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1 EM BUSCA DO EROTISMO PERDIDO

2.2 Chicos

2.2.4 Zanza daqui zanza pra acolá

A desordem e a crise das utopias que apontam nessa década podem, entretanto, ser amenizadas através da força geradora de energia, sustentada no mundo dos afetos. É o que sugere Futuros amantes, poema escrito em 1993:

Não se afobe, não Que nada é pra já O amor não tem pressa Ele pode esperar em silêncio Num fundo de armário Na posta-restante Milênios, milênios No ar54

A relação do indivíduo com a cidade é intensificada no disco As cidades, de 1998. Nele é abordada a pluralidade do universo urbano, onde o indivíduo está à procura de sua própria identidade em meio ao mundo globalizado. Ora a cidade se apresenta como referência e refúgio, ora como necessidade e exclusão. Chico fala de “várias cidades, com suas múltiplas interfaces e reduzidas a um denominador mínimo múltiplo comum: a globalização.”55 Mas tudo converge para uma construção imagética leve, lúdica, na relação do eu lírico com a cidade, como é expresso em Carioca (1998):

54

HOLLANDA, Chico Buarque de. Paratodos. Rio de Janeiro: Sony & BMG, 1993. CD.

55

NETO, Amador Ribeiro. As cidades. In: FERNANDES, Rinaldo de (Org.) Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond; Fundação Biblioteca Nacional, 2004. p. 170.

Cidade maravilhosa És minha

O poente na espinha Das tuas montanhas Quase arromba a retina De quem vê

De noite56

O próprio compositor assim descreve sua relação com a cidade, mais especificamente com o Rio de Janeiro, lugar onde vive:

É o Rio visto por um sonhador, é um pouco o Rio que é a geografia do Benjamim ou mesmo do Estorvo. Que são cidades de sonho essas do meu disco, cidades que aparecem, cidades sonhadas, e o Rio não deixa de ser. Agora, é a cidade onde vivo.57

Mas o espaço urbano também pode se dissipado ou até mesmo negado. Através da onda globalizada, partes remotas do planeta são alcançadas e submetidas à lógica do consumo. Indivíduos oriundos de diversas partes do mundo tentam a sorte nos grandes impérios capitalistas, como os Estados Unidos. É do que trata Iracema voou (1998):

Iracema voou Para a América Leva roupa de lã E anda lépida

Vê um filme de quando em vez Não domina o idioma inglês Lava chão numa casa de chá58

Há uma certa confluência entre o aspecto político e a dimensão erótica, aqui representada mais uma vez pelo elemento feminino. Iracema retrata a falta de perspectiva dos

56

HOLLANDA, Chico Buarque de. As cidades. Rio de Janeiro: Universal, 1998. CD.

57

JR, José Arbex. REVISTA CAROS AMIGOS, 1998. Disponível em:

<http: // www.chicobuarque.uol.com.br – Chico – Textos> Acesso em 15/04/2006.

58

que buscam melhores oportunidades de vida em lugares distantes, no caso dela, nos Estados Unidos. Apesar de tudo, ocorre a sobreposição de imagens da mulher e da política: Iracema ainda consegue andar lépida, emitindo graciosidade ao lavar chão “numa casa de chá”.

Esta novíssima Iracema não mais permanece no Brasil à espera da chegada da modernidade, como havia ocorrido com as de Alencar e Adoniran, cunhãs discretas e passivas: ela vai até lá, voa para lá, representando em sua migração uma das significativas características de nosso tempo, esta revoada mais ou menos desesperada dos habitantes da periferia na direção dos centros, indo até lá como quem vai cobrar uma promissória, confiante em seu direito mas temeroso do resultado.59

A dimensão urbana também aponta para outro elemento excluído de seus limites espaciais: os sem-terra. A canção Assentamento (1997) trata do contínuo movimento desses migrantes. A própria estrutura do poema, destacada por seus fonemas sonoros, soprados entre os lábios, produz um efeito acústico que recria a idéia de movimento:

Zanza daqui Zanza pra acolá

Fim de feira, periferia afora A cidade não mora mais em mim Francisco, Serafim

Vamos embora60

É o mundo do avesso, que cria mais um excluído do sistema. Um sistema já não declaradamente opressor, como o das décadas passadas. No entanto, será ainda mais disforme e predador de seu povo:

Habitar uma lama sem fundo? Como em cama de pó se deitar? Num balanço de rede sem rede Ver o mundo de pernas pro ar?61

59

FISCHER, Luís Augusto. A Iracema de Chico. In: FERNANDES, Rinaldo de. (Org.) Chico Buarque do

Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond; Fundação

Biblioteca Nacional, 2004. p. 293.

60

HOLLANDA, op. cit., CD.

61

Já adentrando no ano 2000, verificamos essa mesma sensação do sem-terra na figura vivida por uma mulher perdida em meio ao caos urbano, que se agarra à fantasia e ao devaneio para suportar sua situação de penúria individual e principalmente social. Uma mulher que é Dura na queda (Ela desatonou nº 2) (2000):

Perdida Na avenida Canta seu enredo Fora do Carnaval Perdeu a saia Perdeu o emprego Desfila natural Esquinas Mil buzinas Imagina orquestras62

Mas também, por outro lado, a cidade pode proporcionar ou até mesmo ser palco inspirador para a atitude erótica, promovendo a sua realização. É o que se verifica em Veneta, letra de 2001, composta por Chico Buarque e Edu Lobo:

Eu quero um amor de primavera Procuro letreiro de néon

Pretendo zoar a noite inteira Preciso encontrar um homem bom

Que me deixe louca a chorar pitangas no breu Que me beije a boca na laje do arranha-céu63

Uma menção citadina proeminente pode ser encontrada recentemente na letra de Subúrbio (2006), em que há uma referência às cercanias cariocas. A atenção do poeta é voltada para o lado avesso das montanhas, onde o drama social parece condenado ao esquecimento e ao silêncio:

62

HOLLANDA, Chico Buarque de. Carioca. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2006. CD.

63

Lá não tem brisa Não tem verde-azuis

Não tem frescura nem atrevimento Lá não figura no mapa

No avesso da montanha, é labirinto É contra-senha, é cara a tapa64

É um lugar que, apesar de tudo, preserva tradições populares e que busca nas formas de arte, como o samba de roda, a possibilidade de uma transformação idílica:

Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção Traz as cabrochas e a roda de samba

Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae Teu hip-hop

Fala na língua do rap Desbanca a outra A tal que abusa

De ser tão maravilhosa65

No dizer do próprio Chico Buarque:

Isso convive com o rap, o hip hop, o funk, o rock. Enfim, há vários tempos históricos convivendo na canção. Isso existe, esses tempos estão lá. Mesmo esse subúrbio idílico, que aparece muito nas novelas, isso também existe, mas misturado a outras formas de existência e expressão dessa realidade.66

Nessas suas últimas canções, mais especificamente em seu último disco Carioca (2006), do qual também faz parte Subúrbio, verifica-se notadamente a presença da imaginação e da lembrança como pilares temáticos das letras. A forma lírica com que são tratados os poemas sugere a evasão do tempo cronológico, que na atualidade é desastroso. Era o que vinha, de certa forma, se configurando em sua obra a partir da década de 80.

64 Ibid., CD. 65 Ibid., CD. 66

SILVA, Fernando Barros e. Chico diz que vota em Lula de novo. Folha de São Paulo. São Paulo: 06/05/2006. Disponível em <http: // www.chicobuarque.uol.com.br – Chico – Textos> Acesso em 25/08/2006.

Sobre suas letras de música mais recentes, Chico Buarque afirma que “há algo de reminiscência nesse disco, até quando se fala do título como referência ao meu apelido Carioca. Há reminiscências na letra de As Atrizes, que é uma música do carioca pré- adolescente que morava em São Paulo.”67

Nessa busca obstinada pela lembrança, que é sugerida de forma nostálgica, percebe-se uma semelhança com as canções imaginativas dos primeiros discos de Chico Buarque da década de 60. Mas naqueles anos, a nostalgia era amenizada através do som: a música, o samba, eram subterfúgios da realidade opressora e massificante. Hoje, pode-se dizer que as lembranças que suspendem a realidade são matizadas pela imagem, que as reconecta com o presente. Essa visualidade reatualizada surge através do cinema, citado em algumas das letras de Carioca. A fascinação pelas atrizes e divas do passado é agora trazida para o presente:

Ela faz cinema Ela é assim

Nunca será de ninguém Porém eu não sei viver sem E fim68

Essa investida de fantasia que Chico Buarque de Hollanda procura dar ao árduo cotidiano reflete certa ingenuidade não corrompida que recusa o princípio de realidade vigente. Podendo também ser considerada uma poesia de resistência, como a foram suas canções inaugurais, suas letras de música mais recentes buscam um momento fugaz que não mais corresponda à instância temporal em que se vive.

Essa retomada de uma proposição artística denota o quanto é intensa e variada a não- linearidade temática na obra de Chico Buarque. Pode-se perceber, porém, que desde o início

67

GARCIA, Lauro Lisboa. O Estado de São Paulo. São Paulo, 06/05/2006. Disponível em: <http: // www.chicobuarque.uol.com.br – Chico – Textos> Acesso em 30/08/2006.

68

de sua produção, o compositor se volta para aspectos que tratam da dimensão erótica existente entre os seres humanos e entre eles e o sistema de poder a que estão sujeitos.

Mesmo inserido no contexto de um país capitalista de terceiro mundo, em que o regime social brasileiro difere daquele dos países de primeiro mundo em que o capitalismo num estágio avançado permite a redistribuição relativa dos bens, Chico Buarque expressa essa contradição que existe na associação entre economia e política do país,propondo a liberdade como forma de atingir a justiça social, levando em conta o caráter cordial do povo brasileiro69 e através da dimensão erotizada e lúdica subjacentes nas relações sociais entre nós.

Sua poesia não faz somente uma denúncia à opressão, mas também sugere possibilidades de se amenizá-la, o que viria a gerar melhores relações entre o homem e seu aspecto erótico. Busca o reconhecimento das aspirações do erotismo e os meios de realizá-las, no intuito de transformar essa sociedade repressiva e alienada numa outra forma de vivência mais libertária. É a energia erótica liberada e convertida em uma força determinante do homem nos seus modos de existência e de comportamento.

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3 “FINALMENTE É DOMINGO”

A poesia de Chico Buarque sugere que a infelicidade humana em parte deriva do bloqueio dos desejos, não só relacionado a indivíduos marginalizados, mas também ao ser humano de um modo geral. A obra poética do compositor toma a repressão não limitada somente àquela facilmente perceptível, como no caso da armada, na época na ditadura militar, mas também àquela costumeiramente “camuflada” e também aceita, pois “costuma-se dizer que a repressão perfeita é aquela que já não é sentida como tal, isto é, aquela que se realiza como auto-repressão, graças à interiorização dos códigos de permissão, proibição e punição de nossa sociedade.”1

Trata de um erotismo direcionado não somente à sexualidade, mas transfigurado numa energia como um todo, íntima, dirigida a objetos exteriores, movida pela paixão, pelo desejo (não realizado, realizado e a realizar-se).2 Nesse domínio, estão principalmente os indivíduos que fogem do princípio de realidade, aqueles que vivenciam o mundo do princípio do prazer. Sua característica é a subversão, é a crítica à sociedade racional e injusta. Nesse sentido, a transgressão de comportamentos sempre foi muito valorada por Chico Buarque em sua obra,

1

CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des) conhecida. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 13.

2

Erotismo numa perspectiva psicanalítica, onde ele se transforma em símbolo da vida, do desejo, cuja energia é a libido, princípio da ação.

na qual se manteve continuamente solidário aos transgressores. São eles que manifestam o apelo libertário de uma nova dimensão, de um desejo que

Está na romaria dos mutilados Está na fantasia dos infelizes Está no dia-a-dia das meretrizes

(p. 146)

É exatamente no “dia-a-dia das meretrizes” que se pode incursionar para um possível (des)encontro com os princípios de desempenho e os princípios de prazer que nos (des)governam.