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Cultura popular: controvérsias e perspectivas

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Academic year: 2023

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Cultura popular:

controvérsias e perspectivas José Guilherme Cantor Magnani

1. Introdução

Tom a-se desnecessário assinalar as dificul' dades em fazer um a resenha sobre o tem a da cultura p opular, ten d o em vista a quantidade de trabalhos existentes, a diversidade de orien­

tações teóricas e m etodológicas, e a imprecisão de seu objeto. O tem a, n o en ta n to , é relevante:

o núm ero de dissertações, teses, artigos, encon­

tros e com unicações voltados p ara o problem a da cu ltu ra p opular atestam a atualidade dessa questão e a p rópria m ultiplicidade de enfoques to m a o p o rtu n a u m a revisão crítica.

As várias m aneiras através das quais se enca­

ram , hoje, as m anifestações culturais populares, m arcam u m a diferença fundam ental com a linha de análise que tradicionalm ente ocupou e sta área, e que poderíam os denom inar de fol- clorista. D escobrir festas, lendas, folguedos e objetos de antigo uso; descrever e registrar a indum entária, os gestos e instrum entos neles utilizados; preservar sua “ au ten ticid ad e” e denunciar as “ deturpações” a que estão expos­

tos - eis a tarefa de m uitos folcloristas, p o rta ­ dores de um a “ ciência m enor” e às voltas com um o b jeto de estudo considerado de pouca rele­

vância na opinião de especialistas de outras áreas n o interior das Ciências Sociais. C om efei­

to, que contribuições o estudo de um a folia-de- reis ou de u m a congada poderia trazer para os grandes tem as da Política, Sociologia e E cono­

mia?

As Ciências Sociais, n o e n ta n to , são sensí­

veis às transform ações que ocorrem na socie­

dade e que lhes fornecem os tem as de discussão.

Com certo atraso, na m aioria das vezes, term i­

nam contudo — se não explicando - pelo m enos registrando essas transform ações.

Existe u m a certa unanim idade em situar nos anos trinta o início de uma série de mudanças que irão alterar pro fu n d am en te o panoram a po lítico-institucional do p a ís, sua estru tu ra p ro ­ dutiva e a distribuição de sua população. A par­

tir da Segunda G uerra Mundial acelera-se a industrialização com a crescente participação não só das em presas estatais com o das m ultina­

cionais; intensifica-se a urbanização, quer indu­

zida pelo crescim ento industrial de algumas cidades, q u er acelereda pelas transform ações na agricultura, e a população urbana tende a supe­

rar a rural.

Os problem as de integração dos contingen­

tes populacionais de origem ru ral nos grandes centros urbanos e suas condições de vida e tra ­ balho foram objeto de m uitos estudos socioló­

gicos, tendo-se destacado aquela linha de análise que ficou conhecida com o a Teoria da Margina­

lidade.

Sem e n tra r em suas variantes, a proposição mais corrente era q u e essas massas dirigiam-se aos cen tro s urbanos atraíd as pela possibilidade de m elhores condições de vida e oportunidades de trab alh o . Mas, com o a capacidade do setor m oderno da econom ia de absorver essa mão-de-

BIB, R io de Janeiro, n. 12, p . 23-39, 1982 2 3

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o b ra - sem qualificação e de m entalidade “ tra ­ dicional” — era m enor que a o ferta (em fu n ção das altas tax as de crescim ento vegetativo e mi­

gratório), a m aior parte dessas pessoas vol- tava-se p ara o seto r terciário, con trib u in d o para sua inchação e au m en tan d o , d esta fo rm a, o desem prego disfarçado.

Isoladas em favelas e cortiços, carentes dos serviços m ais fundam entais, não dispunham , essas populações, de n en h u m canal de partici­

pação m ais efetiva com a sociedade. A m argem do p ó lo dinâm ico, e ten d o perdido o s padrões de referên cia culturais an teriores, co n stitu íam um a massa hom ogênea, desorganizada, anô- m ica, fazendo da “ cultura da pobreza” u m estilo de vida e um m eio de sobrevivência. C oro­

lários p o lítico s dessa caracterização foram , entre o u tro s, as teorias sobre a m anipulação populista, as do “ participacionism o” (Centro para el D esairollo E conóm ico y Social de A m e­

rica L atina — DESA L, Chile, nos anos sessenta), as d iferen tes p ropostas de transform ação apoia­

das no p o ten cial explosivo dos grupos excluí­

dos, etc.

A lheios a essas interpretações, os m igrantes de um a fo rm a o u o u tra faziam sen tir sua pre­

sença na cidade, em prim eiro lugar pelo que representavam de m odo m ais im ed iato : sua for­

ça de trab alh o . Mas tam bém pelo sotaque, p o r costum es, danças e m úsicas até então “ folcló­

ricas” , isto é, exóticas, d istantes, diferentes.

“ Paraíbas” e “ baianos” procuram um lugar na m etrópole ho stil e se A ry T oledo canta o s infor­

tú n io s do com edor de gilete nas praias de C opa­

cabana, é o p ró p rio m igrante que se lam enta, ao chegar a São P aulo:

“Tava em São Paulo, Cheguei na praça do Brás Mas o frio era demais, E e u entrei pela peor . . . ”

(C iranda de praia, coleção M ar cus Pereira) Na co n ju n tu ra dos anos sessenta, um grupo descobre as vicissitudes e tam bém as potenciali­

dades nessas m assas, e te n ta chegar a elas com um a p ro p o sta, assim caracterizada p o r um de seus expoentes:

“( . . . ) é necessário desenvolver um a ação mais pró x im a da massa, não apenas p ro d u ­ zindo obras p ara ela com o procu ran d o tra ­ balhar com ela, visando ta n to desenvolver, nela, os m eios de com unicação e produção cultural, com o o b te r, nesse trab a lh o , um co­

nhecim ento m ais objetivo de determ inada com unidade q u e p erm ita m aior eficácia na

elaboração da obra q u e seja dirigida à massa.

( . . .) C om o se vê, a cultura p o p u lar, abran­

gendo desde a crítica de idéias estéticas ao trabalho de alfabetização, d a crítica das idéias p o líticas à ação de ru a nos espetáculos d e co m ício , d a produção d e po esia, te a tro , cinem a à luta para vencer o s entraves econô­

micos e políticos p ara dar condições de p ro ­ dução ao p ro d u to r de cu ltu ra p opular, não cum priria sua missão sem a criação de orga­

nism os capazes de im pulsioná-la. Esses o r­

ganismos ( . . . ) são o MCP d e R ecife e o Cen­

tro Popular de C ultura d a UN E, na G uana­

bara. O utros organism os surgiram ( . . . ) nas principais capitais e cidades, o rien tan d o seu trabalho o u no sentido da alfabetização, ou na realização de espetáculos populares, for­

mação de grupos teatrais, edição de folhe­

to s, em sum a, de acordo com a necessidade do m eio em q u e atu am ” (Gullar, 1980:87).

Trata-se da co n tro v ertid a ação d os CPCs, p osteriorm ente o bjeto de acesas polêm icas. E n­

quanto seus críticos levantam questões em to r­

no de conceitos tais com o “a rte p o lític a ” , “ le­

var cultura ao p ovo” , “cu ltu ra p o p u lar como to m ad a de consciência d a realidade brasileira” ,

“alienação das massas” etc., seus defensores procuram enfatizar o m om ento h istórico em que aquela p ro p o sta surgira.1

Ecoados os últim o s acordes de Carcará e de­

to n ad o s os derradeiros tiros na terra do sol, constatou-se que tam bém o m orro não teve vez.

As ciências sociais diagnosticaram o colapso do populism o e, cam inhando e can tan d o , noventa m ilhões em ação ingressaram na década do m ila­

gre econôm ico:

“ ( . . . ) A década de 70 tem início num a con­

ju n tu ra de franco fecham ento p o lítico (. . . ) A intervenção nos m ovim entos contestató- rios, a extinção das representações estudan­

tis, os d ecreto s 4 7 7 e 2 2 8 , as demissões e aposentadorias nas universidades, a censura prévia na im prensa, livros e espetáculos, en­

feixam a im plantação do au to ritatism o p o lí­

tico preparando o p a ís para ingressar num a nova era, sob o signo do bin ô m io seguran­

ça/desenvolvim ento. A proveitando-se de uma co njuntura favorável e assegurando o aprofu n d am en to dos laços de dependência com o capital internacional, o Estado irá prom over o clima eufórico e ufanista do

‘milagre brasileiro’ (. . .) As com unicações são m odernizadas e a indústria cultural se desenvolve no sentido d o m ercado da classe m édia. Proliferam as enciclopédias em fascí­

culos ( . . . ) a música popular assiste à em er­

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gência de m archinhas ex o rtativ as e o sambão jó ia faz fundo m usical p ara as novas churras­

carias. ( . . .) no te a tro as grandes produções empresariais dom inam a cena aberta e o ci­

nem a com eça a colocar-se a necessidade de assum ir, d efinitivam ente, sua m atu rid ad e in­

dustrial. Mas é a T V q u e nesse m o m en to irá m elhor expressar o clim a d o m ilagre. T raba­

lhando com a técn ica m ais recente, a TV c onstrói a imagem de um p aís m o d ern o , um Brasil grande, de obras m on u m en tais, signos de um a p o tên cia em ergente. A atualização de padrões culturais internacionalizados dita novos hábitos d e consum o e co m p o rtam en ­ to p ara a burguesia e a classe m édia” (Hol- landa e G onçalves, 1980:11).

Esta coleção passa em revista a literatu ra, o tea tro , a m úsica popular, a televisão e o cinema nos anos seten ta, m arcados p ela atuação do Es­

tado não só através da censura, m as tam bém com o p ro m o to r e p atro cin ad o r de eventos cul­

turais, pelo extraordinário desenvolvim ento dos mass-media e n o tad am en te da televisão, pela presença de ritm os tais com o o rock, disco- thèque na música de consum o etc.

E com os setores populares, o q u e aconte­

ce? E m que m edida esses fatores incidem em suas m anifestações culturais? Para uns, m ais do que nunca a cultura do povo, sob o influxo da ideologia dom in an te, está se descaracterizando, transform ando-se num instrum ento de aliena­

ção; o u tro s, ao co n trário , percebem nela um meio de resistência à dom inação,

Para avaliar esses d iferentes enfoques, é pre­

ciso assinalar um a im p o rtan te m udança no de­

bate sobre o s setores populares: os habitantes dos bairros populares d os grandes cen tro s urba­

nos já não são considerados “massas m arginais” . C onhecidos a tu alm en te com o “ classes pop u la­

res” , são m uito p rocurados p o r m ilitan tes de partidos p o lítico s, m em bros de organizações e m ovim entos ligados à Igreja, pesquisadores e c ientistas sociais q u e descobrem e revalorizam sua vida associativa (Sociedades Amigos de Bair­

ro, grupos de base, clubes de m ães, comissões de m oradores, e tc.), suas reivindicações e for­

mas de lu ta específicas.

Se p o r um lado o s setores populares já não '.1<» vistos na ótica da teo ria da m arginalidade, nem com o sujeitos idealizados de transform a­

ções im ediatas, por o u tro há um a m udança de i--.lrategia no estudo de suas m anifestações cul- l ura is. Estas não são consideradas isoladam ente, ui,is no c o n tex to das condições concretas de vi- dii de seus portad o res, de seus m ovim entos rei­

vindicativos, e tc ., e constituem um a via de aces­

so ao conhecim ento d e sua ideologia, seus valo­

res e sua p rática. A cultura p o p u lar, deste m o ­ d o , não é pensada em si m esm a, m as em rela­

ção: cultura p o p u lar e ideologia; cu ltu ra p o p u ­ lar e p o d er; cultura p o p u lar e nacional; cultura p o p u lar e os m eios de com unicação de m assas, etc.

E ste é, digam os, o quadro n o interior do q ual se desenvolve o d eb ate, hoje, sobre a ques­

tão d a cultura p o p u lar, d ele particip an d o não só especialistas sobre o tem a, m as profissionais de o u tras áreas.

C om o pro pó sito de não transform ar esta resenha num registro cronológico e arbitrário (incom pleto será, sem dúvida) d e trabalhos, procurei não considerar obras e au to res isolada­

m ente, e sim colocar algum as das questões p re ­ sentes na atu al discussão; para ta n to utilizei, co­

mo p o n to s d e referência, en co n tro s, coletâneas, cx>ngressos ligados ao tem a. No final arrolo as obras dos au to res particip an tes d os d iferentes enco n tro s, já q u e p ara o s efeitos dessa resenha foram u tilizados a n te s artigos, com unicações e conferências q u e publicações m ais extensas.

2. A lgum as Tendências

A coletânea Cidade, Usos e A b u so s, que reune um a série d e trab alh o s apresentados em simpósio sobre m arginalidade social na X X VIII Reunião A nual da SBPC no R ecife, em ju lh o de 1974, apesar d e não incluir nenhum te x to dire­

tam ente vinculado com a cultura p o p u lar (com excessão do artigo de L. A . M achado da Silva), representa um a das tendências q u e caracterizam a discussão atu al sobre esse tem a. No p refácio, R u th Cardoso afirm a:

“ Quase v inte anos já se passaram desde que Carlos Francisco Lessa e T om ás Vasconí em curso o ferecido pela CEPAL na V enezuela cunharam a expressão p ara designar crescen­

te setor da população u rb a n a na Am érica Latina, q u e, recém-chegada d o cam po, reu­

nia-se em favelas, inseria-se d e m aneira pe­

culiar no m ercado de trabalho e especial­

m ente parecia não estar politicam en te m o b i­

lizada. Eram tem p o s do populism o que, através de diversos elem entos, havia reali­

zado alianças e n tre a burguesia e o operaria­

d o . Ora, a constituição d e um im p o rtan te setor urbano que não participava de tais alianças criava algo novo com possibilidades po líticas explosivas, dado q u e se percebia tam bém um eventual elem ento revolucioná­

rio no p ró p rio caráter da população m argi­

nalizada. De 1958 a esta p arte, a questão da

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m arginalidade ocupou num erosos cientistas sociais latino-am ericanos q u e se envolveram em longo e penoso d eb ate sobre a natureza do fen ô m en o , suas causas e conseqüências.

(. . . ) d e um a form a ou de o u tra (cada traba­

lho desta coletânea | constitui crítica a diver­

sos significados do conceito de m arginali­

d ade social e discutem aspectos da inserção dessa cam ada na sociedade capitalista tal co­

mo se m anifesta no Brasil” (K ow arick, e o u ­ tros, 1 9 7 8 :7 ).

C om efeito , os três prim eiros trabalhos (K ow arick, Paoli e Hogan & Berlinck) discutem problem as mais gerais relacionados com o p ro ­ blema da m arginalidade. A tese p o r eles d efen ­ dida e q u e a parcela da força de trab alh o excluí­

da dos setores m ais produtivos se engaja em ra­

mos da produção e distribuição integrados na estrutura da área, ainda que seu vínculo empre- gatício seja precário e in term iten te. Iiir. vez de constituir um “ pólo m arginal” , essa parcela da força produtiva está integrada na estru tu ra eco­

nôm ica, seja repro d u zin d o condições favoráveis à p ro d u ção , seja fornecendo apoio à m an u ten ­ ção d a força de trabalho utilizável.

Relativizado o conceito de m arginalidade, uma vez q u e o s cham ados trabalhadores marginais não só não estão ex cluídos do sistema produtivo, m as pelo co n trário , encontram -se es­

tru tu ralm en te articulados ao atual m odelo de acum ulação, cabe perguntar se realm ente cons­

tituem um a massa desorganizada, hom ogênea, sem canais dc participação, “ fazendo da cultura da pobreza um estilo de vida e um m eio de sobrevivência” , com o queriam as teorias da m arginalidade. O s dois últim o s trabalhos dis­

cutem m ais especificam ente este aspecto: Ma­

chado da Silva m ostra a com plexa rede de rela­

t e s que se estabelece entre o s frequentadores de um b otequim e o significado q u e para eles adquire fazer p arte de um dos subgrupos q u e se estabelecem , rejeitando assim a idéia de hom o­

geneidade e desorganização q u e se costum a a tri­

buir às populações faveladas. Berlinck e Hogan põem em q uestão o conceito de “ cultura da pobreza” (Lewis, 1965, 1966): através de um a pesquisa entre diferentes setores da população urbana de São Paulo com parados de acordo com ren d a, participação em associações volun­

tárias, acesso a canais de com unicação de mas­

sas e red e d e co n ta cto s inform ais, term inam afirm ando q u e “ ( . . . ) a noção de cultura da p o ­ breza form ulada por Lewis p o stula um isola­

m ento m uito grande da classe baixa qu e decorre de seu rom pim ento com um a estru tu ra pré-exis- ten te (norm alm ente de natureza agrária) que,

por sua vez, ocorre com o processo de migração rural-urbana. Em o u tras palavras, a cultura da pobreza, segundo esse a u to r, é c a ia c te rá a d a por um a p o b reza cultural onde não existem tradi­

ções e o n d e o e sto q u e sim bólico utilizado é m uito restrito . E n tre tan to , q u e r nos parecer que tal fenôm eno não o co rre na sociedade bra­

sileira, o u m elh o r, as coisas não se dão p ropria­

m ente co m o imaginou Oscar L ew is”. A pesar de a pesquisa te r m ostrado um relativo isolam ento das classes baixas, revelou tam bém q u e os pa­

drões de interação utilizados pelas diferentes classes sociais não apresentam variações q u alita­

tivas: “ta n to as classes elevadas, com o as de bai­

xa renda se utilizam d e relações de parentesco, amizade e conterraneidade para resolverem seus problem as, e dedicam grande p a rte de seu tem ­ po livre cultivando relações inform ais.” (Ber­

linck & Hogan, 1 9 7 8 :151-152).

Com a crítica à teo ria da m arginalidade fo ­ ram abandonadas noções com o “ enquistam en- t o ” , “guetos cu ltu rais” , etc. A população de baixa renda, apesar de confinada à regiões peri­

féricas p o r força de um crescim ento desigual e seletivo da cidade e seus equipam entos, não está à m argem do sistem a eco n ô m ico ; de u m a form a ou o u tra participa do atual m odelo de acum u­

lação e dos serviços urbanos, ainda que de uma form a subalterna.

Mas, perguntam -se E dênio Valle e José Quei­

roz, organizadores da coletânea A Cultura do Po m ■

“ ( . . . ) Haveria no p ovo u m a cultura-apesar- de-tudo? Apesar do em pobrecim ento gene­

ralizado q u e o crescim ento dos últim os anos trouxe para as classes populares? Apesar do estado de dom inação cultural em q u e se em­

bate nossa gente? Apesar de seu desenrai- zam ento e de sua progressiva massificação?

Onde estaria essa cultura do povo, em espe­

cial no caso de m etró p o les gigantescas, co­

mo São Paulo, cuja vida e dinâm ica se cen­

tram em to rn o da produção capitalista?

( . . . ) Estaria esse hom em do povo se em bru- tecen d o , se desum anizando? Ou resiste ele, desde as m argens a que foi relegado, fazendo e refazendo a í seu m u n d o , respondendo de form a ampla e variada aos desafios q u e en­

contra? Q ue sentido p o lítico e que força social representa a cultura do povo? Qual sua eficácia possível, la te n te ou não, no con­

ju n to da vida social e cultural? " (Valle e Q ueiroz, 1979: 10).

Abre-se assim um d eb ate sobre os aspectos mais p o lítico s da cultura p opular e cm torno

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dessas questões realizou-se o “ Sim pósio sobre a C ultura d o Povo” , prom ovido pelo In stitu to de E studos Especiais da PUC/SP e Cedec, cujas co­

m unicações e com entários foram publicados na coletânea citada.

Em seu texto “ N ordestinos em São Paulo:

n o tas para um estu d o sobre C ultura Popular e C ultura N acional” , Francisco W effort escreve:

“ (. . . ) O nordestino q u e chega a São Paulo, se p o rtad o r de um a cu ltu ra regional de al­

cance nacional, chega a um m undo do tad o de um a cu ltu ra urbana extrem am ente p o b re, p raticam en te um m u n d o cu ltu ralm en te va­

zio, o n d e um capitalism o pred ató rio e selva­

gem d estruiu a cultura regional tradicional e não foi capaz de criar nada em seu lugar ( . . . ) E para um m igrante p o b re , o viver só para trab alh ar significa quase o m esm o que viver só paxa ser ex p lo rad o . Para ele, esta é a lei do cão. Por q u ê deveria, p o rta n to , o m i­

g ran te, adaptar-se a ela? Por q u ê o refugiar- se em sua p ró p ria cultura deveria significar necessariam ente um em pobrecim ento? Não estaria nessa resistência um a possível fo n te de vida para u m a nova cu ltu ra da cidade?

Para u m a cultura nacional e popular? ” (W effort, 1 9 7 9 :2 2 ).

É a tem ática da cu ltu ra p o p u lar com o p o s­

sível cu ltu ra nacional, p o r um lado, e como resistência à d o m inação, de o u tro . Este últim o aspecto c o n stitu i a linha básica dos dem ais tr a ­ balhos da coletânea nos quais se p ro c u ra id en ­ tificar os possíveis elem entos de resistência e lib ertação na cu ltu ra p o p u lar: Ecléia Bosi a n a ­ lisa as dificuldades d o co tid ian o da classe o p erá­

ria e as form as através das quais se ten ta resistir à m assificação e ao nivelam ento (Bosi: 1979);

Celso R u i Beisiegel observa a im precisão do te r­

m o “p o p u la r” e reflete sobre os alcances de um a ed u cação p o p u la r, etc.

O te x to de Duglas M onteiro difere um p ouco da orientação da m aioria dos trabalhos.

Menos preocupado em saber se a cu ltu ra p o p u ­ lar é u m a fo rm a de resistência ou de alienação, este a u to r, analisando o fen ô m en o d a cura divina n o seio das religiões pen teco stalistas, p r o ­ cura e n te n d e r as form as concretas q u e assumem as m an ifestaçõ es religiosas populares e as razões de su a dem an d a. E stru tu rad as em form a de m a rke tin g , essas m anifestações são m arcadas não ta n to pelo sectarismo e proselitism o, mas p o r u m a indiferenciação de p ro d u to s espirituais o ferecid o s aos clientes, sejam crentes, um ban- distas o u católicos, num a espécie dè ecu m e­

nismo popu lar: “ (. . .) nessa indiferenciação não h á dram as de consciência, m as h á ansiedade e há carências. Não com relação a sentido — à busca de um a com patibilização e n tre biografia e história, p o r exem p lo . Não h á problem as de teodicéia, nem de antropodicéia. Há a p rocura d e soluções p ara p roblem as concretos, d e expli­

cações e respostas parceladas para questões p a r­

celadas. M iúdas, eventualm ente contraditórias, essas respostas dizem respeito ao cotidiano de m icro-estruturas, tais com o os núcleos d om és­

ticos e o s gru p o s d e trab alh o . Elas são, ao m esm o tem p o , an co rad o u ro s para as incertezas e fo n te p erm an en te de insegurança” (M onteiro, 1 9 7 9 :1 0 ). . .

Marilena C a h u í alerta p ara o risco de um certo idealismo presen te na visão q u e considera a cultura do povo d iretam en te liberadora. E n fa­

tizando o caráter alienado de m u itas de suas m anifestações, afirm a q u e “ um a visão ro m â n ­ tica da cu ltu ra do povo im plica em que d eix e­

m os de lado o problem a d a alienação e da reprodução da ideologia d o m inante pelo s d o m i­

nados. (. . .) Se p ro cu rei sim ultaneam ente o apoio de exem plos onde a classe d o m in ad a re ­ produz o au to ritarism o dos do m in an tes, e exem plos onde a diferença se to m a legível, foi p o rq u e acredito q u e esta diferença transparece m enos nos padrões de co m p o rtam en to h a b i­

tuais dos dom inados e m u ito m ais no m o m en ­ to s em q u e são levados a assum ir, m esm o que m om en tan eam en te, sua situação e tais m o m en ­ tos são p o lítico s. Por esse m otivo considerei que a m ultiplicidade das cu ltu ras do povo p o d e revelar sim ultaneam ente os p o n to s em q u e se identificam com os d om inantes e os p o n to s em que a contradição já não p o d e ser ocultada”

(C hauí, 1 9 7 9 :1 2 9 -1 3 1 ).

C arm en Cinira M acedo encerra o debate não com conclusões, m as com um a série de p erg u n ­ tas. Ressaltando q u e dois foram o s p o n to s cru­

ciais na discussão - de um lado o significado das noções de povo e de cu ltu ra do povo, e de o u tro , a questão do papel dos intelectuais - pergunta-se: afinal, o que significa falar em povo? Com o articu lar essa noção com a de clas­

se social? E se a p ro d u ção cultural é resultado de condições objetivas de inserção n o sistem a social, h á um u so de expressões culturais para afirm ar id en tid ad e e resistir, p o r p arte d os d o ­ m inados? Há um a im posição de m odelos cultu- . rais de cima p ara b a ix o , o u h á um p rin cíp io de resistência, involucrado num sistem a de d o m i­

nação q u e to m a o ex istir das classes subalternas prenhe de am bigüidade? (M acedo, 1979)

Na coletânea que acaba de ser analisada h a ­ via um te x to dedicado à religião p o p u lar, de

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Duglas T eixeira M onteiro. Alguns trabalhos publicados n a revista Religião e Sociedade (n .°

1, m aio /7 7 : n .° 4 , o u tu b ro /7 9 e n .° 5, ju - Iho/80) m ostram o u tras abordagens sobre este tem a. O s trabalhos, que em geral se afastam da orientação que se p o d e perceber em Lapassade Luz (1 9 7 2 ) - o n d e é n ítid a a busca de id entifi­

cação de algum as form as de religiosidade p o p u ­ lar com o cultura d e resistência — procuram vin­

cular a dinâm ica das religiões populares ou o surgim ento de novas form as já seja a processos sociais m ais am plos, o u então às condições con­

cretas de existência dos setores populares.

N o prim eiro caso, podem os situar o te x to de R enato O rtiz “A M orte Branca do Feiticeiro Negro” q u e , seguindo e am pliando, conform e afirm a, um a via de análise inaugurada p o r Roger Bastide, considera a U m banda com o resultado de do is m ovim entos: o em branquecim ento da cultura negra e o “ em p retecim en to ” da ideolo­

gia k ardecista, n u m m o m en to em q u e se conso­

lida a im plantação de um a sociedade u rbana, industrial e d e classes. Em seu processo de legi­

tim ação e institucionalização, os um bandistas buscam conquistar um a parcela no m ercado religioso e “ ( . . .) E sta m esm a religião, q u e no passado fo i perseguida pelas forças policiais, ridicularizada p ela sociedade, transform a-se num a instância leg ítim a po d en d o d esfru tar de uma posição de igualdade com as o u tras reli­

giões d e n tro do m ercado religioso. E n tre tan to , este resultado só é possível p o rq u e a religião integra os valores dom inantes da sociedade glo­

bal; o cam inho da integração red u n d a assim em sua legitim ação social” (O rtiz, 1977: 50).

D iana B row n, p o r sua vez, em “ O Papel His­

tórico da Classe Média na U m banda” , ten ta dem onstrar que a p rincipal fo rça organizatória por trás do ráp id o crescim ento da U m banda foi a classe m édia e que áreas im p o rtan tes do ritual e da ideologia u m bandista foram e continuam sendo, em grau significativo, um p ro d u to da inovação e intervenção da classe m édia. C on­

sidera errôneo e sim plista considerar que a U m banda surgiu e co n tin u a cen trad a antes de tu d o nas classes baixas.

Lísias N ogueira Negrão critica as posições p recedentes (incluindo em sua crítica Lapassade e L uz, 1 9 72; R olim , 1976) p o rq u e , segundo ele, consideram as religiões populares como fen ô m e­

nos descaracterizados p ela ideologia dom i­

n ante. Se p o r um lado é inegável, p o r exem plo, a influência das federações no processo de legi­

tim ação da U m banda, p o r o utro não se pode negar q u e “ cresce a resistência do setor m ágico- religioso à descaraterização institucional, e ao contrário do q u e parecem supor B row n e O rtiz

e de aco rd o com o que já percebera B astide em suas análises sobre a religião n ascente, a U m ban­

da perm anece h o je com o p ro d u to cultural da criatividade p o p u lar espontânea, resistindo e su perando, em certa m edida, a intervenção que ten ta, tam bém com relativo sucesso, tran sfi­

gurá-la” (N egrão, 1 9 7 9 :1 7 2 ).

Na perspectiva do binôm io religião e c o ti­

diano, o u condições concretas de existência de seus a d ep to s, p o d em o s situar o te x to de Leni M. Silverstein. A a u to ra p ro cu ra analisar o po d er q u e a m u lh er, com o m ãe-de-santo, exerce na com unidade do candom blé. Este papel dá-lhe — com o m u lh er e po b re — (e tam bém em vários graus ao grupo em volta dela), talvez a única en trad a na sociedade dom in an te. Através das funções q u e exerce com o m ãe-de-santo, estabelece um m ecanism o de acesso aos re cu r­

sos m ateriais e hum anos apropriados p o r ou tras classes, recursos q u e red istrib u i em m aior ou m en o r m edida a seu grupo. E n tã o , através da religião, ela e seu grupo dom éstico conseguem recursos e conexões m aiores em term os da rede de influência, prestígio e clientelism o, para m elhor sobreviver. (Silverstein, 1979)

P eter F ry , p o r sua vez, e n tre o u tras coisas se pergunta pelas razões da existência do grande núm ero de hom ossexuais m asculinos nos terre i­

ro s de candom blé de Belém. Após m o strar o poder que lhes dá seu caráter de outsider — possibilidade de investir to d as suas energias e recursos n o terre iro , pois geralm ente o u não têm fam ília, o u m antêm laços superficiais com a red e de paren tesco , e de com binar papéis m as­

culinos e fem ininos na divisão sexual do tra ­ balho — conclui, com parando com a situação no sul, q u e a chave do p ro b lem a e stá na classifi­

cação dos papéis sexuais. Pelo fato d e a classi­

ficação dos papéis sexuais no n o rte e n o rd este ser m ais rígida que n o sul, lá o código sexual é

“re s trito ” , e n q u an to que aqui é “elab o rad o ” .

“Isto q u er dizer que os p a p é is de ho m em , m u ­ lher, bichas e lésbicas são claram ente definidos e logicam ente consistentes em Belém , en quanto nas cidades do sul os papéis sexuais têm um a definição m enos rígida. ( . . . ) O nde não existe no rm a, não h á fo rm a; o n d e existe um a estru ­ tu ra enfraquecida, h á um a redução concom itan- tem en te na dem arcação de ‘a n tie stru tu ra ’”

(F ry , 1977:122).

O n .° 4 de Religião e Sociedade dedica uma série de artigos à m em ória de Duglas Teixeira M onteiro, e n tre os quais destaca-se o de Carlos Rodrigues B randão - “D e E rran tes a E rra­

dos? ” — o n d e o a u to r assinala a trajetó ria daquele pesquisador da área religiosa. D o e stu ­ do de form as religiosas de surtos m ilenaristas do

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m undo rural, Duglas T eixeira M onteiro passa para a análise das form as eclesiais de cura divina no m u n d o brasileiro urbano atual. E sta m u ­ dança de perspectiva terá seus efeitos sobre o próprio Carlos B randão - seu ex-orientando - que no âm bito d a religiosidade p o p u lar delim ita seu espaço de análise, q u e é o terreno das trocas p olíticas de um cam po de práticas onde as do catolicismo são apenas um dos integrantes. A pesquisa que serve de base a seu livro Os Deuses do Povo foi realizada em Itap ira, no interior do E stado de São Paulo, o n d e se fazem p resen­

tes as três áreas confessionais pred o m in an tes no p aís: a católica, a evangélica e a m ediúnica:

“Penso que d u ran te to d o o tem po falei, aqui, sobre questões cotidianas da vida e dos fa to s de fé das pessoas de Itapira. Estive, p o r ta n to , fa­

lando sem pre a respeito de ato s po lítico s. Sobre com o, com gestos de am or e conflito, os h om ens do lugar im portam , inventam e criam - en tre o im aginário e o concreto - as trocas que constituem , n o lim ite, um cam po religioso e, dentro dele, o dom ín io subalterno das suas reli­

giões populares” (B randão, 1980: 294).

R esta analisar um últim o trabalho sobre reli­

gião q u e exem plifica o u tra linha de análise no estudo da cultura p opular. Trata-se do trabalho de B eatriz Góis D antas; citando “ G uerra de O rixá: Um E studo de R itual e C on flito ” (V elho, 1977), a au to ra afirm a q u e o terreiro de U m banda con stitu i uma representação sim bó­

lica da sociedade m ais am pla, cuja hierarquia é a í representada d e form a invertida'.

Podem os situar esta verten te, em term o s ins­

titu cio n ais, como características de um a série de trab alh o s de algum a form a vinculados ao Program a de Pós-graduação em A ntropologia Social do M useu N acional da U F R J. N esta pers­

pectiva encontram -se o artigo de R o b e rto da M atta (1977) e seu livro p o sterio r (1979). Para este a u to r, o carnaval, a p arad a de Sete de Setem bro e as procissões devem ser pensadas como rito s e nesse sentido não são substancial­

m ente d iferentes do cotidiano. “O ritual é a colocação em foco, em close u p , de um elem en­

to de um a relação. N esta perspectiva, é m ais ou m enos inútil classificar os rito s, quando não se entendem bem as relações básicas q u e os cons- troem . E , de fa to , e n ten d er as relações básicas do m undo social é , au to m ática e sim ultanea­

m ente, en ten d er o m u n d o ritu a l. Os rituais dizem as coisas ta n to q u an to as relações sociais (sagradas ou pro fan as, locais o u nacionais, fo r­

mais o u inform ais). T u d o indica q u e o p ro ­ blem a é que, no m undo ritu al, as coisas são ditas com m aior veem ência, com m aior coerên­

cia e com m aior consciência. Os rituais seriam,

assim, in stru m en to s q u e perm itiriam um a m aior clareza das m ensagens sociais.” (M atta, 1979:

29).

Assim, o rito seria um m o m en to privilegiado p ara desvendar o fu n cio n am en to de certos m ecanism os e relações da sociedade abrangente e do m u n d o diário, e M atta assinala três form as através das quais determ inados aspectos do c o ti­

diano são salientados: o re fo rç o , a inversão e a neutralização.

U tilizando o conceito de dram a social p ara descrever um a situação de conflito n o interior de um terreiro um b an d ista, lv onne Maggie Velho conclui que em seus rituais se expressa a visão do grupo sobre a sociedade m ais ampla.

“Se o terreiro representa um a sociedade e se usa esse m ecanism o de inversão com elem entos vigentes no cotidiano d a sociedade brasileira — p reto s, índios, etc. - p o d em o s dizer q u e a sociedade representada nesse terreiro é a socie­

dade brasileira. O u m elh o r, o terreiro p o d e ser visto com o um sistem a sim bólico que rep re­

senta determ inados aspectos da sociedade b ra ­ sileira. Essa seria vista com o um a sociedade hierarquizada e, através desse m ecanism o de inversão, as figuras m arginais o u pessoas que ocupam posições m ais baixas n a estratificação social são transform adas em deuses espe­

cialm ente atu an tes” (V elho, 1 9 7 7 :1 3 8 ).

Esse m ecanism o de inversão é encontrado em José L eopoldi (1 9 7 8 ), e p ara Isidoro Alves a festa é “ um m o m en to especial em que se põe em d estaque a hierarquia social e os sistemas de podere-s co n co rren tes, através de um m odelo condensado de relações sociais” (Alves, 1980:

101).

Ilustrativa de o u tra tem ática n o in terio r da questão d a cu ltu ra po p u lar é a coletânea C om u­

nicação e Classes Subalternas (1980) que reúne as com unicações apresentadas no II.0 Ciclo de E studos Interdisciplinares da Com unicação rea­

lizado em São Paulo, em setem bro de 1 9 7 9 .2 A coletânea abrange um a p ro d u ção variada, desde te x to s m ais teó rico s e m etodológicos (F ranco; E pstein) e histó rico s (R ubim ; Alves), até relatos de experiências concretas (Fernandes e O liveira; M onteiro), e outros.

A preocupação d o e n co n tro , nas palavras do coordenador José M arques de Melo, era a de

“ro m p er com a tendência dos pesquisadores em identificar nos m ass m edia o s veículos exclusi­

vos de introjeção da ideologia das classes dom i­

n an tes na sociedade e a posição d e m enosprezo e m relação ao s m eios d e com unicação das clas­

ses subalternas, considerados tão som ente com o m anifestações reacionárias e p o rtan to dignas de interesse apenas daqueles pesquisadores ‘ofi-

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ciais’ (folcloristas) que buscam catalogar as ex­

pressões ‘pitorescas’ e ‘inusitadas’ da nossa cul­

tu ra ” (M eto, 1980:11).

Os trabalhos oscilam entre a busca de fo r ­ mas de resistência de algum as m anifestações culturais populares e a constatação do caráter alienado de outras. Há um trabalho sobre m ú ­ sica sertaneja (B onadio e Savioli) q u e, a p artir de algum as indicações de um tex to d e José de Souza M artins (1975) p rocura d etectar os valo­

res, condições de vida e aspirações das classes subalternas um a vez q u e, como afirm am os autores, a m úsica sertaneja é um terreno p a rti­

cularm ente favorável à perm eação do universo do mass-media pelos valores e aspirações da cul­

tu ra popular.

A análise que José de Souza M artins desen­

volve naquele trab a lh o , n o e n ta n to , a p o n ta em o u tra direção. Incialm ente, o a u to r distingue estre m úsica sertaneja e m úsica caipira; esta, norm alm ente ligada ao trabalho e à devoção, insere-se na ro tin a ritualizada do caipira onde inexiste a separação entre sagrado e p ro fan o . E nquanto que a m úsica caipira se caracteriza p o r seu valor de u tilidade, m eio necessário para efetivação de certas relações sociais essenciais ao ciclo do q u o tidiano do caipira, a m úsica ser­

taneja circula sob a form a de valor de troca, inserida no m ercado de consum o e sujeita às injunções do rád io e indústria do disco. A partir de um acervo de qu atro cen tas m úsicas, M artins vai m ostrar que a constituição do estereótipo do caipira no corpo ideológico do sertanism o (que privilegia a fo rm a tradicional do m undo rural cen trad o na grande lavoura) está vinculada às necessidades ideológicas de afirm ação de gru ­ pos sociais urbanos n u m novo tip o d e cidade produzido “à cu sta” da crise da econom ia colo­

nial. “ O caipira é a figura social e tradicional­

m ente depreciada que é utilizada para polarizar a crítica ao m undo urbano. O caráter ‘degene­

rad o ’ da cidade surge claram ente quando o

‘mais degenerado’ dos tip o s h um anos, o mais depreciado, p o d e ver critica e desfavoravel­

m ente a cidade, ap o n tan d o (ele que é ‘rid ícu lo ’) o caráter rid ícu lo dos resultados da urbaniza­

ção” (M artins, 1975: 133-134).

Mas, se p o r um lado quem na realidade faz a crítica conservadora à cidade não é o caipira, e sim as classes q u e vivenciaram a crise da econo­

mia colonial, esta origem estranha não constitui um elem ento de alienação absoluta, p o is a m ú ­ sica sertaneja funda-se tam bém na experiência de vida das classes subalternas, estando nela p re ­ sente essa tensão e n tre o querer do dom inante e o q u erer do dom inado. M artins conclui afir­

m ando que a chave para a decifração da música

sertaneja é a linguagem dissim ulada, na qual se fala não só a coisa, m as tam bém a o u tra coisa, ainda q u e u m a possa negar a o u tra . A dissim ula­

ção é o q u e subsiste do conservadorism o das classes dom inantes alcançadas pela crise da eco­

nom ia colonial; con stitu i na m úsica a repressão equivalente a outras form as de repressão p resen­

tes em o u tro s níveis da realidade social.

A inda sobre a m úsica sertaneja pode-se citar o livro A co rd e na A urora de Caldas, q u e retém a distinção entre m úsica caipira e m úsica ser­

tan eja e, em b o ra reconhecendo as raízes caipi­

ras desta últim a, considera-se como uma

“m odalidade m usical dirigida às cam adas infe­

riores da população e cujo resultado não é senão o recrudescim ento da p ró p ria alienação inerente a esses estratos sociais, o que é facil­

m en te verificável no discurso das canções” (Cal­

das, 1977: 25).

Na coletânea q u e estam os analisando há ainda dois trabalhos sobre literatu ra de cordel:

um , de R o b erto E m erson C âm ara Benjamim (1980) que estuda seu sistem a de produção e comercialização n o nordeste e o u tro , de Joseph L uyten (1980) sobre a pro d u ção de fo lhetos na cidade de São Paulo.

Sobre cordel, a literatu ra é ab u n d an te. O volume V III (1977) da R evista d e Ciências S o ­ ciais da U niversidade Federal do Ceará é d ed i­

cado to ta lm e n te ao tem a e re ú n e colaborações de vários especialistas. E duardo D iatay Bezerra de M enezes, organizador da coletânea, faz um apanhado geral da literatu ra sobre o tem a, desde os prim eiros trab alh o s até às tendências atuais, detendp-se em questões m etodológicas (“ Para um a L eitura Sociológica da L iteratura de Cordel” ); L uiz T avares Ju n io r, em “O M ito da M aldade Castigada” faz uma análise da narrativa de alguns fo lhetos segundo a m etodologia de A.

J. G reim as, concluindo que “ a literatu ra de cor­

del, como expressão da alm a p o p u lar n o r­

destina, está interessada, como em to d a socie­

dade, na p ro b lem ática fu n d am en tal da Vida e da M orte, como proclam a sua narrativa m ític a ” (p. 105). R ejane Vasconcelos A ccioly Carvalho em “ A Ideologia dos R om eiros N ordestinos na L iteratura d e C ordel” p rocura analisar a ideolo­

gia subjacente a 18 fo lhetos sobre o Pe. Cícero e Frei D am ião, discutindo o caráter de aliena­

ção que, segundo a a u to ra , geralm ente se atribui aos m ovim entos sociais de tipo m ilenarista: “O fato de inexistir u m a p ro p o sta d e intervenção concreta na situação vivida e de q u e a negação do real em verdade alim enta a p ró p ria dom ina­

ção, não basta p ara caracterizar para nós a irra­

cionalidade” (p . 139). Para a a u to ra , é preciso vincular a ideologia m essiânica às condições

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concretas de existência d os pobres do cam po no N ordeste; a í, en tão , ela ganha logicidade.

A n to n io F au sto N eto em “O Discurso Punido” m o stra a influência da ideologia d o m i­

nante sobre o discurso p o p u lar q u e, no caso dos folhetos, vai desde sua red e de p ro d u ção e com ercialização que é “ capitalista” e não “ rú s­

tica” até à utilização de certos códigos “o p e­

rando a n ível da p ró p ria form a expressiva da linguagem dom inada e, ao mesmo tem p o , o delineam ento de um m odelo de co n tro le e de neutralização desta linguagem, viabilizada pela ideologia do o cu ltam en to ” . (p. 156).

Além de o u tro s trabalhos, e de dois levanta­

m en to s bibliográficos sobre literatura de cordel e cu ltu ra popular, a coletânea contém ainda os tex to s de A ntonio A ugusto A rantes Neto

“C ultura P opular: Conservadora? ” e de Mauro Barbosa d e Almeida “ Linguagem Regional e Fala Popular” . A m bos a u to res, q u e vão apare­

cer tam bém em “A rte em Revista” , n .° 3 - “ A Questão P opular” , discutem questões que de certa fo rm a estão presentes em todos os tra b a ­ lhos sobre literatu ra de cordel: é conservadora o u libertadora? Deve-se o p tar p o r um a análise in tern a, estrutural, o u pro ced er a um estudo mais contextuai?

A rantes N eto, no prim eiro te x to , coloca a questão d o . conservadorism o n a perspectiva crítica q u e Leach faz ao funcionalism o: os m itos e rito s são um a linguagem de discussão e não um coro de harm onia. Se a literatu ra oral, as festas, rito s, e tc . devem ser analisados em si mesmos (em sua estru tu ra), é só “no contexto da vida social, e n tre ta n to , no âm bito da história de hom ens reais que essas m atrizes abstratas preenchem esses m odelos, essas m aneiras corre­

tas d e dizer e d e fazer, e ganham sua significa­

ção” (A rantes N eto , 1977:169).

N o te x to publicado em A r te em R evista o au to r reto m a e amplia seu argum ento, m o s­

tran d o , através da análise de um fragm ento de corpus, que é preciso não esquecer que a com ­ preensão interna da linguagem (atrave's de ins­

tru m en to s elaborados pela teoria literária e pela antropologia estruturalista) “ tendem a privile­

giar os nexos estruturais internos do objeto e obscurecer as relações que lhe dão sentido e que se encontram , so b retu d o , na sua inserção num co n tex to m ais am plo” (A rantes N eto, 1980:

49).

Mauro de A lm eida (1 9 7 7 ) m o stra em seu artigo de q u e form a as elites, num a determ inada co njuntura p o lítica , se apropriam da fala p o p u ­ lar, transform ando-a em linguagem regional; na busca de legitim idade para suas reivindicações, as elites, nas relações com o p o d e r central,

fazem passar essas reivindicações com o sendo de to d a a região. É uma espécie d e “ trad u ção ” , à la bricoleur que se faz tan to da linguagem erudita para a p o p u lar, com o desta para aquela, e é um ato p o lítico : pense-se na transform ação do term o “ m a tu to ” para “ cam ponês” na con­

ju n tu ra de fim d os anos cin q u en ta e com eço da década de sessenta. Assim, é simplismo pensar que a denom inação se exerce pelo esm agam ento da “ cultura dom inada” pela cu ltu ra dom in an te, pois “ a p o lítica está d en tro da linguagem, q u er esta se m o stre como diálogo de falas opostas, q u er com o m onólogo d o p o d er” . E se as ciên­

cias sociais quiserem fugir às distorções de p o d er inerentes às tarefas detradução”, deve­

rão fazê-lo não em term os de co o p tação , mas de aliança.

No o utro artigo (1 9 8 0 ), Mario W. Barbosa A lm eida passa em revista alguns trabalhos sobre a literatu ra de cordel, como o artigo pioneiro de Orígenes Lessa (1 9 5 5 ),3 o de M arcius Frederico Cortez (1966) e o de R en ato C arneiro Campos (1977). A p ergunta é ju stam en te sobre a ideolo­

gia da literatu ra de cordel, e p o r extensão, do cam pesinato. Cada au to r busca d etectar a o rien ­ tação ideológica d os folhetos; se C ortez e R enato Campos concluem pela inexistência de uma verdadeira ideologia p o lítica na literatura de cordel - o p o p u lar é ingênuo, conservador

Francisco Julião ( “ C am bão, la cara oculta de Brasil” , M éxico, Siglo XXI) a vê do p o n to de vista da m obilização. O au to r term in a afir­

m ando que “ cultura não é coisa, m as processo de reprodução cultural, perm eado de conflitos e afetado pela co n ju n tu ra de forças sociais (. ..) Num a situação de co n flito , em p articu lar, os pedaços da visão do m undo ‘em m osaico’ se­

riam destacados, reintegrados e utilizados em função das práticas opostas colocadas na ordem do dia. C onjuntura p o lítica de m obilização pois, equivale a lu ta ideológica, ocupando espa­

ços na arena de um a ‘linguagem p o p u lar’ assim como em ou tras arenas” (A lm eida, 1980: 38).

Passar da noção de cultura como p ro d u to , para a de processo através do qual é produzida, é a perspectiva que se encontra no artigo de Eunice D urham (1980). Analisar os fenôm enos culturais na sociedade m oderna não é o m esmo que fazê-lo nas sociedades estudadas pela a n tro ­ pologia clássica, on d e se forjou o term o cultura, adverte a autora. No e n tan to , é possível recupe­

rar essa tradição, o n d e a “ noção de cultura p ar­

te do estabelecim ento de uma unidade funda­

m ental entre ação e representação, unidade esta que está dada em to d o co m portam ento social ( . . .) padrões e instituições não são simples­

m ente valores m as ordenações im plícitas na

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ação e q u e só secundariam ente podem vir a ser form uladas explicitam ente c o m o regras ou norm as” . A cu ltu ra co n stitu i assim um processo pelo q u al os h om ens orientam e dão significado às suas ações, através.de um a m anipulação sim­

bólica, e nesse sentido, “ to d a análise d e fe n ô ­ m enos culturais é necessariam ente análise da dinâm ica cultural, isto é , d o processo perm a­

nente de reorganização das representações na p rática social, representações estas que são sim ultaneam ente condição e p ro d u to desta p rá ­ tica” . Se a sociedade m oderna está m arcada pela heterogeneidade cultural (em função da diferenciação de condições de existência qu e se p rende à e stru tu ra de classes), o fenôm eno da cultura de m assa ten d e à hom ogeneização, o que faz com q u e o problem a da dinâm ica cultu-

• r a l s e p ro jete na esfera d as ideologias e q u e se ten h a de levar em consideração seu significado p o lítico , po is o p ro d u to cultural não é consu­

m ido passivam ente, m as reelaborado. Assim, a utilização diferencial d o m aterial sim bólico implica não só em “expressar peculiaridades das condições de existência m as de form ular in te­

resses divergentes” (p. 14).

Em Cultura e Ideologia, E unice D urham reto m a o tem a e além de rastrear o conceito de cultura na tradição antropológica, fá-lo igual­

m ente com o de ideologia n a Ciência P o lítica e Sociologia, detendo-se na contribuição althusse- riana. A a u to ra m o stra com o o conceito de ideologia fo i se alargando, até cobrir p ratica­

m ente to d o o espectro tradicionalm ente abar­

cado pelo de cu ltu ra, p erd en d o assim sua espe­

cificidade. P o r ou tro lado, a politização exces­

siva do universo sim bólico levou a explicar tu d o pela dom inação: “( . . . ) desde a concepção de E stado até a relação entre m ãe e filh o , desde o discurso d o governante a té o jogo de fu teb o l, a gafieira e o circo, desde a definição de cidadão até o hom ossexualism o” . Em vista disso, D urham p ro p õ e um a restrição do conceito de ideologia, re la c io n a n d o o com a rep ro d u ção ou transform ação das estru tu ras de dom inação.

Assim, os sistemas ideológicos se caracteriza­

riam m enos pelo co nteúdo especificam ente p o lítico de seus sím bolos do q u e pela orga­

nização, num novo sistem a “de fragm entos de significados, retirad o s d os sistemas culturais os mais diversos, organização esta q u e , form ulando uma visão específica da natu reza e das relações de poder, sim ultaneam ente organiza as práticas sociais n a direção da subm issão o u contestação”

(D urham , 1 9 7 9 :1 2 ).

E p o r falar em circo, cabe m encionar outra com unicação apresentada no m esmo encontro por José G uilherm e C an to r Magnani (1980)

onde se analisa esta fo rm a de en treten im en to m u ito difundida, tanto nas pequenas cidades do in terio r com o n os bairros populares d os grandes centros urbanos. Alguns deles são circos gran­

des, q u e conservam a antiga arte circense, com núm eros eqüestres, m alabarism o, animais ames­

trados, e tc . A m aioria, po rém , é c o n stitu íd a p o r

“m am bem bes” com seus dram as sobre os p eri­

gos da grande, cidade, a m igração rural-urbana, conflitos fam iliares, religiosos e cuja fo n te de inspiração são casos recolhidos nas tournées, lendas e crenças populares, tem as de m úsica ser­

taneja, m elodram as clássicos portugueses e espanhóis; com édias, cujos ingredientes são fato s do qu o tid ian o , telenovelas, personagens conhecidos do público como artistas de tele­

visão, e tc .; duplas sertanejas, cantores de m úsica

“jovens” q u e já transitaram em determ inados program as de rád io e televisão, show s com ani­

m adores de program as radiofônicos populares, jogos e brincadeiras. A q uestão que em geral é colocada sobre o caráter conservador o u p ro ­ gressista da cu ltu ra p o p u lar não faz m u ito sen­

tid o neste caso, po is en quanto os dram as - a rti­

culados em to rn o de fam ília, p o d e r, religião - tendem a refo rçar valores tradicionais ligados a estas instituições, as peças cómicas transform am esses m esm os valores e instituições em carica­

turas, m o stran d o , p o r assim dizer, o seu avesso.

No m esm o espaço d o circo enco n tram o s, assim, discursos que afirm am e negam , valorizam e desqualificam : e sta am bigüidade parece ser sua m arca característica.

Alguns estu d o s de Sociologia da C om u­

nicação consideram que a presença dos mass- media nessa e em ou tras form as de cultura p o p u lar é um fa to r de desagregação e se p erg u n ­ tam se a análise das peças não revela um co n ­ teúdo influenciado p ela ideologia dom inante.

No e n ta n to , “ não se p o d e pensar no conteúdo de um a peça ou te x to qu alq u er sem levar em consideração o processo de produção do dis­

curso no in terio r do qual se realiza a signifi­

cação. Em ou tras palavras, é preciso deslocar a análise do p ro d u to final, chame-se co n teú d o , m ensagem, etc., p ara seu processo de produção discursiva e de suas condições sociais de p ro d u ­ ção e circulação” (Magnani, 1980: 178). No caso do circo, esta análise leva a pensar “ que em seu interior existe um processo d e criação de sentido não ta n to co n tra os p ro d u to s da indús­

tria cultural, m as principalm ente p ela incorpo­

ração e reestruturação de tais p ro d u to s e d e ou ­ tro s elem entos significantes, seja qual for sua origem o u circulação d o m in an te” (id e m .p . 17).

Um tex to teórico que im p o rta m en cio n ar é o de G ü b erto Velho e E duardo Viveiros de Cas­

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tro . O s autores inicialm ente analisam a traje ­ tó ria do term o cu ltu ra n a tradição an tro p o ­ lógica, desde T y lo r a té T u m e r, Leach, passando p o r Mauss, Lévi-Strauss e o u tro s, e se detêm em p articular n o pro b lem a da abordagem a n tro p o ­ lógica nas sociedades com plexas. Com respeito às distinções entre “ cultura p opular” , “ cultura de elite” e “ cultura de m assa” , cham am a aten ­ ção p ara o perigo de classificações que não ultrapassam o n ível do estereó tip o ; p o r outro lado, a oposição elite vs. povo em term o s de cultura é m u ito vaga e p o u co precisa. A pós assi­

nalar as dificuldades que cercam a aplicação do m éto d o antropológico às sociedades com plexas, concluem que “ a possibilidade do antropólogo p rocurar decodificar a p ró p ria cultura em que está inserido, p o r m ais que envolva riscos e difi­

culdades, parece ser um a eta p a inevitável do desenvolvim ento da pesquisa antropológica, em que o esforço de relativização chega a um p o n to crucial” (Velho e C astro, 1 9 78: 9).

Para finalizar e sta resenha, cum pre fazer referências a dois tex to s da coletânea A r te em R evista q u e intro d u zem o u tro co njunto de p r o ­ blem as na reflexão sobre cultura popular. São os trab alh o s de R enato da Silveira e Mário Pedrosa, que discutem a presença do Estado na área cultural, levantando a questão da oposição arte p o p u lar vs. axte nacional.

Silveira analisa a P olítica Nacional da Cul­

tura elaborada sob a égide do então M inistro da Educação, N ey Braga. Para o au to r, o “ sistema cultural nacional se articula com um conjunto de subsistem as regionais, ocupacionais e de classe. C ultura N acional são os valores da classe dirigente. C ultura p opular é o co njunto de ges­

to s, valores, imagens das classes in strum entais e subordinadas, isto é, aceitando a subordina­

ção.” (Silveira, 1980: 9). Assim, a p ro p o sta go­

vernam ental de preservar a arte popular, a titu d e supostam ente progressista, na verdade seria con­

servadora, po is leva a um a “burocratização” da cu ltu ra, pio vo ca n d o restrições ao q u e é inacei­

tável p o lítica e m oralm ente e levando à com er­

cialização. Por o u tro lado, é preciso encarar cri­

ticam ente as artes populares, po is se são uma referência indispensável para nós, afirm a o autor, form aram -se como ideologia dom inada e estão im pregnadas de elem entos conservadores.

Pedrosa (1 9 8 0 ), após alertar para o perigo da utilização da a rte p o p u lar p ela indústria do turism o, o u mesmo p o r ideologias fascistas, ana­

lisa o florescim ento do artesanato d u ran te o governo da U nidade Popular n o Chile quando os artesãos se organizaram , ten d o surgido um m ercado interno, e ocorrido um a “ desalienação do gosto” pela difusão do artesanato nos seto ­

res populares. Para o a u to r, a arte p o p u lar não pode florescer nas grandes econom ias m o n o ­ polistas nem nas econom ias prim itivas e sub­

desenvolvidas, o n d e apenas vegetam ; só nas sociedades em vias de transform ação revolucio­

nária, desde que h aja “ Uberdade criativa e alegria po p u lar” .

F in alm en te, convém citar o te x to d e Maria Isaura Pereira de Q ueiroz. A au to ra assinaia que no Sem inário de C ultura Brasileira (Ouro P reto , ju n h o de 1980) houve um a recusa dos particip an tes em adm itir a existência de um a entidade p erm an en te, a “ cu ltu ra brasileira” , que m antivesse um núcleo im utável garantidor de sua co n tinuidade. Se p o r um lado o que apareceu fo i o caráter h eterogêneo da cultura brasileira, a au to ra n o ta que os d ebates se afas­

taram da tradicional m aneira de encarar essa Cultura com o resultado de integração, sincre- tism o ou síntese a p a rtir de etnias - índia, negra, b ran ca. A heterogeneidade fo i pensada com o decorrente da estratificação sócio-eco- nôm ica in tern a da sociedade brasileira, que acentuava dissem elhanças entre uma cultura de cam adas superiores e um a cu ltu ra de cam adas inferiores. “O ‘ser brasileiro’ seria form ado de disparidades e de diferenças p o rq u e teriam sem­

pre existido no Brasil desigualdade e conflitos, que podiam assum ir aparências étnicas, porém que n a verdade se enraizavam nas estruturas de p oder q u e foram se instalando no p aís através do te m p o ” (Q ueiroz, 1980:4).

3. Observações finais

N os lim ites im postos p o r esta resenha seria im praticável um levantam ento com pleto das publicações existentes na área d a cultura p o p u ­ lar, e esta é a razão p ela qual m uitas co n tri­

buições não foram n ela incluídas. C onform e foi assinalado n a in tro d u ção , mais do q u e apresen­

tar um p anoram a exaustivo dos trabalhos sobre o tem a, o que se preten d ia era d e te cta r algumas tendências básicas que de certo m odo estão p re ­ sentes no atu al debate sobre cu ltu ra popular.

À diferença do pro b lem a q u e co n stitu ía a preocupação de um enfoque m ais tradicional - a autenticidade o u não das m anifestações c u ltu ­ rais populares — a questão que se coloca hoje é a existência de crenças, costum es, festas e fo r­

m as de en treten im en to tal q u al são produzidos e consum idos, pois a cultura, m ais d o q u e um a soma de p ro d u to s, é o processo de sua cons­

tan te recriação, num espaço socialm ente d e te r­

m inado. P ro d u to res e consum idores d a cultura popular não vivem em com unidades fechadas sobre si m esm as, m as ao contrário - especial­

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m ente nos grandes centros urbanos —, são em sua m aioria trabalhadores de origem rural recen­

te ou re m o ta, inseridos de diferentes form as na estru tu ra econôm ica capitalista, sujeitos à ação dos m edia, m em bros, enfim , de um a sociedade com plexa, nela o cu p an d o , não sem co nflitos, os últim os escalões econôm icos e sociais. A s m an i­

festações de seu universo sim bólico, p o rta n to , não podem ser pensadas independentem ente das condições de vida de seus p o rtad o res, no interior de uma sociedade atravessada pelas rela­

ções de poder.

Esta é a perspectiva q u e, de uma form a ou de o u tra , está p resen te nos atuais estu d o s sobre cultura popu lar: considerada com o um a form a de resistência à ideologia dom in an te, ou ao co n ­ trário, como fru to dessa m esm a dom inação;

entendida com o o resultado de um a tensão entre o q u erer do dom inante e o querer do dom inado e, p o rtan to , am bígüa e dissim ulada;

finalm ente, como o espaço no qual se re p ro ­ duzem sim bolicam ente as relações de p o d e r vigentes na sociedade, o u onde se invertem , tem porária e ritu alm en te, essas m esm as relações

a cultura p o p u lar é encarada sempre do p o n to de vista de suas relações com o po d ej.

Sc esta linha de análise tem se revelado fe ­ cunda para a com preensão d os valores, m odos de vida, e até p ara o e n ten d im en to de alguns aspectos dos pró p rio s m ovim entos sociais p o p u ­ lares e suas m otivações po líticas, é preciso não esquecer q u e p o r detrás da tentativa de a rticu ­ lação e n tre cultura e p o d e r subsistem algumas questões q u e estão a exigir um m aior grau de elaboração. Em m uitos trabalhos o term o cultura abrange, p o r exem plo, o de ideologia;

em o u tro s ocorre ju stam en te o co n trário e não poucas vezes são utilizados indistintam ente com o sinônimos.

Esta definição - devida em grande p arte ao fato de não se levarem em co n ta os contextos teórico-m etodológicos da form ação e aplicação dessas categorias - está na origem de um a u tili­

zação p ouco precisa tan to do conceito de c u ltu ­ ra como de ideologia q u e, se p o r um lado apre­

sentam inúm eros p o n to s de c o n tato , certa­

m ente não recobrem as mesmas realidades, nem as recortam da m esm a form a.

N o t a s

1. Cf. Renato O rtiz, “ C ultura Popular: O rganizaçãoe Ideologia” , Cadernos de O pinião, n .° 12, 1979; Carlos Hstevam M artins, “H istória do CPC” ,/4/-/<? em R evista, n .° 3, 1980.

2. Neste en co n tro , que co n to u com a participação de cerca de 50 pesquisadores e professores de diferentes instituições de to d o o p aís, os debates foram organizados em torno das seguintes m esas-redondas: “C apitalism o, Dominação e Classes S ubalternas” (Maria Sylvia de Carvalho F ranco); “C om unicação, Cultura e Classes S ubalternas” (José M arques de M elo; “M odos de C om unicação dos Trabalhadores R urais” (G audêncio T o rq u ato ); “ M odos de Com unicação dos T rabalhadores R urais” (A nam aria F ad u l); “M odos de Com unicação d os G rupos Religiosos”

(Isaac Hpstein); “ M odos de Com unicação de Com unidades M arginalizadas” (Carlos E duardo Lins da Silva); “ C om unicação e Conscientização das Classes S ubalternas” (Onésim o de Oliveira Canloso).

3. Aparecido em 1955 na revista A n h e m b i e republicado, sem indicação de fo n te, no livro G etúlio Vargas na Literatura de Cordel, Rio de Janeiro, 1973.

B ib lio g r a f ia Almeida, Mauro W. Barbosa

1977 “ Linguagem Regional e Fala Popular” . Revista d e Ciências Sociais, vol. V III, n .° 1 e 2. F o rtaleza, Im prensa U niversitária da U niversidade Federal do Ceará.

1980 “ Leituras do C ordel” . A r te em R evista, n .° 3. São Paulo, Kairós.

Alves, Isidoro

1980 O Carnaval D evoto: Um E studo sobre a Festa de Nazaré em B elém . Petrópolis, Vozes.

A rantes N eto, A ntônio A.

1977 “ C u ltu ra Popular: Conservadora1? ” . R evista de Ciências Sociais, vol. V III, n .° 1 e 2.

1980 “ Pelo E studo dos F o lh eto s no C o n tex to de Sua Produção” . A r te em R evista, n .° 3.

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Referências

Documentos relacionados

In section 7, we shift our focus from the topology to the geometry of pro- teins, and present our project to investigate the relationship between the local geometric structure of