. Ora, o riso tem por função precisamente reprimir as tendências separatistas. O seu papel é corrigir a rigidez convertendo-a em maleabilidade, reajustar cada um a todos, enfim, abrandar as angulosidades. (Bergson, 1983: 83-84)

Nos filmes de Moore, Broomfield, Mograbi e De Antonio os alvos não são necessariamente a profissão de seus personagens, e sim a maneira como eles “corrompem” as funções de poder as quais atuam, praticando atos condenáveis, do ponto de vista profissional e moral. Já em Jesus no Mundo Maravilha, Banco imobiliário e Turn off as profissões de policial militar, agente do mercado imobiliário (corretor, prospector etc.) e colunista social, respectivamente, são os alvos centrais da ridicularização. Miguel Antunes Ramos, em entrevista, reforça nosso entendimento, ao dizer que a ridicularização dos atores sociais em seu documentário opera no sentido de criticar o sistema, e não os indivíduos filmados51, dizendo: “Poderia ser qualquer um ali”.

Além disso, nos documentários brasileiros a concatenação de múltiplas entrevistas pode produzir o efeito de “caricaturização”, ou seja, um retrato cômico. Segundo a definição de Umberto Eco, a caricatura opera como uma “negação da unidade”, uma vez que o caricaturista tira de proporção determinado elemento. Em contraste com os demais, que mantém sua proporção original, o “desvio” desse traço em particular gera um retrato que induz ao riso:

A caricatura consiste em exagerar um momento de uma determinada forma até a deformidade. (…). Logo, para explicara caricatura, é preciso acrescentar ao conceito de exageração um outro, o conceito desproporção entre um momento da forma e a sua totalidade e, portanto, da negação da unidade que deveria subsistir segundo o conceito da forma. Ou seja, se toda a forma fosse aumentada ou diminuída em medida igual, e em todas as suas partes, as proporções, consequentemente – como é o caso das figuras de Swift – não nasceria daí nem mesmo algo de propriamente feio. Se, no entanto, uma parte sobressai da unidade de modo a negar a relação normal, e como essa última

continua a subsistir nas outras partes, produz-se um deslocamento e uma desordem do todo que é feia. (Eco, 2007: 154)

Bergson nos fornece uma interpretação mais detalhada, argumentando que o caricaturista revela algo de profundo, um movimento já existente, que ao ser exagerado, torna-se mais perceptível: “A arte do caricaturista consiste em captar esse movimento às vezes imperceptível, e em torná-lo visível a todos os olhos mediante ampliação dele” (Bergson, 1983: 17). Para o autor, o simples exagero não é suficiente para produzir uma caricatura. Na realidade, “para parecer cômico, é preciso que o exagero não seja o objetivo, mas simples meio de que se vale o desenhista para tornar manifestas aos nossos olhos as contorções que ele percebe se insinuarem na natureza”. (Bergson, 1983: 17).

Bergson conclui:

Trata-se sem dúvida de uma arte que exagera, e, no entanto, definimo-la muito mal ao lhe atribuirmos por objetivo uma exageração, porque existem caricaturas mais verossímeis que retratos, caricaturas que mal se percebem, e inversamente podemos exagerar ao extremo sem obter um verdadeiro efeito de caricatura. [...]O caricaturista que altera a dimensão de um nariz, respeitando-lhe a fórmula, alongando-o, por exemplo, no mesmo sentido em que o alongou a natureza, de fato faz esse nariz caretear: daí por diante o original nos parecerá, por sua vez, ter querido se alongar e fazer a careta. (Bergson, 1983: 17).

A caricaturização do “inimigo” promovida nos filmes de Moore, Broomfield, Mograbi e De Antonio é feita a partir da reiteração ou ênfase de alguns traços específicos destes indivíduos. Nos filmes de Moore e Mograbi, Roger Smith e Sharon são retratados como figuras públicas que se apresentam de maneira bastante gentil a amável em público, mas são capazes de atitudes desumanas, como a demissão em massa de seus funcionários, e a conivência com um genocídio, respectivamente. Nos filmes de Broomfield e De Antonio o traço ressaltado de Terre´Blanche, Thatcher, Palin e Hoover é o autoritarismo. Portanto, nestes documentários estrangeiros, enquanto a construção do inimigo se dá a partir de retratos individualizados, as tentativas de tecer comentários irônicos/ridículos ocorrem a partir da produção a caricaturas a partir destes retratos.

Já nos filmes brasileiros a caricaturização não é de apenas um indivíduo e sim de grupos sociais. Do mesmo jeito que o caricaturista prolonga traços físicos/comportamentais do retratado, aumentando a proporção de modos de ser, agir e de pensar, esses documentaristas “prolongam” determinado aspecto deste grupo aos poucos, utilizando cada nova entrevista como uma etapa deste processo. O efeito é produzido nestes documentários a partir da

justaposição da fala de vários entrevistados cujo discurso aparente, ou até mesmo seu subtexto, discorrem sobre a mesma ideia. Quando ouvimos por exemplo, seguidamente, os vários entrevistados de Um lugar ao Sol, discorrendo sobre a sua apreciação pela natureza, enquanto vemos que os prédios em que moram modificam as paisagens litorâneas, o efeito da caricatura se manifesta.

Bergson também observa na comédia um ritmo em crescendo à medida que ela vai se intensificando: “uma primeira concessão arrancada à razão acarreta uma segunda, e esta uma outra mais grave, e assim por diante até o absurdo final.” (Bergson, 1983: 89). Estes documentários também parecem seguir a mesma lógica aumentando cada vez mais o ritmo até atingir, finalmente, o traço final da caricatura na última entrevista.

No entanto, como vimos, o caricaturista nada inventa, apenas “prolonga” determinado traço. Caso o indivíduo tenha – e demonstre – conhecimento sobre o “desvio” que possui, a sua auto-mise-en-scène pode desativar o efeito de ridículo, pois, como afirma Bergson, “um personagem cômico o é, em geral, na exata medida em que se ignore como tal. O cômico é inconsciente. Um personagem de tragédia em nada alterará a sua conduta por saber como a julgamos” (Bergson, 1983: 12).

Para citarmos um exemplo, o “inimigo” de Avi Mograbi, Ariel Sharon, possui um “vício” bastante evidente pela sua forma física e hábitos: a gula. Algumas vezes durante o documentário o diretor ressalta esse “desvio”, filmando-o comendo, ou dizendo que não teve permissão para filmá-lo, pois o político estava comendo. No entanto, em outros momentos vemos diálogos e interlocuções de Sharon em que ele mesmo escarnece deste seu vício, afirmando que seu desejo por comida é incontrolável. Ao assumir isso, Sharon desativa o efeito de ridículo, na medida em que nos compadecemos de sua fraqueza.

Ampliando esse efeito, Bergson postula que, no momento em que se “quebra” o distanciamento entre aquele que ri e seu alvo, não estamos mais no domínio do riso, pois “o cômico exige algo como certa anestesia momentânea do coração” (Bergson, 1983: 8).

Neste sentido, a tentativa de ridicularizar algo ou alguém sempre carrega consigo a possibilidade do fracasso. As causas da desativação do ridículo por meio de sentimentos como empatia, piedade e comoção, são inúmeras. Portanto, a distância colocada entre Moore, Broomfield, Mograbi e De Antonio e seus inimigos pode ser entendida como estratégica, para minimizar esse risco. A fragmentação do foco da maioria dos documentários brasileiros em vários entrevistados parece ter o mesmo objetivo. Ao não se focarem em um único indivíduo, diminuem-se as chances de produzir retratos complexos destes entrevistados, que permitam despertar no espectador empatia.

A identificação destes processos de estereotipia e caricaturização dos inimigos nos documentários brasileiros nos auxilia a esclarecer uma importante questão proposta pela pesquisa: de que forma o humor está sendo utilizado por estes documentários? É preciso avançar agora, para a próxima questão que nasce imediatamente após a resposta da anterior: quais seriam as consequências de utilizar humor para tratar de temas sociais nestes documentários?

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