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“As diferenças entre os contratos de mútuo e de conta corrente, e suas influências perante a legislação do imposto sobre operações de crédito” – artigo para a Revista do IET n. 44, p. 9 (Síntese, 2022)

Autor: Ricardo Mariz de Oliveira

AS DIFERENÇAS ENTRE OS CONTRATOS DE MÚTUO E DE CONTA CORRENTE, E SUAS INFLUÊNCIAS PERANTE A LEGISLAÇÃO DO IMPOSTO SOBRE OPERAÇÕES DE CRÉDITO

SUMÁRIO

I – A norma de incidência, sua exegese e o alcance da sua abrangência.

II – Contrato de conta corrente, contrato de mútuo, suas funções características e suas distinções.

Considerações gerais – Causa dos contratos em geral e dos inominados em particular.

O contrato de conta corrente, e suas distinções em relação ao contrato de mútuo – A conta corrente meramente contábil.

Continuidade da distinção – nove razões tópicas.

Rápida exposição da visão administrativa sobre contas correntes.

III – Posição do Superior Tribunal de Justiça.

IV – Posição do Supremo Tribunal Federal.

V – Conclusão.

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RESUMO

O presente trabalho visa distinguir contratos de mútuo de contratos de conta corrente, para a correta interpretação e aplicação da norma de incidência do IOF prevista no art. 13 da Lei n. 9.779.

PALAVRAS-CHAVE:

Mútuo. Contrato de conta corrente. Operação de crédito.

ABSTRACT

This article aims to distinguish the loan agreements from the current account agreements, in order to correctly interpretate and enforce the legal rule for the IOF tax incidence foreseen by article 13 of Law n.

9.797.

KEY WORDS:

Loan. Current account agreement. Credit operation.

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I – A NORMA DE INCIDÊNCIA, SUA EXEGESE E O ALCANCE DA SUA ABRANGÊNCIA

O tema deste artigo vem sendo debatido em vários casos da jurisprudência, principalmente administrativa, ou seja, não representa novidade, mas continua atual e ainda requer considerações jurídicas relevantes.

Na origem dos embates que se travam, temos o art. 13 da Lei n. 9.779, de 19.1.1999, cuja redação é a seguinte:

“Art. 13. As operações de crédito correspondentes a mútuo de recursos financeiros entre pessoas jurídicas ou entre pessoa jurídica e pessoa física sujeitam-se à incidência do IOF segundo as mesmas normas aplicáveis às operações de financiamento e empréstimos praticadas pelas instituições financeiras.

§ 1º Considera-se ocorrido o fato gerador do IOF, na hipótese deste artigo, na data da concessão do crédito.

§ 2º Responsável pela cobrança e recolhimento do IOF de que trata este artigo é a pessoa jurídica que conceder o crédito.

§ 3º O imposto cobrado na hipótese deste artigo deverá ser recolhido até o terceiro dia útil da semana subsequente à da ocorrência do fato gerador.”

Os grifos colocados sobre o texto legal já visam destacar os aspectos essenciais da norma nele contida, facilitando sua exegese face à legislação do imposto sobre operações financeiras – IOF, na modalidade de operações de crédito.

Pelos dizeres da norma legal, com atenção para os destaques apostos, verifica-se que ela prevê a incidência do IOF:

- sobre operações de crédito que correspondam a mútuos de recursos financeiros, e não a quaisquer operações de créditos, nem a mútuos de outros bens fungíveis;

- sobre tais operações que sejam as realizadas entre quaisquer pessoas jurídicas e outras pessoas jurídicas ou pessoas físicas, o que se explica historicamente porque até então apenas as operações de créditos realizadas por instituições

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financeiras eram sujeitas ao imposto, e a elas há remissão na parte final do caput do artigo;

- mas não sobre operações entre tais pessoas não financeiras que não sejam estritamente de mútuos, pois, além de se referir a mútuos, a norma também alude a financiamentos e empréstimos concedidos por instituições financeiras, que são referidos por remissão para estender as mesmas normas às operações entre não financeiras.

Esta é uma interpretação correta, embora simples e direta da norma em questão, baseada primeiramente na letra do respectivo dispositivo legal, mas também no método histórico que demonstra a intenção da lei de alargar o campo de incidência para um tipo de negócio realizado fora do sistema financeiro, do mesmo modo que se amolda à interpretação sistemática, dado que outra norma também mandou aplicar a incidência sobre negócios de factoring ou faturização (Lei n. 9.532), os quais, segundo a legislação inicial, não se submetiam a esse tributo.

Fica esclarecido que não se pretende colocar em discussão a validade jurídica do art. 13 da Lei n. 9.779, pois o campo de incidência estabelecido pela Constituição Federal, art. 153, inciso V, é suficiente para abranger os negócios de mútuo fora do mercado financeiro, o mesmo acontecendo com o art. 63 do CTN, inciso I, que define o fato gerador do imposto, dizendo que é, “ quanto às operações de crédito, a sua efetivação pela entrega total ou parcial do montante ou do valor que constitua o objeto da obrigação, ou sua colocação à disposição do interessado”.

Ou seja, a despeito do caráter extrafiscal e regulatório dado ao IOF, as leis maiores não reduziram o seu campo de incidência, sendo a redução originalmente feita às instituições financeiras obra da lei ordinária, portanto, possível de ser modificada por outra ou outras leis ordinárias.

Destarte, é mais apropriado dizer que não se perquire aqui a constitucionalidade da norma, até porque ela está afetada ao Supremo Tribunal Federal através do Recurso Extraordinário n. 590.186 (Tema 104 de repercussão geral), porém também cabendo lembrar que, em situação semelhante (mas não igual), o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu em 16.6.2020 a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.763/DF no sentido de ser constitucional a incidência do IOF sobre operações de factoring fora do sistema financeiro, instituída pelo art. 58 da Lei n. 9.532.

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Destarte, até por questão de método, os presentes comentários partem da premissa de que não há inconstitucionalidade.

Assim, o que se perquire aqui é a extensão da norma contida no art. 13 da Lei n 9.779, o que deve ser feito através da sua exegese segundo os devidos métodos de hermenêutica.

Neste sentido, como a lei se refere a mútuo, não se prescinde do disposto no art. 109 do CTN, ou seja, “os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”.

O art. 109 do CTN, assim como o art. 110, não é uma regra determinante de critério de interpretação, pois é parte da estrutura do Sistema Tributário Nacional como norma definidora do próprio fato gerador, inclusive atendendo a uma das funções das leis complementares, prevista no inciso III, alínea “a” da Constituição, que é a de estabelecer normas gerais de direito tributário especificamente para, entre outras matérias, definir o fato gerador dos impostos previstos na Carta.

O art. 109, bem se sabe, atenta com perfeição para os objetos das normas jurídicas, segundo as divisões teóricas em que se categorizam, pois as relações jurídicas do mundo econômico são objeto do direito civil e de outras leis esparsas, e são tais relações, através dos atos e negócios jurídicos por elas regulados, que constituem as manifestações de capacidades contributivas necessárias a haver qualquer incidência tributária.

Destarte, o legislador do art. 109 teve a nítida percepção dessa realidade, e prescreveu a perfeita distinção dos campos de atuação do direito privado e do direito tributário, reservando para aquele, como já era sua vocação original, a função de regular atos e negócios jurídicos estabelecendo os respectivos efeitos para as respectivas partes, e deixando ao direito tributário reger as relações jurídicas tributárias advindas desses atos e negócios jurídicos e dos seus efeitos.

Em outras palavras, o direito privado se ocupa das funções econômicas e sociais dos atos e negócios jurídicos, com os respectivos efeitos no âmbito das relações pessoais das partes envolvidas, ao passo que, como esses efeitos são de interesse para o

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direito tributário quando tenham conteúdo econômico, é este último que trata das respectivas consequências nas relações entre as partes e o Poder Público detentor de cada competência tributária. Dizendo de outro modo, uma norma tributária não atribui direito e obrigação entre duas pessoas quaisquer, porque isto é feito por alguma norma de direito privado, mas a norma de direito tributário atribui direito ao Poder Público e obrigação a uma pessoa que é parte numa relação de direito privado.

Com isso, o CTN não apenas cumpriu sua função de lei complementar neste específico aspecto, mas também conservou a uniformidade e a harmonia do direito positivo em seu todo, evitando noções diferenciadas e até divergentes, que não contribuiriam para a segurança jurídica.

Como consequência, os atos e negócios jurídicos são para o direito tributário o que são segundo o direito privado, e isto é confirmado pelo art. 116 do mesmo código ao dividir os atos geradores em situações de fato (inciso I) e situações jurídicas (inciso II), e determinado que, quando o fato gerador for situação jurídica, considera-se ocorrido “desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável”. Quer dizer, se a hipótese de incidência da norma tributária for um ato ou negócio jurídico (situação jurídica), o fato gerador somente pode ser considerado ocorrido quando houver essa situação jurídica constituída conforme o direito que lhe for aplicável, que é o direito privado.

Assim, no caso do art. 13 da Lei n. 9.779, somente há fato gerador quando houver mútuo, segundo o direito privado, ou seja, quando houver empréstimo de coisa fungível (no caso, recursos financeiros) com a obrigação de o mutuário restituir ao mutuante o mesmo que dele recebeu, em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade (art. 586 do Código Civil), considerando-se definitivamente constituída essa situação jurídica mediante a entrega da coisa ao mutuário, podendo a entrega ser virtual, isto é, por colocação à sua disposição.

Há um detalhe confirmador do que vem sendo exposto: no direito civil o mútuo não existe enquanto não houver a entrega do bem mutuado, tanto quanto na compra e venda ela não existe antes da entrega da coisa. Pode haver contrato de mútuo ou de compra e venda, o qual estabeleça obrigações a serem cumpridas pelas partes, mas o negócio não se finaliza sem a entrega do objeto do contrato. Daí porque o art. 63 do CTN, no seu inciso I, especifica que o fato gerador do IOF-crédito é a efetivação da

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operação pela entrega total ou parcial do montante ou do valor que constitua o objeto da obrigação, ou sua colocação à disposição do interessado”.

Vale acrescentar que as disposições dos art. 109 e 116 não impedem que a lei tributária dê para certo ato ou negócio jurídico o mesmo tratamento tributário que seja fixado para outro ato ou negócio jurídico, desde que respeitada a respectiva competência tributária, isto por força da norma explicitadora do art. 110.

Note-se, contudo, que, quando existe uma norma com esta característica, alguns dizem tratar-se de definição do ato ou negócio jurídico dada pela lei fiscal, mas efetivamente se trata apenas de equiparação, exclusivamente para efeitos tributários, entre atos ou negócios jurídicos distintos, e não de equiparação entre eles para outros efeitos, e muito menos de a lei tributária disciplinar tais atos ou negócios entre as partes. Obviamente, para haver tal equiparação, ela tem que ser expressa, por elementar aplicação do princípio da legalidade.

Na verdade, de certo modo é isto o que ocorre no art. 13 da Lei n. 9.779, o qual atribui aos mútuos o mesmo tratamento tributário previsto nas operações de crédito realizadas por instituições financeiras. Mas ele se limitou especificamente a mútuo, e não às operações de operações de crédito em geral realizadas por pessoas não financeiras.

Assim, por exemplo, o art. 13 da Lei n. 9.779 poderia ter dirigido a sua determinação aos mútuos e a outros negócios distintos, mas com efeitos iguais ou semelhantes, como, por exemplo, os comodatos, mas não é o que foi colocado no ordenamento.

Do mesmo modo, o art. 13 poderia ter feito alusão, na sua hipótese de incidência, a operações de crédito em geral, e não apenas a empréstimos, mas fê-la especificamente para mútuos, fixando-se, portanto, neste tipo contratual definido segundo o art. 586 da lei civil. Segundo ALBERTO XAVIER, trata-se de fato gerador estrutural, quer dizer, correspondente a uma estrutura jurídica (inciso II do art. 116 do CTN), ao contrário de outros que ele denominava fatos geradores funcionais, que são independentes de ato ou negócio jurídico, mas dos efeitos econômicos segundo o inciso I do art. 116.1

1 XAVIER, Alberto. Revista da ABDF n. 5. Depois: Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva. São Paulo:

2001, Dialética, várias partes.

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Uma última consideração em torno do art. 13 em comento. As normas de incidência aplicáveis às operações de crédito concedido por instituições financeiras são mais abrangentes, pois não se limitam apenas aos mútuos, muito embora a maioria dessas operações tenha a natureza jurídica de mútuo, ainda que sejam realizadas sob títulos distintos, características específicas e títulos formais próprios. Não obstante, a regra do art. 13, adota o tratamento que a legislação atribui a tais operações das instituições financeiras exclusivamente para os negócios jurídicos de mútuo.

Por fim, é cabível uma referência ao art. 118 do CTN, dado que ele é comumente lembrado em situações nas quais se trata dos aspectos legais de atos e negócios jurídicos envolvidos na definição do fato gerador, isto porque o inciso I diz que a definição do fato gerador deve ser interpretada independentemente da validade jurídica dos atos praticados, da sua natureza ou dos seus efeitos. Todavia, não é possível esquecer que o inciso II do art. 118 também determina que a definição do fato gerador deve ser interpretada com abstração dos efeitos dos fatos ocorridos. Assim, é necessário compreender a norma do art. 118 em sintonia com a do art. 116, inclusive para não haver contrariedade entre ambas as normas (antinomia impossível), ou seja, se o fato gerador for uma situação jurídica (inciso II do art. 116), esta precisa estar definitivamente constituída, o que exclui, para ele, a ingerência do inciso I do art. 118, e, ao contrário, o inciso II é inaplicável aos fatos geradores que sejam situações de fato (inciso I do art. 116).

Neste quadro é que se apresenta a discussão relativa a contratos de conta corrente, pois são muitas as vezes em que eles são confundidos com mútuos.

II – CONTRATO DE CONTA CORRENTE, CONTRATO DE MÚTUO, SUAS FUNÇÕES CARACTERÍSTICAS E SUAS DISTINÇÕES

Considerações gerais – Causa dos contratos em geral e dos inominados em particular

Para se identificar a natureza jurídica de um contrato é necessário conhecer a sua causa substancial, isto é, a função que a lei lhe outorga.

Se isto é relativamente fácil nos contratos tipificados, pode ser mais trabalhoso quanto aos não tipificados, para os quais é necessário definir suas

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características básicas através das suas cláusulas, eis que lhes falta regulação específica pela lei, motivo pelo qual é denominado “contrato atípico” ou “contrato inominado”.

Nesta circunstância, a validade dessa espécie contratual decorre da liberdade de contratar, que advém do disposto no inciso II do art. 5º da Constituição Federal e está regulada pelo art. 421 do Código Civil de 2002, além do art. 425, segundo o qual “é lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código”. Destaque-se que a liberdade de contratar está referida no art. 421 sob condição limitativa, pois esse dispositivo preceitua que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

Em virtude dessa prescrição do código, o conceito de “função social do contrato” precisa ser perfeitamente entendido, para que não se confunda com uma imaginária preocupação com deveres sociais difusos e externos ao contrato. Veremos que o código também se refere à função econômica ou social de direitos em geral, e se fala em função econômico-social ou em função prática, mas são termos variados sempre para se referir à função ou à finalidade para o qual o contrato existe.

Outrossim, a função social do contrato não se confunde com interesses difusos sociais ou públicos que extravasam os interesses individuais das partes contratantes, pois diz respeito aos estritos limites das partes, em virtude do que a função social é entendida como o escopo que é próprio a cada tipo contratual2.

Tal limitação tem sua razão de ser na necessidade de o contrato não ser desvirtuado em prejuízo de uma das partes, geralmente a mais fraca na relação negocial. Neste sentido, e em proteção da parte menos poderosa, as chamadas disposições de ordem pública – isto é, aquelas que estão previstas em lei e que não podem ser contrariadas por cláusulas contratuais – atendem à função social do contrato, e a sua eventual violação representa exercício da liberdade de contratar em excesso ao seu limite. Neste sentido, veja-se o art. 122 e o parágrafo único do art. 2.065.

2 Com efeito, a função social do direito ou do contrato não se confunde com função social da propriedade, tratada no art. 1.228 do Código Civil, nem com benemerência ou solidariedade social. O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA esclareceu o que seja a função social do contrato ao decidir o Recurso Especial n. 803.481-GO (3ª Turma, julg.

28.6.2005) nos seguintes termos precisos: “A função social infligida ao contrato não pode desconsiderar seu papel primário e natural, que é o econômico. Este não pode ser ignorado, a pretexto de cumprir-se uma atividade beneficente.

Ao contrato incumbe uma função social, mas não de assistência social. Por mais que o indivíduo mereça tal assistência, não será no contrato que se encontrará remédio para tal carência. O instituto é econômico e tem fins econômicos a realizar, que não podem ser postos de lado pela lei e muito menos pelo seu aplicador. A função social não se apresenta como objetivo do contrato, mas sim como limite da liberdade dos contratantes em promover a circulação de riquezas”.

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Não obstante, a “função social do contrato” não pode ser definida apenas pela observância dos preceitos de ordem pública, embora estes visem assegurar aquela.

Realmente, o conceito é mais amplo, de modo que não apenas disposições de ordem pública estão envolvidas na “função social do contrato”, mas também o necessário respeito à sua finalidade, ou melhor, a necessária vinculação do seu uso ao fim que lhe é próprio, sob pena de incidir o art. 185 da lei civil.

ORLANDO GOMES já prelecionava na sua clássica obra “Contratos”:3

“A vida econômica desdobra-se através de imensa rede dos contratos que a ordem jurídica oferece aos sujeitos de direito para que regulem com segurança seus interesses. Todo contrato tem uma função econômica, que é, afinal, segundo recente corrente doutrinária, sua causa.

...

Tamanha é a importância dos contratos como fato econômico, que sua disciplina jurídica constitui a estereotipação do regime a que se subordina a economia de qualquer comunidade.

A função econômico-social do contrato foi reconhecida, ultimamente, como a razão determinante de sua tutela jurídica. Sustenta-se que o Direito intervém, tutelando determinado contrato, devido à sua função econômico-social. Em consequência, os contratos que regulam interesses sem utilidade social, fúteis ou improdutivos, não merecem proteção jurídica. Só merecem-na os que têm função econômico-social reconhecidamente útil. A teoria foi consagrada no Código Civil italiano, conquanto encontre opositores.

Na afirmação de que o contrato exerce uma função social, o que se quer significar, em suma, é que deve ser socialmente útil, de modo que haja interesse público na sua tutela. Entretanto, o reconhecimento de que todo contrato tem função econômico-social é feito por alguns de modo diverso, os quais destacam a ‘função típica de cada contrato’, isto é, a função que serve para ‘determinar o tipo ou os caracteres típicos de cada contrato’. A essa função típica dos contratos liga-se a moderna doutrina objetiva da causa.”

O MINISTRO MOREIRA ALVES também explica que a causa é a função prática da lei quando cria o negócio jurídico, ou seja, a função econômico-social do

3 GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 10ª ed., p. 22 e 24.

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contrato quando criado, tal como, por exemplo, na compra e venda a causa é a transferência da propriedade pelo pagamento do preço.4

Em outra obra, o mesmo jurista disse que “a causa de um negócio jurídico difere dos motivos que levaram as partes a realizá-lo. Com efeito, a causa se determina objetivamente (é a função econômico-social que o direito objetivo atribui a determinado negócio jurídico); já o motivo se apura subjetivamente (diz respeito aos fatos que induzem as partes a realizar o negócio jurídico). No contrato de compra e venda, a causa é a permuta entre a coisa e preço (essa é a função econômico-social que lhe atribui o direito objetivo; essa é a finalidade prática a que visam, necessária e objetivamente, quaisquer que sejam os vendedores e quaisquer que sejam os compradores); os motivos podem ser infinitos (assim, por exemplo, alguém pode comprar uma coisa para presentear com ela um amigo). ... A distinção entre causa e motivo é importante porque, em regra, a ordem jurídica não leva em consideração o último”.5

A respeito dessa diferença entre causa jurídica e motivo, citando e transcrevendo Moreira Alves, FLÁVIO TUDISCO acrescenta: “Assim, enquanto a causa é a função típica de um dado negócio, o motivo é a razão metajurídica que induziu à sua celebração”.6

Dado que a causa é independe dos motivos das partes, ou de uma delas, para a concretização do negócio jurídico, ela é sempre imutável, pois deriva da disciplina jurídica advinda da lei para o negócio realizado como ato jurídico perfeito.

Abordando as repercussões desse conceito no âmbito do direito tributário, HELENO TAVEIRA TÔRRES segue na mesma linha: “Definido o contrato como negócio jurídico bilateral e consensual, pelo qual se formaliza o acordo de vontades de duas ou mais pessoas, temos que a conjugação de interesses conflui para um único ponto

4 ALVES, José Carlos Moreira. As Figuras Correlatas da Elisão Fiscal. Belo Horizonte: Revista Fórum de Direito Tributário, n. 1, p. 11. MOREIRA ALVES tem tratado disso em várias oportunidades, sempre sob o mesmo conceito básico, embora sob enfoques variados. Ora referindo-se à causa como “essência do negócio jurídico, que, por isso mesmo, é a função econômico-social do negócio para a qual a lei criou aquele negócio jurídico” (São Paulo: Pesquisas Tributárias – Nova Série – 10”, Centro de Extensão Universitária/ Revista dos Tribunais, 2003, p. 20), ora aludindo a ela como “a finalidade econômico-prática a que visa a lei quando cria um determinado negócio jurídico” (Anais do Seminário Internacional sobre a Elisão Fiscal. Brasília: ESAF, 2001, p. 630, passagem esta que também consta na Revista Fórum de Direito Tributário n. 1, p. 12).

5 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 13ª ed., , volume I, p. 151.

6 TUDISCO, Flávio. A Causa dos Negócios Jurídicos, a Prevalência da Substância sobre a Forma e o Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Direito Tributário Atual – Volume 22, Instituto Brasileiro de Direito Tributário/ Dialética, p.

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(consenso), consolidando-se na causa, que é a função prática que o contrato tende a efetivar”. 7

Outrossim, a causa pode ser equiparada à “substância” do negócio jurídico, que é a dicção dos art. 167 e 173, isto porque da substância da relação jurídica promanam os efeitos que a lei lhe atribui. Por isso mesmo, HELENO TAVEIRA TÔRRES, tratando do processo de interpretação dos negócios jurídicos, destaca que “será esta interpretação do texto e do fato negocial que permitirá ao intérprete da norma tributária conhecer, juridicamente, a substância do negócio jurídico e sua compatibilidade com a forma adotada, sem qualquer recurso à ‘interpretação econômica’ e quejandos, laborando exclusivamente com categorias jurídicas, visando a identificar a efetividade da demonstração de capacidade contributiva”.8

Em resumo, pode-se identificar a causa como sendo constituída pelos efeitos que a lei atribui ao negócio, ou melhor, pela prestação de uma das partes e pela contraprestação da outra, segundo a norma jurídica que o rege. Trata-se de faceta ou manifestação da noção de causa e efeito.

Todavia, a causa do negócio jurídico, que é de origem legal quanto aos que a lei tipifica, fica como que “esmaecida” nos contratos atípicos, em virtude da sua própria condição de negócios para os quais a lei não contém disposições próprias.

Apesar disso, sua importância para as relações econômicas não é menor do que a dos contratos típicos, conforme aponta o mesmo ORLANDO GOMES após tratar de alguns tipos contratuais e concluir que “assim por diante, cada qual exercendo função econômica específica”. Segundo ele: “A fim de que a vida econômica se desenrole mediante esses instrumentos jurídicos, não bastam, contudo, os definidos e disciplinados na lei. Admitem-se arranjos e combinações, dignos de proteção, ampliando-se, assim, imensuravelmente, a esfera dos contratos, com o acréscimo dos chamados contratos atípicos”.9

Assim, se não se encontra a causa jurídica em disciplina legal própria e específica para o contrato, vai se percebê-la (ou estabelecê-la) pelas cláusulas e condições que as partes inseriram no contrato atípico. Nestes casos, a coerência entre

7 TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Tributário e Direito Privado. São Paulo: 2003, Revista dos Tribunais, p. 141

8 Ob. cit., p. 144.

9 Ob. cit., p. 23.

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as cláusulas e condições e a sua fidelidade com as relações efetivas que elas regulam estabelece a substância do contrato e permite distingui-lo de outros. Em outras palavras, quando se trata de um contrato atípico, porque não há regulação legal para ele, a sua função econômico-social decorre do fim prático visado pelas partes, embora possa haver disposições legais de caráter geral que devam ser obedecidas também por ele.

Assim sendo, a falta de regras legais para o contrato atípico leva a que se determine a sua função social, o fim que lhe deve ser próprio, ou ainda, a atribuição de direitos e deveres, de prestações e contraprestações, exclusivamente com base nas respectivas cláusulas.

Por outro lado, um contrato será efetivamente inominado quando suas cláusulas estabelecerem prestações e contraprestações que não coincidam com as que são próprias de algum contrato nominado, pois, se houver tal coincidência, tratar-se-á desse contrato típico, nominado e regulado pelas normas legais respectivas.

Portanto, da perfeita definição de uma determinada espécie contratual atípica (por exemplo, contrato de conta corrente) depende poder ela ser distinguida de outras espécies conhecidas, principalmente das disciplinadas expressamente pela lei (como o contrato de mútuo e todos os demais), sob pena de se tratar de uma simples denominação dada ao negócio jurídico, mas que não seja condizente com sua efetiva estrutura e com a sua finalidade própria.

O contrato de conta corrente, e suas distinções em relação ao contrato de mútuo – A conta corrente meramente contábil

É hora de especificar o que se entende por contrato de conta corrente, já lançando sementes para a sua distinção em relação ao contrato de mútuo, cuja distinção é necessária não apenas pelas sensíveis diferenças que um e outro desses contratos acarretam na vida privada das respectivas partes, como também em face das diversas incidências tributárias que podem acarretar.

Isto porque, se o contrato for de mútuo, aquele que recebe a coisa mutuada deve devolvê-la no prazo pactuado ou legal, em coisas do mesmo gênero, da mesma qualidade e da mesma quantidade, mas, se o contrato for de conta corrente, não existe essa obrigação, nem há direito à devolução de valor que tenha sido entregue à outra

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parte, pois outras são as expectativas das partes e outros os seus objetivos, ou, em novas palavras, é outra a sua função econômico-social.

É por isso que da identificação contratual derivam as consequências tributárias próprias a ela, como se nota pelos art. 109, 110 e 116 do CTN, entre outros, e pelo princípio constitucional da legalidade.

Mais, como o princípio da legalidade se desdobra na exigência da tipicidade, somente ocorre o fato gerador quando a situação fática real for absolutamente idêntica à hipótese descrita na lei tributária. Quando ocorre essa coincidência entre o fato ou situação real e o fato ou situação descrita típica e hipoteticamente na lei tributária, dá- se o fenômeno jurídico da subsunção do fato ou situação à norma, desencadeando a incidência tributária, mas quando não há essa coincidência a norma não atua sobre o fato ou situação que se revele ser diferente da hipótese legal.

É preciso destacar que estamos tratando de um negócio jurídico – o contrato de conta corrente –, e não de uma simples conta corrente contábil, pois de uma possível confusão podem decorrer indevidas consequências, como veremos.

Portanto, é indispensável começar dizendo que o contrato de conta corrente não se confunde com conta corrente contábil, a qual pode existir em incontáveis situações, inclusive na desse contrato, porque ele demanda a existência de controles contábeis que somente podem ser feitos em contas correntes. Entretanto, contrato de conta corrente constitui-se em modalidade de negócio jurídico, e o controle contábil dos seus movimentos é feito numa conta da contabilidade elaborada pelo sistema de partidas dobradas, ou, por outras palavras, o contrato de conta corrente serve-se das contas correntes contábeis para o assentamento dos seus movimentos. Em outros dizeres, o contrato de conta corrente é um negócio jurídico que se vale de contas correntes contábeis como meios de controle e execução, mas não há confusão conceitual entre o contrato e os lançamentos contábeis, assim como ocorre com a contabilização de quaisquer outros contratos.

Pois bem, a primeira preocupação para as partes que resolvam pactuar um contrato atípico, como o de conta corrente, é adotá-lo dentro da sua conformação reconhecida doutrinária e jurisprudencialmente (quando houver esse reconhecimento), e sempre sem exceder seus respectivos limites perante a sua função

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social, inclusive respeitando a lei, disposições de ordem pública e os bons costumes (art. 122 e 421 do Código Civil).

À luz das observações já feitas, vejamos, pois, as características dos contratos de mútuo e de conta corrente que, por suas naturezas jurídicas distintas, não podem ser entendidos como semelhantes ou análogos, nem como iguais ou idênticos..

O mútuo é contrato tipificado pelo Código Civil, regulado pelos artigos 586 a 592, e consiste no empréstimo de bens fungíveis, como o dinheiro, para serem restituídos ao mutuante na mesma quantidade, gênero e qualidade. Por meio do contrato de mútuo, a propriedade dos bens é transferida ao mutuário. Na verdade, o mútuo, embora contratado, somente se aperfeiçoa se houver a efetiva entrega dos bens mutuados, sendo por isso classificado como contrato real. Após a transferência dos bens, o mutuário pode utilizá-los como lhe aprouver, mas também passa a poder sofrer danos que deles derivem (art. 587, parte final). Com efeito, no caso de empréstimo de quantias monetárias, para o mutuário existem riscos como o furto, o roubo, a apreensão etc. Porém, independentemente de riscos fortuitos ou de força maior, o mutuário deve devolver a quantia emprestada no prazo contratualmente estipulado.

Outrossim, sobre o empréstimo podem incidir juros, os quais, quando o mútuo tenha fins econômicos, presumem-se devidos, e também podem ser objeto de fixação contratual, desde que no limite legal (atualmente SELIC), além de ser permitida a capitalização anual. Isto é assim porque no contrato de mútuo o mutante emprega seu capital em troca de uma remuneração econômica, de modo que a incidência de juros não é anômala. Daí a presunção legal da sua incidência e, para não haver juros, ser necessária expressa cláusula no contrato.

O contrato de conta corrente, por sua vez, não envolve necessariamente a transferência de bens, que, como dito, é uma das características centrais do mútuo.

Nesse contrato, há um acordo no qual as partes abrem mão de receber e pagar valores entre si devidos por decorrência de outros negócios jurídicos, e se comprometem a registrá-los contabilmente como débitos e créditos não exigíveis de pronto, mas apenas por diferença e encontro de contas no vencimento do contrato ou em datas prefixadas.

Em virtude destas características fundamentais, o contrato de conta corrente é classificado como contrato consensual, e não real.

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Vale acrescentar que o contrato de conta corrente não tem um fim que, para se realizar, seja independente de outros negócios, como ocorre com o mútuo.

Realmente, no mútuo o objeto contratual é o empréstimo de coisas fungíveis, e todos os direitos e obrigações dele derivados giram em torno desse objeto. Já no contrato de conta corrente, o objeto é constituído pelo pacto de não cobrança individual de direitos, substituída por lançamentos em conta corrente para recíprocos encontros de contas, resultando na não exigibilidade imediata de quantias devidas de parte a parte por decorrência de outros contratos, ou mesmo da lei, podendo-se, pois, dizer que o contrato de conta corrente é um contrato cujo objeto são as relações jurídicas derivadas de outros contratos externos a ele, ou de disposições legais.

Todavia, o contrato de conta corrente, em si, não é propriamente ligado a outros contratos, nem forma com eles o que se denomina “atos ou negócios jurídicos coligados”, isto é, contratos que somente atingem determinado objetivo quando executados em conjunto com outros contratos. Embora possa haver coligação do contrato de conta corrente com outro contrato ou outros contratos (tal como pode ocorrer com qualquer espécie de contrato), tal coligação não é da sua essência, mas, diferentemente de quase todos os demais contratos, ele somente tem aplicação se houver outras relações contratuais ou legais entre as partes que o pactuam, porque são os débitos e créditos destas outras relações jurídicas que se constituem no objeto do contrato de conta corrente e recebem o tratamento por ele determinado.

A observação atenta destas considerações vai revelar que cada movimento derivado do contrato de conta corrente – portanto, cada lançamento contábil de débito e crédito – na verdade é movimento que, precedente e originariamente, deriva de uma outra espécie de relação jurídica. É assim que se forma a conta corrente a que o contrato alude e que é por ele regida.

Quando a conta for encerrada no vencimento estabelecido contratualmente, apura-se se existe algum saldo exigível em favor de alguma das partes. Se as contas, por hipótese, estiverem zeradas, processa-se a quitação recíproca, mas, se, ao contrário, uma das partes for devedora da outra, só então ocorre o nascimento de uma dívida – correspondente à diferença líquida entre as contas – a ser saldada em prazo e condições que as partes tiverem pactuado.

Assim, o objeto do contrato de conta corrente (sua causa ou função prática) é estabelecer entre as partes a obrigação de não se cobrarem e de lançarem e anotarem

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em conta corrente os créditos e débitos de uma e da outra, e o seu efeito é o encerramento da conta apenas no vencimento, pelo respectivo saldo líquido. Em outras palavras, estes são os efeitos do contrato de conta corrente. Sendo assim, a transferência da propriedade de dinheiro é eventual, podendo ocorrer ou não, não sendo elemento essencial dessa forma contratual, como o é no mútuo.

Em outras palavras, a simples anotação contábil de débitos e créditos recíprocos não gera relação jurídica creditícia, como a que existe no caso do mútuo, dado que, como já dito, nenhuma das partes pode cobrar qualquer quantia da outra enquanto a conta não for encerrada no seu vencimento e enquanto, por meio de balanço no vencimento, não for apurada a existência de saldo a favor de uma delas, que, somente então, passa à condição de credora da outra.

Por isso, somente no vencimento contratual poderá nascer uma nova relação jurídica, esta sim de natureza creditória, na qual será apurada a forma de pagamento da quantia eventualmente devida, a incidência de juros, o fornecimento de garantias etc., tudo segundo as disposições do respectivo contrato.

Assim, a liquidação do saldo da conta corrente não precisa ser feita necessariamente no termo final do contrato de conta corrente, sendo normal e não incompatível com ele a fixação, nesse próprio contrato, de um prazo razoável para se proceder à conciliação dos lançamentos feitos por ambas as partes e para o respectivo pagamento. O que pode ocorrer é, após tais providências as partes pactuarem um novo prazo de pagamento, hipótese em que haveria uma nova relação jurídica possivelmente caracterizada como mútuo.

Cabe também repetir que, embora tolerada pela doutrina e mesmo não havendo norma legal proibitiva, na pureza desse contrato não há a incidência de juros sobre os valores registrados a débito e a crédito da conta corrente contratual, já que os correspondentes valores, por força do contrato, não são exigíveis antes do fechamento da conta.

Isto é assim porque, ao contrário do contrato de mútuo, em que uma parte emprega seu capital em troca de juros, no contrato de conta corrente o que as partes fazem é promover encontros de contas entre seus débitos e créditos, não havendo uma razão para cobrança de juros.

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Evidentemente que a inserção de cláusula de juros é feita nos casos em que, dependendo das características próprias de cada um, o acréscimo de juros seja necessário por razões externas ao contrato, ou seja medida necessária a manter o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, tanto quanto uma cláusula de paridade ou atualização cambial pode ser uma necessidade em contratos entre pessoas de diferentes países. Nem por isso, contudo, o contrato de conta corrente perde sua natureza jurídica, como também ocorre com outros contratos de outras espécies.

Todavia, e ainda por falta de norma legal, somente haverá incidência de juros no contrato de conta corrente se houver cláusula expressa, ao contrário do contrato de mútuo destinado a fins econômicos, no qual os juros são presumidos (art.

591 do Código Civil).

Outro elemento do contrato de conta corrente, que o distancia do contrato de mútuo, é que, no primeiro, as partes, no curso do contrato, têm posições idênticas em relação aos direitos e deveres contratuais: ambas devem lançar nas respectivas escriturações contábeis os valores econômicos das operações recíprocas, e ambas têm o direito de exigir que a outra parte aja da mesma forma, além de que ambas não podem se cobrar pagamentos antes do encerramento da conta. Já no mútuo não existe essa reciprocidade: uma parte tem o dever de entregar o dinheiro e o direito de reavê- lo no prazo estipulado, e a outra tem o direito de receber a quantia e o dever de devolvê-la nos termos contratualmente previstos.

Por fim, é consequência da natureza do contrato de conta corrente que os assentamentos contábeis feitos pela parte que ao final apurar saldo a seu favor comprovam o seu direito e permitem a ela exigi-lo no vencimento, nos termos e nas condições do contrato. Por isso mesmo, embora não absolutamente necessária, é comum a inclusão, no contrato, de cláusula pela qual as partes reconheçam que o extrato da conta corrente, associado ao instrumento de contrato, possui natureza de título executivo extrajudicial, nos termos do art. 784 do Código de Processo Civil.

Tal característica e tal função do contrato de conta corrente é que não permitem que ele e a conta corrente por ele dirigida sejam confundidos com a simples conta corrente contábil.

Realmente, como se sabe, nas práticas contábeis direcionadas pelo sistema de partidas dobradas, os assentamentos escriturais relativos aos movimentos

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econômicos e financeiros entre duas pessoas podem ser feitos em conta corrente, na qual sejam lançados os respectivos débitos e créditos. Mas tal procedimento não significa haver um contrato de conta corrente, pois se trata apenas de uma prática contábil interna de uma delas, ou de ambas, independentemente de obrigação de assim agirem, e sem geração de direitos e obrigações decorrentes desse procedimento escritural, porque seus direitos e obrigações são regidos exclusivamente pelas normas de cada uma das respectivas relações jurídicas geradoras daqueles movimentos econômicos e financeiros.

No contrato de conta corrente, embora também haja assentamentos contábeis por aquela mesma forma e relativos a outros negócios, são eles precedidos e são regulados por um negócio jurídico a que se dá a denominação de “contrato de conta corrente”, cujo único objeto é as partes não se cobrarem por um determinado tempo, relativamente aos seus direitos derivados dessas outras relações jurídicas, e apenas uma delas cobrar da outra o saldo líquido apurado ao final do tempo aprazado.

Portanto, do contrato de conta corrente nascem direitos e obrigações novos e distintos daqueles derivados das relações jurídicas de onde advêm os débitos e créditos a serem registrados em conta corrente, sendo esse registro obrigatório para ambas as partes porque, por seu saldo final, é que haverá direito de cobrança.10

Em suma, o contrato de conta corrente é um negócio jurídico específico, com objeto próprio e disciplina específica prevista no respectivo contrato. E trata-se de um contrato ou negócio jurídico nitidamente inconfundível com o de mútuo.

A doutrina privatista não destoa do que foi exposto até aqui a respeito do contrato de conta corrente. Pelo contrário, o que foi dito tem definitivo lastro em trabalhos doutrinários que remontam a longo passado e se estendem até os nossos tempos. Não é o caso de estender citações incompatíveis com a finalidade deste trabalho, mas pode-se citar dois autores, um do passado recente, que tem peso específico, e outro bem mais antigo, mas que se impõe por sua autoridade.

O primeiro deles, do nosso tempo, é ANTONIO DA SILVA CABRAL, jurista que integrou os quadros da Secretaria da Receita Federal, inclusive por vários anos

10 Sobre a escrituração contábil do contrato de conta corrente, é feita como qualquer conta corrente. Todavia, na escrituração contábil do contrato de conta corrente impõe-se que seja feita à parte de outras contas correntes meramente contábeis, assim como se impõe a separação do mesmo em relação a outros débitos e créditos das duas partes envolvidas no contrato, mas que não estejam abrangidos por ele, segundo suas disposições quanto ao seu objeto.

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como Presidente da 3ª Câmara do 1º Conselho de Contribuintes e, como tal, membro da Câmara Superior de Recursos Fiscais. Sua atuação nesses órgãos notabilizou-se por seu rigor técnico, jamais injustiça, e por sua cultura jurídica. Pois bem, em trabalho doutrinário de 1990 a propósito do art. 21 do Decreto-lei n. 2065/8311, baseando-se na doutrina de PONTES DE MIRANDA, ele apresentou extensa lição sobre o tema, contrapondo o contrato de mútuo, objeto dessa norma, a outros contratos, inclusive ao contrato de conta corrente. Especificamente sobre este, ele disse:

“5.6 – MÚTUO E CONTRATO DE CONTA CORRENTE

PONTES DE MIRANDA (Tratado, cit., LXII, pág. 120) forneceu a seguinte definição:

‘Contrato de conta corrente é o contrato pelo qual os figurantes se vinculam a que se lancem e se anotem, em conta, os créditos e débitos de cada um para com o outro, só se podendo exigir o saldo ao se fechar a conta.’

Pela definição logo se percebe não existir possibilidade de se confundir mútuo com contrato de conta corrente, como também não existe qualquer identidade entre mútuo e abertura de crédito. Estamos diante de três espécies de acordos que de maneira alguma se confundem, embora, na contabilidade, o contrato de abertura de crédito se exteriorize mediante conta corrente.

O contrato de conta corrente não envolve em si nenhum acordo para empréstimo de dinheiro. A promessa, neste caso, está, apenas, em se escriturarem os créditos decorrentes de operações em que os contratantes sejam titulares. No contrato de conta corrente não se faz um mútuo nem se abre um crédito, mas se convenciona o que fazer com créditos passados, presentes e futuros. Nessa conta vão sendo lançados débitos e créditos que se excluem mutuamente e o saldo da conta só é exigível quando se dá o vencimento do contrato de conta corrente, embora, para efeitos fiscais e por força do princípio da competência de exercícios, se possa considerar o contrato vencido a cada fim de exercício social, sobretudo quando se convenciona a cobrança de juros e correção monetária sobre os débitos que realmente devam sofrer esses encargos.

Sempre, no entanto, convém ter em mente a regra geral, no sentido de que conta corrente, conforme o próprio nome indica, é uma conta que corre para um desfecho, assim como o rio que corre para desaguar no mar. Cito a lição de PONTES DE MIRANDA (op. cit., pág. 119):

11 CABRAL, Antonio da Silva. Negócios de Mútuo entre Empresas do Mesmo Grupo. São Paulo: Revista Direito Tributário Atual – Vol. 10, Instituto Brasileiro de Direito Tributário/ Resenha Tributária, p. 2855. O trecho transcrito é da p. 2913. As citações a Pontes de Miranda, aí contidas, são relativas ao seu clássico Tratado de Direito Privado.

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‘Do contrato de conta corrente não se irradiam relações jurídicas creditícias (que são relações jurídicas obrigatórias entre os figurantes), mas apenas o dever de lançar e anotar os créditos de um e de outro, e, para o outro figurante, o de ater-se a esses lançamentos e anotações.’

Mais adiante haveria de escrever:

‘Os negócios jurídicos de que resultam os créditos e os débitos são estranhos à conta corrente, que a eles apenas se refere, para os submeter à escrituração específica.’

Este é um aspecto para o qual tanto o Fisco quanto os contribuintes não vêm atentando, querendo aquele se computem juros e correção monetária sobre quantias escrituradas em conta corrente só porque estão em conta corrente, como se esta conta representasse um mútuo em si mesmo. Esquecem-se de que o importante é a análise do negócio jurídico que deu motivo ao lançamento em conta corrente.

É um erro, frequentemente encontrado na escrituração de empresas e em atos normativos do Fisco, encarar-se a conta corrente como se esta representasse uma dação recíproca de empréstimo, quando o importante seria analisarem-se os negócios jurídicos que motivaram os débitos ou créditos em conta corrente.

Nem há que se calcular correção monetária e juros sobre determinada quantia escriturada em conta corrente justamente porque, enquanto existir a conta corrente nenhum dos contratantes poderá exigir a obrigação do outro. Tal só ocorrerá quando a conta corrente for fechada. O que é exigível é, repita-se, o saldo da conta corrente.

O que domina, pois, o contrato de conta corrente é o princípio da reciprocidade: ao mesmo tempo em que se lança um crédito, tem-se que considerar o que a débito existe, de modo a sempre se apurar um saldo, não se podendo lançar uma quantia simplesmente como mútuo, sem se atentar para o fato de que essa conta supõe relação débito-crédito.

Além do mais, o contrato de conta corrente é consensual, enquanto o contrato de mútuo é real. Não há, pois, como se tomar um pelo outro.

Em homenagem à sabedoria do Mestre, transcrevo o que disse PONTES DE MIRANDA (Tratado de Direito Privado, 3ª. ed., 1984, vol. LXII, pág. 132):

‘MÚTUO E CONTRATO DE CONTA CORRENTE – O que mais caracteriza o contrato de conta corrente é que as prestações prometidas são atividades computísticas e contabilísticas. Não há mútuo, nem promessa de mútuo.

Quando se fecha a conta corrente ocorre o reconhecimento é que se estabelece nova relação jurídica, pois os créditos constantes dos saldos-expedientes, sobre os quais se pode convencionar fluírem juros, são créditos com pretensões

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paralisadas, por sua função meramente contábil. A falta de atenção de muitos juristas à exterioridade, em relação aos créditos entrados, do conteúdo e da função do contrato de conta corrente, levou ao desespero, a ponto de ter um jurista francês afirmado haver sujeito (ente moral) na conta corrente. Não há, tampouco, abertura recíproca de crédito, porque os créditos entrados ficam sem pretensão eficaz e sem ação eficaz, mesmo no que se refere aos saldos- expedientes.

Uma vez que o contrato de conta corrente torna inexigíveis os créditos entrados e os próprios saldos-expedientes, tem-se de reconhecer que ele, se não corta a pretensão e a ação, que deles se irradiam, as coarta – as paraliza – durante o curso da conta. Não se pode dizer que os saldo-expedientes são outros créditos, que se põem no lugar dos que foram computados, nem que há sucessivas compensações, porque a compensação é instituto jurídico, e os saldos expedientes, atos meramente instrumentais. Apenas atendem esses a atividades contabilísticas, mesmo quando se hajam de computar juros.’

É necessário, pois, que se deixe de lado a corrente que ora se alastra pelo país, no sentido de ver a conta corrente como uma hipótese de mútuo. Esta tendência que, inicialmente, beneficiava o Fisco, passou, agora, a ser objeto de manipulação por empresa do mesmo grupo, pois descobriram elas que, seguindo a tese do Fisco, podem computar juros e correção monetária sobre qualquer quantia da conta corrente, criando, por vezes, despesas de juros e correção monetária completamente inexistentes.”

A segunda lição doutrinária a ser referida é a de PAULO MARIA DE LACERDA, em livro dedicado especificamente ao tema:12

“É da substância do mútuo que o mutuário se obrigue a dar ao mutuante outro tanto ‘in genere’ do que recebeu; de maneira que imediatamente após a realização do contrato, perfeito e acabado pela entrega do objeto fungível cuja propriedade passa do mutuante para o mutuário, começa a existir dívida certa a cargo de devedor certo, que é o mutuário. A obrigação assumida pelo mutuário é de dar no significado jurídico técnico da palavra. Sem a tradição do objeto não ha mútuo, pois este contrato é real: ‘Re contrahitur obligatio, velut mutui datione’, dizia Gaio no seu Commentario II, 90.

Fungível deve ser o objeto do mútuo, que se numera, pesa ou mede, ‘qualis est pecunia numerata, vinum, oleum, frumentum, aes, argentum, aurum’; pois é da essência do contrato que essas coisas sejam emprestadas para serem consumidas. Devem elas ser fungíveis pela sua mesma natureza, ou pelo modo que as partes as consideram.

12 LACERDA, Paulo Maria de. Do Contrato de Conta corrente. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro, 2ª ed., 1928, p. 109 e seg.

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A propriedade do objeto deve passar do mutuante para o mutuário, como explicava Paulo, no Digesto, liv. XII, tit .I, fragmento 2 §2: ‘Appellata est autem mutui datio ab eo, quod de meo tuum fit: et ideo si non fiat tuum, non nascitur obligatio’.

Ora, na conta corrente não há dívida enquanto a conta corre. O aparecimento do saldo, única dívida que a conta corrente pode produzir, é eventual, não certo, e como se não pode ao menos juridicamente determinar desde logo contra quem resultará, o devedor, se houver dívida, não é certo desde logo, porém incerto. Dupla incerteza na conta corrente: a dívida, que pode vir ou não vir, e a do devedor que, caso futuramente haja dívida, tanto pode ser um como outro correntista. No mútuo a certeza é desde logo dupla: a dívida é certa, o devedor é certo.

Quando as partes formam o contrato de mútuo já imediatamente sabem que o mutuante há de entregar ao mutuário um determinado objeto fungível, transferindo-lhe a propriedade, que o mutuário, findo o prazo concedido para gozar do beneficio, deve dar por sua vez ao mutuante outro objeto do mesmo gênero.

Na conta corrente as partes não sabem de antemão precisamente quais os objetos que se remeterão reciprocamente, e cujos valores nela entrarão como verbas componentes. A distinção entre objetos fungíveis e infungíveis é supérflua; pois na conta corrente entram somente valores, e estes, em sendo depósitos, não pertencerão juridicamente a ela, embora materialmente anotados no respectivo quadro gráfico, uma vez que a remessa feita e recebida funde no todo indivisível da conta corrente o respectivo valor, coisa esta incompatível com o depósito regular.

Igualmente não pesa ao recipiente a obrigação de dar outro tanto do mesmo gênero. Ele tem apenas a faculdade de remeter também; mas não coisa de gênero certo, idéia que se não aplica ao valor.

...

(...) na conta corrente não há dívida a que se possa aplicar uma cláusula que torne exigíveis as suas parcelas, uma a uma, no fim de certo tempo. Enquanto a conta corrente há tão somente obrigação para cada um dos correntistas de se debitar pelos valores das remessas recebidas. Se as verbas fossem suscetíveis de sujeitar-se à clausula semelhante, burlada ficaria a intenção das partes e nada mais significaria o encerramento da conta corrente, quando esta na verdade se teria composto de créditos independentes uns dos outros, com vencimentos seus, e por conseguinte inscritos na conta corrente como inscritos estariam em qualquer outra conta ou quadro computístico de transações efetuadas. Tirar- se-ia, portanto, à conta corrente o caráter contratual; ficaria ela reduzida a

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mero sistema computístico, e muito menos estaríamos em face a um contrato

‘sui generis’.

A verdadeira intenção das partes, porém é reunir as operações numa só massa homogênea, deixar de lado todos os característicos, efeitos e consequências especiais de cada uma das transações, e liquidar todas por junto depois de findo o tempo do contrato. Isto exclui a idéia de obrigação exigível ou exeqüível.

A única obrigação é a de creditar e debitar; a única dívida a do saldo, findo o contrato ou, segundo for a vontade das partes, no fim de períodos determinados.”

Acrescente-se que os conceitos aqui expendidos também estão fundados em outros importantes juristas, entre eles: JOSÉ XAVIER CARVALHO DE MENDONÇA, in

“Tratado de Direito Comercial Brasileiro”, Livraria Editora Freitas Bastos, 1934, vol. VI, Livro IV, Parte II, p.352; CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, in “Instituições de Direito Civil”, Editora Forense, 7aed., p. 368; e FRAN MARTINS, in ”Comentário ao Código Civil”, Editora Forense, 5ª ed., p. 483 e 490.

Continuidade da distinção – nove razões tópicas

O negócio jurídico de conta corrente não se confunde com o de mútuo, por múltiplas razões já apresentadas e que agora serão reunidas em nove distinções tópicas.

Primeira razão – o contrato de mútuo rege determinada relação de crédito e débito, cuja função é prever a entrega de coisa fungível a ser obrigatoriamente devolvida (Código Civil, art. 586), diferentemente do contrato de conta corrente, que é contrato atípico (art. 421 e 425), pelo que a sua função é aquela que estiver definida nas respectivas cláusulas, consistindo em haver encontro de contas no vencimento.

Portanto, no contrato de conta corrente, as partes não se relacionam para emprestar dinheiro uma à outra.

Segunda razão – em decorrência das suas causas, não podem ser confundidos contratos tipificados pelo direito positivo (no caso, mútuo) com outros contratos, seja contrato tipificado quando confrontado com outro contrato típico, seja um contrato típico comparado com um contrato atípico (no caso, contrato de conta corrente), ainda que, como ocorre em muitos casos, possa haver efeitos ou movimentos econômicos semelhantes. Por exemplo, a transferência da propriedade é efeito que existe em diversos contratos que, nem por isso, se igualam. No próprio mútuo, há

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transferência da propriedade do bem emprestado (art. 587), sem que isto o identifique com o contrato de compra e venda. Do mesmo modo, o contrato de mútuo não existe num contrato de conta corrente somente porque (quando) há entrega de recursos financeiros, eis que estes não são entregues para serem obrigatoriamente devolvidos nos mesmos valores.

Terceira razão – não é a simples devolução de dinheiro que caracteriza o mútuo, tanto quanto, como visto na parte final da segunda razão, ele não se caracteriza pela simples entrega de dinheiro. Aliás, em outro exemplo adicional, a devolução de tributo pago a maior não é devida porque o contribuinte tenha feito um empréstimo ao fisco, mas tem causa no pagamento de valor superior ao prescrito pela lei. Ou seja, não é por haver alguma devolução de dinheiro que há mútuo. Ou ainda, um contrato de sociedade não se transforma em contrato de mútuo porque tenha que ser devolvido dividendo recebido indevidamente por alguma razão, como nas situações do art. art.

1009 do Código Civil. Todavia, no caso do contrato de contas correntes nem há devolução por um mutuário devedor a um mutante credor, mas pagamento do saldo de que ao final qualquer das partes for devedora.

Quarta razão - o contrato de mútuo se completa pela entrega de coisa fungível, feita pela parte mutuante, a ser restituída pela mutuária nos mesmos gênero, qualidade e quantidade (Código Civil, art. 586). Ora, no caso de contrato de conta corrente, não há essa obrigação, não havendo jamais a previsão contratual de que recursos entregues venham a ser devolvidos, no todo ou em parte, pois cada movimentação econômica ou financeira entre as partes gera um lançamento relativo ao contrato de conta corrente. Por isso, no contrato de conta corrente o encontro de contas somente é feito no vencimento do contrato, quando se apura o saldo devedor desta ou daquela parte, e não o valor certo de um mútuo, que a mutuária deve devolver, como sempre ocorre no contrato de mútuo. Em outras palavras, parte dos débitos e créditos entre as correntistas é liquidada por compensação, e apenas a parte que excede aquela é objeto de pagamento.

Quinta razão - no contrato de mútuo, a obrigação de devolução da mutuária é certa, determinada e líquida, existindo desde a data do contrato, e exigível no termo que desde logo é nele estabelecido (ou no termo legal), não sendo, pois, obrigação sujeita à condição. No contrato de conta corrente não existe essa obrigação certa, determinada, líquida, a termo e incondicional, pois somente surgirá obrigação de pagamento pela correntista que finalizar o contrato com saldo devedor contra si, sendo,

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pois, uma obrigação sujeita a evento futuro e incerto e em valor indeterminado e ilíquido nas datas da contratação e de cada movimentação do contrato.

Sexta razão - embora lançamentos contábeis não sejam determinantes da natureza jurídica das relações econômicas que eles devem refletir (cuja natureza deflui da causa do contrato), é importante notar que no caso de mútuo a mutuante lança o valor entregue a débito de uma conta do seu ativo, enquanto a mutuária o lança a crédito de uma conta do seu passivo, exatamente porque tais lançamentos representam direito incondicional da mutuante e obrigação certa da mutuária. Já no contrato de conta corrente, os lançamentos em contas correntes são meramente para gerência e controle do saldo a ser apurado e liquidado no encerramento do contrato.

Sétima razão - também não há como confundir o contrato de conta corrente com o contrato de abertura de crédito (ou crédito rotativo), que é uma modalidade de mútuo caracterizada não pela entrega (ou colocação à disposição) de uma determinada importância no início do contrato, mas com previsão de entregas ao longo do tempo, geralmente até um limite de valor preestabelecido (neste sentido, inclusive há definição do Banco Central para este tipo de mútuo). Por isso, na abertura de crédito, a cada entrega vai se agregando um novo valor ao montante antes entregue, sendo que o total das entregas corresponde à obrigação de devolução da mutuária, tanto quanto se dá no mútuo feito de uma só vez, em que o total mutuado deve ser devolvido. No contrato de conta corrente nenhuma das partes abre crédito a ser utilizado pela outra, muito menos se estabelece limite de crédito.

Oitava razão - no contrato de crédito rotativo, o crédito aberto (e sempre há um crédito aberto) é utilizado em parcelas, mas o devedor é sempre o tomador do crédito, ou seja, as movimentações financeiras durante o contrato são sempre do emprestador para o tomador, que somente devolve o que recebeu. No contrato de conta corrente, os movimentos são em sentido duplo, pois os correntistas têm débitos e créditos recíprocos, sendo que pagamento somente ocorre na liquidação do contrato, cujo pagamento em liquidação do saldo devedor não se confunde com devolução de importância recebida em mútuo.

Nona razão - igualmente, o fato de haver devoluções parciais durante o prazo do contrato não é da essência do mútuo, inclusive na modalidade de abertura de crédito, porque em qualquer caso, salvo se houver disposição em contrário, é assegurado ao devedor pagar antecipadamente. E, se no chamado crédito rotativo

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relativo a uma abertura de crédito com possibilidade de devoluções intermediárias, esta circunstância não descaracteriza o contrato de mútuo, não exerce qualquer influência na natureza jurídica do contrato de conta corrente, porque no contrato de conta corrente o que se verifica são débitos e créditos derivados de fora do contrato e para que não sejam exigíveis desde logo, mas encontrados no termo final do contrato.

Inúmeras outras distinções poderiam ser apresentadas, mas as nove acima desfiladas já apontam a impossibilidade de tratar como mútuo (ou como abertura de crédito) o contrato de conta corrente. Neste, em nenhum momento uma das partes tem direito de receber de volta a mesma quantia que tenha entregue para a outra, sendo a existência deste direito que caracteriza o contrato de mútuo.

Embora a matéria jurídica já esteja exposta, não custa dizer, em outras palavras e em resumo, que os valores lançados a débito de uma correntista perante a outra não podem ser considerados emprestados a esta porque, se se tratasse de mútuo, haveria obrigação de restituição do mesmo valor, desde a sua entrega, e a correntista desde então estaria obrigada a devolvê-los em sua totalidade. Ao contrário, no contrato ora em questão não há essa obrigação em cada movimento ou em cada momento do prazo contratual, e obrigação somente virá a nascer no final do contrato, quando se apurará quem deve pagar quanto a quem.

Mais duas considerações contribuem para distinguir os contratos ora abordados.

A primeira é que a concessão de um mútuo não depende de haver contrato escrito, podendo ser provada a sua existência por qualquer meio de prova em direito admitido13, inclusive pelos assentamentos contábeis, como foi reconhecido pelo próprio fisco federal. Já um contrato de conta corrente, por ser inominado, não tem como se estabelecer se não por contrato que defina categoricamente as respectivas características.

A segunda observação é relativa às situações de mútuo nas quais não haja fixação de prazo, o que requer a consulta ao que dispõe o Código Civil de 2002, através do qual no mútuo de dinheiro sempre há prazo de devolução, seja convencionado expressamente no contrato, seja de pelo menos trinta dias na ausência de disposição

13 É o que deriva dos art. 212 e 221 do Código Civil. A jurisprudência é tão remansada a respeito, que dispensa citações.

Referências

Documentos relacionados

Em 13 de julho de 1990, foi assinada a lei 8.069/90, que dispõe sobre a proteção integral para crianças e adolescentes, conhecida como ECA (Estatuto da Criança e