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hannah arendt e a banalidade do mal

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Academic year: 2023

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ANAIS DA VIII MOSTRA CIENTÍFICA DO CESUCA – NOV./2014 ISSN – 2317-5915

F A C U L D A D E I N E D I – C E S U C A

Rua Silvério Manoel da Silva, 160 – Bairro Colinas – Cep.: 94940-243 | Cachoeirinha – RS | Tel/Fax. (51) 33961000 | e-mail: cesuca@cesuca.edu.br

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HANNAH ARENDT E A BANALIDADE DO MAL

Gian Luca Hainzenreder Bischoff1 Orientador: Prof. Ms. Renato Selayaram

Resumo: o presente artigo analisa o conceito filosófico de Hannah Arendt a respeito do fenômeno da Banalidade do Mal através da ocasião em que suas teorias vieram à luz, isto é, durante o julgamento do nazista Adolf Eichmann, responsável pela Solução Final, programa de extermínio dos judeus.

Palavras-chave: Banalidade; Mal; Nazismo.

Abstract: the present article analyzes Hannah Arendt’s philosophic concept about the phenomena of Banality of Evil through the occasion when her theories came to light, i.e., between the trial of Adolf Eichmann, the responsible Nazi by the Final Solution, extermination program of Jews.

Keywords: Banality; Evil; Nazism.

1. INTRODUÇÃO

Foi no subtítulo da obra Eichmann em Jerusalém, publicado em 1963, que a filósofa Hannah Arendt apresentou ao mundo o termo Banalidade do Mal pela primeira vez.

Entretanto, muito curiosamente, raríssimas são as ocasiões durante sua dissertação em que a autora retoma de maneira, há de se ressaltar, explícita, o inestimável conceito já desenvolvido e presente na capa, isto é, tratando literalmente do fenômeno em discussão, uma vez que ela opta por se dedicar quase exclusivamente à narração objetiva do julgamento. Tal preferência sugere nítida e astuta consciência por parte de Arendt, como se tornasse implícita a fina perspicácia imprescindível ao leitor de seu relato para correlacionar o aspecto filosófico conceitual com a narração oferecida. Além disso, uma vez que os anos 60 foram uma década de revoluções, sobretudo nos costumes e na cultura, presumimos que tal época se reflete na sutileza da escritora, razão pela qual deixou nas mãos de seus leitores a oportunidade de se darem conta de tudo que havia acontecido.

Hannah Arendt certamente há muito vinha concebendo o fenômeno da Banalidade do Mal antes da sua apresentação formal, mas não poderia ter existido cenário melhor para sua corroboração prática senão o julgamento de Adolf Otto Eichmann, o nazista responsável pelo

1 Estudante do Curso de Direito do CESUCA - gianluca2013@hotmail.com

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emprego da Solução Final, procedimento que culminou no massacre de aproximadamente um terço dos judeus no decurso da Segunda Guerra Mundial. Em cerca de oito meses de audiências, não inclusas nesse cômputo as sessões dedicadas à apelação, nunca o fenômeno desenvolvido pela filósofa alemã esteve tão claro diante dos olhos da humanidade, seja antes, seja depois. Ainda assim, a maioria à época preferiu apenas cerrar as pálpebras e simplesmente ignorar a principal problemática em questão. Desta forma, pretende-se neste artigo refletir não apenas acerca da teorização de Arendt sobre o fenômeno da Banalidade do Mal, mas, antes, esboçar com propriedade o paralelo do conceito filosófico com a administração do Holocausto e o julgamento de Eichmann.

2. ADOLF OTTO EICHMANN

Adolf Eichmann, antes de tudo, foi um burocrata medíocre. Ele buscou servir ao seu Estado com o maior zelo possível, independentemente das eventuais consequências que pudessem vir a lhe acontecer (ora, é de se considerar que poucos seriam os funcionários do governo alemão a cogitar a derrota na guerra, ao menos antes de 1942, indubitavelmente o ano mais decisivo do conflito, a despeito da quase dogmática crença norte-americana, que prefere acreditar no Dia D2 como o início da campanha vitoriosa definitiva. Há muito os soviéticos já vinham pressionando os germânicos de volta a Berlin no front oriental). Nas suas próprias palavras, acerca do ocaso do regime nazista:

“Senti que teria de viver uma vida individual difícil e sem liderança, não receberia diretivas de ninguém, nenhuma ordem, nem comando me seriam mais dados, não haveria mais nenhum regulamento pertinente para consultar – em resumo, havia diante de mim uma vida desconhecida.”3

Destarte, percebe-se um homem cuja preferência pessoal era seguir regras, ao invés de dá-las. Era ele, em suma, o homem correto no momento e no local incorretos. Teria se provado, sem dúvida alguma, um excelente servidor público caso não tivesse nascido nas dadas circunstâncias do que viria a se tornar o território alemão: poucos foram os membros tão cegamente fiéis a uma causa até hoje como ele. Tal proposição é bem demonstrada através de Heinrich Müller4, citado por Jacob Robinson:

“Se tivéssemos cinquenta Eichmanns, teríamos vencido a guerra.”5

Nascido em 19 de março de 1906, Adolf Otto Eichmann já demonstrava sinais de sua postura passiva durante a infância, quando, provavelmente devido à própria indolência, não conseguiu concluir ao menos a escola secundária. Na juventude, demonstrou parca capacidade

2 Fundamental episódio para o desenvolvimento do conflito armado e posterior vitória dos Aliados no front ocidental. Trata-se, em suma, do desembarque de tropas, na sua grande maioria, norte-americanas, britânicas e canadenses nas praias da Normandia, França, no dia seis de junho de 1944, que culminou na retomada do território do referido país.

3 Eichmann em Jerusalém, p. 43-44

4 Heinrich Müller (1900-1945?), líder da Gestapo, a Polícia Secreta do Estado. É o mais elevado membro do regime nazista a nunca ter sido encontrado, embora evidências apontem para que tenha sido executado por soviéticos ou se suicidado no dia 1º de maio de 1945.

5 And the Crooked Shall Be Made Straight, p. 37

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de se estabelecer por tempo considerável em um emprego: primeiramente, trabalhou como mineiro comum na pequena empresa de mineração do pai e, logo em seguida, desempenhou a função de vendedor na Companhia Elektrobau austríaca por dois anos. Depois disso, os cinco anos que se seguiram foram os mais estáveis da vida de Eichmann, garantidos através da intermediação de um primo de sua madrasta, que se utilizou de contatos favorecidos com o dono de uma empresa de óleo, um judeu cujo sobrenome era Weiss, para garantir a seu parente um serviço como vendedor viajante em tempos de implacável desemprego. Apesar de todas as regalias originadas da estabilidade de estar nesta Companhia, Eichmann, embora fosse pouco competente, era ambicioso e não suportava a pacata vida cotidiana de seu trabalho, visando à ascensão. Em 1932, um ano antes de ser despedido, filiou-se à SS6.

A questão da entrada de Eichmann na Schutzstaffel é digna de nota. Nunca se informara a respeito do programa do Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei7 ou lera Mein Kampf8. Estivera em dúvida, na verdade, se deveria filiar-se à maçonaria ou ao partido, mas sua indecisão foi prontamente desfeita após ter sido recusado entre os maçons devido a uma vexatória gafe, em uma ocasião na qual, sendo o mais jovem à mesa, Eichmann convocou os demais a tomar uma taça de vinho. De qualquer forma, os maçons seriam futuramente incluídos no pouco seleto grupo de perseguidos pelos nazistas (ainda que de forma minimamente bem-sucedida). Durante pouco mais de um ano, Eichmann decidiu seguir carreira militar, na qual não se distinguiu de forma admirável. Sem muitas alternativas e mais uma vez excitado pela possibilidade de ascender profissionalmente, candidatou-se sem hesitar ao SD9, onde começou de forma legítima sua infame carreira.

3. UM PERITO NA QUESTÃO JUDAICA

A primeira ocupação de Eichmann no SD foi reunir todas as informações possíveis acerca da maçonaria, assim colaborando no estabelecimento de um museu sobre a organização secreta. Mas, para seu alívio, compreensivelmente entediado pelo escasso serviço referente aos maçons, foi transferido rapidamente para um novo setor, exclusivamente dedicado aos judeus. E foi nesse ponto onde, gradualmente, começou a desenvolver seus dotes especiais a respeito da questão judaica: leu, a respeito do movimento sionista10, dois livros (O Estado Judeu11, Theodor Herzl, e História do Sionismo, Josef Böhm) que o fizeram

6 Schutzstaffel, mais bem conhecida como SS (ou, em português, tropa de proteção), foi uma divisão paramilitar adjunta ao regime nazista e a Hitler. Detém incomensurável responsabilidade nos crimes perpetrados contra a humanidade ocorridos durante o Reich.

7 Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, isto é, o Partido Nazista, liderado por Adolf Hitler, ativo na Alemanha entre 1920 e 1945.

8 Minha Luta. Livro escrito por Hitler, na década de 20, onde expôs teoricamente seus ideais a respeito de questões como racismo, antissemitismo e nazismo.

9 Sicherheitsdienst, ou SD (em tradução livre, serviço de inteligência). Órgão responsável por inúmeros assuntos, departamentos e setores secretos.

10 O movimento sionista consiste em uma espécie de nacionalismo hebraico. Trata-se da busca por uma autoafirmação da cultura judaica e conquista de um Estado nacional próprio, que deveria ser localizado no antigo Reino de Israel, em referência à Terra Prometida por Jeová a Abraão e seus descendentes. O sionismo opõe-se por definição à Diáspora, nome dado ao fenômeno da dispersão dos hebreus por diversas localidades do mundo através dos séculos desde a destruição de Jerusalém, e também aos judeus assimilacionistas, isto é, aqueles que desejavam se estabelecer definitivamente em um país e absorver a cultura local. O sionismo obteve sua maior vitória em 1948, três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação do Estado de Israel.

11 Der Judenstaat, no original. Publicado pela primeira vez em 1896, por Theodor Herzl (1860-1904), é considerado um dos alicerces fundamentais do movimento nacionalista judeu.

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crer que sabia o necessário para lidar com as referentes circunstâncias; vangloriava-se de ser fluente em iídiche e hebraico; espionou escritórios sionistas e ampliou o conhecimento de informações vitais através do contato com judeus influentes.

Em 1938, um dos anos mais fatídicos de sua trajetória na administração nazista, Eichmann foi enviado para Viena a fim de executar um serviço, até então, inédito. Tratava-se da, assim denominada, emigração forçada, um desprezível eufemismo para expulsão. Através de complexos e mecânicos engenhos, a saída dos judeus era negociada de forma que o patrimônio confiscado dos mais abastados saldasse o deslocamento dos menos favorecidos.

Mas Eichmann, inefavelmente amoral, preferia compreender tais deslocamentos, conforme depôs em seu julgamento em Jerusalém, como uma troca de favores entre os nazistas e os hebreus, baseando o fundamento de tais acordos apenas em interesses recíprocos. Ora, a legítima motivação das emigrações forçadas é bastante evidente: uma vez que os atos do Reich12 propagavam explicitamente seu antissemitismo13 através, por exemplo, das Leis de Nuremberg14, nada mais previsível que os judeus desejassem ansiosamente se verem o mais rápido possível longe dali, ao menos (embora eles jamais pudessem imaginar o limite da crueldade humana, demonstrada, aliás, não muito depois) enquanto conseguissem sair de livre e espontânea vontade.

E foi nessa temporada em Viena que Eichmann acumulou os principais conhecimentos que viriam a se tornar imprescindíveis em seu papel desempenhado na Solução Final.

4. AS OPÇÕES EXISTENTES 4.1 Expulsão, a primeira alternativa

Nos meses que antecederam a frequente prática de agrupar os judeus em campos de concentração, o procedimento típico do regime nazista consistia em expulsá-los. Nesse contexto, surge na Questão Judaica a importância fundamental da autoridade de Eichmann.

Um traço extremamente interessante e, portanto, digno de nota, acerca desse período inicial de sua atividade na coordenação das emigrações forçadas é a indubitável contribuição judaica no processo. Enquanto os sionistas correspondiam a cerca de 5% dos judeus organizados na Alemanha, estes não hesitaram em vestir orgulhosamente a distintiva Estrela de Davi em seus trajes. Além do mais, apercebendo-se dos tempos de revolucionárias transformações em que viviam, os simpatizantes ao sionismo não deixaram de se entusiasmar, chegando, inclusive, a cooperar com os nazistas, pois acreditavam que o regime subjugaria os judeus assimilacionistas e permitiria, enfim, a concretização do sonho do Estado judeu.

12 Palavra alemã cujo significado literal seria rico. Costuma-se utilizá-la, entretanto, como sinônimo de império.

Um interessante fato a ser comentado é a presunção de Hitler ao intitular a Alemanha nazista de Terceiro Reich, demonstrando o intenso imperialismo arraigado no regime. A saber: o Primeiro Reich corresponde ao período do Sacro Império Romano-Germânico (962-1806), enquanto Segundo Reich serve de denominação ao Império Alemão (1871–1918).

13 O antissemitismo é, em sintetizadas palavras, o ódio e/ou preconceito direcionado a judeus, ou seja, caracteriza-se como uma subespécie de xenofobia (repúdio a estrangeiros). Os antissemitas consideravam os hebreus (mais evidentemente no período anterior à criação do Estado de Israel, em 1948) um grupo inferior, parasita do território alheio.

14 Conjunto de leis que fundamentavam legalmente os ideais nazistas no que tange ao antissemitismo. É digno de nota comentar que tal legislação foi, sob uma determinada abordagem, basicamente simbólica, uma vez que apenas ratificou um segregacionismo já firmemente arraigado na sociedade alemã. Dentre o conteúdo das leis destacam-se principalmente a proibição do matrimônio e coabitação entre alemães e judeus.

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Embora tal pensamento tenha, evidentemente, se demonstrado uma amarga ilusão adiante, as relações de barganha tomariam um rumo ainda mais imoralmente banal com a vinda de agentes palestinos a Viena, onde se discutiu a emigração de judeus jovens – futuro da geração e capitalistas para o território palestino. Tratava-se, em suma, de uma inconsequente seleção para a sobrevivência, apesar de que, à época, o obstáculo maior ao sionismo fosse mais o Reino Unido, administrador legal da Palestina, do que a Alemanha. Assim, para melhor compreender a controversa natureza do papel de Eichmann nesse cenário, transcrevemos as palavras de Jon e David Kimche, renomados historiadores judeus, acerca do assunto:

“O homem que acabaria fazendo história como um dos arquiassassinos do povo judeu entrou para a história como ativo batalhador pelo resgate de judeus na Europa.”15

O desempenho de Eichmann na execução de seu papel em Viena foi de um afinco invejável. Em cerca de dezoito meses, ele organizou a emigração de aproximadamente 150 mil judeus, conquistando, assim, importantes promoções: evoluíra, em menos de quatro anos, de segundo-tenente a tenente-coronel. Com a ocupação alemã da Tchecoslováquia em março de 1939, Eichmann foi enviado a Praga para cumprir o mesmo encargo de Viena. Contudo, não obteve o mesmo sucesso obtido na capital da Áustria, por uma diversidade de motivos. E, finalmente, quando foi chamado seis meses depois, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial em setembro, para coordenar o Centro de Emigração Judaica em Berlin, percebeu que estava perdido. Era quase utópico pensar na migração em tempos de guerra. Era simplesmente inviável, em suma. Ademais, havia os dois milhões de judeus absorvidos pelo Reich com a invasão da Polônia. Eichmann se desesperou: compreendera que, se a situação permanecesse assim, ele não tardaria a perder seu emprego.

4.2 Concentração, a segunda alternativa

Foi apenas com o início da guerra, em setembro de 1939, que o regime nazista tornou- se definitivamente criminoso e ameaçador aos olhos do restante do mundo. Nesse contexto de tensões, Eichmann foi remanejado de Praga para Berlin, onde enfrentou a impossibilidade de continuar com o processo dos deslocamentos de judeus, prática na qual fora tão bem-sucedido anteriormente, em vista das imperiosas circunstâncias inerentes a tempos de guerra. E assim, surgem aqui, também em vista dos referidos empecilhos de prosseguir com as movimentações, as infames ideias a respeito da concentração de judeus em determinados locais destinados a tal propósito.

O primeiro projeto atribuído a Eichmann a respeito da concentração de judeus se vincula ao período inicial da guerra, mais especificamente à invasão da Polônia: uma vez que esta ainda era, para efeitos puramente teóricos, apenas um território ocupado – isto é, não caracterizava, oficialmente, um elemento integrante do Reich –, tencionava-se a instituição de

“um Estado judaico autônomo, na forma de um protetorado”16 lá localizado. Entretanto, considerando, ou não, o suposto objetivo altruísta17 de Eichmann em verdadeiramente

15 The Secret Roads: the “Illegal” Migration of People, 1938-1948, p. 38

16 Eichmann em Jerusalém, p. 88

17 O irônico realce se deve ao fato de que Adolf Eichmann muito provavelmente imaginava se tornar politicamente responsável por esse hipotético Estado judeu. Entre as motivações para tal idealização figura não

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estabelecer “um solo firme debaixo dos pés deles”18, tal ideia de concentrar os judeus se comprovou em breve um imenso desastre, uma vez que a mesma deu origem ao desumano sistema de guetos, culminando em alguns dos mais conhecidos da história da guerra, como o Gueto de Varsóvia19.

O segundo projeto atribuído a Eichmann corresponde ao infamemente rememorado projeto Madagascar, que tinha como objetivo o massivo deslocamento dos judeus da Europa, até a mencionada ilha, uma possessão francesa localizada no Sudeste do continente africano.

Entretanto, nunca houve qualquer disposição para tornar a idealização efetivamente prática e, ao menos aparentemente, apenas Eichmann e alguns de seus subordinados creram sem quaisquer ressalvas em tal história. Para os outros nazistas, tratava-se apenas de uma conveniente fábula cujo principal objetivo era dissimular a iminente aplicação da Solução Final. De qualquer forma, a realização do Plano Madagascar era praticamente inimaginável:

ainda que sejam desconsideradas as intrincadas circunstâncias inerentes a um cenário de guerra, não se deve ignorar a quase monopólica superioridade da marinha britânica no Oceano Atlântico, tampouco o notório fato de que a ilha em questão pertencia inegavelmente à França.

As aspirações de Eichmann de conseguir aglomerar os judeus da Europa em um determinado território e eventualmente se tornar um protetor dessa região se esgotaram de maneira irreversível após a invasão da Rússia em meados de junho de 1941. Se antes era muito pouco provável a instituição de um Estado judeu, com a campanha no front oriental tal cogitação tornou-se incontestavelmente inviável. Dessa forma, o projeto para Madagascar foi definitivamente abortado e a Solução Final gradualmente começou a ser implantada.

4.3 Extermínio, a terceira alternativa

Eichmann seria informado a respeito das diretrizes principais do extermínio dentro de um a dois meses após a referida invasão dos alemães ao território russo. É de extrema conveniência observar que, enquanto nos influentes círculos do Partido Nazista o futuro massacre de judeus já não era mais nenhum segredo, os altos membros da SS, como Heydrich20, superior de Eichmann e responsável por lhe informar a respeito da decisão final do Führer21, já tinham conhecimento dos planos de aniquilamento desde, no mínimo, o começo da guerra, em 1939, fato que ratifica novamente a relativa irrelevância de Adolf Eichmann na administração dos programas nazistas e nos ambientes de prestígio político.

apenas seu exacerbado orgulho de ter lido dois livros sérios acerca do movimento sionista e ser considerado uma autoridade na questão judaica, mas também por irrepreensível inveja de Hans Frank, governador-geral da Polônia ocupada pelos nazistas.

18 Idem nota 16.

19 O Gueto de Varsóvia foi o maior dos guetos na Polônia. Esteve ativo de outubro de 1940 a maio de 1943, com uma população total de cerca de 400.000 judeus. Em seguida, o gueto foi inutilizado e os sobreviventes foram enviados ao campo de extermínio de Treblinka, também na Polônia.

20 Reinhardt Heydrich (1904-1942). Chefe do SD e do RSHA (Reichssicherheitshauptamt, ou Escritório Central de Segurança do Reich) até sua morte, em 1942. Foi assassinado durante um atentado em Praga por dois guerrilheiros tchecoslovacos.

21 Significa Líder, em alemão. Com exceção dos países cuja língua oficial é a alemã, onde o significado da palavra não se tornou estigmatizado, o termo mencionado ainda é tradicionalmente associado a Adolf Hitler.

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Agora, administrando o desempenho da Solução Final, cabia a ele, em suma, receber as listas elaboradas pelos Conselhos de Anciões Judeus22, nas quais eram discriminados os nomes dos selecionados para os campos de concentração e extermínio, e consultar o WHVA23, que informava qual seria o destino final de cada embarque de judeus.

Um dos acontecimentos mais singulares na trajetória de Eichmann no desempenho da Solução Final, e, portanto, imprescindível de ser ilustrado, ocorreu assim que ele assumiu seu papel no sistema que viria a culminar no genocídio judeu. Diante de um carregamento contendo 20 mil judeus e 5 mil ciganos, Adolf Eichmann preferiu, pela primeira e única vez em sua vida, desobedecer suas implacáveis diretrizes superiores e enviar os prisioneiros não para território russo, onde tinha consciência de que eles seriam invariavelmente destinados ao fuzilamento pelos Einsatzgruppen24, mas para o Gueto de Lódz25, no qual ele sabia que não tinham sido preparadas instalações de extermínio. A razão de tal atitude demonstrou-se uma autêntica incógnita ao longo do julgamento, uma vez que, enquanto a defesa investiu na dúbia argumentação de que Eichmann sempre salvou os judeus quando possível, a acusação se deteve na hipótese de que a ordem do destino final das vítimas sempre coube ao réu.

De uma forma ou de outra, os juízes israelenses fizeram pouco caso de tal indagação filosófica e concluíram a referida narrativa como uma das principais provas contra o réu, sendo que tal indecisão íntima se caracterizava, na verdade, como uma das principais evidências a favor dele, demonstrando a quase inconcebível profundidade da lavagem cerebral presente na ideologia nazista, tão intensa a ponto de perturbar o discernimento de um homem entre o certo e o errado. Outro importante fator passível de ser adicionado na investigação de pretextos envolvidos com a aceitação das práticas nazistas se refere à alienação sofrida pela quase totalidade da população alemã: a maior motivação (desconsiderando, obviamente, outras frequentes atribuições também relevantes, como o revanchismo e a inflexibilidade do Tratado de Versalhes26) da busca pela concretização de ideais tão nefastos consistia no sentimento de que entrariam para a História por estarem envolvidos em algo tão grandioso. Ora, é inegável que o intento tenha sido alcançado, mas

22 Conselhos compostos pelos mais importantes rabinos de uma determinada comunidade judaica. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman aponta em sua obra Modernidade e Holocausto (p. 146) que “é possível supor que a insistência nazista em fazer tudo no gueto pelas mãos dos judeus tinha como um dos seus perversos objetivos tornar o poder da liderança judia tanto mais visível e convincente”. Tal fato se torna mais verossímil a partir da estatística de que o número de sobreviventes entre os judeus que conseguiu eventualmente se refugiar e viver na clandestinidade é assustadoramente maior em comparação com os remanescentes que se mantiveram submissos aos líderes das comunidades judaicas até o fim.

23 Wirtschafts-Verwaltungshauptamt, isto é, Escritório Central de Economia e Administração. Era o departamento responsável na Alemanha Nazista pelo financiamento de projetos e sistemas, incluído aqui, evidentemente, o custeio do Holocausto.

24 Grupos de Intervenção. Eram unidades móveis de assassinato sob o controle nazista. Foram crucialmente responsáveis pelo extermínio em massa na Europa Oriental. Dentre os principais alvos destacam-se judeus, ciganos, eslavos, deficientes físicos e mentais, guerrilheiros, comunistas e demais opositores do regime.

25 Localizado na Polônia, foi o segundo maior gueto do país e também o mais duradouro, resistindo até agosto de 1944. Os judeus remanescentes foram enviados para os campos de extermínio de Auschwitz e Chelmno, ambos na Polônia, onde foram aniquilados.

26 Tratado de Paz assinado em 1919, após o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), pelas potências vitoriosas no conflito, destacando-se Inglaterra, França e Estados Unidos. O documento inclui inúmeros termos prejudiciais à Alemanha, como perda de porções territoriais e coloniais, restrições quantitativas e qualitativas às Forças Armadas e pagamento de abusivas indenizações pelos danos causados durante a guerra.

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não se pode dizer o mesmo a respeito dos meios como seria atingido – e futuramente rememorado. Tal ideia é perfeitamente desenvolvida nas palavras de Goebbels27:

“Ficaremos na história como os maiores estadistas de todos os tempos ou como seus maiores criminosos”28

Como em todos os conflitos armados, sempre cabe aos vitoriosos julgarem os crimes dos derrotados. Não à toa, costuma-se falar pejorativamente em Justiça dos vencedores. Dessa forma, pode-se quase entender a incompreensão do povo alemão diante da gravidade do que estava cometendo. Não faltou apenas consciência moral para nunca cogitar intento tão sádico e repugnante, mas também dignidade para assumir até o fim as consequências das desumanidades que estavam perpetrando (não foram poucos os oficiais nazistas, além, evidentemente, do próprio Hitler, a recorrerem ao suicídio). Além disso, tal banalidade chegou a um nível nunca antes conhecido quando Heinrich Himmler29 ordenou a suspensão das atividades nos campos de concentração no outono de 1944: sua motivação não era súbito remorso ou restauração moral, mas ilusória e cínica esperança de que os Aliados ponderassem tal ato de misericórdia. Tardia iniciativa, aliás. Ou, também, quando novamente Himmler, no contexto de uma já financeira e militarmente falida Alemanha, negociou com o Dr. Kastner30 a troca de um milhão de judeus por dez mil caminhões, demonstrando a insignificância da vida humana ao ser usada como moeda de troca.

Como se pode perceber, o preocupante fenômeno da banalidade do mal não atingiu apenas aos nazistas, mas se estendeu à quase totalidade da população alemã31 e a alguns dos próprios judeus, atingindo uma proporção numérica assustadora e quase intangível.

Seguramente muitos dos alemães à época pensaram, tentando, de certo modo, tranquilizar a própria consciência: ora, se até mesmo as pessoas mais próximas de mim consentiram tal solução, por que iria eu me opor?

Nesse contexto de divagações filosóficas, é de extrema conveniência voltar à história de Adolf Eichmann, a fim de intersectar ambos os referidos objetos. Foi a partir de janeiro de 1942 que o conhecimento da Solução Final deixou de se tornar exclusivo aos influentes membros do partido ou da SS, sendo propagado ao restante da respeitável sociedade alemã.

No mês mencionado foi realizada uma decisiva reunião onde foi objetivada a cooperação e o consenso pelo estabelecimento do programa de extermínio. Estiveram presentes

27 Joseph Goebbels. Foi o Ministro da Propaganda durante o regime nazista e um dos principais responsáveis pela difusão do antissemitismo no Reich, além de ter sido grande entusiasta da Solução Final. Com a constante aproximação do Exército Vermelho a Berlin, cometeu suicídio no dia 1º de maio de 1945.

28 Eichmann em Jerusalém, p. 33

29 Heinrich Himmler (1900-1945) foi o comandante geral da SS. Desempenhou um papel decisivo no Holocausto, sendo responsável pela criação dos Einsatzgruppen e dos campos de extermínio. Após o fim da guerra na Europa, conseguiu se esconder por alguns dias, até ser capturado por tropas dos Aliados. Suicidou-se em 23 de maio de 1945, ingerindo uma cápsula de cianeto, enquanto estava sob custódia dos britânicos.

30 Rudolf Kastner (1906-1957), judeu húngaro e vice-presidente da Organização Sionista de Budapeste, foi um advogado e jornalista responsável por ajudar outros judeus a escapar do Holocausto durante a Segunda Guerra.

Apesar de ser mais bem recordado pela prática de salvar vítimas dos nazistas e embarcá-las para a Suíça em um trem batizado com seu nome, Kastner foi posteriormente acusado de colaborar com os alemães ao selecionar judeus específicos (incluindo amigos pessoais e até mesmo membros de sua família) para serem salvos.

31 A possibilidade de morte, assegurada pelos nazistas diante da iminente derrota na guerra, nas câmaras de gás ou por cianeto, para os cidadãos, era vista por estes como um favor, no sentido mais literal da palavra.

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subsecretários de diversos dos ministérios estatais, assim como Heydrich, que presidiu a apresentação. Naquele momento, diante de tantos admiráveis cavalheiros, Eichmann finalmente se sentiu seguro e sua mente foi permeada pela aceitação do massacre de judeus.

Na presença da elite alemã, ele saboreou a reconfortante sensação de serenidade. Se até mesmo aqueles nobres homens concordaram com tal procedimento, quem era ele para discordar? Através desse mesmo encadeamento de ideias modestas, a quase totalidade da população alemã foi seduzida por um plano tão perverso.

Os dois anos que se seguiram à reunião foram os mais automatizados da trajetória de Eichmann. Sua rotina consistia basicamente apenas em enviar os carregamentos dos nomes selecionados pelos Conselhos de Anciões Judeus para o destino ordenado pelo WVHA, administrando eficientemente a execução da Solução Final. Sem indagações ou considerações morais, apenas obedecendo às ordens superiores. Com a determinação de Himmler, em meados de 1944, de arrasar os campos de extermínio, os demais nazistas gradativamente começaram a perceber a futura e inegável derrota, assumindo, assim, uma postura mais flexível diante da resolução da questão judaica. Nesse contexto, os judeus não eram mais tão valiosos quando mortos, mas, sim, vivos, fosse para o uso de moeda de troca, fosse como um cínico gesto de pacificação para impressionar os Aliados nos eventuais acordos e negociações no fim da guerra. As diretrizes, portanto, não mais determinavam apenas o extermínio dos judeus: se antes tal atitude se tratava de corrupção, agora os negócios eram a prioridade.

Surgem também nesse cenário os nazistas moderados: conscientes da espiral descendente na qual se introduzia a Alemanha através do conflito armado, eles vislumbraram – irretocavelmente – um futuro nebuloso para o país e se dispuseram a ingressar nessa nova modalidade de transações, buscando o acúmulo de provisões para atravessar esse vindouro período. Adolf Eichmann, em uma atitude bastante previsível, não se deixou abater por esse seleto grupo, que incluía até mesmo Himmler.

Cerca de quatro meses antes do fim da guerra, em janeiro de 1945, Eichmann foi remanejado do departamento de assuntos judaicos para o responsável pelo combate contra as igrejas, assunto no qual era, sem dúvida, leigo. Sua carreira como perito na questão judaica definitivamente acabara.

5. MAIO DE 1945 E PÓS-GUERRA

Com o suicídio de Hitler, em 30 de abril de 1945, Eichmann estava, enfim, livre de suas atribuições, uma vez que o juramento dos membros da SS não os vinculava ao Estado, mas apenas ao Führer. Enquanto fugia, em meados de maio, foi capturado por soldados norte- americanos, que não conseguiram determinar sua verdadeira identidade. Em novembro, quando começaram os julgamentos em Nuremberg, seu nome começou a aparecer durante os interrogatórios. Temeroso, escapou do campo onde foram aprisionados provisoriamente membros da SS. Permaneceu por quatro anos, através de nome falso, vivendo em uma charneca no interior da Alemanha, onde trabalhou como lenhador. Em profundo tédio, obteve correspondência com uma organização clandestina de veteranos nazistas, conseguindo um passaporte para Buenos Aires, sob o nome de Richard Klement. Em torno de julho de 1950, já residia na capital argentina. Entrou em contato com sua família, que o considerava, então, falecido. Após dois anos, sua esposa e filhos vieram ao seu encontro na América do Sul.

Viviam em condições miseráveis, morando em uma pequena casa de tijolos, sem eletricidade ou água encanada.

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Através dos anos em que residiu na Argentina, Adolf Eichmann não suportou a vida de refugiado de modo discreto. Não apenas se vangloriava volta e meia, a qualquer um, de ter eliminado cinco milhões de inimigos do Reich, mas também cometeu a ingenuidade de incluir seu sobrenome no registro do filho nascido em solo argentino. Fato é que ele não tardou a atrair suspeitas: em maio de 1960, foi sequestrado por agentes israelenses. A despeito da ilegitimidade dos documentos de Eichmann, ato que praticamente o acondicionava à qualidade de apátrida – assim como fora feito com suas vítimas –, é imprescindivelmente forçoso admitir a ilegalidade do método dos sequestradores. Como o raptado residia na Argentina, estava ele sob a plena tutela daquele Estado, não podendo ser dali removido sem o devido procedimento legal, isto é, mediante um processo de extradição32 encaminhado por Israel. Como os israelenses não esperavam – com considerável razão: havia um vasto histórico de nazistas abrigados em território sul-americano – que Eichmann fosse concedido, eles optaram por uma medida desesperada e compreensível, o sequestro.

6. JULGAMENTO, APELAÇÃO E EXECUÇÃO

O julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, iniciado em abril de 1961, se sobressaiu em diversas feições. Primeiramente: a acusação. Gideon Hausner, procurador-geral do Estado de Israel, demonstrou através de todo o processo uma postura incisiva e contundente na ofensiva ao réu, imputando a este, sempre que possível, mais poder e responsabilidade que verdadeiramente detinha. Não foram raras, além disso, as ocasiões nas quais as sessões se tornaram quase um espetáculo mórbido, sendo trazidas diversas testemunhas dos horrores ocorridos na Europa Oriental durante a Segunda Guerra. Os juízes, ainda que estivessem plenamente cônscios da ausência de nexo entre os eventos sucedidos no Leste e os atos de Eichmann33, preservaram a humanidade enquanto não intervieram de modo algum no relato de sofrimento dos que estiveram presentes nos campos de extermínio orientais, mas não deixaram de observar posteriormente, na sentença, a relativa impertinência do procurador-geral Hausner ao preencher considerável tempo do julgamento com matéria apenas indiretamente ligada ao réu.

Em segundo lugar: a defesa. Ora, a despeito da muito previsível condenação do réu, não se pode dizer que o advogado de Eichmann, Robert Servatius, foi plenamente hábil em sua abordagem argumentativa, recorrendo, na maioria das vezes, a enfoques simples e frágeis, como atos de Estado, isto é, ordens superiores, concernentes a um poder soberano, que não poderiam ser julgadas por demais Estados. Há de se destacar, além disso, a carência a que Servatius esteve submisso de documentos relevantes ao processo, visto que todos os escritos essenciais à defesa do acusado estavam em posse dos arquivos nacionais do Estado de Israel, sendo oferecido ao advogado para elaborar seu amparo, assim, apenas o quê realmente pretenderam os responsáveis pelos papéis. Ademais, por motivos de competência jurisdicional, o depoimento de testemunhas em favor de Eichmann também foi seriamente

32 Processo internacional entre dois Estados, no qual o primeiro entrega alguém reclamado pelo segundo, para que possa ser devidamente julgado por seus crimes cometidos.

33 A despeito dos esforços da acusação para atribuir responsabilidade a Eichmann pelas atrocidades ocorridas nos campos do Leste, o único sobre o qual ele realmente detinha algum controle administrativo, localizado em Theresienstadt, na Tchecoslováquia, servia apenas para concentrar determinadas classes de judeus, como os idosos e os mais bem favorecidos financeiramente, não possuindo instalações destinadas ao assassinato em massa.

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comprometido, já que a maioria daqueles que tinham algo a dizer em seu benefício era constituída de veteranos nazistas, também sujeitos, portanto, ao julgamento em Israel.

Por último: a decisão. Em face de todas as acusações contra Eichmann e – sobretudo – de seus atos, não era plausível, como discorrido anteriormente, que não fosse condenado. Ele mesmo, em mais de uma ocasião, chegara a dizer até mesmo que já sabia o quê lhe aguardava.

Foram, aliás, duas as ocasiões que mais o comprometeram diante de todos os presentes: o momento quando afirmou que nada muito severo acontecia com os oficiais nazistas que se recusavam a cumprir suas atrozes diretrizes e o instante em que foi taxativo ao admitir que não descumprira as ordens dos seus superiores apenas por seu próprio livre-arbítrio. Enfim, em dezembro de 1961, os juízes acertadamente o sentenciaram à pena de morte, acatando catorze das quinze acusações a ele imputadas, destacando-se dentre elas, de maneira evidente, crimes de guerra e contra a humanidade. Os trabalhos de revisão, principiados em março de 1962 e concluídos depois de dois meses, nada adicionaram, filosófica e judicialmente, ao julgamento anterior. Os juízes da Suprema Corte de Israel não apenas foram indiscutivelmente favoráveis à acusação, mas também se demonstraram prontificados em reiterar todas as incoerências defendidas por Hausner relativas ao envolvimento de Eichmann com os campos de extermínio no Leste, considerando o réu, até mesmo, como o arquiteto definitivo da Solução Final.

Adolf Eichmann foi, por fim, enforcado na madrugada de 30 de maio de 1962.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É quase espantoso que a Banalidade do Mal tenha sido elucidada apenas há tão pouco tempo. Ainda que o apogeu de tal fenômeno tenha se demonstrado durante o Reich nazista, pouco menos de um século atrás, nunca havia ele sido desvendado de pleno modo antes das ponderadas e lúcidas reflexões da filósofa alemã Hannah Arendt, que discerniu, através de seu olhar aguçado, a verdadeira problemática oculta por trás da questão do Holocausto, encontrando ali não a premeditada ilustração do psicopata sanguinário e inescrupuloso, mas apenas a translúcida imagem de um servo incondicional do Estado. Arendt conseguiu distinguir com destreza os mecanismos que capacitaram o instrumento de genocídio dos nazistas, encontrando ali homens comuns, servidores públicos respeitáveis, irredutivelmente convencidos da veracidade de uma ideia horripilante e prontificados a assumir os papéis necessários à concretização de tal plano bárbaro.

Sob uma perspectiva mais atual, a Banalidade do Mal, uma desventura, aliás, tão característica do complexo mundo moderno, sofre, por si só, um processo quase metalinguístico. De um modo interessante, ainda que seja um fenômeno intrínseco à vida hodierna, não deixa de ser, ele mesmo, banalizado, quase propositalmente esquecido e relegado ao outrora. Na verdade, ele se metamorfoseia progressivamente em silhuetas ainda mais discretas e imperceptíveis, corrompendo valores morais, éticos e universais, simplesmente esperando que não nos lembremos de sua existência. Banal, em suma. Ora, mesmo que, às vezes, não tenhamos plena consciência, tudo parece se transformar sucessivamente em cifras, algarismos e estatísticas abstratas, pouco sensíveis. Não raramente se dá menos importância ao número de mortos – apenas mais dígitos – em uma tragédia, por exemplo, que a um assassinato individual. E banalizar o mal, evidentemente, traz consequências imensuráveis.

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Ora, como pôde uma nação inteira se dobrar diante dos caprichos alucinados de um único homem, sob a cínica alegação de que ele era digno de veneração, pois havia emergido das massas? Como pôde a imensa maioria das Igrejas simplesmente ignorar o que se passava na Alemanha, permitindo um patético antagonismo religioso ser superior a qualquer noção de humanidade, sentimento tão caro ao Cristianismo? Como pôde Eichmann admitir que nem mesmo o próprio pai seria por ele poupado, caso isso lhe fosse ordenado por seus superiores?

Como pôde um sistema de aniquilamento em massa ser concebido de modo tão frio e autômato, a ponto de conseguir transformar, paralelamente, assassinos em burocratas e burocratas em assassinos? Como puderam alguns dos líderes das comunidades judaicas se abater pela sórdida tentação de negociar seus irmãos com os nazistas na vã esperança da sobrevivência? Como puderam os membros da Conspiração de 20 de julho tencionar o assassinato de Hitler não pelas indescritíveis atrocidades do Holocausto, mas pelo rumo exponencialmente enfraquecido que estava tomando a Alemanha na Segunda Guerra? Como puderam alguns dos mais experientes e sábios juízes do Estado de Israel não admitir o singular desafio jurídico e filosófico que tinham diante de si através do julgamento de Eichmann, preferindo, por outro lado, o considerar apenas um mentiroso, incapaz de assumir a verdade? A resposta para todas essas indagações, meus caros, tem fundamento no temível fenômeno da Banalidade do Mal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 1. Ed.

São Paulo: Companhia das Letras, 1999 (Ed. Orig. 1963/1964).

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. 1998 (Ed. Orig. 1989). Disponível em:

<http://books.google.com.br/books/about/Modernidade_e_Holocausto.html?id=Og6umwN5x wEC&redir_esc=y>. Acesso em 22 set. 2014.

KIMCHE, Jon e David. The Secret Roads: The “Illegal” Migration of People, 1938-1948.

1955. Disponível em:

<http://books.google.com.br/books/about/The_Secret_Roads.html?id=jvAcAAAAMAAJ&re dir_esc=y>. Acesso em 10 jul. 2014.

ROBINSON, Jacob. And the Crooked Shall Be Made Straight. 1965. Disponível em:

<http://en.m.wikiquote.org/wiki/Heinrich_M%C3%BCller>. Acesso em 16 ago. 2014.

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