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5. RESÍDUOS QUE ECOAM: ELEMENTOS TESTEMUNHAIS E A

5.2. Vozes sobrenaturais

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À medida que a investigação ganha corpo dentro do romance, a amizade entre Massimo e o Tradutor começa a solidificar-se e outras vozes ganham espaço no texto, edificando um romance polifônico e deslocando o foco narrativo para outras personagens: Estevão Jonas (o administrador da vila), a velha-moça Temporina, a prostituta Ana Deusqueira, o feiticeiro Zeca Andorinho e o velho Sulplício (o pai do narrador). Todos eles apresentam suas versões dos fatos, ou contam sonhos ou lembranças essenciais para o processo investigativo, no qual Massimo está inteiramente inserido.

Em OUVF, Hortênsia, personagem do livro, é apresentada como fantasma e continua a fazer parte da vida de seu sobrinho mentalmente instável, e materializa-se na forma de um grilo que visita Tizangara. As demais personagens do livro, incluindo o próprio narrador, não sentem desconforto ou temor diante da presença do fantasma, sendo a exceção Massimo Risi, que, ao se deparar com a figura de Hortênsia, sente-se perdido:

Hortênsia!

O italiano passava ao oitenta sem parar no oito. Hortênsia? Que se passava, agora? Olhou para mim pedindo socorro e eu aproximei-me do hospedeiro para esclarecimento. O homem apontava no chão uma louva-a-deus morta. Também a mim me veio um arrepio. De repente, aquele cadáver estava para além de um inseto. O recepcionista prosseguia, lamurioso:

Ela andava sempre por aí, pelos quartos...

Mais pesaroso não se podia estar. O italiano, quando entendeu, tratou de despachar dali o recepcionista. Não havia réstia de paciência, nas reservas dele. E com a bengala enxotou do quarto o bicho,varrendo-o como se de um mero lixo se tratasse. E agora me explique! Que raio se passa?

Uma louva-a-deus não era um simples inseto. Era um antepassado visitando os viventes. Expliquei a crença a Massimo: aquele bicho anda ali em serviço de defunto. Matá-lo podia ser um mau prenúncio (COUTO, 2005a, p. 60)

Hortência, assim como outros fantasmas criados por Mia Couto, representa a ligação entre passado e presente, pois o fantasma é aquele que retorna dos mortos e assim perturba o fluxo normal do tempo, porque habita um território impreciso entre vida e morte – um entre lugar (FELINTO, 2008). Carmen Lucia Tindó Secco, em seu livro A magia das literaturas

africanas (2008), que reúne seus textos críticos sobre a literatura produzida em Angola e Moçambique, diz-nos que

[...] através das lembranças que guardou da mãe, do pai Sulplício, o tradutor tenta reencontrar a identidade dilacerada por tantas opressões e imposições feitas pelos colonizadores que silenciaram a sua cultura. Por meio do convívio com o feiticeiro Zeca Andorinho e com Temporina, moça-velha, tenta passar ao investigador italiano as crenças e a visão africana do mundo, segundo as quais os antepassados continuam, após a morte, interferindo no mundo dos vivos (SECCO, 2008. p. 154).

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Essa interpretação teórica é muito importante para entender o porquê da presença de alguns fantasmas na obra, como Hortência, espírito que se metamorfoseia de louva-a-deus para visitar os vivos.

Existe uma ambivalência presente em todo o romance, pois as relações de poder resistiram para permanecerem no mesmo local, palco de extrema violência, resultado de uma guerra civil que durou mais de 20 anos. Os acontecimentos históricos aparecem na narrativa atrelados à preocupação estética e não podem ser analisados separadamente, visto que tal harmonia é umas das principais preocupações de Mia Couto em OUVF. Podemos observar essa proposta na seguinte passagem: “Na nossa vila, acontecimentos era coisa que nunca se sucedia. Em Tizangara só factos são sobrenaturais. E contra factos tudo são argumentos. Por isso, tudo ocorreu, ninguém arredou” (COUTO, 2005a, p. 15).

O excerto acima permite-nos vislumbrar algumas tendências da literatura coutiana, concomitantes com os temas que foram utilizados de mote para a reflexão aqui desenvolvida. Desse modo, o que mais interessa-nos é articulação entre a história oficial e os rumores e a preocupação estética atrelada à memória. Ao revelar que os fatos em Tizangara são sobrenaturais e que os acontecimentos eram coisas que nunca aconteciam, o narrador sugere- nos que o verossímil e o inverossímil habitam dentro do mesmo espaço. Nesse sentido, investigar a temática do sobrenatural somente pela perspectiva estética, ou seja, pela discussão que envolve o gênero fantástico e maravilhoso, é, para nós, limitante.

Como pudemos ver, a relação entre os vivos e os mortos em Moçambique sempre foi um dado que ultrapassou o universo ficcional. A presença dos espíritos e o seu regresso em diferentes formas mostra-nos que tal elemento surge para evocação de suas memórias e para quebrar o silenciamento e apagamento que o discurso racional oficial ainda reproduz. Nesse sentido, podemos analisar a construção ficcional do fantasma, em Mia Couto, como um componente que insiste em resistir.

E é esse espaço que habita o Tradutor e narrador do romance, o qual sucumbe na tentativa de mostrar o universo em que ele cresceu para o Outro (tanto o soldado da ONU Massimo Risi quanto o leitor), pois traduzir o que se passou, a memória em si, é impossível. Por isso, a função do Tradutor é tão ambígua e ambivalente: porque surge da necessidade de explicar algo inexplicável: “Ele que visse, por si, os vivos e os mortos partilhassem da mesma casa. Como Hortência e seu sobrinho. Pensasse nisso quando procurasse os seus mortos" (COUTO, 2005, p. 67).

É questão fundamental, na atualidade, saber selecionar o que será armazenado e o que será descartado. Anteriormente, até mesmo o lixo do passado era fonte de informação cultural

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sobre os hábitos de um povo, porém a fronteira entre o que se deve lembrar e o que deve ficar esquecido é cada vez mais tênue (ASMANN, 2011). Diante disso, a representação do fantasmagórico direciona-nos a analisá-la na forma de resíduo, algo que restou apesar da máquina operante eurocêntrica e racional, que durante décadas insistiu em classificá-la como elemento inverossímil, atrelada ao gênero fantástico, e, por sua vez, compactua com uma forma exotificante de pensar tais representações.

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