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A linguagem escrita como instrumento de legitimação de cidadania

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Academic year: 2023

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419 Pesquisas em Lingüística e Literatura: Descrição, Aplicação, Ensino - ISBN: 85-906478-0-3

Introdução

Há várias décadas, o ensino de Língua Portuguesa tem sido o centro de acirradas discussões referentes à qualificação da educação brasileira. O eixo dessas discussões centra-se, principalmente, no domínio da leitura e da escrita, para o qual diferentes mitos foram criados: a leitura deve ser ensinada através do recurso das “familinhas de letras”; o brasileiro escreve mal porque fala mal o português, ou escreve mal porque não consegue organizar as idéias mentalmente; o português é uma língua muito difícil; a fala que não se aproxima da norma culta é errada, portanto, precisa ser corrigida; a fala da região sudeste é mais correta que a da nordeste, entre outras afirmações equivocadas.

Nas décadas de 60 e 70, as propostas de reformulação do ensino da Língua Portuguesa visavam a alterações metodológicas, ou seja, os proponentes estavam interessados em mudar o modo de ensinar, pouco considerando os conteúdos que vinham sendo ensinados. No início dos anos 80, porém, devido ao avanço dos estudos da Lingüística, da Psicolingüística e da Sociolingüística, entre outras áreas afins, inicia- se uma reflexão substancial acerca dos aspectos importantes para o desenvolvimento da leitura, da escrita e também da oralidade em sala de aula. Além disso, desenvolve-se toda uma teorização em torno da ressignificação da noção de “erro”, de forma a admitir as variedades lingüísticas próprias dos alunos como possibilidades de utilização da língua ou como hipóteses de construção do conhecimento a respeito da língua, e não como desvios ou não observância da norma padrão.

Outro progresso decorrente desses estudos foi a constatação de que uma língua não deve ser ensinada ou estudada através da dissecação de suas palavras, classificando-as fonológica ou morfologicamente. Começa, então, o trabalho de reflexão sobre a língua a partir de textos reais, de circulação social, ao invés de textos forjados ou fragmentados para atender ao ensino de um conceito gramatical qualquer.

Nessa perspectiva, a preocupação do professor de Língua Portuguesa não é revisitar, por exemplo, o estudo das classes de palavras com todas as suas subdivisões, as conjugações verbais em todos os seus tempos e modos, ou fazer decorar as regras de concordância verbal e nominal com suas várias exceções.

O que precisa ser ensinado não deve responder às imposições da organização clássica de conteúdos da norma padrão, mas aos aspectos que precisam ser tematizados em função das necessidades apresentadas pelos alunos, ao produzirem, lerem ou escutarem os diversos gêneros textuais utilizados em sala de aula ou no cotidiano da vida social, os quais advêm do (ou circulam no) mundo real.

Redimensiona-se, assim, a lista de conteúdos a ser

trabalhada no decorrer do ano letivo que deixa de ser a tradicional definição, classificação de letras, fonemas, sílabas, palavras, termos da oração e a exaustiva exercitação disso tudo, passando- se a valorizar os usos efetivos da língua, com vistas ao desenvolvimento da competência discursiva.

Ocorre que esse redimensionamento do conteúdo também implica a alteração da postura do professor, que passa a ser leitor dos textos dos alunos (não avaliador tão somente), que passa a interagir com seus alunos, valorizando suas hipóteses lingüísticas, refletindo junto com eles acerca da adequação e da relevância de determinados usos em determinadas ocasiões, enfim, trabalhando a Língua Portuguesa com vistas a possibilitar a seus alunos o desenvolvimento da capacidade de interpretação e de produção dos diferentes textos que circulam socialmente, além de instrumentalizar cada usuário da língua a fazer uso da palavra e, como cidadão, produzir textos orais e/ou escritos adequados às mais variadas situações comunicativas em que eles se envolvam dentro e fora dos muros da escola.

1. Referencial teórico

Apesar de o Brasil estar avançando na área educacional, haja vista as ações desenvolvidas para a melhoria do ensino fundamental, a qualificação dos livros didáticos, o crescente investimento na formação de professores, entre outras, evidencia- -se que o século XXI exige das pessoas bem mais do que a

“tecnologia” do ler e do escrever. Com efeito, a simples codificação e decodificação de signos não é suficiente para que haja uma adequada imersão no mundo da escrita; é preciso saber usar diferentes tipos de material escrito, compreendê-los, interpretar os vários níveis de leitura que eles oferecem e extrair deles as informações de que se necessita para a efetivação do exercício pleno da cidadania. Partindo desse pressuposto, este estudo busca evidenciar mecanismos que envolvam as meninas assistidas pela “Casa Renascer” em situações de uso real de escrita, a fim de que elas se apropriem das práticas sociais de leitura e escrita, com vistas a tornar a linguagem escrita um instrumento de legitimação de cidadania.

Nessa direção, para que sejamos mais fortes que as amarras da tradição formalista do ensino e consigamos chegar à tão almejada dimensão textual-discursiva no ensino da Língua Portuguesa, respaldamo-nos na concepção sócio-interacionista da linguagem e nos postulados da análise do discurso crítica. A pesquisa tem como foco o processo de escrita, o ensino de gêneros, as situações de produção e circulação dos textos escritos.

Através dela, o professor não se restringe à superficialidade do produto que os alunos apresentam a ele. Ao contrário disso, professor e alunos entendem a necessidade de exercitar a escrita

A linguagem escrita como instrumento de legitimação de cidadania

Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco Universidade Federal do Rio Grande do Norte

ABSTRACT: Immersed in a world of the writing that demands to get ahead of the “technology” of reading and writing, we verified that the simple ability to codify signs in language written and/or decode them is not enough. The incorporation of the varied uses of the writing and the appropriation of the social practices that involve the use of different types of written material, the understanding of those materials and the extraction of information that can be useful for the readers’ life and writers they are means of turning the written language an instrument of legitimation of the citizenship. Looking for strategies that direct to the literacy, we will demonstrate part of the investigation in process in the Casa Renascer.

PALAVRAS-CHAVE: linguagem escrita; letramento; cidadania.

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420 para a vida, ou seja, para a efetivação da cidadania.

Rompe-se, portanto, o círculo vicioso de o professor imaginar que sua obrigação é fazer-fazer o que, no passado, seus professores fizeram com que ele fizesse, e os alunos entenderem que precisam apenas obedecer às ordens do mestre, mesmo que, a seus olhos, o que estejam “aprendendo” seja uma língua estranha que, por alguma razão desconhecida, tem o mesmo nome da sua língua nativa.

Ao contrário do que apregoa esse enfadonho ensino, descolado de qualquer possibilidade de uso efetivo do que se aprende sobre a língua, uma abordagem que privilegie a interação deve estar ancorada em teóricos da linguagem que se preocupam com o reconhecimento de diferentes textos, diferentes tipos de textualização, situações de interlocução dessemelhadas e, conseqüentemente, diferentes gêneros que circulam nos domínios sociais e que devem adentrar as salas de aula para ressignificar o ensino da Língua Portuguesa, de forma a torná-la um instrumento de legitimação da cidadania. Com efeito, essa abordagem nos remete a Bakhtin, Schneuwly, Dolz, Bronckart, entre outros teóricos.

2. Contextualização da pesquisa

As participantes de nossa pesquisa têm uma história de vida marcada pela pobreza, por maus tratos e, na maioria dos casos, por violência física e/ou sexual. Elas são assistidas pela Casa Renascer, uma organização não-governamental reconhecida nacional e internacionalmente por seu trabalho assistencial, de intervenção e prevenção destinado a meninas de 07 a 18 anos, na cidade de Natal/RN. O grupo com o qual trabalhamos é composto de vinte meninas, na faixa etária de 13 a 17 anos, alunas regulares de escolas públicas, cursando entre a 3a e a 8a série.

A experiência delas com a escrita resume-se a atividades escolares que, na maioria das vezes, não ultrapassam o exercício da metalinguagem. Segundo informações coletadas, o material escrito que é encaminhado às suas casas é apenas a conta de água, de energia e os periódicos bilhetes através dos quais as escolas marcam reunião de pais ou divulgam confraternizações.

3. Práticas de linguagem escrita

Partindo da concepção de linguagem como forma de interação, nossa preocupação inicial foi a escolha de práticas de escrita adequadas para o nosso público- -alvo, ou seja, queríamos selecionar atividades que levassem as meninas ao exercício da escrita, mas estávamos cientes de que só conseguiríamos fazê- las escrever se elas, de fato, percebessem a significação desse ato.

Começamos, então, a conversar, em grande grupo, sobre o que é a escrita, por que as pessoas escrevem, que utilidade a escrita apresenta em nossas vidas. Contamos a história da escrita ao longo dos séculos, perguntamos se elas achavam importante escrever e, para nossa surpresa, todas concordaram que a escrita é fundamental na vida de qualquer pessoa e justificaram essa importância através da necessidade da escrita no exercício profissional que gostariam de abraçar: médicas, advogadas, jornalistas e modelos.

É interessante observar que essas escolhas profissionais estão relacionadas à questão de status social, além do que, de fato, as profissões citadas precisam manejar bem a linguagem escrita, embora através de gêneros diferentes: atestados, laudos, pareceres, petições, matérias jornalísticas, contratos, etc.

Não menos interessante é o fato de nenhuma (das vinte meninas) afirmar ter a intenção de ser professora. Talvez elas não percebam a relação entre ser professora e escrever, haja vista que os professores, em geral, apenas mandam escrever, sem nunca mostrarem sua própria produção aos alunos, ou quem

sabe a questão esteja associada mesmo à desvalorização do profissional de magistério que, por não ostentar o status desejado, não se apresenta como modelo de atividade a ser escolhido.

Essas conversas foram bem proveitosas. A partir delas, observamos que seria interessante contactar um profissional que pudesse interagir com as meninas. Procuramos, então, uma jornalista da TV Cabugi (GM), afiliada à Rede Globo de Televisão, em Natal/RN, a qual prontamente aceitou gravar um depoimento em que mostrava a importância da escrita na vida de um jornalista.

Feita a gravação, em um outro encontro, levamos a fita para que as meninas assistissem. É indescritível a satisfação com que elas assistiram, na televisão, a uma matéria especialmente produzida a partir de uma conversa travada entre nós na Casa Renascer. Para retribuir a gentileza da jornalista, perguntamos se elas gostariam de escrever uma carta para GM. A proposta foi aceita por unanimidade.

Nesse momento, percebemos ter acertado no processo de preparação para a escrita: primeira estratégia utilizada que encaminhou o trabalho com a linguagem escrita. A segunda estratégia foi fomentar um problema para que elas tivessem de resolver uma necessidade: dar uma resposta escrita ao texto oralizado que a jornalista havia preparado para explicar o valor da escrita na vida dela.

Em grupo, relacionamos no quadro as partes que compõem o gênero carta; mostramos um exemplo de carta para que elas percebessem a silhueta do texto que iriam escrever;

depois, conversamos sobre a importância de nos dedicarmos à escrita do texto, explicitando adequadamente as idéias que iriam ser expostas, deixando o texto sem rasuras, consultando o dicionário em caso de dúvidas relacionadas à ortografia, etc.

Em seguida, vimos o preenchimento do envelope, combinamos utilizar abaixo do nome de cada uma o endereço da Casa Renascer como remetente, uma vez que muitas meninas moram em pequenas vilas ou favelas que não contêm sequer nome de rua; conversamos sobre a necessidade de encaminhar a carta pelos Correios; vimos o custo do selo; pesquisamos a quantidade aproximada de dias para que a destinatária recebesse a correspondência, tendo como referência a distância entre o bairro em que se localiza a Casa Renascer e o bairro da TV Cabugi. Por fim, conversamos sobre a possibilidade de a jornalista responder ou não às cartas, pois não queríamos alimentar esperanças que poderiam ser frustradas. Vale registrar que, para a maioria das meninas, aquela era a primeira carta que iriam mandar para alguém, além de nunca terem recebido uma correspondência endereçada a elas, via Correios.

Escritas as cartas, preenchidos os envelopes, encaminhamos as cartas para os Correios, sem nos preocuparmos com a avaliação do produto entregue por cada menina.

Obviamente que, enquanto estavam escrevendo, algumas nos perguntaram se determinada idéia estaria explícita da forma que havia sido escrita ou se seria melhor reformular a estrutura utilizada - perguntas a que respondíamos com outras indagações, na tentativa de fazer com que elas se distanciassem um pouco do próprio texto para observar as lacunas que nele existiam.

Ratificamos que nosso interesse era (e ainda é) o processo de escrita, ou melhor, a efetivação da atividade de linguagem escrita na vida de meninas que têm pouco contacto com material escrito, seja por elas seja para elas com efeito social. Entendemos que a materialidade lingüística deva ser observada com rigor, mas inicialmente precisamos fazer escrever. Com o amadurecimento desse exercício, atinge-se o aprimoramento da superficialidade do texto.

Para satisfação geral, cerca de quinze dias depois do envio das cartas, começaram a chegar as cartas da jornalista a qual respondia as perguntas feitas pelas meninas e lançava outras perguntas a elas, efetivando um processo de interação pelo qual

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421 as participantes de nossa pesquisa, certamente, nunca imaginaram

passar. O sentimento de valorização pessoal e o prazer com que liam (algumas com bastante dificuldade, inclusive!) aquelas cartas eram tão visíveis que percebemos, de imediato, estar aberto um canal de produção de texto escrito que poderia render boas atividades.

Partiu delas a proposta de escrever novas cartas à mesma jornalista. Dessa vez, um processo foi bem mais tranqüilo, haja vista a familiaridade já apresentada pelas escreventes em relação ao gênero.

Nesse momento, a ansiedade por resposta foi ainda maior. Aproximadamente trinta dias depois, chegaram cartões postais vindos de Salvador/BA, nos quais a jornalista GM afirmava ser a vida de um profissional do jornalismo muito agitada, razão pela qual, por ora, estava impossibilitada de responder às cartas recebidas, mas, ao mesmo tempo, por estar a serviço em uma cidade muito bonita, queria compartilhar com elas, através dos cartões postais, as belezas da capital soteropolitana.

Novo gênero, novas possibilidades de atividades de linguagem escrita. O mais importante é que o professor não deixe passar essa vontade contagiante de colocar no papel o prazer que receber textos escritos nos traz.

4. Considerações finais

O resultado esperado com o desenvolvimento desta pesquisa é que cada participante consiga incorporar os usos sociais da escrita, apropriando-se das práticas sociais de leitura e de escrita para o exercício pleno da cidadania. Sabemos que as estratégias docentes que assegurarão esse resultado serão múltiplas, mas, por enquanto, detectamos que a concepção de linguagem em que nos apoiamos remete-nos ao trabalho com

gêneros, o que nos permite ultrapassar os limites da superficialidade textual. Além disso, a preparação para a atividade de linguagem escrita, o foco no processo (e não no produto) e a efetivação das condições de produção e circulação dos textos são estratégias adequadas que podem subsidiar um trabalho mais significativo com os textos, seus leitores e seus escreventes.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão; revisão da trad. Marina Appenzeller.

3a ed. –São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Coleção ensino superior).

BRANDÃO, Helena Nagamine (coord.). Gêneros do discurso na escola: mito, conto, cordel, discurso político, divulgação científica. –São Paulo: Cortez, 2000. (Coleção aprender e ensinar com textos; v.5).

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo.

Trad. Anna Rachel Machado, Péricles Cunha. –São Paulo:EDUC, 1999. 353p.

DIONÍSIO, Ângela Paiva et al (org.). Gêneros textuais & ensino.

–Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. 232p.

NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática: história, teoria e análise, ensino. –São Paulo: Editora UNESP, 2002.

283p.

VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem:

problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. –São Paulo: Hucitec, 1992. 196p.

ZATZ, Lia. Aventura da escrita: história do desenho que virou letra. – São Paulo: Moderna, 1991. (Coleção Viramundo).

Referências

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A análise dos dados também permite inferir sobre a contribuição do ENCI para os processos de apropriação da linguagem escrita, da leitura e escrita, ou seja,