• Nenhum resultado encontrado

Artigos

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2023

Share "Artigos"

Copied!
54
0
0

Texto

(1)

Texto para o 11º Simpósio IOB de Direito Tributário.

Autor: Ricardo Mariz de Oliveira

QUESTÕES RELEVANTES, ATUALIDADES E PLANEJAMENTO COM IMPOSTO SOBRE A RENDA.

SUMÁRIO. I - Introdução. II - Planejamento tributário com imposto sobre a renda antes da Medida Provisória n. 66/02, incluindo o tempo posterior à Lei Complementar n. 104. III - Planejamento tributário com imposto sobre a renda depois da Medida Provisória n. 66/02. IV - Conclusões.

*********************** ***********************

I - INTRODUÇÃO

Quando me foi pedido que escrevesse sobre o tema que tem o título acima, destinado ao 11º Simpósio IOB de Direito Tributário, e depois falar sobre o mesmo perante esse encontro, imediatamente veio à minha mente que as questões mais relevantes e mais atuais relativas ao mesmo emanam diretamente dos art. 13 a 19 da Medida Provisória n. 66, de 29.8.2002.

É claro que existem outras questões atuais e relevantes sobre o imposto de renda, mas neste momento nenhuma delas se ombreia em

(2)

Um outro aspecto importante para justificar esta colocação reside em que a medida provisória citada tem alcance restrito apenas aos tributos federais, e, dentre estes, o imposto de renda e a contribuição social sobre o lucro são aqueles que mais podem ser alcançados pelos art. 13 a 19, tal como postos.

Destarte, proponho-me a fazer uma análise preliminar do assunto, dando a ela um caráter de ensaio não conclusivo em virtude de dois fatores: (1) há ainda muito que ponderar sobre os art. 13 a 19 da Medida Provisória n. 66 para que se possa fazer afirmações mais seguras e definitivas, e (2), na data em que estou escrevendo, essa medida provisória ainda está em tramitação no Congresso Nacional, o que significa haver a possibilidade de que alterações venham a ser nela introduzidas.

Portanto, minha intenção é contribuir para o debate dos art. 13 a 19 tal como constam do texto original da Medida Provisória n. 66/02.

Pois bem, para a boa apresentação e compreensão do tema faz-se necessária uma abordagem inicial que explique o planejamento tributário em geral, e em particular quando relativo ao imposto de renda, antes da referida medida provisória, podendo esse período temporal ser estendido até após a Lei Complementar n. 104, que introduziu o parágrafo único no art. 116 do Código Tributário Nacional - CTN, após o que passarei à análise da medida provisória.

II - PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO COM IMPOSTO SOBRE A RENDA ANTES DA MEDIDA PROVISÓRIA N. 66/02, INCLUINDO O TEMPO POSTERIOR À LEI COMPLEMENTAR N. 104

Não é este o espaço para uma ampla abordagem do assunto, não apenas pela limitação quanto também pela destinação do presente ensaio, motivo pelo qual apresentarei resumidamente o que tiver que expor. 1

1 Para leitura mais detalhada, reporto-me aos seguintes trabalhos de minha autoria, dando especial ênfase ao que está grifado: “Fundamentos do Imposto de Renda”, Editora Revista dos Tribunais, 1977, capítulo XIII; “Cadernos de Pesquisa Tributária - Volume 13”, coedição do Centro de Estudos de Extensão Universitária e da Editora

(3)

O planejamento tributário que busca a elisão fiscal lícita é direito da pessoa (que ainda não é contribuinte) de índole e fundamento constitucional, pois está fundado no direito de propriedade, juntamente com o princípio da legalidade e com o seu desdobramento no princípio da tipicidade.

É importante não perder de vista que o direito de propriedade outorga ao proprietário atributos de uso, gozo e disposição dos respectivos bens, vale dizer, o dono do patrimônio particular pode optar por dar aos seus bens a destinação que melhor lhe aprouver. Dentro deste contexto, o proprietário também tem direito de proteção (medidas de defesa, seja contra perda, seja contra diminuição) e direito de valorização da coisa objeto do seu direito (medidas de multiplicação).

Exatamente por isso, o direito de propriedade exclui o confisco pelo Poder Público, assim como o esbulho ou qualquer outra turbação por outros indivíduos, pois ele se manifesta “erga omnes”, isto é perante qualquer pessoa de direito público ou privado. Sendo a garantia contra a turbação e a apropriação por terceiros imanente ao direito de propriedade, o confisco se apresenta como seu contraponto, antítese e negação, daí sendo vedado mesmo quando ausente qualquer disposição expressa que manifeste a sua proibição.

Resenha Tributária, 1988 (p. 147 e seg.); “Planejamento Fiscal - Teoria e Prática – 2º Volume”, Editora Dialética, 1998 (p. 107 e seg.); “Direitos Fundamentais do Contribuinte - Pesquisas Tributárias - Nova Série - 6”, coedição do Centro de Extensão Universitária e da Editora Revista dos Tribunais, 2000 (p. 226 e seg.); “Curso de Direito Tributário”, Editora Saraiva, 8ª ed., 2001 (p. 319 e seg.); “O Planejamento Tributário e a Lei Complementar n. 104”, Editora Dialética, 2001 (p. 245 e seg.); “Reinterpretando a Norma Antievasão do Parágrafo Único do Art. 116 do Código Tributário Nacional”, in

“Revista Dialética de Direito Tributário” n. 76, p. 81. De outros autores, recomendo:

“Estudos sobre Imposto de Renda (Em Memória de Henry Tilbery)”, Editora Resenha Tributária, 1994, capítulo de Marco Aurélio Greco sobre teoria do abuso de direito (p.

91 e seg.); “Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva”, Editora Dialética, 2001, Alberto Xavier. Também recomendo outros trabalhos publicados nos referidos

“Cadernos de Pesquisa Tributária – Volume 13”, coedição do Centro de Estudos de Extensão Universitária e da Editora Resenha Tributária, e “Planejamento Fiscal – Teoria e Prática – 2º Volume”, da Editora Dialética.

(4)

propriedade, dos quais promana, ou melhor, pode ser praticado dentro da amplidão desses atributos. Isto, significa que o planejamento tributário é exercido dentro da ampla possibilidade de uso, gozo e disposição dos elementos patrimoniais e sob o amparo da liberdade das ações ou omissões da pessoa do proprietário, tudo como melhor lhe aprouver, desde que observadas as prescrições das leis a eles aplicáveis dentro da ordem constitucional.

Pela mesma razão, o planejamento da elisão fiscal traduz e manifesta o exercício do direito de proteção contra a subtração tributária até onde for possível ao proprietário, seja total (através da elisão de um fato gerador) seja parcial (através da redução do ônus decorrente de um fato gerador não evitado), igualmente observadas as prescrições legais cabíveis.

Ademais, e ainda pela mesma razão, o planejamento da elisão fiscal deriva do direito de valorização do patrimônio através do seu emprego com a maior economia fiscal possível.

Por fim, como manifestação de ato ínsito ao direito de propriedade, o planejamento da elisão fiscal contrapõe-se ao confisco de bens patrimoniais por via de tributação confiscatória.

Neste ponto, é conveniente observar que confisco é a subtração patrimonial praticada inconstitucionalmente pelo Poder Público, ao passo que a tributação é uma das espécies de subtração patrimonial constitucionalmente admitidas, o que coloca inevitavelmente a necessidade de distinguir uma coisa de outra e levanta a seguinte indagação: o que constitucionaliza a tributação e a distingue do confisco?

No meu modo de ver, confisco tributário - e veja-se que o legislador constituinte de 1988 teve o cuidado de vedar expressamente o tributo com efeito confiscatório (art. 150, inciso IV) - fica caracterizado se a lei estabelecer a obrigação de a pessoa adentrar na situação definida como fato gerador, ou de incidir em maior base de cálculo, ou se a lei inibir a adoção de medidas de uso, defesa e valorização do patrimônio através da elisão fiscal.

(5)

Sabe-se que o confisco tributário de maneira geral é encarado como sendo o efeito decorrente de exagerado valor da tributação (sem deixar recursos para sobrevivência, ou com outras adjetivações), critério este, entretanto, que me parece totalmente inadequado e não objetivo, salvo quando o “quantum debeatur” de uma determinada obrigação tributária for mais elevado do que a própria materialidade tributável, porque, neste caso, o tributo será subtraído de parcelas do patrimônio não envolvidas com o elemento quantitativo da obrigação tributária, cujo elemento representa o limite da respectiva capacidade contributiva.

Observe-se que a obrigação tributária é “ex lege”, não no sentido de ser obrigatória como a lei quiser de maneira ilimitada, sem possibilidade de a pessoa não contribuinte esquivar-se da mesma, mas no sentido de derivar da lei e não do contrato.

Entretanto, “a obrigação tributária surge com a ocorrência do fato gerador” (CTN, art. 113, parágrafo 1º), sendo que “fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência” (art. 114).

Por isso, a incidência infalível da norma ocorre apenas com, e após, a existência do fato gerador, cuja existência, contudo, é falível, e daí mesmo tratar- se de “hipótese de incidência” e serem vedadas as ficções e presunções absolutas quanto à sua ocorrência.

Neste sentido, elidir a obrigação tributária é evitar a situação necessária e suficiente ao nascimento da mesma, sendo que, antes da ocorrência do fato gerador, isto é, antes da situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, a pessoa é livre para adentrar ou não nessa situação, fazendo ou não fazendo o que quiser com as suas coisas.

Destarte, a pessoa não nasce contribuinte, um escravo do fisco, uma presa indefesa que possa ser tangida para dentro dos fatos geradores, um autômato programado para praticar fatos geradores, mas, sim, nasce e é um ser ou cidadão livre.

(6)

cuja hipótese de incidência seria desnecessária e deixaria de ser hipótese para ser fato criado pela lei.

Neste diapasão, o que distingue tributo de confisco é exatamente a motivação constitucional da subtração de parte do patrimônio particular em virtude da ocorrência do fato gerador, sendo esta decorrente da livre escolha da pessoa quanto aos seus atos ou omissões de atos.

Um exemplo simples revela a procedência destas afirmações:

- uma pessoa tem patrimônio de R$ 10.000.000,00 em dinheiro ou em caderneta de poupança, estando em situação estática e livre de tributação: se pelo Poder Público lhe forem subtraídos R$ 100.000,00, haverá confisco, ainda que tenha atingido apenas um por cento do seu patrimônio, portanto, valor porcentual reduzido e que ainda lhe deixa bens suficientes para uma existência digna;

- a mesma pessoa aplica a mesma importância em cem imóveis de R$ 100.000,00 cada um; se lhe for subtraído apenas um deles haverá confisco, apesar de lhe restarem noventa e nove e o suficiente para uma existência digna;

- não obstante, o mesmo valor de R$ 100.000,00 cobrado a título de imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU não representa confisco, porque decorreu da livre decisão da pessoa movimentar o seu patrimônio no sentido do fato gerador desse imposto;

- da mesma maneira, ela era livre para ter dado outra destinação ao seu patrimônio, que evitasse o IPTU mas a submetesse à outras incidências tributárias, ou que a deixasse na situação estática inicialmente referida, de não- incidência e/ou isenção total.

Em suma, por decorrência do seu direito de propriedade a pessoa:

pode procurar os espaços vazios de tributação ou com menor tributação; pode optar por um caminho livre de algum tributo, mas sujeito a outro; pode preferir aplicar o seu patrimônio em imóveis, pagando o imposto sobre a propriedade

(7)

territorial ou predial urbana e o imposto sobre a transmissão onerosa “inter vivos” de bens imóveis, com menores incidências do imposto do renda e da contribuição provisória sobre movimentação financeira, e não incidências da contribuição social sobre o lucro e do imposto sobre operações financeiras; pode preferir atuar em município com menor alíquota do imposto sobre serviços;

pode preferir doar em vida com isenção do imposto sobre doações ou com sua menor incidência em relação ao imposto sobre transmissão “causa mortis” de bens; pode preferir deixar a sua poupança em caderneta de poupança, com isenções totais; pode preferir deixar o seu patrimônio em imóveis improdutivos, sem pagar o imposto de rendas e outros tributos, salvo o imposto sobre a propriedade territorial e predial urbana; etc.

Por isso mesmo, a pessoa não pode ser forçada a praticar qualquer fato gerador de qualquer obrigação tributária, ou ser limitada nas suas escolhas e nas suas atitudes. Enquanto ela aja dentro da lei, tem ampla liberdade para tudo isso.

É claro que a propriedade privada não é absoluta, como não é qualquer outro direito, ainda que emanado da própria Constituição Federal, assim como, no entrechoque de princípios constitucionais, nenhum deles é absoluto, todos se aplicando na medida do possível e do razoável, o mesmo acontecendo com as normas constitucionais.

Ora, o direito de propriedade é ressalvado expressamente apenas pelo uso social da propriedade, o que, entretanto, não significa haver a obrigação de incorrer na tributação, assim como não significa que possa haver a obrigação jurídica do proprietário de uma casa ceder um cômodo vago para acolhimento de pessoas “sem-teto”, ou a fazer assistência social com o dinheiro do seu patrimônio.

Da mesma forma, a solidariedade social, a isonomia e a capacidade contributiva não são apanágios que obriguem a pessoa a ser contribuinte, ou maior contribuinte, até porque somente é possível haver qualquer pretensão estatal, e somente é possível aferir capacidade contributiva - e também falar em tratamento isonômico - após a ocorrência do fato gerador de alguma obrigação tributária.

(8)

patrimônio ou riqueza, mas atributo que lhe advém do fato gerador de alguma obrigação tributária e da densidade econômica do mesmo, porque a grandeza econômica da matéria que se constitui no fato gerador é a própria dimensão quantitativa ou valorativa da respectiva capacidade contributiva.

Desse modo, antes da ocorrência do fato gerador não há essa capacidade, mas simples expectativa da mesma, ou potencial capacidade contributiva. Nesse tempo anterior ao fato gerador, o fisco nada pode exigir, é mero expectador, cumprindo-lhe aguardar as ações da pessoa para, depois delas e em consequência delas, reclamar o que passar a lhe ser devido.

Realmente, há um momento a partir do qual se manifesta a capacidade contributiva da pessoa e se impõe a isonomia: é o momento da ocorrência do fato gerador, não antes, e tal manifestação opera-se exclusivamente em relação à respectiva e específica obrigação tributária.

Daí não haver uma capacidade contributiva atrelada ao poder econômico intrínseco no patrimônio ou atrelada à riqueza da pessoa, salvo quanto ao imposto sobre grandes fortunas ou sobre o patrimônio, assim mesmo nos limites da lei. Daí também não haver uma capacidade contributiva herdada hereditariamente, a não ser quanto ao imposto sobre a transmissão “causa mortis” de bens, e nos respectivos limites legais.

Aliás, se pudesse haver cobrança de qualquer outro tributo que não os incidentes sobre o patrimônio ou a grande fortuna, pela simples existência da fortuna ou riqueza da pessoa, estaria estabelecida uma enorme confusão derivada de pretensões fiscais conflitantes, e instalada a total insegurança jurídica, pois qual ente público cobraria tributo sobre a pessoa e sua fortuna ou riqueza (a União, o Estado ou Distrito Federal, o Município, ou todos eles ?), que tributo cobraria (todos os da sua competência ou apenas algum e qual ?), sobre que valor e por qual alíquota ?

A perplexidade gerada por tais indagações demonstra claramente que não se pode falar em capacidade contributiva sem a ocorrência de um fato

(9)

gerador de uma determinada obrigação tributária, e sem a estrita observância do que a lei dispuser para o respectivo caso.

É por isso que, antes da ocorrência do fato gerador, somente se pode prever em tese uma possível obrigação tributária baseada numa possível capacidade contributiva a ser manifestada concretamente pela ocorrência atual do fato gerador que até então fora objeto de definição hipotética na lei. O mesmo vale para o princípio da isonomia.

Assim, mesmo após a ocorrência de um fato gerador, somente se pode proclamar a existência de capacidade contributiva nos estritos termos em que a lei descrever e quantificar a respectiva obrigação tributária, porque a capacidade contributiva é índice presuntivo contido na hipótese de incidência prevista na lei, e é limitada por esta.

Por isso, se duas pessoas praticarem iguais fatos geradores, com iguais base de cálculo, não é possível exigir mais tributo de uma delas ao argumento de que é mais rica do que a outra, o que lhe daria maior capacidade contributiva e exigiria tratamento mais oneroso para ela, em nome da isonomia.

Verifica-se que, mesmo nesta circunstância, a capacidade contributiva é aquela que decorre da descrição legal da hipótese de incidência e da sua base de cálculo, e da subsunção dos fatos reais a ela, e não de outros elementos externos ao fato gerador. Muito menos de elementos anteriores ao fato gerador. Também assim com a isonomia, pois somente se pode comparar pessoas em razão dos fatos geradores já ocorridos, e de cujas obrigações tributárias elas sejam contribuintes.

Quando adiante analisarmos o negócio jurídico indireto sob a Medida Provisória n. 66/02, veremos outros interessantes aspectos relacionados à respectiva capacidade contributiva, que confirmam tudo quanto está dito até aqui.

Ora, como a elisão se processa necessariamente antes da ocorrência do fato gerador, todos os princípios acima referidos ainda não atuam quando da prática elisiva, e não podem ser opostos ao direito de efetivá-la.

(10)

Público, e não armas deste contra aqueles, segundo já decidiu o Supremo Tribunal Federal 2.

Pelas mesmas razões, a lei não pode obrigar a pessoa a praticar o fato gerador sob os auspícios do art. 5º, inciso II, da Constituição Federal - que estatui que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa senão em virtude de lei - porque se trata de direito e garantia individual, proteção contra Poder Público, e aplica-se em sintonia com os demais princípios e preceitos constitucionais.

Estas ponderações não se escudam em mero formalismo ou exagerado positivismo, mas são manifestações que refletem estrita submissão ao ordenamento jurídico (direito positivo em vigor), tal como ele é e tal como deve ser compreendido e aplicado, especialmente com a observância dos princípios constitucionais, das garantias individuais e dos limites ao poder de tributar, todos devidamente sopesados e aplicados na sua interação necessária à segurança jurídica.

Como dito, nenhum princípio é absoluto, mas todos se aplicam harmonicamente sob o influxo e a prevalência dos mais específicos e mais relevantes em cada caso: no caso da obrigação tributária, é inafastável a garantia do direito individual da propriedade privada, juntamente com o princípio da legalidade/tipicidade, que é limite ao poder de tributar e fornece os índices constitucionais de capacidade contributiva em cada situação, e a partir da qual se aufere a isonomia de tratamento.

Aliás, no sentido contrário, também não se pode defender a supremacia absoluta de princípios tais como o da capacidade contributiva e da isonomia, colocando-os sobre o princípio da estrita legalidade/tipicidade e o direito individual de propriedade, para justificar a exigência de que a pessoa se torne contribuinte ou maior contribuinte.

2 Por exemplo, Plenário, ação direta de inconstitucionalidade n. 712-2-DF (ML), em 9.7.1992.

(11)

Em virtude desse arcabouço jurídico derivado da Constituição, a eliminação ou redução do direito à elisão fiscal depende de norma constitucional que se acrescente ao poder de tributar e reduza as limitações a esse poder, tão minuciosamente elencadas na Carta de 1988. 3

Neste aspecto, é inegável que a nossa atual Constituição prestigia valores éticos de alta significação, como a justiça, o desenvolvimento, a igualdade, a sociedade fraterna e sem preconceitos, livre, justa e solidária, mas ela igualmente assegura o exercício dos direitos individuais, a liberdade, a segurança, a livre iniciativa, como também é inegável que ela consagrou, com maior vigor do que as suas antecessoras, a proteção do contribuinte contra o fisco, e, com muito mais razão, da pessoa não contribuinte.

Em suma, não se pode impedir a pessoa de não querer pagar tributo e de não pagá-lo licitamente, ou de licitamente se organizar para pagar o menos possível.

Tudo quanto está dito acima evidentemente não exclui do direito e o dever do Poder Público defender-se contra a evasão fiscal com todos os elementos que a ordem jurídica lhe outorga, e com a criação de novos e mais eficazes instrumentos de defesa da arrecadação tributária que lhe for devida, tudo em conformidade com a ordem constitucional.

Daí haver uma diferença fundamental entre norma antielisão e norma antievasão, que se fundamenta exatamente na diferença fundamental entre as duas entidades distintas e inigualáveis, uma lícita e outra ilícita.

Cumpre mesmo notar que, se se admite a existência de direito à elisão fiscal lícita, até se apresenta uma contradição e um contrasenso falar em norma antielisão ou antielisiva 4, ou seja, uma norma contra o lícito.

3 Ante o disposto no parágrafo 4º do art. 60 da Constituição Federal, estando aqui envolvidas as chamadas “cláusulas pétreas”, mesmo uma reforma constitucional pelo legislador constituinte derivado teria que ser devidamente considerada tendo em vista a extensão que tivesse.

4 “Norma antielisiva” é expressão que a mim parece mais inadequada ainda, pois elisivo é o ato, e não a norma que se refira a ele. Seria como falar em “norma tributada”, ao invés de “norma tributária”.

(12)

diferencia-se da evasão fiscal ilícita por três - e apenas três - elementos: (1) decorrer de atos ou omissões da pessoa (que não é contribuinte) anteriores à ocorrência do fato gerador da obrigação que ela quer elidir, (2) decorrer de atos ou omissões conformes à lei, e (3) decorrer de atos ou omissões reais e não simulados 5. A doutrina e a jurisprudência são tão pacíficas quanto a este conceito que dispensam citações neste resumo.

A pessoa que assim agir para elidir uma obrigação tributária ainda inexistente estará no legítimo exercício dos atributos do direito de propriedade, e não estará praticando ato ilícito, até porque o regular exercício de direito não é ato ilícito (Código Civil, art. 160, inciso I; novo Código Civil, art. 188, inciso I).

Nem se pense que estas colocações possam ser alteradas pelo art.

187 do novo Código Civil, segundo o qual comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Realmente, se o ato for praticado nestas circunstâncias será ilícito e não poderá produzir elisão fiscal, mas não é o objetivo de economizar tributo que o caracteriza e o torna ilícito. O que faz o ato incidir nesse tipo de ilicitude é o manifesto excesso dos limites impostos pelo fim econômico ou social do ato, pela boa-fé ou pelos bons costumes, nada disso havendo nos regulares atos de elisão fiscal.

Também não há fraude à lei ou abuso de direito na prática regular de atos elisivos 6, inclusive porque a ordem constitucional não obriga a pessoa a

5 O terceiro elemento a rigor já está compreendido no segundo, mas é destacado porque, na observação prática, representa o maior vício dos planejamentos defeituosos, tanto que acabou por ser objeto da norma específica baixada pela Lei Complementar n.

104. No segundo elemento estão incluídos o abuso de direito, o dolo e a fraude à lei.

6 O que pode ocorrer é a existência de fraude à lei ou abuso de direito no ato praticado, caso em que ele não tem validade, mas não há fraude à lei ou abuso de direito pela simples intenção de elidir obrigação tributária inexistente, fazendo-o pelos meios lícitos. O art. 188 do novo Código Civil, afinal, exprime exatamente isto.

(13)

incorrer em qualquer fato gerador e não prevê qualquer abuso neste sentido, como faz com relação ao abuso do poder econômico e outros.

Por isso, a rigor e na prática, a aplicação da teoria do abuso de direito, como vem sendo profligada por parte da doutrina, acaba por negar a elisão fiscal em todo e qualquer caso, mediante a proclamação teórica de princípios constitucionais e em nome de uma ideologia de justiça social, com o afastamento do direito de propriedade e do princípio da estrita legalidade/tipicidade, e instaurando a insegurança e a indeterminação jurídicas.

Muito menos há abuso de forma jurídica, que é visão deturpada do direito brasileiro, em que forma é meio de expressão ou manifestação da vontade, tal como a forma verbal ou a forma escrita, inscrita em instrumento público (quando da essência do ato) ou instrumento particular (Código Civil, art.

129 e seguintes). Ademais, o novo Código Civil, que nos art. 107 e seguintes demonstra o que se entende por forma, tal como ocorria com o anterior código, exprime categoricamente no art. 167 a distinção entre a forma e a substância do ato jurídico.

Mais importante do que o aspecto semântico da expressão, para determinar a inadequação dessa teoria é suficiente verificar que a discriminação constitucional de competências tributárias situa algumas delas em estruturas ou categorias jurídicas e outras em fatos meramente econômicos, em consequência do que o CTN reflete a inafastável importância das categorias ou estruturas jurídicas (art. 109, 110, 116, 117 e outros).

Não é à toa que se diz que o direito tributário é “direito de superposição”, pois a norma tributária muitas vezes incide sobre fatos, atos ou seus efeitos como já juridicizados por outras normas jurídicas.

Por isso tudo, a doutrina e a jurisprudência vêm repetindo à exaustão que no Brasil não existe o abuso de forma tal como entendido no direito alienígena, e que descabe a interpretação dita pelos efeitos econômicos dos fatos. 7

7 Neste sentido, por exemplo, os acórdãos n. CSRF/01-0892, de 28.6.1989, e CSRF/01- 01874, de 15.5.1995, da Câmara Superior de Recursos Fiscais, e os acórdãos n. 103-

(14)

nos atos praticados com vistas à elisão fiscal, ou de “desculpa ou história oficial”

para o planejamento tributário, que pode ser promovido com o específico intuito de economizar tributos, podendo-se adotar atitude ou mudar de atitude somente com esse objetivo.

Quanto a isto, é preciso reconhecer sem qualquer hipocrisia que a elisão sequer moralmente pode ser condenada 8, e que ela não é produto do acaso, mas atitude sempre intencional e planejada, desenvolvida dentro da Constituição e da lei, levando em conta a relação custo/benefício, ou seja a relação entre os ônus incorridos pela estruturação das atividades econômicas e o benefício da economia tributária.

Disso tudo deu exemplo riquíssimo o Parecer Normativo PN-CST 145/75, emitido pelo órgão normativo da Secretaria da Receita Federal, o qual

11865, de 5.12.1991, 103-14432, de 14.12.1993, e 103-17579, de 10.7.1996, da 3a Câmara do 1o Conselho de Contribuintes. Em doutrina, entre outros autores, Brandão Machado, prefaciando “Interpretação da Lei Tributária”, de Wilhelm Hartz, Editora Resenha Tributária, 1993; Gilberto de Ulhôa Canto, in “Caderno de Pesquisas Tributárias - Vol. 15”, coedição da Editora Resenha Tributária e do Centro de Extensão Universitária, 1988, p. 16; Sacha Calmon Navarro Coêlho, in “Revista de Direito Tributário” n. 44, p. 172; Alberto Pinheiro Xavier, in “Revista de Direito Público” n. 23, p. 236.

8 Segundo Hugo de Brito Machado, in “Elisão e Evasão Fiscal - Caderno de Pesquisas Tributárias - Vol. 13”, 1988, coedição da Editora Resenha Tributária e do Centro de Estudos de Extensão Universitária, p. 449, não se pode sequer considerar moralmente reprovável a conduta elisiva. Esse autor fez a seguinte citação de Alfredo Augusto Becker: “É aspiração naturalíssima e intimamente ligada à vida econômica, a de se procurar determinado resultado econômico com a maior economia, isto é, com a menor despesa (e os tributos que incidirão sobre os atos e fatos necessários à obtenção daquele resultado econômico, são parcelas que integrarão a despesa). Ora, todo o indivíduo, desde que não viole regra jurídica, tem a indiscutível liberdade de ordenar seus negócios de modo menos oneroso, inclusive tributariamente. Aliás, seria absurdo que o contribuinte, encontrando vários caminhos legais (portanto, lícitos) para chegar ao mesmo resultado, fosse escolher justamente aquele meio que determinasse o pagamento de tributo mais elevado. (ALFREDO AUGUSTO BECKER, Teoria Geral do Direito Tributário, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 122).

(15)

recomendou ao contribuinte do imposto de renda uma reestruturação societária com vistas a reduzir o montante que seria devido sem tal providência.

Algumas observações complementares são necessárias.

A simulação, que vicia o ato jurídico e invalida a economia tributária pretendida, está regida pelo art. 102 do Código Civil (novo Código Civil, parágrafo 1º do art. 167), e se prova pela densidade de indícios e circunstâncias, que a jurisprudência administrativa vem aplicando com bastante sabedoria, tais como: a proximidade temporal de atos; a disparidade infundada de valores entre eles; o desfazimento dos efeitos do ato simulado; a prática de certos atos entre partes ligadas, por exemplo, ao final do período-base de apuração do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro, com a transferência incabível e inexplicável de lucro de uma pessoa jurídica lucrativa para outra deficitária; a existência ou inexistência de outra causa econômica além da economia fiscal 9; a exagerada arrumação dos fatos.

Também não há que se confundir simulação com negócio jurídico indireto. Em síntese, pode-se dizer que há negócio indireto quando, para atingir determinado objetivo, a pessoa não se utiliza do ato jurídico (ou da estruturação jurídica) que diretamente se aplicaria à situação e permitiria a realização daquele objetivo desejado, mas, sim, se vale de um outro ato jurídico (ou de uma outra estrutura jurídica) que não é típico e específico àquele objetivo, mas que acarreta resultado igual ou semelhante sob o ponto de vista econômico ou negocial.

O negócio jurídico indireto é válido na medida em que não viole disposição de lei, inclusive e se não for adotado para violar proibição legal, sendo absolutamente necessário que seja praticado para atingir algum fim de direito privado que não seria vedado pela lei se tivesse sido praticado o negócio direto.

10

9 Atenção para que aqui a existência ou não de outros motivos econômicos ou negociais é considerada como um dos indícios de haver ou não evasão, mas não como elemento indispensável à elisão, ou seja, não é um quarto requisito necessário à elisão, em adição aos três já citados.

10 Neste sentido, o voto do Ministro Moreira Alves no recurso extraordinário n. 82447- SP, decidido em 8.6.1976 pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, fornece

(16)

simulação porque nesta há desconformidade entre o desejado e o praticado, o que obriga as partes a realizar atos paralelos ocultos de desfazimento ou neutralização dos efeitos do praticado ostensivamente, ao passo que no negócio indireto as partes desejam e mantêm o ato praticado e se submetem por inteiro ao seu regime jurídico e a todas as suas consequências.

Também não se pode confundir simulação, abuso de direito ou negócio indireto com a inexistência de outras causas econômicas (ausência de

“business purpose”), pois o objetivo das partes não qualifica o ato jurídico, cuja qualificação é dada pela sua disciplina jurídica e pela sua conformidade com o que foi efetivamente praticado. A simulação pode representar ausência de negócio (ausência de “business”), ou ocultação de negócio real (ocultação de

“business”), assim como o abuso de direito pode ocorrer na prática de um ato jurídico não simulado.

preciosos elementos de compreensão da distinção entre simulação, fraude à lei e negócio indireto (“Revista dos Tribunais” n. 518, p. 244). Doutrina e jurisprudência vêm se pondo de acordo sobre todos estes aspectos do negócio jurídico indireto, como se vê, além do próprio José Carlos Moreira Alves (“A Retrovenda”, Editor Borsoi, 1967, p. 12 e seg.; “Da Alienação Fiduciária em Garantia”, Editora Saraiva, 1973, p. 133 e seg;

“Da Alienação Fiduciária em Garantia”, Editora Forense, 2ª ed., p. 1 e seg.) em: Edgard L.

de Proença Rosa, “O Negócio Jurídico Indireto e suas Repercussões no Direito Tributário”, in “Revista de Direito Tributário” n. 15/16, p. 135 e seg.; José Abreu Filho,

“O Negócio Jurídico e sua Teoria Geral”, Editora Saraiva, 3ª ed., p.160 e seg.; Francesco Ferrara, “A Simulação dos Negócios Jurídicos”, tradução de A. Bossa, Editores Livraria Acadêmica – Saraiva e Cia., 1939, p.76 e seg.; Homero Prates, “Atos Simulados e Atos em Fraude da Lei”, Livraria Freitas Bastos, 1958, p. 72 e seg.; Otto de Sousa Lima,

“Negócio Fiduciário”, Editora Revista dos Tribunais, p. 157 e seg.; Custódio da Piedade Ubaldino Miranda, “Teoria Geral do Negócio Jurídico”, Editora Atlas, 1991, p. 162 e seg.;

Guilherme Guimarães Feliciano, “Tratado de Alienação Fiduciária em Garantia”, Editora LTr, p. 183 e seg.; Álvaro Villaça Azevedo, “Contratos Inominados ou Atípicos”, Edições CEJUP, p. 129 e seg.; Supremo Tribunal Federal, 1ª Turma, recurso extraordinário n.

71616-SP, em 11.12.1973; Superior Tribunal de Justiça, 2ª Turma, recurso especial n.

56201-BA, em 13.6.1996; Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma, recurso especial n.

28598-BA, em 5.11.1996. Registre-se que tal doutrina tem se fundado nas lições de Domenico Rubino, Tullio Ascarelli e outros autores estrangeiros.

(17)

Pois nada disso ocorre no negócio indireto não viciado por simulação e que não almeja um resultado vedado pelo ordenamento jurídico.

Em matéria de tributação, em que, para nascer, a obrigação tributária depende do ato praticado, se for adotado negócio indireto válido perante o ordenamento jurídico a obrigação tributária que dele decorrer será a que for tipificada para o mesmo, e não aquela prevista para o ato não praticado.

É que os tributos somente incidem sobre o patrimônio (no caso dos impostos sobre o patrimônio) ou quando haja alguma mudança no estado patrimonial (nos casos de impostos sobre circulação, consumo, alienação imobiliária, etc.).

Sendo assim, quando há um negócio jurídico indireto, é ele que produz a mudança patrimonial, e não o ato que ele substitui, e isto é da essência do negócio indireto, diferentemente da simulação, em que não há mudança no estado patrimonial (simulação absoluta), ou a efetiva mudança é diferente daquela que o ato dissimulatório aparenta produzir (simulação relativa).

Por isso, na dissimulação se desconsidera o ato externo e se tributa o ato verdadeiro que ficou encoberto, ou os seus efeitos, ao passo que no negócio indireto tributa-se ele próprio ou os seus efeitos, até porque, em virtude de as partes do negócio indireto se submeterem à sua disciplina e aos seus efeitos, são estes que podem ser apanhados pela norma de incidência tributária, diferentemente dos atos simulados.

Para se certificar sem preconceitos a verdade destas afirmações, veja-se que elas se aplicam quer o negócio indireto tenha aproveitado fiscalmente ao particular, quer ao fisco. Realmente, no caso do recurso extraordinário n. 82447-SP, acima citado, um empréstimo foi garantido através de uma venda de imóvel com a obrigação do adquirente, após o resultado pretendido, revendê-lo ao alienante. Neste caso, sendo válido o negócio indireto praticado, e tendo produzido o efeito de mudança patrimonial quanto à propriedade do imóvel, as partes ficaram sujeitas inevitavelmente ao imposto sobre a transmissão imobiliária (inclusive incidente duas vezes), não podendo deixar de pagá-lo sob a alegação de que o negócio direto seria de mera garantia e, como tal, não incidiria no referido imposto.

(18)

na hipótese de incidência de um tributo ou se insere em norma de menor tributação, caso em que o fisco não pode querer tributar o negócio que seria direto mas que não foi realizado, ficando adstrito a aplicar a norma jurídica prevista para o negócio indireto praticado efetiva e validamente.

Sendo este o quadro prevalecente na doutrina e na jurisprudência até o advento da Lei Complementar n. 104, de 10.1.2001, necessário agora verificar o conteúdo desta.

Essa lei complementar incluiu um parágrafo único no art. 116 do CTN, devendo-se dizer desde logo que ela não contrariou o regime constitucional vigente. Reza o dispositivo:

“Parágrafo único - A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”

De pronto nota-se que se trata de norma antievasão, sendo ineficaz a “intentio legislatoris”, a qual se pode extrair de sucessivas manifestações do mentor dessa alteração legislativa no sentido de que se trataria de norma antielisão.

Realmente, o parágrafo transcrito visa permitir desconsiderar os atos dissimulatórios da ocorrência do fato gerador (o “an debeatur”) ou dos elementos constitutivos da respectiva obrigação tributária (o “quantum debeatur”). Todavia, a ocorrência do fato gerador não foi afetada pelo novo dispositivo, tendo continuado a ser regrada pelos art. 109, 110, 113, 114, 116, 117, 118 e outros do mesmo CTN, assim como o fato gerador e a base de cálculo de cada imposto são disciplinadas em vários outros artigos do mesmo código.

Isto deflui cristalinamente quando o parágrafo único do art. 116 refere-se a desconsiderar atos ou negócios jurídicos que tenham tido a

(19)

finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da respectiva obrigação tributária, valendo dizer que:

- o que se desconsidera é o ato que dissimula o ato real;

- esse ato real tem que ser identificado por sua verdade material e subsumido à norma que o qualifica como gerador de determinada obrigação tributária e define a sua base de cálculo.

Em outras palavras, levanta-se o véu dissimulatório da realidade, para que esta prevaleça na constituição do respectivo crédito tributário.

“Dissimulação” corresponde à simulação relativa, seja no sentido léxico, seja no sentido técnico-jurídico 11.

Realmente, simular tem um componente ou efeito positivo de criar aparência, ao passo que dissimular tem um componente ou efeito negativo de esconder a realidade. Simula-se para fingir algo que não existe (realidade inexistente), e se dissimula para fingir que não existe (realidade aparentemente inexistente) algo que efetivamente existe (realidade existente).

A simulação visa o ato a ser apresentado (objeto da simulação), enquanto que a dissimulação visa o ato a ser escondido (objeto da dissimulação).

Na imagem de Ferrara, a simulação é igual ao fantasma (realidade inexistente) e a dissimulação é igual à máscara (realidade existente disfarçada ou ocultada por outra realidade falsa) 12.

11 Quanto ao sentido técnico-jurídico, dissimulação é simulação relativa, segundo Pontes de Miranda, em seu “Tratado de Direito Privado”, Editora Borsol, tomo IV, pág.

375, citado nos acórdãos n. 101-88316 e CSRF/01-01874, respectivamente da 1a Câmara do 1o Conselho de Contribuintes e da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda, e Caio Mário da Silva Pereira, in “Instituições de Direito Civil”, Editora Forense, vol. I, 9ª ed., pág. 367.

12 In “A Simulação dos Negócios Jurídicos”, R.E.D. Livros, 1999, pág. 50, conforme citação de Miguel Delgado Gutierrez, em estudo sobre o parágrafo único do art. 116 do CTN, publicado na “Revista Dialética de Direito Tributário” n. 66, p. 88 e seg.

(20)

Para espancar definitivamente qualquer dúvida sobre o significado do verbo “dissimular”, adotado pela Lei Complementar n. 104 ao introduzir o parágrafo único do art. 116 do CTN, veja-se que o novo Código Civil, no “caput”

do art. 167, diz textualmente: “É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”.

Portanto, a norma do parágrafo único do art. 116 do CTN somente trata de simulação relativa – ato simulado que dissimula o ato real -, não consagrando a interpretação econômica, a teoria do abuso de forma, a teoria do abuso de direito, e nem invalidando negócios jurídicos indiretos.

E trata apenas de simulação relativa, porque está sempre correlacionada ao fato gerador efetivo, ainda que na órbita privada possa ser simulação absoluta, isto é, tanto se pode praticar um ato simulado que encobre outro real (simulação relativa na órbita privada), quando está sendo dissimulada a efetiva ocorrência do fato gerador e/ou os elementos constitutivos da obrigação tributária, quanto se pode praticar um ato simulado que não encobre qualquer outro (simulação absoluta na órbita privada), mas que dissimula os elementos constitutivos de uma determinada obrigação tributária. Portanto, nos dois casos, estando a obrigação tributária afetada pela dissimulação da realidade, trata-se de simulação relativa na órbita do direito tributário. 13

É importante destacar que essa norma tem estatura constitucional de norma de lei complementar “ratione materiae”, face ao art. 146, inciso III, letra “b”, da Constituição, regrando concreta e especificamente o que antes se hauria de normas esparsas no ordenamento jurídico e prescrevendo a necessidade de um procedimento específico para ser declarada a desconsideração dos efeitos tributários do ato dissimulatório.

13 Tratei exaustivamente deste aspecto no já citado trabalho “Reinterpretando a Norma Antievasão do Parágrafo Único do Art. 116 do Código Tributário Nacional”, in “Revista Dialética de Direito Tributário” n. 76, p. 81.

(21)

Ora, isto não significa, em hipótese alguma, haver proibição ou o cerceamento do planejamento tributário que vise a elisão lícita, mas apenas a proteção da arrecadação contra a evasão derivada da dissimulação.

Neste sentido, a norma representa legítima ação estatal no combate à evasão, sendo exercício do direito/dever de proteger a arrecadação devida.

Para concluir esta parte do presente estudo, inclusive tendo em vista o seu título, façamos algumas observações específicas sobre o planejamento relativo ao imposto de renda, ao qual se aplica tudo quanto foi dito anteriormente, como de resto ocorre com todo e qualquer outro tributo.

Não obstante, o imposto de renda tem uma peculiaridade que precisa ser destacada e observada quando se aquilata a validade ou não de um determinado planejamento tributário que o tenha como objeto.

O fato gerador desse imposto é do tipo funcional, e não estrutural, pois é o efeito de acréscimo patrimonial produzido por situações jurídicas e/ou por situações de fato meramente econômicas, e não a prática de um ato jurídico especificamente considerado.

Por outro lado, o princípio da universalidade, que necessariamente informa o imposto de renda (Constituição, art. 153, parágrafo 2º, inciso I), apanha a multidão de todos os fatores positivos e negativos que afetam o patrimônio no período de apuração da obrigação tributária.

Dentre tais fatores estão principalmente (quase sempre) fatos ou atos jurídicos, sem cuja ocorrência não há o efeito de acréscimo ou redução patrimonial. Assim, na compra e venda mercantil, é a aquisição do direito ao preço, de acordo com a norma de direito aplicável, que produz o acréscimo patrimonial correspondente ao lucro nele embutido. Na subscrição de capital com ágio, é da respectiva disciplina jurídica que surgem os respectivos efeitos patrimoniais.

Ou seja, sem esses atos jurídicos completos de acordo com o direito a eles aplicável não há os efeitos deles decorrentes, perseguidos pela incidência do imposto de renda sobre a universalidade da alteração patrimonial.

(22)

(Código Civil, art. 57), composto apenas por direitos e obrigações jurídicas com expressão econômica, conforme expuseram com clareza Silvio Rodrigues 14, Washington de Barros Monteiro 15, Caio Mário da Silva Pereira 16, e, entre os tributaristas, Brandão Machado, citando Pontes de Miranda. 17

No novo Código Civil não há mudança deste conceito, pois, pelo contrário, o art. 91 alude à universalidade de direito como sendo o complexo de relações jurídicas de uma pessoa, dotadas de valor econômico.

Destarte, as mutações no patrimônio – e o fato gerador do imposto de renda é o aumento patrimonial - envolvem sempre, apenas e necessariamente, mudanças de direitos e obrigações, na seguinte equação: mais direitos menos obrigações é igual a aumento patrimonial, assim como menos direitos mais obrigações é igual a redução patrimonial.

Sendo assim, a elisão em matéria de imposto de renda tem a ver com um ou alguns desses fatores, buscando estruturas jurídicas mais vantajosas quanto aos respectivos créditos (menos créditos) ou débitos (mais débitos) à respectiva base de cálculo, o que se pode fazer pela adoção de negócios diretos ou indiretos, pela escolha de um dentre mais de um ato alternativo produtor do resultado que se quer, pela reestruturação societária ou empresarial, e por uma série de medidas que observem os três requisitos acima citados para se construir a elisão válida, mas certamente não pela simples arrumação aparente de uma realidade inexistente.

Na observação das práticas das pessoas físicas e jurídicas nota-se que muitas vezes há um “encaixe ilegal” num tratamento a que a pessoa envolvida não faz jus pela realidade em que está inserida, muitas vezes inexistindo “business”. Ou seja, não existindo o fato propiciador de alguma vantagem fiscal, ele é criado artificialmente para permitir o encaixe na norma

14 “Direito Civil – Parte Geral”, Editora Max Limonad, 2ª ed., vol. 1, p. 121.

15 “Curso de Direito Civil – Parte Geral”, Editora Saraiva, 25ª ed., p. 147.

16 “Instituições de Direito Civil”, Editora Forense, vol. I, 9ª ed., p. 295.

17 “Estudos sobre Imposto de Renda (Em Homenagem a Henry Tilbery)”, Editora Resenha Tributária, 1994, p. 114.

(23)

vantajosa, notando-se que muitas vezes há um “business” ou um “business purpose”, mas cria-se uma situação desnecessária e fictícia no contexto negocial, apenas com vistas à economia fiscal. É isto que a Lei Complementar n. 104 combate.

Mas há situações de “encaixe legal”, quando a pessoa física ou jurídica amolda-se previamente, sem violar a lei e com atos reais, a uma situação que lhe é mais interessante, como é o exemplo do já citado Parecer Normativo CST n. 145/75. Isto a Lei Complementar n. 104 não proíbe nem combate.

Em suma, quando o fato ou ato jurídico real contribuir com determinado elemento positivo ou negativo para a constituição da obrigação tributária cujo objeto seja o imposto de renda, ainda que por exercício de consciente e intencional direito de elisão fiscal, não há o que se desconsiderar, seja à luz dos ensinamentos doutrinários e da experiência jurisprudencial anteriores à Lei Complementar n. 104, seja ante os termos desta, pois não há ato jurídico praticado com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador desse imposto ou a natureza dos elementos constitutivos da respectiva obrigação tributária.

III – PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO COM IMPOSTO SOBRE A RENDA APÓS A MEDIDA PROVISÓRIA N. 66/02

Os art. 13 a 19 da Medida Provisória n. 66/02 representam as normas de procedimento para desconsideração dos atos dissimulatórios, requeridas pelo parágrafo único do art. 116 do CTN, acrescentado pela Lei Complementar n. 104. Não há menor possibilidade de dúvida quanto a isto, eis que a redação do “caput” do art. 13 é praticamente a mesma do referido parágrafo, apenas tendo ficado explícito o que neste está implícito, ou seja, que a desconsideração é para fins tributários.

Os art. 15 a 19 são os dispositivos que efetivamente baixam as normas de procedimento para a desconsideração dos atos, e são suficientemente explícitos para serem compreendidos sem necessidade de qualquer comentário ou explicação, ao menos nesta oportunidade.

(24)

irregularidade jurídica poderia ser encontrada nos mesmos.

Entretanto, o parágrafo único do art. 13 e os três parágrafos do art.

14 introduzem disposições espúrias, conflitantes com a lei complementar, além de haver conflito interno na Medida Provisória n. 66, entre o parágrafo único do art. 13 e o art. 14 considerado em sua integralidade.

Para maior clareza, transcrevo-os “in verbis”:

“Art. 13 – Os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos de obrigação tributária serão desconsiderados, para fins tributários, pela autoridade administrativa competente, observados os procedimentos estabelecidos nos arts. 14 a 19 subseqüentes.

Parágrafo único – O disposto neste artigo não inclui atos e negócios jurídicos em que se verificar a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.

Art. 14 – São passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor de tributo, a evitar ou a postergar o seu pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

Parágrafo 1º - Para a desconsideração de ato ou negócio jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de:

I – falta de propósito negocial; ou II – abuso de forma.

Parágrafo 2º - Considera-se indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para a prática de determinado ato.

(25)

Parágrafo 3º - Para o efeito do disposto no inciso II do parágrafo 1º, considera-se abuso de forma jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado.”

Uma primeira consideração a fazer é que, em virtude do disposto no parágrafo único do art. 13, é claro que o legislador da medida provisória pretendeu determinar a desconsideração de atos para efeitos tributários ainda que os mesmos sejam válidos perante o direito privado, porque, se forem dolosos, fraudulentos ou simulados, não terão validade perante o direito privado e qualquer prejudicado, inclusive o fisco, poderá demandar a sua nulidade, sendo que, no caso do fisco, tal possibilidade exsurge independentemente da declaração judicial dos citados defeitos dos atos.

Entretanto, se justamente os atos invalidados por motivo de dolo, fraude ou simulação estão excluídos dos procedimentos de desconsideração baixados pela medida provisória, resulta que esta pretende se aplicar somente a atos juridicamente válidos, especialmente a atos não invalidados por dolo, fraude ou simulação.

Uma segunda consideração, ainda decorrente desse parágrafo é que ele não se coaduna com o disposto na lei complementar, eis que esta alude à dissimulação, a qual, como vimos, corresponde a ato simulado que dissimula ato verdadeiro, e se constitui na única hipótese fática em que a norma pode ser aplicada.

Logo, se a norma da lei complementar refere-se a uma espécie de simulação e a medida provisória declara expressamente que as suas normas de procedimento não se aplicam no caso de simulação, neste ponto está estabelecido um descompasso insuperável entre elas, o qual se resolve pela invalidade parcial do parágrafo único do art. 13 da medida provisória, quando alude a “simulação”, por ser contrário à norma da lei complementar que lhe deveria dar suporte 18. Veremos mais adiante que também por outras razões esse parágrafo é inválido neste ponto.

18 Pode-se cogitar que o parágrafo único do art. 13 estaria aludindo apenas à simulação absoluta, enquanto que o “caput” do mesmo artigo e os demais dispositivos estariam aludindo apenas à simulação relativa, na linha da Lei Complementar n. 104. Contudo,

(26)

qual seja, tudo o que antes era caracterizado como evasão fiscal continua a sê-lo, não por força da medida provisória, mas por força da totalidade do ordenamento jurídico da qual se extraía e continua a se extrair os conceitos jurídicos de elisão lícita e evasão ilícita.

Aliás, a Lei Complementar n. 104 também não alterou o “status quo”

anterior quanto à definição de elisão e evasão, tendo apenas consagrado, em nível de norma complementar, a possibilidade da desconsideração dos atos dissimulatórios e prescrito a regulação, por lei ordinária, do procedimento para tanto.

Todavia, como o parágrafo único do art. 13 exclui dos procedimentos de desconsideração atos que carregam dolo, fraude ou simulação, isto é, atos que, ao invés de produzir elisão, produzem evasão fiscal, estes casos, na estrita ótica da medida provisória, devem continuar sujeitos à invalidação dos seus efeitos fiscais através do processo normal, sem passar pelos procedimentos de desconsideração que ela estabelece.

Por conseguinte, nesta terceira observação fica principalmente estabelecido que o legislador da medida provisória quis efetivamente acrescentar algo novo no ordenamento jurídico, inclusive indo além do disposto na lei complementar, e isto ele o proclama ao atribuir aos art. 13 a 19, no título que os encima, a condição de “procedimentos relativos à norma anti-elisão”.

Em suma, a contrariedade não é apenas de natureza substancial, mas também de ordem intencional, ou seja, a medida provisória contraria a substância da norma da lei complementar, afastando do seu âmbito a hipótese de simulação, justamente alcançada por esta, e quer estabelecer uma norma antielisão quando a lei complementar exprime uma norma antievasão.

não é assim, não tanto e apenas porque o parágrafo refere-se ao gênero simulação, de maneira a abranger tanto a absoluta quanto a relativa, mas principalmente porque, como explicado no capítulo II deste estudo, a simulação evasiva é sempre relativa, dado que é referida à efetiva e verdadeira ocorrência do fato gerador ou aos efetivos e verdadeiros elementos constitutivos da respectiva obrigação tributária.

(27)

Por tudo o que já foi exposto no capítulo II, tal norma dependeria de alteração constitucional nos limites possíveis 19, de tal maneira que não poderia sequer ter sido estabelecida por lei complementar, e com mais razão por lei ordinária. Seja como for, a medida provisória contradiz a lei complementar, e isso já é suficiente para ser inválida. Pela sequência dos presentes comentários ver-se-á que outros obstáculos jurídicos interpõem-se na aplicação dessa medida provisória, se nela for mantido o parágrafo único do art. 13, tal como se apresenta no seu texto original.

Já o art. 14 suscita uma enorme série de dúvidas e, juntamente com os seus três parágrafos, se não interpretado adequadamente, acaba por também se revelar contrário ao que dispõe o CTN, inclusive no parágrafo único do seu art. 116, acrescentado pela Lei Complementar n. 104.

A cabeça do art. 14, devidamente interpretada, não padece de qualquer vício, porquanto está em conformidade com o parágrafo único do art.

116 do CTN, mas também, e principalmente, por revelar expressamente que a ocorrência do fato gerador deve ser detectada em vista dos seus “verdadeiros aspectos” e da “real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”. Outrossim, quando a parte inicial do “caput” do art. 14 alude à desconsideração de atos ou negócios jurídicos que visem reduzir o valor de tributo, ou evitar ou postergar o seu pagamento, revela a aversão preconceituosa do seu mentor pela elisão lícita, mas essa parte não pode ser isolada do “caput”

do art. 13 nem da Lei Complementar n. 104, ou seja, somente devem ser desconsiderados os atos ou negócios que acarretem os referidos resultados quando forem dissimulatórios da realidade, como está expresso na parte final do mesmo dispositivo.

Assim, quando o art. 14 alude a “verdadeiros” e a “real”, está efetivamente confirmando que o fato gerador e os elementos que o compõem são aqueles emanados da realidade fenomênica e da respectiva norma legal específica que os disciplina. Em outras palavras, o “caput” do art. 14 demonstra que se deve desconsiderar os atos que dissimulam essa verdadeira realidade da qual nasce a obrigação tributária e pela qual ela é quantificada, portanto,

19 Vide a nota (3).

(28)

Dispondo assim, verifica-se que ao menos esse dispositivo não desrespeita o princípio da estrita legalidade, com o seu desdobramento da tipicidade. Isto é, considerada a dicção do “caput” do art. 14, o que temos em última análise é a confirmação da submissão do art. 14 a esse princípio constitucional fundamental, que representa direito e garantia individual e que se manifesta como limite ao poder de tributar.

Ora, isto está em consonância com a Lei Complementar n. 104 e com todo o ordenamento jurídico que existia antes dela e que continua a existir depois dela, ou seja, o fato gerador continua a ser regido, interpretado e aplicado segundo as normas legais a ele pertinentes, e com observância dos art. 109, 110, 113, 114, 116, 117 e todos os demais do CTN, inclusive o art. 108 e o art. 118.

Obviamente que, se assim é, o “caput” do art. 14 da medida provisória está se referindo à simulação relativa, e nisto está se contrapondo ao que consta do parágrafo único do art. 13 do mesmo dispositivo legal, mas justapondo-se à cabeça do art. 13, que alude expressamente à dissimulação

Isto é, são conflitantes, de um lado, o parágrafo único do art. 13, e de outro lado, o “caput” do art. 14 e o “caput” do próprio art. 13.

A solução para tal antinomia pode resolver-se por duas maneiras recomendadas pela boa hermenêutica jurídica.

Como se sabe, a doutrina e a jurisprudência reconhecem que não existem antinomias no ordenamento jurídico válido e em vigor, sendo todas elas apenas aparentes, pois o conflito de normas se resolve por critérios que variam de caso para caso, sendo ora o da sucessividade temporal, pelo qual a norma posterior aplica-se e revoga a anterior 20, ora o da hierarquia, pelo qual a norma

20 Critério este atualmente passível de revisão quanto à sua subsistência, perante as maneiras de alteração da lei, presentemente regidas pelos art. 9º e 12 da Lei Complementar n. 95, de 26.2.1998.

(29)

superior afasta e torna inaplicável a norma inferior, e ora o da especialidade, pelo qual a norma mais específica se aplica em detrimento da norma mais geral.

Entretanto, é reconhecido que pode ocorrer antinomia insanável por qualquer destes critérios, ou seja, pode haver antinomia real e não apenas aparente quando num mesmo diploma legal, portanto sem possibilidade de aplicação do critério temporal e do critério hierárquico, duas normas disponham em sentido contrário, sendo ambas de caráter geral ou de caráter especial.

Neste caso, a solução jurídica é a total invalidade de ambas. 21

21 Carlos Maximiliano, in “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, Livraria Freitas Bastos, 3ª ed., p. 170. Supremo Tribunal Federal, 1ª Turma, habeas-corpus n. 68793-8-RJ, em 10.3.1992, em cujo julgamento o voto do Ministro Moreira Alves contém excelentes lições extraídas da doutrina de Norberto Bobbio, Savigny, Gavazzi e outros que cita (DJU-I de 27.6.1997, p. 30287). Na ementa desse julgado, lê-se: “Quando há choque entre dois dispositivos de uma mesma lei, a antinomia não pode ser resolvida pelos critérios da hierarquia ou da sucessividade no tempo, porque esses critérios pressupõem a existência de duas leis diversas, uma hierarquicamente superior à outra, ou esta posterior à primeira. Nesse caso, que é o de mais difícil solução, o que é preciso verificar é se a antinomia entre os dois textos da mesma hierarquia e vigentes ao mesmo tempo é uma antinomia aparente, e, portanto, solúvel, ou se é uma antinomia real, e, conseqüentemente, insolúvel. A antinomia aparente é aquela que permite a conciliação entre os dispositivos antinômicos, ainda que pelo que se denomina “interpretação corretiva”, ao passo que a antinomia real é aquela que, de forma alguma, permite essa conciliação, daí decorrendo a necessidade de se adotar a chamada “interpretação abrogante”, pela qual ou o intérprete elimina uma das normas contraditórias (abrogação simples) ou elimina as duas normas contrárias (abrogação dupla). Dessas três soluções, a que deve ser preferida - só sendo afastável quando de forma alguma possa ser utilizada - é a interpretação corretiva, que conserva ambas as normas incompatíveis por meio de interpretação que se ajuste ao espírito da lei e que corrija a incompatibilidade, eliminando-a pela introdução de leve ou de parcial modificação no texto da lei”. Por outro lado, a solução de antinomias meramente aparentes, pelos critérios doutrinários, tem sido aplicada pelo Supremo Tribunal Federal em inúmeros casos, como no despacho do Ministro Celso de Mello de não conhecimento do recurso extraordinário n. 178861-5- SC, de 29.11.1995 (“Revista Dialética de Direito Tributário” n. 5, p. 148), no seu despacho de indeferimento do agravo de instrumento n. 189974-5-AL, de 13.12.1997 (DJU-I de 28.2.1997, p. 4102), e no seu despacho de conhecimento e provimento do recurso extraordinário n. 153366-8-SP, de 22.5.2002 (DJU-I de 5.8.2002, p. 74).

(30)

outro dispositivo da mesma lei permitir fumar em elevador, nenhuma das disposições tem prevalência sobre a outra, ou seja, não há norma em virtude de que a lei ao mesmo tempo proibiu e permitiu um mesmo ato.

Mais proximamente da situação aqui em cogitação, se a lei tornar inválida a simulação e também disser que a simulação não invalida o ato jurídico, nenhuma ordem ou norma defluirá dessa lei contraditória consigo mesma.

Pois bem, no caso da Medida Provisória n. 66 o que temos é exatamente esse tipo de antinomia real, pois o parágrafo único do art. 13 diz que os atos a serem desconsiderados não são os atos simulados, mas o “caput” do art.

14 o contradiz, pois afirma que devem ser desconsiderados os atos que ocultem os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, vale dizer, os atos simulados que dissimulam a verdadeira realidade. É também evidente a antinomia entre o parágrafo único do art. 13, quando alude à “simulação”, e a própria cabeça do art.

13, que expressamente se refere a “dissimular”.

Contudo, nesta situação concreta é possível afastar a antinomia, não pela declaração de invalidade dos dispositivos conflitantes ou pela conclusão da inexistência de norma, mas mediante a declaração de invalidade parcial do parágrafo único do art. 13, mantendo-se incólume o “caput” do art. 14 e o próprio “caput” do art. 13. A tal solução pode-se chegar pela aplicação do segundo dos três citados critérios, conjuntamente com a aplicação da totalidade do ordenamento jurídico.

Realmente, não houvesse a Lei Complementar n. 104, e se no ordenamento jurídico houvesse apenas os referidos dispositivos da Medida Provisória n. 66 trazidos pelo mesmo diploma legal, e se não houvesse outras normas no ordenamento que pudessem afastar um deles, a única solução seria declarar a inexistência de norma em virtude da invalidade deles, derivada da sua total e insanável antinomia.

(31)

Contudo, havendo no ordenamento jurídico uma norma hierarquicamente superior que invalide um dos dispositivos antinômicos, e o outro sendo válido perante essa mesma norma e a totalidade do ordenamento jurídico, aquele perde eficácia por sua invalidade, e, por consequência, desaparece a antinomia, ficando incólume este último.

É isto que resulta da confrontação do parágrafo único do art. 13 com a Lei Complementar n. 104.

Além disso, remansado entendimento doutrinário e jurisprudencial sempre prelecionou que os parágrafos de um artigo são subordinados ao respectivo “caput”, como normas complementares à norma deste, ou como exceções à mesma. 22

Esse entendimento hoje está transformado em lei, pois a Lei Complementar n. 95, de 26.2.1998, editada para dar atendimento ao parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e que disciplina a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis, dispõe no seu art. 11, inciso III, letra “c”, que

“para obtenção de ordem lógica”, o legislador deve “expressar por meio de

22 Assim, por exemplo, o Parecer n. SR-70, de 6.10.1988, do Consultor Geral da República (DOU-I de 7.10.1988, p. 19675 e seg.), com fulcro da doutrina de Vicente Ráo, afirmou: “Sabemos que o parágrafo é, tecnicamente, o desdobramento do enunciado principal, com a finalidade de ordená-lo inteligentemente ou excepcionar a disposição principal. Ordenando ou excepcionando, sempre se refere ao ‘caput’: ‘... em sentido técnico-legislativo indica a disposição secundária de um artigo, ou texto de lei, que, de qualquer modo,, completa ou altera a disposição principal, a que se subordina.

Comumente, o conteúdo do parágrafo deve ligar-se e sujeitar-se à prescrição contida na disposição principal, como o particular ao geral. Também usa o legislador, com freqüência, dispor a matéria em sucessão lógica, unindo o sentido de cada parágrafo ao do parágrafo anterior e o de todos os parágrafos ao do texto principal do artigo.’ (Vicente Ráo, ‘O Direito e a Vida dos Direitos’, vol. I, p. 326)’”. O Supremo Tribunal Federal, Pleno, no mandado de injunção n. 60-3 (AgRg) , decidido em 12.9.1990, considerou caso concreto afirmando “o parágrafo estar jungido ao regime jurídico único de que cogita o

‘caput’” (DJU-I de 28.9.1990, p. 10222). O Ministro Moreira Alves, votando no recurso extraordinário n. 146615-4-PE, julgado em 6.4.1995 pelo Plenário do Supremo Tribunal, afirmou “que é princípio de hermenêutica jurídica que, quando os parágrafos, no tocante a hipóteses determinadas, as disciplinam diferentemente da regra geral contida no ‘caput’ do mesmo dispositivo, aqueles devem ser interpretados, sempre que possível, como exceções a este”.

(32)

Ora, no caso do parágrafo único do art. 13 da Medida Provisória n.

66, é possível que exprima complemento ou exceções à regra do “caput”, como ele efetivamente o faz, apenas com relação a dolo e fraude. Mas não é possível que o faça com relação à simulação, porque, quanto a este defeito do ato jurídico, o parágrafo está contrariando o que dispõe o “caput”, e não o complementando ou excepcionando.

Por conseguinte, havendo efetiva contradição interna na medida provisória, através da aplicação sistemática da legislação e especialmente considerada a Lei Complementar n. 104 resulta a invalidade do parágrafo único do art. 13, quando alude à “simulação”, e a validade do “caput” do art. 14, assim como, é claro, permanecendo válido o “caput” do art. 13 por sua adequação total ao que dispõe a lei complementar.

Em conclusão, afastada do parágrafo único do art. 13 a palavra

“simulação”, teremos o seguinte:

- os procedimentos para desconsideração dos efeitos tributários dos atos dissimulatórios da realidade serão os constantes da Medida Provisória n.

66, no que esta estará, quanto a este aspecto, inteiramente de acordo com a Lei Complementar n. 104;

- os atos dolosos ou em fraude à lei não serão submetidos aos procedimentos dessa lei complementar, mas a evasão construída por eles será combatida pelas anteriores normas do ordenamento jurídico, assim como a evasão decorrente de outras ilegalidades praticadas.

Ou seja, neste passo estarão inteiramente protegidos os direitos do fisco e, havendo dolo, fraude ou outra ilegalidade, o contribuinte estará afastado da vantagem que o parágrafo 2º do art. 17 lhe atribui nos casos de desconsideração por dissimulação, ou seja, a de poder se conformar com a

Referências

Documentos relacionados

Este relatório não pode ser reproduzido ou redistribuído para qualquer pessoa, no todo ou em parte, qualquer que seja o propósito, sem o prévio consenti- mento por escrito da XP