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2. Fundamentação teórica

3.7 Vulnerabilidade e proteção social

Como já foi dito anteriormente, o presente estudo se propõe a compreender a experiência pessoal de maternidade e filialidade de mães que apresentam sofrimento psíquico e dos seus filhos. Uma vez que se compreende que esta experiência envolve as ações, pensamentos e sentimentos que essas pessoas apresentam e que estão situados em um contexto específico, faz-se mister a consideração de conceitos que possam permitir uma análise dos aspectos sociais que compõem a realidade dessas pessoas.

O cotidiano em que vivem os sujeitos que apresentam transtornos mentais severos e persistentes, especialmente no município de Salvador, aparece marcado por uma série de elementos que, aparentemente, permitem descrevê-lo como um cenário de possível “vulnerabilidade social” e de escassez de recursos de “proteção social”. Desta forma, será realizado, aqui, um esforço para situar brevemente esses dois conceitos, referenciando teoricamente os modos através dos quais eles são reconhecidos.

Abramovay et al. (2002) afirmam que as aproximações analíticas acerca da vulnerabilidade social são recentes e advém das reflexões em torno das limitações dos estudos sobre a pobreza e dos escassos resultados das políticas a ela associadas. Os

autores referem que o conceito de pobreza não foi capaz de dar conta das complexas raízes do fenômeno, uma vez que se reduzia à análise de indicadores de renda e de insatisfação das necessidades básicas. Considerando tais aspectos, o conceito de vulnerabilidade social passou a ser proposto como uma possibilidade de abordar, de forma mais integral, não somente o fenômeno da pobreza, mas as diversas modalidades de desvantagem social, reconhecendo o bem-estar social como um fenômeno dinâmico e que se associa a diversos fatores e dimensões.

Neste trabalho, a vulnerabilidade social é compreendida, então, como o balanço negativo entre “a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas, culturais que proveem do Estado, do mercado e da sociedade” (Abramovay et al., 2002, p. 29). Os autores ressaltam que este enfoque faz referência a três elementos que conformam a situação de vulnerabilidade social: (1) a posse ou o controle dos recursos materiais ou simbólicos que permitem o desenvolvimento dos sujeitos em sociedade; (2) as oportunidades dadas pelo mercado, pelo Estado e pela sociedade, as quais se vinculam com o nível de bem-estar a que os indivíduos podem ascender, a partir do uso eficiente dos recursos; (3) as estratégias que os sujeitos constroem em torno do seu conjunto de ativos, na tentativa de lidar com as mudanças estruturais de um dado contexto social.

A vulnerabilidade social estaria, assim, circunscrita às situações em que a dinâmica das “características, recursos e habilidades inerentes a um dado grupo social se revelam insuficientes, inadequados ou difíceis para lidar com o sistema de oportunidades oferecido pela sociedade” (Abramovay et al., 2002, p.30), podendo resultar, como consequência, na propensão à modalidade descendente desses atores e no desenvolvimento de sentimentos de incerteza e insegurança. De maneira parecida, Kaztman (2000) define a vulnerabilidade social como

la incapacidade de uma persona o de um hogar para aprovechar las oportunidades, diponibles em distintos âmbitos socioeconómicos, para mejorar su situación de bienestar o impedir su deterioro. Como el desaprovechamiento de oportunidades implica um debilitamiento del processo de acumulación de activos, las situaciones de vulnerabilidade suelen desencadenar sinergias negativas que tienden a um agravamento progressivo (p. 281).

Salienta-se, entretanto, que não compreendemos a vulnerabilidade como uma incapacidade própria da pessoa, mas como uma característica que se conforma a partir de sua interação com um contexto de desamparo.

As fragilidades dos mecanismos de proteção social têm sido assumidas como uma das fontes mais significativas de produção de vulnerabilidade social. Di Giovanni (2008)16 compreende os sistemas de proteção social como as formas mais ou menos institucionalizadas que as sociedades criam para proteger parte ou o conjunto dos seus membros. De acordo com o autor, este processo envolve a redistribuição tanto de bens materiais, quanto de bens culturais, os quais demonstram ser capazes de permitir, às pessoas, a sua integração na vida social. As normas que irão pautar os modos como esses recursos serão redistribuídos, segundo o pesquisador, se diferenciam entre as culturas, embora sempre incluam uma dimensão relacionada ao poder e sigam critérios de alocação baseados em três modalidades distintas, mas não excludentes. São elas: a tradição, as trocas e a autoridade.

A modalidade da tradição se refere às práticas exercidas pela família, pela comunidade ou por instituições religiosas e se pautam em um conjunto de valores caracterizado pela caridade, fraternidade e solidariedade. A modalidade da troca, por sua vez, faz jus ao conjunto de práticas econômicas que se realizam tanto face a face, quanto através da impessoalidade das forças do mercado. Por fim, a modalidade da autoridade se refere à forma política de alocação, organizada, no mundo moderno, através da presença do Estado como gestor, regulador e produtor dessas relações. Mais especificamente, Di Giovanni (2008) relata que a proteção social exercida pelo Estado é socialmente assumida como uma função do poder público e que se concretiza, institucionalmente, por meio da proposição de políticas públicas que visem a execução de medidas de caráter prescritivo, normativo e operativo, elegendo e discriminando escolhas, objetivos e grupos de destino, sempre através de um complexo relacionamento com outros agentes e forças envolvidas. De acordo com Trad (2013), o Brasil tem buscado investir tanto no campo da assistência social, quanto no campo da saúde, em mecanismos de co-responsabilização entre as esferas do Estado, da comunidade e da família. Tal intento, segundo a autora, pode ser evidenciado por meio dos investimentos que o Estado tem feito nas políticas

públicas que são pautadas na familiarização e na exaltação da solidariedade familiar. Embora reconheça a potencialidade destas estratégias, Trad (2013)destaca a importância de se aprofundar a discussão referente à pertinência e efetividade dessas propostas no contexto concreto e real em que as famílias sobrevivem, sublinhando as transformações mais recentes na estrutura da dinâmica familiar. Tais transformações parecem ter modificado os tradicionais mecanismos de solidariedade, fazendo-se, portanto, necessário, encarar a família como uma unidade que, tal qual outras instituições sociais, pode ser simultaneamente forte e fraca.

Sobre esse aspecto, chama a atenção o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS, 2006). Elaborado a partir de um processo participativo de construção, envolvendo representantes de todos os poderes e esferas do governo, da sociedade civil organizada e de organismos internacionais, este plano visa romper “com a cultura de institucionalização de crianças e adolescentes ao fortalecer o paradigma da proteção integral e da preservação dos vínculos familiares e comunitários preconizados”. Isto porque compreende a manutenção dos vínculos familiares como um direito humano e como uma condição importante para o desenvolvimento de crianças e adolescentes, reconhecendo a importância das ações transversais e intersetoriais para que esses vínculos sejam preservados.

Ao tratar os antecedentes históricos, o documento citado reconhece que as famílias, muitas vezes, encontraram dificuldades para proteger e educar seus filhos e que, tradicionalmente, isso foi usado como um “argumento ideológico que possibilitou, ao Poder Público, o desenvolvimento de políticas paternalistas voltadas para o controle e a contenção social, principalmente para a população mais pobre, com total descaso pela preservação de seus vínculos familiares” (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, e Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS, 2006, p. 15). Assim, ações como a suspensão provisória do poder familiar ou a destituição dos pais e de seus deveres com relação à criança constituíram-se práticas recorrentes.

De modo a contrapor essa realidade, o plano propõe, então, como responsabilidade da sociedade e do Estado, o desenvolvimento de estratégias de proteção dos vínculos familiares, as quais devem visar “as possibilidades de preservação dos mesmos, aliando

o apoio socioeconômico à elaboração de novas formas de interação e referências afetivas no grupo familiar” (p. 15). Nos casos em que essas estratégias não se fizerem suficientes e acabe ocorrendo o rompimento dos vínculos familiares, o documento responsabiliza o Estado pela proteção das crianças e adolescentes, o qual passa a ter como dever o desenvolvimento de

programas, projetos e estratégias que possam levar à constituição de novos vínculos familiares e comunitários, mas sempre priorizando o resgate dos vínculos originais ou, em caso de sua impossibilidade, propiciando as políticas públicas necessárias para a formação de novos vínculos que garantam o direito à convivência familiar e comunitária. (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), 2006, p.15)

Permanece, portanto, como uma questão, o reconhecimento dos recursos de proteção social que se encontram disponíveis para as famílias brasileiras, especialmente aquelas que se caracterizam, entre outros fatores, pela presença de mulheres em sofrimento psíquico que são mães de filhos pequenos.

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