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Nos parágrafos que se seguem, gostaria de sugerir um “zoom out”, para situar o conselho de Arcilo num campo maior de visão. O zoom out é um movimento de câmera produzido pela manipulação de um tipo de lente que permite variar a distância focal. No zoom out, a câmera está, em geral, numa posição fixa. O que varia é a relação interna entre seus componentes, que se deslocam relativamente, determinando aumento da distância percorrida pela luz entre a superfície exterior da lente e a superfície fotossensível no interior da câmera. O movimento do zoom out começa na maior distância focal e termina na menor. A imagem que se vê no começo resulta de um ângulo de visão mais fechado. A imagem que se vê no fim do plano é mais aberta em seu ângulo de visão. Começa-se mostrando apenas uma parte dos elementos do quadro inicial, com mais detalhes. Termina-se abarcando mais elementos, com menos detalhes aparentes. O efeito produzido pelo zoom out é o de afastamento, ainda que a câmera não tenha saído do lugar e situa o enquadramento inicial no interior de um enquadramento maior. Nos parágrafos que se seguem, gostaria de propor um movimento desse tipo, executado com rapidez, para observar questões importantes para esta dissertação.

Imaginemos que o anel já se deslocou no interior da lente e a tela que antes mostrava Arcilo aconselhando-nos, agora mostra o “Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil”, elaborado pelos pesquisadores Marcelo Firpo Porto, Tania Pacheco e Jean Pierre Leroy. O mapa identifica, classifica e divulga informações relativas aos conflitos ambientais em territórios dos mais diversos pontos do Brasil onde foram ou estão sendo realizados projetos econômicos e políticas governamentais que se chocam com os interesses (e não raro a vida mesma) das populações atingidas por esses empreendimentos. No ano de 2010, Porto, Pacheco e Leroy publicaram na rede mundial de computadores o Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no

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Brasil25. O mapa começou a ser montado em 2008 sob responsabilidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da FASE, com apoio do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador, do Ministério da Saúde. O trabalho incorpora expressamente a experiência de diferentes pesquisadores e grupos de trabalho, como a Nova Cartografia Social organizada por Alfredo Wagner Breno de Almeida, o Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (Gesta/UFMG) e o núcleo de Trabalho, Meio Ambiente e Saúde da Universidade Federal do Ceará (Tramas/UFC), entre outros. O levantamento que deu origem ao mapa considerou informações sobre conflitos existentes desde 2006 e cada entrada, no mapa, apresenta o local do conflito, a população atingida, o tipo de danos à saúde e ao ambiente implicados, os principais responsáveis pelo conflito, as entidades envolvidas na luta, e indica a existência ou não da colaboração de instâncias governamentais no encaminhamento da questão. À época de sua publicação, o Mapa de Conflitos, como ficou conhecido, tinha 297 conflitos catalogados. Desde então, o desenrolar dos casos já cadastrados vem sendo atualizado e novos conflitos foram incluídos na lista, que em 23/11/2017 incluía 478 casos catalogados.

Porto, Pacheco, Leroy e seus colaboradores entendem que os conceitos (e os cuidados) de saúde e de justiça ambiental estão correlacionados e implicam “a defesa dos direitos humanos fundamentais, a redução das desigualdades e o fortalecimento da democracia na defesa da vida e da saúde”. Para os organizadores do mapa, essas noções englobam o direito à terra, à alimentação saudável, à democracia, à cultura e às tradições das populações atingidas.

Os autores chamam atenção para o fato de que os dados reunidos indicam que as principais atividades geradoras de injustiças ambientais podem ser divididas em dois grupos. No primeiro estão as atividades e os agentes econômicos que orientam o modelo de desenvolvimento brasileiro atual em sua inserção na economia capitalista globalizada. Entre eles destacam-se o agronegócio, a mineração e siderurgia, a construção de barragens e hidrelétricas, as madeireiras, as indústrias químicas e petroquímicas, as atividades pesqueiras e de carcinocultura, a pecuária e a construção de rodovias, hidrovias e gasodutos. No segundo grupo estão atividades associadas à

“atuação, ou melhor, à omissão, à deficiência ou, até, à conivência do poder público e

25 https://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/

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de entidades governamentais, inclusive, em muitos casos, o judiciário e/ou os ministérios e defensorias públicos” (PORTO, 2013, p 55). São questões relacionadas à forma como os licenciamentos ambientais são realizados, à morosidade ou deficiência da justiça em defender os interesses de populações atingidas em temas como regulação fundiária, defesa da saúde indígena ou a atenção básica. (PORTO, 2013, p 55-56) O mapa não pretende ser, segundo os autores, um memorial da aniquilação de comunidades e territórios, um retrato da “terra arrasada”. Figuram nele apenas os casos caracterizados como conflitos – ou seja, aqueles em que as comunidades envolvidas não sofrem opressão, apenas, isto é, não são personagens circunstanciais, figurantes, ‘a parte humana’ do cenário. O foco do mapeamento está na capacidade de agência dessas comunidades, na “visão das populações atingidas, suas demandas, estratégias de resistência e propostas de encaminhamento”:

Para um caso ser pesquisado e fazer parte do mapa é necessário, antes de tudo, que ele configure um conflito claramente deflagrado. Muitas vezes não se incorporam [ao mapa] denúncias, mesmo cruéis, que envolvam casos de injustiça ambiental que não tenham provocado uma reação por parte da comunidade, ou ainda de organizações e movimentos sociais solidários.

(PORTO, 2013, , p 13)

Esse recorte cuja ênfase recai sobre a ação da comunidade conduz o olhar na direção de um aspecto do mapa que é importante para esta dissertação e que anuncia um argumento que formularemos ao longo do texto. Da totalidade dos 297 casos de injustiça ambiental elencados na primeira versão do mapa, 202 contavam a história da resistência de comunidades tradicionais, fossem elas indígenas (72), quilombolas (44), de ribeirinhos (32), de pescadores artesanais (24), entre outros26.

Nos conflitos listados no mapa não há vítimas passivas e aqui é preciso enfatizar que a agência dessas comunidades que figuram como protagonistas do trabalho de Porto,

26 A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais define esses grupos da seguinte maneira: “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição” (BRASIL, 2007). O mesmo decreto define territórios tradicionais como “os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária” (BRASIL, 2007).

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Pacheco e Leroy vai além dos encaminhamentos jurídicos exigidos pelos embates. As comunidades fazem encaminhamentos e proposições de um modo de vida que ao mesmo tempo se opõe aos processos de extração capitalistas (noção acionada por Isabelle Stengers, à qual voltaremos mais adiante) e oferece uma alternativa a eles. Esta é uma ideia importante para essa dissertação e também para o vídeo Mata dos Crioulos, que produzi na Serra do Espinhaço em 2016, depois de ter realizado o vídeo a que me referi anteriormente, Sempre Viva, de 2014. Nos deteremos sobre essa ideia nas próximas páginas.

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