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O caso da bebê Alice e os precedentes a respeito de direitos de imagem em memes

No documento de Direito Digital, (páginas 92-96)

2 MEMES E UTILIZAÇÃO DE MATERIAL PROTEGIDO

2.3 O caso da bebê Alice e os precedentes a respeito de direitos de imagem em memes

JOÃO PAULO CAPELOTTI

RRDDIS – Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade, Curitiba, v. 1 n. 2, p. 83-97, 2021 92

Os memes, como fica claro diante de tantas encruzilhadas, repre- sentam um desafio ao sistema de direitos autorais, tendente à exclusi- vidade e à transformação da obra num artigo vendável22. Precisamente por isso, as autoras citadas propõem uma cisão entre o meme e sua ma- téria-prima – isto é, uma análise contextual de quando uma fotografia é utilizada como tal, especialmente para fins publicitários, o que requereria normal licenciamento, e quando ela é utilizada como parte da “conversa- ção cultural colaborativa” que é o meme23

2.3 O caso da bebê Alice e os precedentes a respeito de

Memes e direitos autorais: reflexões preliminares 93

paganda estrelada por um bebê alcança tamanha repercussão na era do meme e das redes sociais. Embora o susto da mãe seja compreensível, é ingênuo imaginar que, como um produto da cultura de massa, a peça publicitária também não fosse apropriada por memes, inclusive com co- notação política, o que ela desaprovou expressamente.

Não que essa proibição tenha algum efeito prático e consiga impe- dir a apropriação do anúncio pelo humorismo (a exemplo do que ocorre desde a invenção da publicidade, e ocorreu também com os “mamíferos da Parmalat”, por exemplo), já que ele se tornou uma referência comum que a audiência consegue identificar, se relacionar e captar as inferências feitas a partir dela.

Ainda que no caso da bebê Alice fique evidente um certo compor- tamento contraditório (reclamar da perda de controle, de uma faceta da superexposição patrocinada pelos próprios pais), fato é que, na verdade, na sociedade atual estamos todos sujeitos a viralizar e nos tornarmos per- sonagens de memes por quinze minutos ou semanas a fio25. Basta um incidente imprevisto – como, para ficar noutro exemplo recente, o fundo falso imitando uma biblioteca de um desembargador no Amazonas que veio abaixo no meio de sessão por videoconferência26. A curta cena foi ex- plorada à exaustão por memes dos mais diversos matizes. Havia algo que pudesse ser feito a respeito? Provavelmente não. O vídeo colocou a inter- net brasileira em polvorosa, é inusitado e não deixa de ser um comentário sobre o nosso tempo, em que videoconferências se tornaram regra e ter uma biblioteca ao fundo passou a ser quase obrigatório na estética das webcams.

25 “Você não escolhe virar um meme, simplesmente acontece com você”, disse o “Hipster Acidental”, personagem de meme popular nos EUA, em reportagem da BBC sobre pessoas comuns que viralizaram: KALE, Sirin. Life beyond the meme: What happens after you go viral. BBC, 7 mar. 2019. Disponível em: https://www.bbc.co.uk/bbcthree/

article/e6511d6a-ea8c-4e27-aac3-728205903635. Acesso em: 13 set. 2021.

26 Desembargador do Amazonas deixa cair fundo falso que imita estante durante sessão online. O Globo, 3 fev. 2022. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/desem- bargador-do-amazonas-deixa-cair-fundo-falso-que-imita-estante-durante-sessao-on- line-1-25379281. Acesso em: 3 fev. 2022.

JOÃO PAULO CAPELOTTI

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Por mais que memes com conotação política sejam o denominador comum do desagrado da mãe de Alice, de Matt Furie (o criador do sapo Pepe) e da mãe do Success Kid, tentar conter todo o uso que se faz de cria- ções protegidas por direito autoral soa utópico.

Esse controle é efetivo e possível mais em situações em que o ma- terial-base protegido por direito autoral está sendo explorado economica- mente por outrem sem autorização. Era o caso do sapo Pepe, cuja imagem estava estampando banners e bonés vendidos por uma entidade, e foi o caso, no Brasil, de um senhor idoso cuja foto ilustrava um perfil de humor no Instagram e em outras redes sociais chamado sugestivamente de “Te sento a vara”.

Nele, uma foto em preto e branco do idoso de algumas décadas atrás, na qual ele aparece muito sério e de respeitável bigode e chapéu, era o epítome da “intolerância à frescura” que os donos da página bus- cavam transmitir. Contudo, os perfis que utilizavam sem autorização a imagem não se limitavam ao discurso. Loja online vendia de camisetas a chinelos, de canecas a chaveiros, explorando a mesma imagem que havia notabilizado o perfil. A exploração econômica da fotografia pareceu con- tar tanto para o juiz prolator da sentença como a ausência de autorização do fotografado – cuja imagem estava, sem sua ciência, num blog com fotos antigas de moradores de uma cidade do interior de Goiás27.

O fato de a fotografia circular na internet, como frisado no caso Suc- cess Kid, não a torna de domínio público – daí o reconhecimento de culpa, na modalidade de falta de cautela, dos donos da página. O Tribunal de Justiça de Goiás manteve a condenação dos réus, limitando-se a reduzir o valor da indenização, de R$ 100.000,00 (cem mil reais) para R$ 60.000,00 (sessenta mil reais)28.

Mas voltando ao caso da bebê Alice, fato é que a jurisprudência brasileira é ainda bastante protetiva com a imagem de crianças e adoles- centes, por força de disposições da Lei 8.069/1990.

27 TJGO. 2ª Vara Cível e da Fazenda Pública, Autos n. 265417-83.2017.8.09.0036, Juiz de Direito Thiago Inácio de Oliveira, julg. 17 jul. 2019

28 TJGO. 1ª Câmara Cível. Apelação 0265417-83.2017.8.09.0036. Rel. Juiz de Direito Substituto em 2º Grau Reinaldo Alves Ferreira, julg. 10 ago. 2021.

Memes e direitos autorais: reflexões preliminares 95

Num julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, embora não se punam os criadores de memes, foram condenados os jornalistas do portal Universo On Line (UOL) que fizeram a reportagem a partir da qual se originou o meme dos “rolezeiros do Ibirapuera”, já que uma das jovens (celebrizada pela frase “e aí, vamo fechá?”) foi entrevistada sem o con- sentimento dos pais. O trecho do acórdão que interessa a este artigo é transcrito abaixo:

De fato, como bem pontuou a autora apelante, não bastassem as milhões de visualizações alcançadas pelos vídeos, paródias, cam- isetas e capas de celulares com frase dita pela autora (“E aí, vamo fecha”?), até hoje, simples pesquisa de tal frase, traz milhões de resultados e sua imagem estampada em diversos memes de con- teúdos pejorativos.

Ainda, passados mais de cinco anos do ocorrido, comprovou a auto- ra que a questão ainda lhe afeta, tendo sido surpreendida com uma matéria em um website popular com a chamada “Por onde anda a rolezeira mais famosa da internet? Veja como ela está atualmente!”, em que veiculadas fotos suas e seu nome29.

Um dos votos vencidos caminhava justamente no sentido da im- possibilidade de responsabilizar o UOL pelos memes realizados por ter- ceiros30 – no entanto, a estratégia da autora parece ter sido demandar a

“causadora originária” do problema, não por acaso também empresa de reconhecida capacidade econômica, solvente e com endereço conhecido (ao contrário de muitos dos criadores de memes que lhe teriam causado inconvenientes).

29 TJSP. 9ª Câmara de Direito Privado. Apelação 1000572-69.2019.8.26.0002. Rel. Des.

Piva Rodrigues, julg. 15/12/2020.

30 “Obviamente, a ré UOL não participou diretamente da produção desses ‘vídeos, paró- dias, camisetas e capas de celulares com a frase dita pela autora (É aí, vamo fecha’)’, e se admitido que a reportagem foi excluída, também não pode ser responsabilizada pela pesquisa de tal frase na Internet”

JOÃO PAULO CAPELOTTI

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