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A peste, uma “cruelíssima fera”. Repensar a peste antiga entre os séculos XVI e XVII – Ambrósio Nunes, Rodrigo de Castro e João Curvo Semedo

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Universidade de Lisboa Faculdade de Letras

A peste, uma “cruelíssima fera”.

Repensar a peste antiga entre os séculos XVI e XVII – Ambrósio Nunes, Rodrigo de Castro e João Curvo Semedo

Mestrado em Estudos Clássicos

Margarida da Cunha Belém

2022

Dissertação especialmente elaborada para a obtenção do grau de Mestre, orientada por: Professor Doutor Bernardo Machado Mota e Professora Doutora Cristina Maria

Nascimento Guerra Santos Pinheiro

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iii Índice

Resumo V

Abstract VII

Agradecimentos IX

Introdução 1

Capítulo I: Biografias de Rodrigo de Castro, Ambrósio Nunes e João Curvo Semedo

7

1. Rodrigo de Castro (c. 1546 – c. 1627) 7

2. Ambrósio Nunes (1529 – 1611) 10

3. João Curvo Semedo (1635 – 1719) 12

Capítulo II: Generalidades sobre a peste 19

1. A peste, essa “cruelíssima fera” 19

2. A Peste bubónica e o seu agente patogénico 20 3. A Peste bubónica: é causada sempre pela mesma bactéria e tem

sempre o mesmo vector de infecção?

22

4. A Peste Negra: as histórias da História 25

5. A descrição da peste no momento exacto 28

Capítulo III: A peste segundo Rodrigo de Castro, Ambrósio Nunes e Curvo Semedo

33

1. Definição de peste 33

2. Características e sintomas da peste 35

3. Causas da peste 37

4. Deus(es) e Medicina 40

Capítulo IV: Casas de Saúde, higiene e pobreza 45

1. A Medicina entre a Peste Negra e o Iluminismo 47 2. Os “não naturais” e os primeiros conceitos de saúde 49

3. Saúde: um bem comum? 51

4. A pobreza e a peste: um pretexto para resolver os problemas de higiene?

53 Capítulo V: Tradução de castelhano para português de oito capítulos do

tratado de Ambrósio Nunes sobre peste (1601)

57

1. Introdução 57

2. Tradução 59

2.1. Primeira parte 59

2.2. Segunda parte 64

2.3. Terceira parte 67

2.4. Quarta parte 70

Conclusão 87

Bibliografia 91

Anexo I 95

Anexo II 101

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v RESUMO

Entre os finais do século XVI e a segunda metade do século XVII escreveram-se inúmeros tratados sobre a peste; esta doença contagiosa de mortalidade elevada era ainda o maior problema de saúde pública que qualquer comunidade enfrentava. Este trabalho tem três objectivos: o primeiro é dar a conhecer os tratados sobre a peste escritos por três médicos portugueses, a saber: Rodrigo de Castro, Ambrósio Nunes e Curvo Semedo, nos anos de 1596, 1601, e 1680 respectivamente, relembrando a importância destes autores na sua época (e para além dela), e na história da medicina portuguesa. O segundo é salientar a importância da cultura ibérica (fundamental na formação destes médicos), permeável à influência de saberes de outras civilizações (nomeadamente a árabe) e, simultaneamente, capaz de assimilar as referências da Antiguidade Clássica. O terceiro é tentar demonstrar a importância que estes tratados tiveram – tal como muitos outros do mesmo género – no desenvolvimento e na melhoria das condições de higiene e de salubridade urbana, e na luta contra a pobreza na civilização ocidental. Uma leitura cuidada dos tratados referidos mostrou como estes problemas milenares e sem fronteiras beneficiaram da devoção destes médicos na luta que travaram contra as sucessivas vagas pestilenciais, e como este desígnio se revelou essencial para que a saúde se tornasse um “bem público”.

PALAVRAS-CHAVE: Tratados médicos, Peste, Séculos XVI – XVII, Higiene, Saúde, Pobreza.

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vii ABSTRACT

Between the late 16th century and the second half of the 17th century, numerous treatises on the plague were written; this contagious disease of high mortality was still the biggest public health problem that any community faced. This dissertation has three objectives: the first is to make known the treatises on the plague written by three Portuguese physicians, namely: Rodrigo de Castro, Ambrósio Nunes and Curvo Semedo, in the years 1596, 1601, and 1680 respectively, recalling the importance of these authors in their time (and beyond), and in the history of Portuguese medicine. The second is to highlight the importance of Iberian culture (fundamental in the formation of these physicians), permeable to the influence of knowledge from other civilizations (namely Arabic) and, at the same time, capable of assimilating references from Classical Antiquity. The third is to try and demonstrate the importance that these treatises had - like many others of the same kind - in the development and improvement of hygiene and urban health conditions, and in the fight against poverty in western civilization. A careful reading of the treaties referred to has shown how these millenarian and boundless problems benefited from the devotion of these doctors in their fight against successive waves of pestilence, and how this intent proved essential for health to become a “public good”.

KEYWORDS: Treatises, Plague, XVI - XVII Centuries, Hygiene, Health, Poverty.

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ix AGRADECIMENTOS

Quando no ano lectivo de 2020/21, ingressei no mestrado em Estudos Clássicos na Faculdade de Letras de Lisboa atraída pela paixão de estudar os clássicos, nunca imaginei que, no segundo ano (que termina agora), acabaria a estudar tratados de peste, um estudo que se revelou uma surpresa e um prazer, por mais estranho que pareça.

Simultaneamente, este segundo ano do mestrado dedicado à dissertação foi, por razões pessoais, o ano mais difícil da minha vida. A todos os meus amigos e à minha família não vou exprimir aqui “agradecimentos” porque tudo aquilo que possa dizer fica aquém do que merecem.

Mas deixo registado neste trabalho o meu sincero agradecimento à Professora Cristina Santos Pinheiro e ao Professor Bernardo Machado Mota, que orientaram esta dissertação, por me terem apresentado às três personalidades extraordinárias que motivaram este trabalho, pela ajuda constante numa matéria sobre a qual nada sabia, e pela dedicação com que acompanharam todo este processo. Por fim, ao Professor Bernardo Machado Mota agradeço ainda a paciência e não me ter deixado desistir.

Dedico cada uma destas páginas ao Filipe.

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1 INTRODUÇÃO

«O passado é um país estrangeiro, lá as coisas são feitas de uma maneira diferente».

The Go-Between (1953), L. P. Hartley

Não é fácil gostar de tratados sobre a peste. É necessário lê-los nas entrelinhas, analisando as citações que contêm, destacando as várias referências quer dos autores antigos, quer dos autores contemporâneos, enriquecendo a leitura de cada um destes textos, tentando compreender o que levou estes três médicos a reflectir sobre um conjunto de medidas necessárias para combater uma doença contagiosa de mortalidade elevada e, mais importante, o efeito que estas diligências tiveram posteriormente.

Este trabalho é uma reflexão sobre os tratados de peste de Ambrósio Nunes (1529 – 1611), Rodrigo de Castro (1546 – 1627) e João Curvo Semedo (1635 – 1719), com o objectivo de divulgar autores, obras e conteúdos pouco conhecidos da cultura portuguesa e que actualizam, nos séculos XVI e XVII, doutrinas científicas herdadas e construídas desde a Antiguidade Clássica. Em consequência desta análise,pretende-se apurar qual a importância que foi dada por estes autores à resolução e à melhoria das condições de higiene, de salubridade urbana e de luta contra a pobreza nas comunidades onde viveram, ou, por outras palavras, se existe uma preocupação explícita nestes tratados também para com as classes mais desfavorecidas e se apresentam soluções no âmbito da saúde mais justas e dirigidas a qualquer tipo de doente.

Para este propósito, dividiu-se em cinco capítulos este trabalho. No primeiro faz- se a apresentação biográfica dos três autores em estudo. No segundo, apresenta-se uma breve síntese sobre a peste de uma perspectiva histórica, ou seja, como, quando, e quem escreveu sobre a “cruelíssima fera” (como é referida com base em texto de Hipócrates), comparando fontes médicas com fontes não-médicas da mesma época.

Esta síntese inclui a discussão de uma questão fundamental, sobre até que ponto a Peste Negra vivida na Idade Média condicionou os estudos acerca desta doença até ao século XIX. No terceiro procede-se a uma análise mais detalhada dos tratados em questão, evidenciando como é que os autores definem e caracterizam esta doença, como descrevem os seus sintomas e as sua causas e, por fim, como ultrapassam a dificuldade de conciliar a religião com a ciência médica, tendo em consideração que, tratando-se de

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um surto de peste, a primeira das causas apontadas era, invariavelmente, a de um castigo divino. O quarto propõe muito sucintamente salientar o que de inovador aconteceu na medicina entre a Idade Média e o Iluminismo (séc. XVIII), focando genericamente os séculos em que foram escritos estes tratados. Para abordar este hiato de cerca de quatrocentos anos analisam-se tópicos particulares, tais como as medidas de higiene e os comportamentos saudáveis tendo em conta os seis “não-naturais”, as medidas profiláticas e de contenção da doença, a salubridade urbana, as Casas de Saúde e a pobreza. O quinto e último capítulo apresenta a tradução de castelhano para português de uma parte do tratado de Ambrósio Nunes. Esta tradução inclui dois capítulos da parte I sobre as causas da peste e outras doenças contagiosas; um capítulo da parte II sobre as diferentes formas de contágio da peste e de outras doenças também contagiosas; um capítulo da parte III sobre os sintomas da peste; e um capítulo da parte IV sobre as medidas para combater esta doença. Os capítulos traduzidos foram escolhidos com a intenção de dar a conhecer a opinião de Ambrósio Nunes sobre as causas da peste, os seus modos de transmissão, o reconhecimento dos seus sinais – o que nos remete para as descrições semelhantes de Rodrigo de Castro e de Curvo Semedo - e, seguidamente, salientar uma das opções (considerada essencial por Ambrósio Nunes e pelos outros dois autores) para combater este mal, que era a construção de Casas de Saúde com o intuito de defender a Cidade e acudir aos mais desfavorecidos.

Posto isto, será lícito perguntar: no século XXI, após os enormes avanços científicos no campo da medicina, que importância poderá ter recuarmos centenas de anos e estudarmos os tratados sobre a peste de Rodrigo de Castro, de 1596, de Ambrósio Nunes, de 1601 e de João Curvo Semedo, de 1680? A importância destes autores, no entanto, vai para lá dos respectivos tratados de peste que escreveram e que são aqui objecto de análise.

Quanto a Rodrigo de Castro, apenas recentemente foram traduzidas de latim para português duas das suas obras capitais, A Peste de Hamburgo, editada em 2021 e traduzida por Bernardo Mota, Cristina Santos Pinheiro e Gabriel A. F. Silva, e O Médico Político, editada em 2011 e traduzida por Domingos Lucas Dias, estando para breve a edição traduzida da obra que provavelmente o singulariza enquanto clínico, o seu tratado sobre ginecologia. Castro tem uma obra que vai muito além da medicina e que

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procura realçar o papel e a responsabilidade social do médico. Na sua opinião “O médico perfeito” é uma pessoa de ciência, um filósofo e um humanista. Na sua poderosa argumentação no livro O Médico Político (publicado em Hamburgo em 1614) define inequivocamente o desígnio do médico na sociedade, desígnio esse que deverá ser alcançado pela perfeição individual, pela ética, pelo conhecimento e pela devoção incondicional, para que possa prestar o melhor serviço a qualquer doente e, consequentemente, à comunidade onde vive. As questões que coloca ao longo deste tratado são de carácter universal, revelando preocupações da nossa e de todas as épocas, como exemplifica a sua reflexão sobre a negligência e o erro médico, ou sobre o direito de todos aos serviços de saúde, afirmando nomeadamente:

Mas chamamos a atenção para que o médico receba para tratar qualquer particular que seja que pede auxílio e, tendo-o recebido, procure tratá-lo com toda a diligência, seja ele cristão, judeu, turco ou pagão. Todos estão unidos pela lei da humanidade, e a humanidade exige que todos devem ser igualmente tratados pelo médico.1

Ambrósio Nunes, destes três médicos, é aquele que se dedica primeiro ao ensino e depois à prática clínica. Exerce a sua função de docente na Universidade de Salamanca durante vinte e seis anos até ser jubilado aos cinquenta e sete; quando regressa a Portugal retira-se para Coimbra onde se dedica a escrever. Entre as suas obras de referência contam-se o comentário sobre os três primeiros livros dos Aforismos de Hipócrates,que faz parte do rol de livros dados por Castro como obrigatórios para a formação de um médico (por aplicação do critério “em cujas obras brilhem ciência comprovada, o génio e a destreza da escrita”)2 e o Tractado repartido en cinco partes principales, que declaran el mal que significa este nombre Peste…”, que se tornaria uma obra de referência sobre esta doença. Nenhuma das duas obras indicadas mereceu edição ou comentário modernos. Um aristocrata entre os seus pares e um católico

1 DIAS 2011: 194-95.

2 DIAS 2011: 115.

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convicto, granjeou a fama de ser uma autoridade no campo da medicina. Frei Manoel Coelho atesta pela Santa Inquisição o tratado da peste de Nunes, afirmando:

Vi este tratado da preservação, e cura do mal da Peste, feito por o Doctor Ambrósio Nunes Físico e Cirurgião Mor de Sua Majestade: Não tem cousa alguma contra a nossa Santa Fé, e bons costumes, antes tem muita curiosidade; e cuido que será de muito proveito, não só para preservar do mal da Peste (de que nos Deus guarde) mas para outras enfermidades. E assim me parece digno de se imprimir.3

Curvo Semedo, um médico famoso em Portugal na sua época, marcou, quer pelos elogios, quer pelas críticas, a história da medicina na viragem do século XVII para o século XVIII. Viveu entre dois séculos e duas idades do mundo, chamaram-lhe o nosso médico barroco por excelência, e talvez o tenha sido, na definição mais clássica do termo. Como se verifica ao observar todas as ideias que vigoram em momentos de fim de época, os finais do século XVII foram uma mistura e uma assimilação de influências e tendências. Esta abertura a todas as possibilidades que Curvo Semedo assume e que revelou nas suas ideias descritas em diversos textos mostram uma personalidade (ou sensibilidade?) que tem tanto de racional, hipocrático e galénico, como de empírico, alquimista e esotérico. Considerado um clínico experiente e competente, um autor erudito e um inventor de remédios originais, foi também criticado por ter uma ética duvidosa ao ganhar dinheiro com as suas receitas “milagrosas”; Semedo responde da seguinte maneira aos seus detratores:

Não há de ser afronta no Médico o receber dinheiro por andar visitando os doentes, por subir e descer escadas, por andar pelos frios, pelos ventos, e pelas chuvas, por ver os excrementos nojentíssimos, mas essenciais, e há de ser crime, e descrédito o receber dinheiro por se cansar sobre os livros, por desvelar os seus discursos, por se furtar ao descanso, por comprar os

3 NUNES 1601: 3.

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instrumentos, e ingredientes necessários, e os mais escolhidos para fabricar alguns medicamentos necessários, novos, e eficazes?4

Entre épocas, entre inovações e entre estilos diferentes de exercer medicina, Rodrigo de Castro, o humanista, Ambrósio Nunes, o académico e João Curvo Semedo, o erudito, são referências obrigatórias no vasto dicionário de médicos portugueses. Mas o que justifica realmente que nos ocupemos destes autores é terem sido profissionais hábeis, terem tido a mestria de responder a situações de calamidade pública, e de terem deixado um legado escrito que influenciou os seus pares e a sociedade onde viveram.

Isso basta, na história da medicina portuguesa, como em qualquer outra, para que publiquemos as suas obras e se escrevam trabalhos como este.

4 SEMEDO 1709: 125.

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7 Capítulo I.

Biografias de Rodrigo de Castro, Ambrósio Nunes e João Curvo Semedo

1. Rodrigo de Castro (c.1546 – c.1627)

Rodrigo de Castro viveu entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do século XVII: o nascimento, de acordo com os seus biógrafos, dá-se entre 1546 e 1550 em Lisboa, e a sua morte, entre os anos de 1627 e 1630 em Hamburgo.5 Filho do médico André Fernandes, sabe-se que a sua mãe tinha por apelido de solteira Vaz, e era irmã de três médicos, um deles Manuel Vaz, que Castro cita numa das suas obras por ter estado este seu tio ao serviço de quatro monarcas: D. João III, D. Sebastião, Cardeal D. Henrique e Filipe II de Espanha, primeiro de Portugal.6

Cursou medicina em Salamanca7, terminando os estudos por volta de 1570.

Regressou a Portugal, onde iniciou a sua profissão como médico. Filipe II (I de Portugal) convidou-o a participar nas investigações sobre as plantas medicinais da Índia, mas Castro declinou o convite “por justas razões.”8 Fazendo parte da diáspora de judeus e

5 Segundo Jon Arrizabalaga, a data de nascimento de Castro é incerta, sendo apontada nas suas biografias a de 1546 ou 1550; Arrizabalaga indica o dia 20 de janeiro de 1627, como sendo o dia e o ano da sua morte, mas ressalva, tal como outros autores, uma carta que Castro escreveu a Abraham Zacuto (Zacuto Lusitano) a 16 de julho de 1629, int. MOTA et al. 2021: 10 e 14; PINHEIRO, 2017. Carta de Rodrigo de Castro a Zacuto Lusitano (1575 - 1642): Online: http://web2.bium.univ- paris5.fr/livanc/?cote=00342x01&p=29&do=page

6 CASTRO 1603: vol.2, 33: “Memini quidem expertissimum virum Emanuelem Vaezium avunculum meum, qui ob consummatissimum, in arte medica judicium, et peritiam non vulgarem fuit successive, quatuor Lusitaniæ regum, Johannis tertii, Sebastiani, Henrici, et Philippi secundi cubicularius medicus [...]

(“Lembro-me, na verdade, do muitíssimo experimentado Manuel Vaz, meu tio, que, pelo consumadíssimo juízo na arte médica e pela invulgar perícia foi, sucessivamente, médico cubicular de quatro reis da Lusitânia: João III, Sebastião, Henrique e Filipe II”; tradução: Bernardo Machado Mota).

7 Sobre a Peregrinatio Hispanica de alunos de medicina portugueses: Cf. GONÇALVES 2016: 58-77.

8 Afirma Rodrigo de Castro acerca do convite de Filipe II: “O mesmo Filipe e os outros reis de Espanha e Portugal despenderam grandes somas para trazerem medicamentos de ambas as Índias e de todas as partes da terra e cultivaram hortos medicinais, para cujo fim pretenderam que eu, ainda que indigno, navegasse para a Índia Oriental, com a oferta de ampla remuneração e honras não despiciendas, a que se somava que não estaria subordinado nem ao vice-rei nem a qualquer outro, bem ao contrário, ele estaria obrigado a trazer de todas as províncias do Oriente até mim as plantas naturais que aí crescem, e eu compará-las-ia com aquelas sobre as quais gregos e árabes escreveram e ordená-las-ia segundo os capítulos deles, editando sobre elas um comentário. Por justas razões, recusei esta tarefa, apesar de honrosa e muito útil para todo o mundo, esperando que outro, que me excedesse em erudição e experiência, possa um dia realizar isso mesmo” (DIAS 2011: 221).

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de cristãos-novos da Península Ibérica9, e após uma estada em Antuérpia, onde conheceu e casou com Catarina Rodrigues, fixou-se em Hamburgo por volta de 1594, onde publicou, em 1596, um pequeno tratado sobre a peste que assolou a cidade nessa altura.

No início do século seguinte, Catarina morreu de parto ao dar à luz o seu terceiro filho. Seguidamente Castro publicou o seu tratado sobre ginecologia em dois volumes:

De universa mulierum medicina.10 Mais tarde, em 1614, publicou a sua famosa obra sobre ética médica O médico Político.11 Depois da morte da sua segunda mulher, assumiu abertamente a fé judaica, tendo sido sepultado no cemitério da congregação judaica de Altona, em Hamburgo.12

Castro gozou de grande prestígio junto das autoridades de Hamburgo, e, embora os judeus estivessem impedidos de terem casas na cidade, criou-se uma excepção para ele, que possuía uma casa por si construída no centro (na Wallstraße), mas não pôde, ainda assim, deixar este legado aos seus herdeiros.13 A sua fama de clínico exemplar e muito competente ultrapassou os limites de Hamburgo. Foi consultado pelo Rei da Dinamarca, pelo Arcebispo de Bremen, pelo Duque de Holstein e de Mecklenburg e pelo Conde de Hessen.

Os seus méritos passaram, de alguma maneira, para os seus filhos. Os dois mais velhos, Bento e Daniel de Castro, acabaram por se formar também em medicina; Bento (ou Benedict ou Baruch) foi médico da rainha Cristina da Suécia, e Daniel (ou Andreas) foi médico do rei Christian IV da Dinamarca.

1596: O ano da peste e o tratado de Rodrigo de Castro

Em 1596, a cidade de Hamburgo foi devastada pela peste, e Rodrigo de Castro estendeu os seus préstimos ao Senado da cidade, escrevendo um Tractatus breuis De Natura, et Causis Pestis, Quae Hoc Anno M.D.XCVI. Hamburgensem Ciuitatem affligit.

9 Sobre as diásporas sefarditas: cf. ARRIZABALAGA 2009: 110.

10 Sobre esta obra de Rodrigo de Castro: cf. PINHEIRO 2021: 293; DIAS 1887-1889: 2.6-11, 40-44, 85-89, 97-102, 165-170.

11 Cf. ARRIZABALAGA 2009: 114.

12 Cf. DIAS 2011: 14.

13 Cf. ARRIZABALAGA 2009: 114; Sobre este assunto ver também: FRADE e SILVA 2011: 63.

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(Tratado breve sobre a natureza e as causas da peste que, neste ano de1596, assolou a cidade de Hamburgo). Editado em Hamburgo, Impresso por Jakob Lucius Junior.

O tratado é escrito em latim, cita 26 autores (entre médicos, filósofos e poetas)14 tem 48 páginas, e está dividido em IV capítulos: comentário sobre as causas e a origem da peste; os métodos de preservação contra a peste; os métodos mais eficazes para curar quem está doente; e o uso correcto dos medicamentos.

O tratado com breves anotações históricas sobre a peste, e revelando uma preocupação social que é inerente a quem lida com este tipo de calamidade, é essencialmente prático, pretendendo Castro responder a uma situação difícil com a autoridade da ciência médica, sobre o que se pode e deve fazer, de modo a minimizar as consequências da catástrofe na cidade que o acolheu.

O original desta obra: CASTRO, R. de (1596), Tractatus breuis de natura, et causis pestis, quae hoc anno MDXCVI. Hamburgensem ciuitatem affligit, Hamburgo: Iacobus Lucius Junior; pode ser consultado na Biblioteca Estatal da Baviera em linha ou na Biblioteca Britânica.15 A edição portuguesa é de 2021: Introdução, tradução e notas de Bernardo Mota, Cristina Santos Pinheiro e Gabriel A. F. Silva, Ed. Afrontamento. Outras obras de Rodrigo de Castro são: (1603), De uniuersa mulierum medicina, nouo et antehac a nemine tentato ordine opus absolutissimum. Et Studiosis omnibus utile, Medicis uero pernecessarium, 2 vols., Hamburgo: in officina Frobeniana, excudebatur typis Phillipi de Ohr; (1614), Medicus-politicus. Siue de officiis medico-politicis tractatus, Hamburgo: ex Bibliopolio Frobeniano, tradução em português de 2011: O médico político ou tratado sobre os deveres médico-políticos, trad. Domingos Lucas Dias, Lisboa: Edições Colibri;

(1617), De uniuersa muliebrium morborum medicina, nouo et antehac a nemine tentato ordine opus absolutissimum. Et Studiosis omnibus utile, Medicis uero pernecessarium, 2 vols., Hamburgo: ex Bibliopolio Frobeniano.

14 Cf. Anexo I.

15 BEB: Bayerischen Staatsbibliothek (BSB), Außenmagazin 4 Diss. 2077, digitalização pelo Münchener DigitalisierungsZentrum, disponível em: http://mdz--nbn-resolving.de/urn:nbn:de:bvb:12-bsb10157104- 0; Bayerischen Staatsbibliothek (BSB), Außenmagazin 4 Diss. 2077, digitalização pelo Münchener DigitalisierungsZentrum, disponível em: http://mdz--nbn-resolving.de/urn:nbn:de:bvb:12-bsb10157104- 0; BB: British Library, General Reference Collection DRT Digital Store 1167.f.11.(6.), disponível em:

http://access.bl.uk/item/viewer/ark:/81055/vdc_100026852885.0x000001); (MOTA et al 2021: 39).

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10 2. Ambrósio Nunes (1529 – 1611)

Ambrósio Nunes, filho do médico Leonardo Nunes, um fidalgo que foi físico-mor da casa real e Cavaleiro Professo da Ordem de Cristo, e de D. Leonor Coronel, nasceu em Lisboa em 1529, e morreu nesta cidade no dia 11 de abril de 1611.

Estudou em Coimbra, onde obteve o bacharelato em Artes a 28 de fevereiro de 1549, a licenciatura em Medicina a 12 de junho de 1551, o mestrado a 5 de julho do mesmo ano, e o doutoramento em 1554, tendo sido lente na cadeira de Vacações16 no ano seguinte. Em 1556 mudou-se para Salamanca. Nesta universidade, teve equivalência ao grau de bacharel, e obteve uma segunda licenciatura em 1560, e doutoramento em 1562.17 Torna-se lente na Universidade de Salamanca, onde permanece vinte e seis anos, e lecciona a cadeira de Vespera, tendo-se jubilado em 1586.

Conciliou sempre o ensino com a prática de clínica e, durante os anos em que esteve em Salamanca, exerceu em várias cidades espanholas, nomeadamente em Madrid e em Sevilha. Tendo-se espalhado a sua fama pela Península Ibérica, foi chamado a Lisboa por ocasião da peste que assolou esta capital em 1569 para ser ouvido sobre as providências a adoptar e recebeu, pela sua ajuda inestimável, o título de Cavaleiro da Ordem de Cristo, tendo sido nomeado, pelo rei D. Sebastião (1554-1578),18 médico da Câmara e cirurgião-mor. Em 1598, e devido a um novo surto de peste, Nunes regressou definitivamente a Portugal, onde foi o inspirador das medidas adoptadas em Lisboa pelo Presidente da Câmara Gil Eanes, e pelo Dr. Henrique da Silva Fernandes,

16 A cadeira principal era a de Prima, de difícil acesso aos candidatos à docência, sendo também a mais bem remunerada. Seguia-se a de Vespera, vindo depois em ordem hierárquica as cadeiras de Tertia e de Anatomia, também designada de Noa (até ao ano de 1772 a designação medieval das horas litúrgicas foi mantida). Havia também as chamadas “cadeiras menores”, entre elas, as cadeiras de Vacações que funcionavam durante as férias de verão e os cursos livres, cf. MONTEIRO 2015: 4; LEMOS 1899: Vol. I, 176.

17 Cf. SOUSA VITERBO 1910: 56.

18 Rei D. Sebastião (1554 – 1578): aclamado rei em 1557, só viria a governar efectivamente aos catorze anos, em 1568. Apesar de o pico da “peste grande” (assim designada na época) se ter manifestado entre os meses de Julho e Setembro de 1569, consta nas crónicas que “os ares se mantiveram «corruptos» por tanto tempo que só a 28 de Julho do ano seguinte se voltariam a abrir as portas de toda a cidade de Lisboa”. Devido ao surto de peste D. Sebastião nomeou D. Martinho Pereira, vedor da Fazenda, incumbido dos assuntos da saúde pública e da pobreza. Entre outras medidas tomadas foi destinada uma soma de mil cruzados diários para o tratamento dos enfermos e foi criada uma instituição de acolhimento para as viúvas e os seus filhos, dedicada a Santa Maria, com uma renda anual de mil cruzados e vinte moios de pão (CRUZ 2006: 157).

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provedor-mor da saúde.19 Retirou-se depois para Coimbra onde editou e publicou as suas obras.

Escreveu dois livros extensos e de interesse no âmbito da medicina: um tratado sobre a peste (Tractado repartido en cinco partes principales, que declaran el mal que significa este nombre Peste…”), escrito em espanhol, e um comentário aos três primeiros livros dos Aforismos de Hipócrates, com os comentários de Galeno, escrito em latim (Enarrationes in priores tres libros Aphorismorum Hippocratis…, Coimbra, ex Officina Didaci Gomes Loureyro, 1603).

Foi admirado pelos seus pares, sendo considerado um marco da escola Hipocrático-galénica. Sem adesões a novas ideias menos conformes à ciência médica do seu tempo, e com uma defesa da fé cristã sem hesitações, exerceu medicina tal como a ensinou.

O Tratado da Peste

O Tratado da Peste de Ambrósio Nunes de 1601 deve-se em grande parte à necessidade de deixar para a posteridade as medidas e o plano defensivo por ele propostos para combater a epidemia de Lisboa de 1598 seguindo o trabalho de Thomaz Alvarez e de García de Salzedo, que tinham sido chamados para combater a peste no ano de 1569 em Lisboa.

Ruth Mackay, referindo-se à Grande praga de Castela de 1596-1602, afirma que a doença chegou de barco, vinda de Dunquerque e/ou de Calais, e que, em Novembro, atingiu Santander. Rapidamente alastrou por toda a região do Cantábrico e do País Basco, tendo chegado a Lisboa. Quando a epidemia terminou, estima-se que tenham morrido meio milhão de pessoas.20 E Pêro Roiz Soares (1565-1628), um cronista da época, terá apelidado o ano de 1598 em Portugal de “muito catastrófico”,21 relatando que, entre várias calamidades, tais como um eclipse,22 terramotos, e o desaire das naus que partiram para a Índia, semanas depois de Filipe II ser aclamado rei, chegou ao porto de Lisboa no mês de Outubro, uma embarcação vinda da Galiza que trazia consigo a

19 Cf. LEMOS 1899: vol. I, p. 199 e vol. II, p. 59.

20 Cf. MACKAY 2011: 6-7.

21 Cf. OLIVAL 2006: 84-5.

22 Sobre os acontecimentos do ano de 1598, nomeadamente o eclipse: cf. NUNES 1601: 31v-32r.

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peste. O “mal” ter-se-á espalhado rapidamente por todo o país. De acordo com o cronista, em Lisboa não se realizou a procissão do Dia dos Finados (2 de Novembro) para evitar contágios; a Casa da Índia mudou-se para Belém, por ser uma zona com menos população; os governadores de Lisboa transferiram-se para Alcochete; e o êxodo da população lisboeta foi tão numeroso, que a administração local proibiu a saída de todos aqueles que tivessem um ofício. Em Maio de 1599, o historiador espanhol Cabrera de Córdoba (1559-1623) registava nas suas Rellaciones que teriam morrido, só em Lisboa, mais de 34.000 pessoas vítimas da peste.23

O Tratado repartido em cinco partes principais … é dedicado a D. Cristóvão de Moura, marquês de Castelo Rodrigo, vice-rei e capitão geral da coroa de Portugal. Tem cerca de 140 páginas e está dividido em cinco partes principais: a parte I discute a etiologia da peste, que Ambrósio Nunes atribui a uma qualidade oculta do ar, e divide- se em doze capítulos; a parte II expõe a sintomatologia e divide-se em nove capítulos; a parte III aborda a preservação contra a peste (que, segundo o autor, além da confissão e da comunhão, passa pelo estabelecimento imediato de uma Casa de Saúde) e divide- se em sete capítulos; a parte IV examina o tratamento da peste e divide-se em doze capítulos; a parte V investiga os medicamentos mais eficazes e está dividida em doze capítulos. A obra termina com um vasto índice de palavras e termos utilizados em medicina.

3. João Curvo Semedo (1635 – 1719)

João Curvo Semedo, filho de Domingos Curvo e de Inês Álvares, nasceu na vila de Monforte no Alentejo, no dia 1 de Dezembro de 1635. Morreu em Lisboa a 25 de Novembro de 1719, com os títulos de Médico da Casa Real e Familiar do Santo Ofício e de Cavaleiro Professo da Ordem de Cristo. Casou segunda vez com Isabel Guilherme, não tendo tido nenhum filho deste matrimónio. O único filho, da primeira mulher, foi o cónego Inácio Curvo Semedo, que morreu em 1746 sem deixar descendentes.24

23 Cf. OLIVAL 2006: 85.

24Cf. LOURENÇO 2016: 142: As edições póstumas do seu legado sobre medicina e a continuidade do fabrico das suas receitas de “remédios secretos” ficarão a cargo dos seus sobrinhos, Pedro Joaquim, António Félix e Manuel José, filhos de Francisco Curvo Semedo, seu irmão mais velho.

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No ano de 1647, a família instalou-se em Lisboa, e Curvo Semedo, com doze anos, ingressou no Colégio de Santo Antão.25 Dez anos depois, em 1657, iniciou a sua licenciatura em medicina na Universidade de Coimbra que terminou por volta de 1661- 62, data em que regressou a Lisboa e começou a exercer a sua profissão; durante nove anos foi médico da Misericórdia,26 a entidade que administrava, desde 1564, o Hospital de Todos os Santos. Os seus laços familiares, que incluem personalidades influentes no campo religioso e médico-farmacêutico, foram fundamentais para o seu sucesso. A proximidade de parentesco de João Semedo com figuras importantes da época como Frei Manuel Guilherme, um padre dominicano e professor de Teologia Moral, pregador do Santo Ofício, facilitaram-lhe a candidatura a Familiar desta instituição eclesiástica, e a nomeação como Médico do partido de sua Majestade permitiu-lhe formar-se em medicina por via do partido de médicos cristãos-velhos27 da Universidade de Coimbra.

Curvo Semedo exerceu a sua profissão ao serviço de três monarcas: D. Afonso VI (1656-1683), D. Pedro II (1683-1706) e D. João V (1706-1750). Foi considerado uma personalidade controversa e um erudito, autor de inúmeras obras de medicina sobre vários temas e conhecido como inventor de remédios, foi no seu tempo um médico de grande fama e experiência, e de muito sucesso com as suas receitas especiais de medicamentos que, segundo alguns autores, tiveram muita utilidade, “menos aqueles simpáticos e antipáticos, que os sábios modernos, fundados em melhores e irrefragáveis experiências, reprovam como ficções dos antigos”.28 Mas, simultaneamente, foi também criticado pelos seus pares como um médico que inventava curas milagrosas, afastando-se da verdadeira ciência médica, desviando-se de métodos rigorosamente

25 A Companhia de Jesus foi fundada por Inácio de Loyola em plena Contrarreforma no ano de 1534, e é oficialmente reconhecida pelo Papa Paulo III em 1540. Poucos anos depois os Jesuítas chegam a Portugal e instalam-se em Coimbra. Em 1553, fundam em Lisboa, o Colégio de Santo Antão na Mouraria, e em 1593 inauguram uma nova sede chamada de Santo Antão-o-novo, actualmente o Hospital de São José. O ensino no Colégio, aberto ao público (e não apenas aos jesuítas), dedicava-se sobretudo ao estudo do latim e de autores latinos, autores de língua grega, e retórica, além dos temas morais e religiosos, (LEITÃO 2007: 27 e 30).

26 Cf. LEMOS 1899: vol. II, 52.

27 Segundo Maximiano LEMOS: “(…) ligava-se à profissão médica uma falsa ideia de indignidade, derivada talvez de se considerarem os indivíduos que a exerciam como cristãos-novos ou judeus. Não era errada a suspeita, e quase todos os professores chamados para a Universidade de Coimbra por D. João III tinham inclinação manifesta para o judaísmo. A perseguição aos cristãos-novos em Coimbra foi violenta por vezes.

(…) Pensou o reformador D. Francisco de Bragança em criar um colégio dos médicos cristãos-velhos”, (LEMOS 1899: 185 e 189).

28 Cf. SILVA 1859: 357-58.

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científicos para se entregar a superstições, usando um excessivo empirismo. As opiniões de críticos e historiadores dividem-se até hoje. É por exemplo o caso dolivro de Curvo Semedo Polyanthea Medicinal (1º ed. 1695), que foi alvo de grande controvérsia, sendo simultaneamente criticado, mas também elogiado. A obra revela, quer pela erudição, quer pelo conhecimento médico, o que de mais recente se estudava no mundo científico da medicina, como por exemplo o processo da circulação sanguínea e linfática, descoberta em 1628 por William Harvey (1578 – 1657) ou o desenvolvimento de medicamentos através da química, posto em prática por Paracelso e Van-Helmont, e a forma de aproveitar uma série de ervas e plantas medicinais (como a quina, ou raiz de quinino, oriunda do Paraguai, entre outras) que se mostraram, com o passar dos anos, muito eficazes. Segundo a opinião de Lemos, este tratado merece ser objecto de um estudo imparcial, reconhecendo-lhe os erros e as virtudes, porque, afinal, na terapêutica de finais do século XVII, quase todos os médicos faziam remédios mais ou menos secretos.29

Se a formação conimbricense da Faculdade de Medicina era ainda, no tempo de Curvo Semedo, assente na arte de Galeno e Avicena, autores obrigatórios para se passar no exame de licenciatura,30 o próprio Semedo, numa das suas obras publicada em 1697 dá o mote da sua escola: Polyanthea Medicinal, notícias galénicas e químicas repartidas em três tratados.31 O facto de João Curvo combinar o conhecimento antigo greco- romano com o fascínio por todo o tipo de medicamentos na sua terapêutica, mesmo os mais estranhos e controversos, de acordo com as doutrinas muito em voga na Europa da sua época,32 talvez seja sintomático de um percurso corajoso na historia da medicina, que presta igual homenagem à escola Galénica, aos herméticos e ao conhecimento da

29 Afirma Lemos a propósito desta obra: “A Polyanthea tinha em vista mostrar o proveito que se pode tirar dos vomitórios, expor as excelências dos preparados de antimónio e sobretudo dos pós de Quintílio e ainda fazer a apologia da química, nas suas relações com a medicina. Todos os autores que se têm referido ao livro de Curvo Semedo insistem no grande número de abusos que nele se encontram, na demasiada credulidade de que o seu autor dá provas, e censuram com grande justiça o charlatanismo que o leva a proclamar as virtudes de grande número de composições secretas que ele próprio preparava e vendia”

(LEMOS 1899: 52-53); sobre o Bezoártico e os “pós de Quintílio”, cf. Anexo II.

30 Cf. LEMOS 1899: vol. I, 76.

31 Cf. SEMEDO 1707: 20: “Não sou tão obstinado sequaz da Escola Hermética, que me não preze muito de ser discípulo da Hipocrática; nem quando louvo os remédios químicos, deixo de conhecer que se devem grandes aplausos aos Galénicos”.

32 Segundo Alisha Rankin: “The fascination with drugs that would cure nearly any illness, which had been part of medical culture since Antiquity, spiked drastically in the sixteenth century, as did the marketing of such drugs by myriad individuals” (RANKIN 2009: 681).

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química (ou alquimia?) seguindo a doutrina paracelsiana33 para fabrico dos seus próprios remédios.

Curvo Semedo revela um lado paradoxal (ou heterodoxo) nas suas obras, pela capacidade de recorrer à medicina química por um lado e, simultaneamente, à sua formação clássica (como a teoria dos humores, por exemplo) para explicar um grande número de doenças.34 Tendo sido inovador nalgumas das suas receitas, não é um pioneiro. Desde a Idade Média e até aos sécs. XVII e XVIII, os remédios curativos eram drogas que possuíam alguns efeitos seguros, mas que também continham substâncias de natureza muito duvidosa, ou mesmo nociva, tais como excrementos de animais ou de proveniência humana. Muitos destes produtos, utilizados como remédios, eram muito caros, dada a natureza rara das substâncias que os compunham, e não possuíam qualquer efeito curativo, pois as crenças baseavam-se nas propriedades mágicas destes ingredientes.35

O impacto da obra escrita por Curvo Semedo (sobretudo na primeira metade do século XVIII) reside na influência que teve para outros médicos, tendo sido um autor muito citado pelos seus pares. O seu legado36 estende-se por uma literatura médica de

33 A doutrina de Theophrastus Philippus Aureolus Bombastus von Hohenheim, mais conhecido por Paracelso (1493-1541), médico, alquimista e filósofo suíço, teve uma legião de admiradores pela ousadia de trazer para a medicina novas receitas químicas (sendo contrários às receitas “Galénicas” compostas essencialmente por substâncias de origem vegetal e animal, os medicamentos químicos baseados nas teorias de Paracelso eram feitos à base de metais e minerais como o antimónio e o mercúrio, que são a origem dos famosos “Pós de quintílio”) que contribuíram para uma nova farmacopeia, o que lhe valeu uma igual legião de críticos, por considerarem que as suas experiências não se baseavam na ciência química, mas sim na alquimia, com a conotação esotérica que se lhe atribui. Sobre Paracelso: Cf. PORTER 1996: 161, 248, 250, 252, 258.

34 Cf. SEMEDO 1707: 37-38: “Porque os Médicos antigos, ainda que fossem tão prudentes como as cobras, não querem, como elas, despir a sua pele, ou vestido velho, para vestirem outra gala nova, porque têm para si que sabem tudo, e levados deste desvanecimento, e presunção, avaliam por erro da primeira grandeza diminuir, ou acrescentar cousa à doutrina dos que primeiro escreveram e entenderam que as doenças se podem só curar com remédios, que tenham qualidades contrárias, e manifestas contra elas (…) quando observamos hoje, que há muitas doenças, que só se devem curar com remédios que obram com qualidades ocultas, e semelhantes.” Curvo Semedo aproxima-se da opinião de Paracelso, que acreditava no poder dos metais, mas advogava que a dosagem deveria ser limitada e o impacto da acção diminuído por uma alteração na forma química. A cura através da ingestão de metais ou minerais, mesmo que venenosos, far-se-ia pelo princípio homeopático da cura por semelhança.

35 Cf. MÁDL 2001: 55.

36 As obras de Curvo Semedo são: Tratado da Peste, Oferecido ao Ilustríssimo e excelentíssimo Sr. Manuel Telles da Silva, Lisboa, por João Galrão, 1680; Polyanthea Medicinal, notícias galénicas e químicas repartidas em três tratados, dedicados à saudosa memória do Exmo. Sr. Cardeal de Sousa, Lisboa, por Miguel Deslandes, 1695. (2ª ed. acrescentada, Lisboa, por António Pedroso Galrão, 1709); Proposta que o doutor João Curvo Semedo, Médico, morador em Lisboa faz aos amantes da saúde, e consciências, Lisboa, por Valentim da Costa Deslandes, 1706; Observações médicas doutrinais de cem casos gravíssimos, que em serviço da pátria, e das nações estranhas escreve em língua portuguesa e latim, Lisboa, por

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variados registos, manuscrita e impressa, que introduz inovações na farmacopeia da época. Grande parte desta obra foi publicada em português,37 para ultrapassar a barreira criada pelo uso do latim, o que justifica no prólogo da sua obra Polyanthea Medicinal:

Repito o propósito que não deves culpar-me de escrever em língua portuguesa, atendendo que o meu principal intento foi aproveitar aos meus próximos, acudir a alguns lugares e Vilas deste Reino, onde não há Médico, e apenas algum Barbeiro, ou Cirurgião tão falto de ciência, que na enfermidade mais comum obra absurdos de maior marca, e como poderia eu acudir a estes defeitos, senão imprimindo em língua portuguesa um tal livro?38

O Tratado da Peste

O Tratado da Peste escrito por João Curvo Semedo em 1680 é patrocinado por Manuel Telles da Silva, personalidade a quem Semedo oferece a obra, e dedicado ao rei de Portugal, D. Afonso VI. A audiência a que se dirige parece mais abrangente do que a aristocracia do reino, fazendo Semedo um “prologo ao leitor” em que indica a possibilidade de ser criticado face ao que refere neste texto; dir-se-ia que o público a que se destina esta obra serão os seus pares e quem de perto lida com a medicina

António Pedroso Galrão, 1707; Observationes Aegritudinum fere incurabilium, Ulyssipone Occidentali, Paschoalis a Sylva Serenissimi, Regis Typographi, 1718; Atalaia da vida contra as hostilidades da morte, fortificada e guarnecida com tantos defensores, quantos são os remédios, que no decurso de cinquenta e oito anos experimentou o doutor João Curvo Semedo, Lisboa, na Oficina Ferreiriana, 1720; Memória dos remédios esquisitos, que da Índia e outras partes vêm a este reino, em que se declaram as suas virtudes, e as condições em que se aplicam, Vitemberg, Oficina Tipográfica-libraria Gerdesiana, 1722; Secretos Medicos y cirúrgicos, Madrid, Bernardo Peralta, 1731; Tratado Sobre os meios de Preservação da Peste, Lisboa, anónimo, 1748; Compendio dos Segredos medicinais, ou remédios Curvianos, mandado imprimir por Manuel José Curvo Semedo, actual manipulador e administrador dos ditos remédios, Lisboa, na Oficina de José Bulhões, 1783; Manifesto em que se prova com gravíssimos autores, que se podem dar purgas, estando os humores crus, s/lugar, nem ano da impressão; Tratado do ouro diaforético, sua preparação e virtudes, s/lugar nem ano da impressão.

37 Expandindo-se além-fronteiras, foi publicado em Espanha: Secretos médicos y cirúrgicos, Madrid, Bernardo Peralta, 1731; 2ºed. Madrid, Imp. Domingo Fernandez de Arrojo, 1732; Curvo Semedo foi homenageado por Francisco Suárez de Riviera (1686 – 1738), famoso médico espanhol, que lhe dedicou os livros: Ilustración, y publicación de los diecisiete secretos del Doctor Juan Curvo Semmedo, 1732;

Observaciones de Curvo compendiadas e ilustradas con admirables arcanos medicinales, 1735;

Manifestación de cien secretos del Doctor Juan Curvo Semmedo experimentados, é ilustrados por el doctor Rivera, 1736.

38 SEMEDO 1709: 3-4.

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(cirurgiões, boticários, químicos), sobretudo numa situação de crise, como seriaa vivida durante a epidemia do ano de 1680.39

O tratado está escrito em português, tem 54 páginas e está dividido em VII capítulos:

Capítulo I: Breve história de várias pestes que assolaram o mundo e referência aos métodos que foram aplicados em cada época, citando vários autores; Capítulo II: Como é que se reconhecem os sinais da peste e que tipos de peste existem; Capítulo III: Os sintomas e os efeitos que causam a peste; Capítulo IV: O prognóstico que se deve fazer face à peste; Capítulo V: Métodos para preservar as populações da peste; Capítulo VI:

Os métodos e os remédios para curar a peste; Capítulo VII: Os sinais que se devem observar depois de curado o mal.

Trata-se de um texto que pretende ser um contributo prático para a resolução de um problema específico que Semedo considera uma calamidade e que explica com referências históricas de vários autores, que vão desde a antiguidade clássica à segunda metade do século XVII.40

Neste tratado propõem-se várias soluções: analisa-se a importância das casas de saúde, atendendo à pobreza e às suas consequências, os remédios necessários preventivos e curativos, os vários métodos de tratamento como as sangrias e as purgas, a higiene que deve ser praticada individualmente e nas localidades, a alimentação recomendável e as atitudes que os doentes e os não-doentes devem ter para evitar maiores contágios, e por fim as receitas dos remédios e como se devem tomar, nomeadamente a do seu milagroso Bezoártico,41 cujo segredo confiou a um frade do

39 Cf. RODRIGUES 1990: 156-57: “Em junho de 1676 a peste, vinda de Argel, atinge Cartagena, a Alta Andaluzia, Granada, Castela e Aragão. Em Portugal a epidemia chega durante o Verão de 1677, quando Múrcia é afetada. É uma epidemia tipo tifoide que, como habitualmente, se propagava nos meses quentes e regredia no inverno. Tomaram-se medidas relativamente à proteção da fronteira terrestre e fecharam- se os portos marítimos. Devido à crise económica e social aumenta o número de pobres e mendigos e sucedem-se as falhas de abastecimento alimentar. Cerca de três quartos da população da cidade foi contaminada, até fins de 1685. As mortes por peste, que grassara entre o final de 1679 e 1683, sofreram uma nova escalada, em meados de 1684, devido aos problemas de má nutrição da população, afetando, como habitualmente, a população mais pobre e os refugiados”.

40 Cf. Anexo: I.

41 Bezoártico: o nome vem de “pedras de Bezoar”, que se encontram no estômago dos animais, principalmente dos ruminantes. A origem dos animais determinava significativas diferenças na composição destas “pedras”, a Portugal chegavam de todas as partes do mundo, nomeadamente da Pérsia e de Goa. Segundo Curvo Semedo, se “a pestilência proceder somente da qualidade oculta sem vício do sangue, ou de outros humores”, não se deve utilizar nem as sangrias, nem as purgas, mas somente os bezoárticos” (SEMEDO 1680: 28); segundo a Farmacopeia Tubalense: “Bezoárticos são os remédios

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convento de São Domingos. A receita secreta não é revelada, mas ensina (uma vez adquirido o fármaco) como e com o quê se deve misturar o remédio.42

contra veneno, assim como a pedra de Bezoar, e todos os remédios alexifármacos contra a malignidade do humor, e que corrigem os ruins fermentos” (Coelho 1785: 76).

42 A receita está transcrita no Anexo: II.

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19 Capítulo II.

Generalidades sobre a peste

1. A peste, essa “cruelíssima fera”.

Alcuni erano di più crudel sentimento, come che per avventura più fosse sicuro, dicendo niuna altra medicina essere contro alle pestilenze migliore né così buona come il fuggir loro davanti;»

Decameron (1348-53), Giovanni Boccaccio

O fenómeno associado ao termo “peste” vem descrito, há séculos, em textos que se tornaram célebres, como A História da Guerra do Peloponeso do historiador grego Tucídides (c.460 a.C. - 400 a.C.), que, no livro II, inclui a narrativa da Peste de Atenas dos anos de 430-427 a.C., um dos primeiros registos escritos de um tal acontecimento por uma testemunha directa.

A descrição da catástrofe gerada pela doença - da sensação de desespero, dos sentimentos de impotência e sofrimento por não haver cura possível e do abandono das normas e das regras éticas, “introduzindo na cidade um desrespeito total pela lei”43 - revelou uma calamidade que afectava todos sem excepção e os médicos muito particularmente. Na verdade, estes pouco podiam fazer, uma vez que estavam a lidar com uma doença que não conheciam; além disso, eles próprios eram contagiados pelos muitos doentes que visitavam e morriam em grande número. De resto, o texto registava que “também nenhuma outra arte humana ajudava, como ir aos santuários como suplicantes, ou o recurso a profecias, e outras coisas, tudo era inútil”. No fim todos os esforços eram abandonados e vencidos por tal fera tão cruel.44

Tucídides expressou claramente o objectivo do seu texto: “De facto, como eu próprio tive esta doença e vi muitas das suas vítimas, vou falar dos sintomas e assim pelo estudo destes, no caso de a doença voltar, alguém poderá reconhecê-la.”45 Não se tratava de escrever uma dissertação sobre a peste no século de Péricles, mas sim de deixar um apontamento do que se passou para que se pudesse estudar melhor uma

43 FERNANDES e GRANWEHR 2013: 208.

44 FERNANDES e GRANWEHR 2013: 208.

45 FERNANDES e GRANWEHR 2013: 209.

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praga contagiosa de mortalidade elevada, caso ela voltasse. A história demonstrou que, com diversas variantes e causas, acabaria por voltar.

Quando em 1596 Rodrigo de Castro (1546-1627) escreveu o tratado A peste de Hamburgo e Curvo Semedo (1635-1719), 84 anos depois, escreveu o Tratado da peste, em Lisboa, respondiam ambos aos surtos pestilenciais que assolavam as cidades onde viviam, procurando contribuir com sugestões práticas a adoptar no imediato. Ambrósio Nunes (1529-1611), pelo contrário, após ter ajudado a estabelecer as medidas necessárias para acudir à calamidade que desgraçava Lisboa em 1598,escreveu o seu tratado de referência sobre a doença em 1601, sem a mesma pressa. O que nos provam todos estes legados e toda a tratadística sobre as doenças mais mortíferas é que é necessário em todas as épocas existirem pessoas assim, capazes de misturar inteligência, coragem e saber, com vista a transformar o mundo em que vivemos.

Para que se torne mais clara a análise e comparação dos conteúdos das obras destes três autores, procederemos, em primeiro lugar, a uma contextualização do que significou genericamente o fenómeno da peste, partindo de uma análise sobre a peste negra, talvez a mais conhecida das manifestações históricas desta doença tal como entendida genericamente por Tucídides (uma praga contagiosa de mortalidade elevada).

2. A Peste bubónica e o seu agente patogénico

«Não são os que têm saúde que necessitam de um médico, mas sim os doentes».

(S. Mateus 9, 12; S. Marcos 2, 17; S. Lucas 5, 31)

No artigo “Universal and Particular: The Language of Plague, 1348–1500”, Ann Carmichael coloca a questão: “What disease or diseases caused the recurrent, demographically punishing epidemics that Europeans called plague?”46 No caso da peste negra, a resposta pode estar na descoberta do bacilo conhecido como Yersinia pestis. O termo vem do nome do bacteriologista franco-suíço Alexandre Yersin, que, em 1894, com uma equipa de cientistas, visitou Hong Kong, onde estudou o agente patogénico

46 Cf. CARMICHAEL 2008: 1.

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que passou a admitir-se estar na origem dessa peste: a bactéria Pasteurella pestis,47 que se encontra em ratos e é transmitida para os humanos por meio das pulgas48 presentes nesses animais.

A doença causada por esta bactéria manifesta-se sob várias formas, cada uma delas representando um tipo específico de infecção: a bubónica, a mais comum de todas, é provocada, na esmagadora maioria dos casos, pela picada de uma pulga infectada, provocando bubões, ou bubos, que se manifestam com inchaços infecciosos no sistema linfático, sobretudo nas regiões das axilas, virilhas e pescoço; a pneumónica ou pulmonar, que atinge uma mortalidade próxima dos 100% nos doentes que não recebem tratamento médico, caracteriza-se por uma infecção nos pulmões que provoca uma violenta pneumonia e, por norma, surge como consequência do avanço da peste bubónica, constituindo uma peste pneumónica secundária; e a septicémica, quando a infecção se generaliza.49 A variante septicémica primária é rara, implicando um contágio directo através da corrente sanguínea. Tal como a pneumónica, pode surgir como forma secundária após o desenvolvimento da bubónica, provocando hemorragias subcutâneas e internas generalizadas e sangramentos, sendo seguida pela falência de órgãos vitais e, consequentemente, da morte do doente.50

Segundo o historiador Vivian Nutton, a descoberta de Yersin alterou toda a narrativa sobre os vários surtos pandémicos que assolaram o mundo, marcando “um ponto de viragem” no entendimento do que significava a palavra “praga” para designar

47 Cf. NUTTON 2008: 6; CHARMICHAEL 2008: 17; COHN 2008: 75-6.

48 Cf. NUTTON 2008: 8, onde se resume a doutrina de Frédérique Audoin-Rouzeau: a peste é uma infecção provocada por um agente bacteriano, a Yersinia pestis, através de um vector que se encontra em certas espécies de pulgas de roedores, sobretudo a pulga do rato preto, Xenopsylla cheopis, típica de climas quentes, ou a sua equivalente de climas temperados, Nosopsyllus fasciatus; apesar de não ser um vector tão eficaz como a X. cheopis, esta pulga (N. fasciatus) seria predominante na Europa, de onde é originária, e é possível que fosse responsável pela transmissão da maioria dos casos de Peste Negra em boa parte deste continente; o papel desta pulga na transmissão da peste terá caído parcialmente no esquecimento porque os historiadores referiam sobretudo a X. cheopis e porque os epidemiologistas se concentraram nas espécies de vectores mais importantes das regiões onde ainda há focos activos, o que não é o caso da Europa, a ocidente dos Urais e do Cáucaso (Nutton remete para Frédérique Audoin-Rouzeau, Les Chemins de la peste: le rat, la puce et l’homme, Paris, Tallandier, 2007, pp. 81-92).

49 Para a classificação, ver, p.e., ARRIZABALAGA 2008: 9.

50 Segundo Monica Green: “As Michelle Ziegler explains (2014, in this issue), the trifold litany of plague modes usually cited in historical accounts—bubonic, pneumonic, and septicemic—needs to be broadened now to include the gastrointestinal. As Ziegler notes, these different presentations of plague are better thought of by their method of transmission: insect bite and abrasion or cutting (bubonic and septicemic), inhalation (pneumonic), and ingestion (gastrointestinal), respectively. These are not different diseases, of course” (GREEN 2014: 32).

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uma epidemia de peste, uma vez que definiu a causa da doença e esclareceu como esta se transmitia (NUTTON 2008: 6). Partilha desta opinião, entre outros especialistas, Andrew Cunningham, que, na paráfrase de Nutton, sublinhou que, a partir de 1894:

A peste era uma entidade específica, um bacilo específico, que não podia ser confundido com qualquer outro agente. (…) Daí em diante, a peste era uma doença causada pela Pasteurella (depois Yersinia) pestis, e, a seguir às pesquisas de Paul-Louis Simond na Índia, espalhada pelas pulgas.51

3. A Peste bubónica: é causada sempre pela mesma bactéria e tem sempre o mesmo vector de infecção?

«Trata-se de uma febre de carácter tifoide, mas acompanhada de abscessos e de vómitos. Fiz incisões nos abscessos. Pude, assim, recorrer a análises em que o laboratório julga reconhecer o bacilo da peste. Para ser preciso, é necessário dizer, entretanto, que certas modificações específicas do micróbio não coincidem com a descrição clássica.»

A Peste (1947), Albert Camus

A explicação anterior, sobre um mesmo agente ter causado (e ainda poder causar) uma mesma doença (a peste bubónica) ao longo dos séculos, continua, ainda hoje, a ser debatida. A discussão centra-se na questão de ter sido (ou não) a bactéria Yersinia pestis, sofrendo mutações52, a causadora da infecção que provocou os três grandes surtos epidémicos de peste53 que marcaram a história da humanidade: a peste antiga (ou de

51 Cf. CUNNINGHAM, “Transforming plague: the laboratory and the identify of infectious disease”, in, Andrew Cunningham and Perry Williams (eds), The laboratory revolution in medicine, Cambridge University Press, 1992, pp. 209–44; (apud NUTTON 2008: 6, n.31-32); Segundo Monica Green, realçando a importância dos estudos científicos sobre esta doença, reafirma a importância do que significa a pós descoberta da bactéria Y. Pestis para definir o que é a peste: “Plague, as Andrew Cunningham has most incisively pointed out, is a construct of modern biomedicine, built on a foundation of laboratory science, epidemiological studies, entomology, and zoology which together have contributed to our understanding that ‘plague’ is a disease caused by an infectious microorganism (Yersinia pestis), transmitted by flea bites or other means, presenting certain characteristic clinical signs and affecting the human body through physiological processes known through countless clinical observations and laboratory studies of afflicted humans and animals both pre- and postmortem. Absent that laboratory, there is no ‘plague’ in this sense”

(GREEN 2014: 52).

52 Cf. NUTTON 2008: 13.

53 Cf. NUTTON 2008: 13; CHARMICHAEL 2008: 17; COHN 2008: 74-75; ARRIZABALAGA 2008: 9; FRITH 2012:

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Justiniano, com início por volta de 540 d.C.)54; a medieval (a Peste Negra de 1347-53); e a oriental (séc. XIX). A primeira prolongou-se de meados do século VI até ao século VIII;

a segunda, a mais famosa de todas e, provavelmente, a mais mortífera, iniciou-se em meados do século XIV, e prolongou-se na Europa Ocidental até ao primeiro quartel do século XVIII, mantendo-se regionalmente no Médio Oriente e no Mediterrânio Oriental até meados do século XIX; a terceira iniciou-se no Extremo Oriente em meados do século XIX, acabando por se espalhar por toda a parte, chegando à Europa na viragem do século XIX para o século XX e contaminando e criando focos enzoóticos (ou seja, depósitos da bactéria entre as populações de roedores locais) nas até então intocadas Américas e estabelecendo definitivamente focos na África Subsariana.

Acreditava-se, desde 1951 e até recentemente, que cada uma das três pandemias se definia não só pela ocorrência cronológica mas também pela predominância de estirpes (biovars)55 que se distinguiriam entre si por pequenas diferenças genéticas com influência na acção da bactéria: antiqua, a variante responsável pela Peste Justiniana e pelas suas réplicas; mediaevalis, a estirpe que provocou a Peste Negra e os subsequentes surtos da Segunda Pandemia; e a orientalis,56 que se desenvolveu no sul da China e se tornou responsável pela esmagadora maioria dos surtos dos últimos 150 anos e pelo conjunto da Terceira Pandemia, sendo a única que mantém estatuto pandémico ainda hoje.

No entanto, a relação directa entre cada uma das pandemias e das respectivas variantes genéticas ainda é debatida. As novas investigações, fruto da renovação constante dos conhecimentos sobre a história natural da doença, determinaram um dos grandes debates da historiografia da Peste Negra das últimas décadas sobre a verdadeira identidade da doença, ou seja, levantaram a questão se seria possível que a disseminação dessas pandemias pudesse ter tido a sua origem em causas distintas e diferentes agentes de infecção.

54 Sobre a peste de Justiniano cf. GREEN 2014: 31.

55 Cf. CHARMICHAEL 2008: 17; NUTTON 2008: 13; GREEN 20014: 27-29.

56 No seu artigo “The History of Plague – Part 1. The Three Great Pandemics” Frith afirma: “uma análise paleomicrobiológica descrita por Drancourt em 2004 indicou que as três pandemias foram muito provavelmente causadas pelo biovar Orientalis” (FRITH 2012: 11, n. 6 e 7).

Referências

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