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“Trois chansons de Charles d’Orléans”

3. Yver, vous n’estes qu’un villain

Nos dez primeiros compassos, a harmonia é rarefeita como recorte para uma paisagem sonora do inverno. O tema inicial, apresentado pelo naipe de contraltos, é imitado pelas

demais vozes e, para pontuar o tema e as imitações, Debussy emprega acordes sucessivos de Sol, Fá# e Lá, todos na primeira inversão e em movimentos paralelos, o que resulta em uma certa instabilidade. Essa sucessão de acordes paralelos na primeira inversão faz lembrar a técnica do fauxbourdon36, bastante comum na escola franco-flamenga do século XV. Em um ambiente que contrasta com a instabilidade inicial, uma nova melodia no modo mixolídio é apresentada pelo soprano solista a partir do compasso 11. Debussy volta a utilizar acordes de Lá, Sol#, Fá# e Mi invertidos, em movimentos de progressão paralelos até o fim da seção, no compasso 21, concluída em Si maior. Este contraste entre a primeira e segunda seções é também o contraste das estações, pois na primeira seção se faz alusão ao inverno e, na segunda, ao verão. Dessa forma, Debussy cria, através dos elementos musicais, dois ambientes sonoros opostos: um frio e instável, e outro quente e estável.

A curva melódica dos compassos 11 ao 18 revela a preponderância das notas Si e Mi, o que sugere o cantar de um pássaro na estação quente:

Figura nº 31

Na terceira seção (compassos 22 ao 34), o ambiente modal é o de Sol# eólio, no qual preponderam os acordes de Sol# menor e Fá# maior. O ponto de maior tensão harmônica e distanciamento nessa mesma seção, está no compasso 29, no qual Debussy usa um acorde de Si maior com a nona no baixo, e a seção conclui em Sol# maior, com a terça de Picardia. Na quarta seção (compassos 35 ao 46), ocorre uma progressão pela movimentação cromática ascendente da linha melódica do baixo (Sol, Sol#, Lá, Lá#, Si e Dó), formando,

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Palavra francesa que significa falso baixo ou falso bordão, designa uma seqüência de acordes nos quais a voz superior é acompanhada por outras duas vozes, em intervalos de quartas e sextas.

seqüencialmente, os acordes de Sol maior, Dó# maior com sétima na segunda inversão, Fá# menor com sétima na primeira inversão, Mib maior com sétima na segunda inversão, Si menor com sétima e Ré# diminuto na terceira inversão. A seção é concluída com o acorde de Fá# maior. Na quinta seção (compassos 47 ao 56), Debussy volta a expor o tema inicial, desta feita uma 4ª abaixo e, tal como no início, se vale do recurso imitativo. Aqui, as dissonâncias são deixadas de lado e Debussy emprega apenas os acordes perfeitos maiores e menores, que são formados dentro do campo modal de Mi eólio. A seção final (compassos 57 ao 70) começa com uma seqüência de terças paralelas no baixo, ascendentes e descendentes; em seguida, com a adição dos tenores e contraltos, todos caminham em movimentos melódicos paralelos, formando novamente acordes na primeira inversão, com as sopranos na nota Si como pedal.

Quanto à textura, a primeira seção mostra uma polifonia imitativa. O tema é apresentado nos três compassos iniciais pelos contraltos, conforme figura abaixo:

Figura nº 32

Alto

No quinto compasso, os tenores fazem a imitação com as três notas iniciais em inversão,

Figura nº 33

Tenor

inversão

Figura nº 34

Soprano

Baixo

Esse mesmo esquema de imitação é reapresentado na quinta seção, entre os compassos 47 e 54. Entre os compassos 34 e 37, as vozes apresentam imitação em progressão de terças:

Figura nº 35

Debussy procura variar a sonoridade ao alternar trechos de tutti e solo nas segunda e terceira seções, as quais apresentam uma textura acordal ou homorítmica37. Esta variação parece se expressar pelo sutil contraste entre a leveza das quatro vozes solistas e o coro, e não um contraste de intensidade, como a princípio poderia se pensar, uma vez que os tutti aparecem sempre com a indicação de pianíssimo. Há uma certa tendência pela não fixação de

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A textura acordal, também conhecida como homorítmica, ocorre quando todas as vozes possuem o mesmo material rítmico. Ainda que as linhas melódicas sejam diferentes, elas acabam por formar acordes.

uma sonoridade definitiva, uma certa fugacidade sonora.

Na seção final, com a introdução das terças paralelas nos baixos, uma nova textura acordal aparece, abaixo da nota pedal Si, nos tenores em falsete (compasso 61), seguidos pelos sopranos, desta vez com o uso de síncopas.

O motivo rítmico encontra-se na célula inicialmente apresentada:

Figura nº 36

No entanto, é possível perceber uma preocupação de Debussy no tratamento rítmico da palavra “yver”, ora confirmando o acento tônico da palavra, fazendo com que caia no tempo forte, ora deslocando esse acento tônico para o tempo fraco.

Figura nº 37 Formas anacrúsicas:

Y - ver Y - ver Formas acéfalas:

Y- ver Y- ver Formas sincopadas:

Y - ver Y - ver

Forma tética:

Novamente aqui Debussy busca uma instabilidade, desta feita deslocando os acentos rítmicos naturais da palavra.

Quanto ao caráter e expressão nos compassos iniciais, com a indicação de “Alerte et

vif” (alerta e vivo) e com acentos colocados sobre a palavra “yver” (inverno), além de staccatto, Debussy sugere um clima de descontentamento em relação ao inverno. Para

contrastar, na segunda seção, ao falar do verão, ele se vale de frases melódicas em legato e com intensidades que variam do pianíssimo ao piano. O mesmo ocorre na terceira seção, cujo

forte é indicado somente no ponto culminante da frase. Na quarta seção, o caráter volta a

exprimir o mesmo desagrado com o inverno, como no início: notas acentuadas, articuladas em

staccatto e em forte; em direção à regressão dos movimentos rítmicos, há uma diminuição da

tensão no compasso 43 (Retenu), que parte do uníssono, como notas em tenuto e dinâmica em decrescendo. A agitação crescente que se prenuncia na quinta seção (A tempo) somente é concluída no final, quando Debussy se vale do accelerando (Et augmentant et en serrant le

mouvement), do movimento melódico ascendente das vozes, da passagem súbita do piano ao forte, e dos acentos deslocados das sílabas “y” e “ver”, criando uma tensão com a grande

pausa (G.P.) do compasso 68, que se resolve nos dois últimos compassos, com um crescendo do forte ao fortíssimo.

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