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inventário sobre as teses do jusnaturalismo moderno

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Academic year: 2023

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o ProCeSSo de CriaÇÃo da ComuNidade e da CoNStituiÇÃo doS GoVerNoS:

inventário sobre as teses do jusnaturalismo moderno

*

Maren Guimarães Taborda**

A soberania não é mista, mas sempre simples de- mocracia, simples aristocracia, ou pura monarquia;

não obstante, na execução, todas as espécies de governo podem ter um papel subordinado (Thomas Hobbes, Elementos de direito natural e político).

Introdução. 1. O Tratado político de Spinoza. 1.1. Pressupostos metodológicos. 1.2. A justiça po- lítica: três gêneros de poder público. 1.2.1. A repartição do poder soberano na Monarquia. 1.2.2.

Estados aristocráticos. 1.2.3. O terceiro Estado. 2. A lei natural, o contrato social e a constituição dos governos em Hobbes e Locke. 2.1. O pacto social e a lei natural na obra de Hobbes. 2.2. Locke.

2.2.1. A liberdade natural. 2.2.2. O poder político e os direitos subjetivos. 2.2.3. Os governos e sua forma. 2.2.4. Os poderes estatais. Conclusão.

Introdução

Da Antiguidade Clássica até a Idade Moderna, o problema do Estado1 foi estudado pelas doutrinas políticas segundo o ponto de vista dos gover- nantes – dos que detêm o poder e a responsabilidade de conservá-lo: ex parte principis2 –, com seus temas essenciais: a arte de bem governar, os poderes

*1Parte integrante do estudo “O processo de criação da comunidade e da constituição dos governos:

uma comparação entre as teses de Aristóteles e as do jusnaturalismo moderno”, publicado originalmente na Revista Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 24, n. XXIII, p. 8-113, 2001.

**1Professora adjunta de História do Direito e de Direito Constitucional da FMP. Professora de História do Direito e de Direito Constitucional da PUCRS (licenciada). Mestre e Doutora em Teoria do Estado e do Direito pela UFRGS. Especialista em Gestão Tributária pela Universidad Castilla La Mancha. Procuradora do Município de Porto Alegre. E-mail: tabordamaren@yahoo.com.br.

11‘Estado’ será sempre usado neste trabalho como sinônimo de organização política, embora se tenha em mente os argumentos contra e a favor do uso contínuo dessa expressão, amplamente difundida e aceita no inicío da Idade Moderna, em consequência do prestígio de que gozou a obra de Maquiavel, como pormenorizadamente discutido por BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992. p. 63 e ss.

22BOBBIO, op. cit., p. 63-64. Pensar o Estado do ponto de vista dos governantes ou do ponto de vista dos governados decorre da relação política fundamental (mando-obediência) e a tradição de pensar o problema do Estado ex parte principis “vai do Político de Platão ao Príncipe de Maquiavel,

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necessários ao cumprimento das diversas tarefas estatais, os vários ramos da administração etc. Os gregos chamaram o Estado de polis (cidade), isto é, co- munidade de cidadãos, independentemente da consideração territorial. Para os romanos, inicialmente, a civitas também designava a comunidade dos cidadãos ou res publica – coisa comum do povo. Com a transformação da cidade de Roma em uma organização política estendida sobre um imenso território, al- tera-se a terminologia, ainda que de modo imperfeito, e passa-se a identificar o poder de mando (imperium) com a coisa pública. Identificada a res publica com o imperium, o elemento mais essencial da organização política passa a ser o poder dela mesma, e não os cidadãos. No período medieval, as palavras germânicas correspondentes aos termos latinos regnum (reich, régne, regno, reign) e imperium (imperio, empire) só se aplicavam a organizações políticas muito extensas, indicando a dominação de um príncipe. No medievo europeu, em virtude de o poder político derivar da propriedade do solo, surgem as ex- pressões land, terra, terrae para designar a organização política com ênfase no território. A palavra ‘Estado’ indicando a formação total da organização política surgiu na Itália Renascentista, em função da existência de uma multidão de configurações políticas – cidades e déspotas – que não podiam expressar cor- retamente seu caráter através dos termos imperium, regnum, terra ou città. Os governantes e seus partidários, nesses locais, eram conjuntamente chamados

lo stato’, expressão que, mais tarde, veio a compreender a existência coletiva de um território, aplicável a todos os Estados (monarquias ou repúblicas, gran- des ou pequenos, Estados-cidades ou Estados territoriais). Jacob Burckhardt3 afirma que, nas cidades italianas do final da Idade Média, “pela primeira vez, o espírito do Estado europeu moderno manifesta-se livremente, entregue a seus próprios impulsos” e, onde a tendência ao egoísmo é “superada, ou, de alguma forma, contrabalançada, ali um novo ser adentra a história: o Estado, enquanto criação consciente e calculada, enquanto obra de arte”. Com a ideia moderna de Estado, surge a expressão que lhe corresponde, cunhada definitivamente por Maquiavel, em O príncipe: Tutti li stati, tutti e’ domini che hanno avuto ed, hanno imperio sopra li uomini, sono stati e sono o reppubliche o pricipati”.4

O moderno conceito legal de Estado – sujeito único e exclusivo da po-

da Ciropédia de Xenofonte ao Princeps christianus de Erasmo”.

3 A cultura do renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 22.

4 Para essas considerações, ver JELLINECK, Georg. Teoria general del estado. Buenos Aires:

Editorial Albatros, 1970. p. 95-97; FINLEY, Moses. L’invention de la politique. Paris: Flammarion, 1985. p. 21-49; e CROSSMAN, R. H. S. Biografía del estado moderno. México: Fondo de Cultura Económica, 1986. p. 17-35.

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lítica – se articulou com o de ‘Soberania’, expressão que, em sua significação moderna, aparece no final do séc. XVI para indicar o poder supremo, exclusivo e não derivado, pretendendo ser a racionalização jurídica do poder: transfor- mação da força em poder legítimo. O conceito de ‘Soberania’ possibilitou ao Estado moderno impor-se à organização medieval do poder, em decorrência da unificação e concentração de poder que reuniu, numa única instância, o mono- pólio da força em um determinado território e sobre determinada população. A essência da soberania foi identificada por Jean Bodin como summa legibusque soluta potestas: poder de fazer e de anular as leis. A palavra soberania, contudo, bem como o conceito nela subentendido, não foram inventados no séc. XVI: na Antiguidade e na Idade Média foram utilizados termos diversos, como summa potestas, sumum imperium, maiestas e plenitudo potestas, para indicar o supre- mo poder do Estado, que não reconhece nenhum outro acima de si. Calasso5, aliás, sustenta a tese de que o argumento central da ciência jurídica medieval foi o problema jurídico da soberania – ainda que esta não conhecesse o conceito de Estado – trabalhando através da fórmula rex superiorem non recognoscens in regno suo est imperator. As primeiras referências documentadas do princípio remontam ao início do séc. XII e pertencem a Alano, glosador canonista de origem inglesa, e a Azo, glosador civilista. O proêmio do jurisconsulto Marino de Caramanico à glosa ordinária sobre o Liber Augustalis de Frederico II, do Reino da Sicília, alguns anos mais tarde, não contém ainda a fórmula, mas é uma longa e complexa dissertação sobre a posição jurídica do rex Siciliae frente ao Imperador. Na segunda metade do séc. XII, a assimilação do rei da França como imperador aparece nas obras dos juristas franceses Guglielmo Durante e Jean de Blanot, e, na segunda metade do séc. XIII, o princípio foi afirmado pelo movimento de emancipação das antigas monarquias romano-cristãs, tendo sido codificado na Espanha, na Lei das Sete Partidas (1265), onde se enuncia:

quanto en lo temporal bien asi com el emperador en su imperio”. Finalmente, coube a Bártolo de Saxoferrato e a seu discípulo, Baldo, no séc. XIV, dar o pas- so revolucionário de introduzir, no corpo de direito civil, a doutrina de que cada rei, em seu reino, é o imperador (Rex in regno suo est imperator), encetando a passagem decisiva para a articulação do moderno conceito legal de Estado e

5 CALASSO, Francesco. Glossatori. La Teoria della Sovranità. Studio di diritto comune pubblico.

Milão: Giuffrè, 1950, passim, e Gli Ordinamenti Giuridici Del Rinascimento Medievale. Milão: Giuffrè, 1949. p. 236-258. Também SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento politico moderno.

São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 70-86; e MATTEUCCI, Nicola. Soberania. In: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986. p. 1179- 1188.

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de Soberania, que lhe é conexo. Foi só a partir da doutrina dos direitos naturais e seus temas – liberdade dos cidadãos, bem-estar social e felicidade dos indiví- duos –, contudo, que o mérito de um governo passou “a ser procurado mais na quantidade de direitos de que goza o singular do que na medida dos poderes dos governantes”6, isto é, o Estado passou a ser pensado ex parte populi, em que o problema de fundo é a liberdade.

Apresentando uma inovação em relação à tradição jurídica anterior, o jusnaturalismo moderno empreendeu, além da sistematização geral do direito privado, a sistematização do direito público, pois, ainda que o direito romano tivesse construído algumas soluções para os problemas capitais do direito pú- blico, como a noção de lex de imperio, pode-se afirmar que este nasceu, de fato, de conflitos de poder desconhecidos na Antiguidade, como o conflito entre poder espiritual e poder temporal. Por outro lado, mesmo que os juristas me- dievais tenham se aproveitado grandemente das principais categorias de direito privado (equiparação entre imperium e dominium, permitindo identificar o poder do soberano com o poder dos proprietários, ou recurso à teoria do pactum ou dos diversos pacta, para explicar as relações entre soberano e súditos), foi a Escola do Direito Natural que teve o mérito de racionalizar o direito público, em uma sistemática geral do direito que compreendeu “ao mesmo tempo e com igual dignidade tanto o direito privado quanto o direito público”.7

A doutrina do jusracionalismo8 – feição moderna do jusnaturalismo – vigente por dois séculos (1600-1800) na Europa, preparada pelo humanismo e pelo renascimento, pretendeu estender os métodos das novas ciências da natureza à ética social. Tais métodos (matemáticos) transformaram o homem, enquanto ser social, em objeto de observação e de conhecimento libertos de pressupostos teológicos. Com o fito de conhecer as leis da natureza, a segunda geração de jusracionalistas (Hobbes, Spinoza e Puffendorf) formula a hipóte-

6 BOBBIO, op. cit., p. 64.

7 Cf. BOBBIO, op. cit., p. 35.

8 “De facto, a redução a relações que podem ser expressas em números constitui a condição de formulação de leis válidas em geral, uma vez que só a medida permite a comparação de acontecimentos que se repetem inalteradamente [...]. A experimentação sobre esta natureza visa a averiguação de leis naturais de tipo particular, a partir das quais se possam deduzir leis mais gerais, e finalmente, axiomas. É através desse progredir em direção a formulações cada vez mais gerais que formam os sistemas fechados da época – a imagem fisicalista da natureza de Newton (Philosofia naturalis principia mathematica, 1687), a Ethica more geometrico demonstrata de Espinosa e, com uma importância não menor, os sistemas jusracionalistas”, assegura WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 286- 287. Ver, também, MARTINS-COSTA, Judith Hoffmeister. A boa-fé no direito privado. São Paulo:

Editora RT, 1999. Capítulo 2, passim.

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se do ‘contrato social’ para descrever o momento de criação da comunidade política e o da constituição do respectivo governo, contrapondo-se, assim, às hipóteses formuladas pelo jusnaturalismo clássico para pensar e/ou descrever a comunidade política.

Embora a hipótese de um ‘estado de natureza’, anterior ao ‘estado civil’, decorrente da comum participação dos homens no logos divino, da qual resulta sua igualdade essencial, seja anterior a Spinoza (foi formulada pelos estoicos antigos e está presente na teoria tomista da lei e na tradição jusnaturalista, em geral), antes dele, todavia, a fundação do Estado não havia sido atribuída a um hipotético pacto ou contrato, e sim à natureza. Ao elaborar as bases meto- dológicas de um sistema jusracionalista autônomo e combater “a dependência metodológica da ética social profana em relação à teologia moral”9, a segunda geração de jusracionalistas construiu a hipótese do ‘contrato social’ como fun- damento último da sociedade humana, iniciando uma tradição teórica que passa por Locke, Montesquieu, Rousseau, Kant e, no séc. XX, chega a John Rawls.

O objetivo deste ensaio é precisamente inventariar, sumariamente, as teses de autores que influenciaram diretamente Montesquieu, considerado o “pai” da mo- derna teoria das funções estatais.

1. O Tratado Político de Spinoza

Na Antiguidade, Platão, Aristóteles10 e pensadores como Políbio (séc. II a.C.)11 pensaram a questão da Constituição Ideal e das Formas de Governo.

Tomás de Aquino (1225-1274)12, na Idade Média, e Maquiavel (1469-1527)13, já no alvorecer da Era Moderna, seguiram tal tradição, sem fazerem, contudo, a conexão entre os tipos de governo e a distribuição das funções-atividades estatais entre os cidadãos, de modo a especificar as condições em que se cons- tituem os governos. É Spinoza14, em sua obra inacabada Tratado político, de 1677, quem vai repor a questão segundo os padrões delineados por Aristóteles,

9 Cf. WIEACKER, op. cit., p. 304.

10 Ver ARISTÓTELES. Política. Tradução António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes.

Lisboa: Vega, 1998. Edição Bilíngue. Primeira edição em português feita a partir do grego.

11 História, Livro VI, cf. BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 8. ed. Brasília: UnB, 1995. p. 65.

12 Suma Teológica. 1a. Parte da 2a. Parte – Questões 90-114. São Paulo: Faculdade de Filosofia

“Sedes Sapientiae”, 1954, tradução portuguesa acompanhada por texto latino, p. 139-141.

13 O príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores).

14 Embora a obra utilizada daqui por diante traduza nome de Benedictus de Spinoza por

“Espinosa”, deu-se preferência para a grafia original, no corpo do texto.

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mas pensando o problema ex parte populi, isto é, do ponto de vista da liberdade dos súditos e já usando a voz ‘Estado’ para designar a organização política.

1.1 Pressupostos metodológicos

Na esteira de um combate da filosofia moderna contra o direito natural concebido por Aristóteles, Scott, antes de Spinoza, relevando o papel da razão para conhecer as verdades mais sublimes, acentuou o indivíduo, o singular, frente ao universal, antecipando a modernidade.15 Para ele, o fundamento do princípio da individuação e a explicação de por que é conhecido o indivíduo não devem ser buscados em um princípio geral ou em algo extrínseco ao indivíduo, senão nele mesmo (objeto individual e singular). Já em Occam, o antigo direito natural imutável foi reduzido a nada, tendo ele insistido sobre a origem humana e, portanto, arbitrária, convencional, do dominium e da soberania, a origem ar- bitrária do direito (obra das vontades humana e divina) e a origem arbitrária das sociedades.16 Por conseguinte, ao antigo direito natural objetivo – uma ordem fixa e imutável estabelecida pela razão universal, em que cada instituição social tem uma estrutura fixa – foi contraposto um direito natural novo cujo conteúdo é negativo: a ausência de vínculos e de regras sociais, de deveres e de coman- dos, é dizer, o direito de liberdade do indivíduo, cuja origem é puramente huma- na, convencional. A natureza fez os homens indivíduos, separados e livres, e tais liberdades são dados jurídicos primários que a lei a e convenção modelam em ‘direitos subjetivos’. Daí a noção primordial do direito como sendo aquele que é dado por natureza aos homens, que as leis civis limitam: é a liberdade, o poder individual. A partir dessa teorização dos ‘direitos subjetivos’, surgiu a teoria do contrato social, fruto do pensamento, na tentativa de compatibilizar a situação constitucional com postulados suprapositivos.

Spinoza revolucionou o pensamento filosófico ocidental ao defender a separação entre a Igreja e o Estado, política e religião, filosofia e revelação17 e afirmar a verdade como imanente ao próprio conhecimento, independente-

15 Cf. VILLEY, Michel. Leçons d´histoire de la philosophie du droit. (Les origines de la notion de droit subjectif). Paris: Dalloz, 1957. p. 279. Gassendi, na Ethicae (1658), composta contra a ética aristotélica, o ius que o homem possui por natureza comporta a faculdade de sentir, de se mover etc., enquanto é animal; enquanto ser especial – homem – esse direito comporta a faculdade do raciocínio, de se exprimir, de celebrar contratos, sem que se leve em linha de conta os deveres, os limites que a natureza impõe à liberdade.

16 Cf. PANIÁGUA, Jose Maria Rodriguez. Historia del pensamiento juridico. Madrid: Universidad Complutense, 1988. v. 1, p. 89-104.

17 Cf. CHAUÍ, Marilena. Espinosa: vida e obra. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. XI. (Coleção Os Pensadores).

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mente de qualquer garantia externa: “o que constitui a forma do conhecimento verdadeiro há de procurar-se no próprio conhecimento e deduzir-se da natureza do intelecto”.18 Assim, asseverando que o conhecimento é conhecimento de causas, que a causa da essência do homem é Deus, uma vez que este é uma modificação de Seus atributos infinitos (pensamento e extensão), Spinoza te- oriza sobre as ações e paixões humanas (“afecções da natureza humana”) e acaba por afirmar o Estado como o resultado do choque entre as paixões dos homens, e não de sua atuação racional.19 A origem e o fundamento dos valores morais é, então, a ‘natureza’, que possui um valor positivo, transcendente ao significado puramente descritivo.20

Entendendo por direito natural o próprio poder da natureza e contrapondo o estado natural – em cada um é senhor e juiz de si próprio – ao estado civil – em que todos unem suas forças –, Spinoza concebe o Estado como um contrato, baseado no consenso/vontade, cujo fim é viver bem e cultivar a alma – usufruir, em comum, o maior número de direitos21: “Se duas pessoas concordam entre si e unem suas forças, terão mais poder conjuntamente, e consequentemente, um direito superior sobre a Natureza que cada uma delas não possui sozinha, e quanto mais numerosos forem os homens que tenham posto as suas forças em comum, mais direitos terão sobre eles todos”. Mais adiante22, Spinoza diz que, no estado civil, o indivíduo abdica de seu próprio direito e transfere-o para aquele a quem dá o poder, nos seguintes termos:

[...] por conseguinte não se pode de maneira alguma conceber que a regra da cidade permita a cada cidadão viver segundo seu próprio arbítrio; o direito natural pelo qual cada um é juiz de si mesmo desaparece, portanto, necessariamente no

18 ESPINOSA. Tratado da correção do intelecto. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 61. (Coleção Os Pensadores). CHAUÍ, op. cit., p. XVI, assevera: “Com Espinosa o racionalismo ocidental descobriu a imanência da verdade ao objeto, graças à demonstração da gênese do objeto. Não são necessários critérios para a verdade: é ela que julga o falso, e não o contrário”.

19 “Pois que, enfim, todos os homens bárbaros ou cultivados estabelecem em toda parte costumes e se dão um estatuto civil, não é dos ensinamentos da Razão, mas da natureza dos homens, isto é, da sua condição que se deve deduzir as causas e os fundamentos naturais dos poderes públicos”

(Tratado político. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 309. [Coleção Os Pensadores]).

20 Cf. Norberto Bobbio, para Spinoza “tudo o que é natural é bom, pelo fato de ser natural” (Locke e o direito natural. Brasília: UnB, 1997. p. 64).

21 “[...] o direito natural, no que respeita propriamente ao gênero humano, dificilmente se pode conceber, a não ser quando os homens têm direitos comuns, terras que podem habitar e cultivar em comum, quando podem vigiar a manutenção de seu poder, proteger-se, combater qualquer violência e viver segundo uma vontade comum. [...] Efetivamente, quanto maior for o número dos que, reunindo-se, tenham formado um corpo, tantos mais direitos usufruirão, também, em comum”

(SPINOZA, op. cit., p. 313).

22 SPINOZA, op. cit., p. 315.

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estado civil. [...] Quem, com efeito, decidiu obedecer a todas as ordens formais das cidade, quer por recear o seu poder quer por amar a tranquilidade, procura a sua própria segurança e os seus interesses, consoante sua própria vontade.

1.2 A justiça política: três gêneros de poder público

Seguindo, em parte, a tradição aristotélica, Spinoza também assevera que a justiça e a injustiça só se podem conceber no Estado – justiça política –, pois que, na natureza, tudo é de todos e “cada um tem direito na medida em que possui poder”.23 No Estado, é a lei comum quem decide o que pertence a cada um e, assim, “é chamado justo o que tem uma vontade constante de atri- buir a cada um o que é seu, e [...] injusto o que se esforça por tornar seu o que pertence aos outros”.24

Spinoza sustenta, ainda, a existência de três gêneros de estatuto civil ou

“poder público”, e entende por este poder:

o direito que define o poder do número, e possui absolutamente este poder quem, pela vontade geral, cuida da coisa pública, isto é, tem a tarefa de estabelecer, interpretar e revogar as leis, defender as cidades, decidir da guerra e da paz, etc.

Se esta tarefa compete a uma assembleia composta por todos os cidadãos, o poder público é chamado de democracia. Se a assembleia se compõe de algumas pessoas escolhidas, tem-se a aristocracia, e se, enfim, o cuidado da coisa pública, e consequentemente o poder, pertence a um só, chama-se então monarquia.25

Antes de tratar, separadamente, de cada um dos gêneros de poder pú- blico, o filósofo considera, de conjunto, o problema da soberania ou de quem detém o poder supremo da cidade, relacionando o exercício do poder soberano a certas atividades: estabelecer as leis, “interpretá-las em cada caso particular e decidir se uma determinada qualidade é contrária ou conforme ao direito”26 e dirigir a coisa pública – atingir fins perseguidos pelo Estado, lançando mão dos meios necessários. O poder soberano, dessa forma, reúne três atividades ou funções: legislar, julgar e administrar27, e o Estado ideal é aquele em que tais

23 SPINOZA, op. cit., p. 314.

24 SPINOZA, op. cit., p. 314.

25 SPINOZA, op. cit., p. 313.

26 SPINOZA, op. cit., p. 319.

27 “[...] Só o poder soberano tem o direito de estabelecer um juízo sobre os atos de cada um, de lhe pedir contas, de castigar os delinquentes, de arbitrar os diferendos entre os cidadãos, ou de designar homens versados no conhecimento das leis para administrar este serviço em seu lugar.

O mesmo acontece no que respeita ao emprego e ordenação das vias e meios próprios para a paz ou a guerra, fundação e proteção das cidades, chefia das tropas, distribuição das funções militares, comandos a atribuir, envio de delegados para tratar da paz, ou audiências concedidas aos delegados estrangeiros, e, finalmente, os impostos necessários para subvencionar todas as despesas públicas” (SPINOZA, op. cit., p. 320).

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funções asseguram os fins últimos do estado civil: a paz e a segurança.

1.2.1 A repartição do poder soberano na Monarquia

É com Spinoza que começa a delinear-se a problemática jurídica do po- der soberano e de sua repartição, de vez que, no Tratado, ele afirma ser essa repartição dependente da forma que o Estado assume. Sendo assim, nos Es- tados em que o poder soberano é monárquico, a segurança do monarca e a paz da população restam asseguradas, desde que ao lado do rei existam dois conselhos, escolhidos entre os vários clãs28: o primeiro – o Grande Conselho29 – terá como principal função “manter a lei fundamental do Estado e dar a sua opinião sobre os negócios”30, não sendo permitido ao rei tomar decisões sem ter ouvido tais opiniões. O conselho também terá como funções promulgar as leis e os decretos, vigiar a execução das leis e toda a administração do Esta- do.31 O segundo – Conselho Judiciário – deve ser formado por designação dos clãs, em número ímpar, cujas funções são regular os ‘diferendos’ e pronunciar as penas, isto é, jurisdicionais.32 Todavia, a atuação desse conselho deve ser controlada pela “comissão permanente, substituta do grande conselho, que exa- minará se essas sentenças terão sido dadas em conformidade com as regras do direito e com imparcialidade”.33 Conclui Spinoza que pode haver liberdade do povo submetido a um rei, “desde que o poder do rei tenha por medida o poder do próprio povo e não tenha outra proteção senão o povo”.34

1.2.2 Estados aristocráticos

Os Estados aristocráticos, para poderem se manter, deveriam ser instituí- dos por um número mínimo de patrícios – notáveis escolhidos – proporcional ao tamanho da massa popular, que formariam a Assembleia Suprema. As condi-

28 O tradutor do texto – Manuel de Castro – adverte que traduziu o termo utilizado por Spinoza – família – pelo gaélico clã para não causar confusão, uma vez que talvez Spinoza tivesse em mente as gens romanas, que também eram, de certa forma, grupos territoriais. Op. cit., p. 305.

29 Formado por três ou quatro indivíduos de cada clã, maiores de cinquenta anos, escolhidos pelo rei e com mandato temporário. Op. cit., p. 327.

30 SPINOZA, op. cit., p. 327.

31 A convocação do conselho deverá ser feita quatro vezes ao ano e, nos intervalos entre as sessões, quem administrará é uma comissão de 50 (cinquenta) membros, que reunindo-se todos os dias “num local próximo do rei [...] preencherá todas as funções do grande conselho” (SPINOZA, op. cit., p. 328).

32 A escolha deve recair sobre maiores de quarenta anos. Op. cit., p. 329.

33 SPINOZA, op. cit., p. 328-329.

34 SPINOZA, op. cit., p. 341.

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ções de elegibilidade seriam o nascimento no território estatal, a liberdade, o do- mínio da língua nacional, a não vinculação, por casamento, a uma estrangeira, não ter sido marcado pela infâmia e não exercer, em nenhuma hipótese, “ofício servil, entre os quais o de negociante de vinho ou de cerveja”35, além de ser maior de 30 (trinta) anos. Principal órgão dessa forma de Estado, a Assembleia Suprema tem como função “fazer e revogar as leis e escolher todos os funcio- nários do Estado”.36 Considerando, entretanto, que a existência de um chefe ou presidente nessa assembleia pode gerar a desigualdade entre os patrícios, é necessário e útil ao bem comum que exista um segundo conselho, composto por um certo número de patrícios, maiores de 60 (sessenta) anos – os síndicos –, eleitos por toda a vida, subordinados à Assembleia Suprema, que exercerá a função de assegurar a inviolabilidade das leis fundamentais do Estado, com a prerrogativa de “fazer comparecer perante si, qualquer funcionário do Estado que tivesse cometido ato contrário ao direito e de o condenar segundo as leis estabelecidas”.37 Além do conselho de síndicos e igualmente subordinado à As- sembleia Suprema, deve existir, nos Estados aristocráticos, um outro conselho, chamado de senado, cujas funções seriam estritamente administrativas: con- duzir os negócios públicos, promulgar as leis, administrar o território segundo as leis, instituir impostos, responder aos embaixadores estrangeiros e “decidir quando é oportuno enviar embaixadores”38, já que a escolha destes cabe à Assembleia Suprema.

De acordo com esse esquema organizativo, os síndicos designados pela Assembleia Suprema participam do senado, mas não tomam parte dos votos: cuidam para que as leis do Estado sejam observadas. Mas o senado, assim como a Assembleia Suprema, só se reúne em data fixa e, por isso, para a continuidade dos negócios públicos nos intervalos entre as sessões, deve ser instituída uma delegação do senado, com funções cotidianas: convocar o senado, fazer executar as decisões tomadas, ler as cartas dirigidas ao senado e à Assembleia Suprema e deliberar sobre todos os assuntos da esfera de com- petência do senado. A esses delegados Spinoza chama cônsules. Quanto aos tribunais, os juízes devem ser bastante numerosos “para que seja impossível a um particular corrompê-los”39 e estes são apenas “intérpretes das leis”. A função dos juízes é administrar os conflitos entre particulares – patrícios e ple-

35 SPINOZA, op. cit., p. 346.

36 SPINOZA, op. cit., p. 346.

37 SPINOZA, op. cit., p. 347.

38 SPINOZA, op. cit., p. 349.

39 SPINOZA, op. cit., p. 353.

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beus – e infligir penas aos descumpridores das leis. Com mandato temporário, os juízes devem ser nomeados, dentre os patrícios, pela Assembleia Suprema

“e as sentenças dadas, tanto no civil quanto no criminal, serão definitivas se as formas legais foram observadas e se os juízes forem imparciais. É aos síndicos que cabe conhecer este ponto, ajuizar e tomar uma decisão”.40 Assevera Spi- noza, por último, que os secretários dos conselhos e servidores, bem como os empregados de finanças, podem ser escolhidos entre a plebe, devendo prestar contas tanto ao senado quanto aos síndicos.

1.2.3 O terceiro Estado

A parte em Spinoza que trata do terceiro Estado, “inteiramente abso- luto”41 e chamado democrático, restou inconclusa. No capítulo XI do Tratado político, todavia, chega a esboçar os princípios dessa forma de estado civil:

democrático é aquele Estado em que todos “têm direito de sufrágio e acesso às funções públicas”.42 Os princípios desse regime são a liberdade, a supremacia das leis e a igualdade, pois que “todos os que são governados unicamente pelas leis do país não estão de forma alguma sob a dominação de um outro, e vivem honrosamente, possuem o direito de sufrágio na assembleia suprema e têm acesso aos cargos públicos”.43

Por razões que são difíceis de estimar ou talvez pelo fato de Spinoza ter sido uma exceção à regra “que liga cada pensador moderno a seu povo e à participação deste em sua obra”44, ou, ainda, por ter sido o primeiro pensador não cristão a pôr a questão de um Estado laico, não houve grande repercus- são do Tratado político, principalmente no que tange à teoria das formas de governo e, por conseguinte, às funções estatais. No entanto, a concepção da fundação do poder civil através de um pacto ou contrato social que os homens celebram para transcender ao estado de natureza, principal contribuição do jusracionalismo à teoria constitucional moderna, foi compartilhada por seus contemporâneos, principalmente por Hobbes, que foi o primeiro pensador cris- tão a pugnar pela separação entre a Igreja e o Estado e a combater claramen- te o pensamento aristotélico. Locke, em contraposição a Hobbes, construiu

40 SPINOZA, op. cit., p. 354.

41 SPINOZA, op. cit., p. 365.

42 SPINOZA, op. cit., p. 365.

43 SPINOZA, op. cit., p. 365.

44 CHAUÍ, op. cit., p. VI. Spinoza era um “marrano” – cristão novo ou judeu convertido; português, porque seus pais eram emigrantes portugueses e holandês, porque nasceu em Amsterdã, tendo a vida marcada pelo conflito de suas origens.

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uma teoria liberal do contrato social e do processo de constituição das socie- dades e dos governos.

2. A lei natural, o contrato social e a constituição dos governo em Hobbes e Locke

Da obra da segunda geração de jusracionalistas, a de Hobbes foi a mais influente e impactante no pensamento político posterior ao pensar a questão do Estado e do poder estatal em termos radicalmente distintos de seus anteces- sores e contemporâneos, assinalando “o início do jusnaturalismo político e do tratamento racional do problema do Estado”.45

2.1 O pacto social e a lei natural na obra de Hobbes

Hobbes, em Elementa philosophica de cive46, obra escrita em latim e publicada na França, em 1642, parte do conceito de estado de natureza, afir- mando, contra a tradição jusnaturalista clássica47, que a origem da sociedade civil é o medo recíproco, e não a boa vontade.48 Nessa obra, Hobbes defende o poder absoluto do rei como a única forma de garantir a paz. Para ele, o Estado – Leviatã – é um homem artificial, em que a soberania é a alma; os magistrados e demais funcionários executivos, juntas artificiais; a recompensa e o castigo, os nervos; a riqueza e a prosperidade, a força; a segurança do povo, seu objetivo;

a justiça e as leis, uma razão e uma vontade artificiais; a concórdia é a saúde e

45 BOBBIO, Norberto. Hobbes e o jusnaturalismo. In: Ensaios escolhidos. São Paulo: C.H.

Cardim Editora, s/d. p. 1-20.

46 Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Tradução brasileira da obra publicada em inglês com o título Philosophical rudiments concerning government and society. Essa obra foi publicada no ano em que se iniciou a Guerra Civil na Inglaterra, quando Carlos I, da casa dos Stuarts, foi decapitado e iniciou-se o período da Commonwealth, sob liderança de Cromwell. Após 18 anos de guerras religiosas e políticas, em 1660, a monarquia foi restaurada, mas o processo revolucionário só se consolidou em 1688, com o “Acordo da Revolução”, no reinado de Jaime II. A partir daí, restaram assegurados, até hoje, a supremacia da lei e do Parlamento sobre a Coroa, a independência dos juízes, a reunião anual do Parlamento, a supremacia financeira dos comuns, a posição da Igreja da Inglaterra, a tolerância religiosa para os dissidentes, a liberdade política, em suma, uma monarquia constitucional para um povo livre. Sobre a Revolução Inglesa, ver: TREVELYAN, George McCaulay.

A revolução inglesa. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1982.

47 “A maior parte daqueles que escreveram alguma coisa a propósito das repúblicas ou supõe, ou nos pede ou requer que acreditemos que o homem é um criatura que nasce apta para a sociedade.

Os gregos chamam-no zoon politikon; e sobre este alicerce eles erigem a doutrina da sociedade civil como se, para preservar a paz e o governo da humanidade, nada mais fosse necessário do que os homens concordarem em firmar certas convenções e condições em comum, que eles próprios chamariam, então, leis” (HOBBES, op. cit., p. 25-6).

48 HOBBES, op. cit., p. 28.

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a guerra civil, a morte.49

A causa do medo que os homens têm uns dos outros é a igualdade natu- ral – desejo recíproco de fazer o mal – e, considerando que o primeiro e mais fundamental direito natural é o de preservação, e que, na natureza, todos têm direito a todas as coisas, só quando for estabelecida a desigualdade, pelo pacto social, o homem pode obter segurança e paz. Se a lei da natureza “é o ditame da reta razão no tocante àquelas coisas que, na medida de nossas capacida- des, devemos fazer, ou omitir, a fim de assegurar a conservação da vida e as partes de nosso corpo”50, a lei fundamental da natureza consiste em procurar a paz, e isso só é possível se os homens renunciarem ao seu direito sobre todas as coisas, de modo a submeterem-se a uma vontade única – um só ou um con- selho. Essa submissão se opera quando cada homem se obriga, por contrato,

“a não resistir à vontade do indivíduo (ou conselho) a quem se submeteu”.51 Se as leis da natureza não bastam para preservar a paz e obrigar o cumprimento dos contratos, essa transferência de direitos de todos os homens a um só pode fazê-lo, na medida em que este a quem se transferiu todos os direitos concentra um enorme poder, conformador da vontade dos particulares à unidade e à con- córdia, pelo “terror que suscita”.52

A união feita dessa forma é uma sociedade civil, uma cidade ou uma pes- soa civil53 e, em toda a cidade, detém o comando em chefe, o domínio, o poder supremo, isto é, a soberania, aquele ou aqueles a quem se transferiram todos os direitos. Cidadão, pessoa civil subordinada, ou súdito é aquele que abriu mão de seu direito de resistência em favor daquele (ou daqueles) que detém o man- do de última instância. Para Hobbes, então, ao contrário de seus antecessores, o soberano tem o monopólio da força ou da coerção física, e não só o mono- pólio do direito, mediante o poder legislativo. As marcas do poder supremo são as seguintes: fazer e revogar as leis, determinar a guerra e a paz, conhecer e julgar todas as controvérsias e nomear todos os magistrados, ministros e conse- lheiros54, e não conhecendo limites, sendo absoluto, está sempre concentrado.

Sendo assim, Hobbes acaba por sustentar que, independentemente do tipo de

49 Cf. a Introdução do Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 5. (Coleção Os Pensadores).

50 HOBBES, Leviatã, op. cit., p. 38.

51 HOBBES, Leviatã, op. cit., p. 96.

52 HOBBES, Leviatã, op. cit., p. 96.

53 HOBBES, Do cidadão, p. 97, verbis: “Uma cidade [...] é uma pessoa cuja vontade, pelo pacto de muitos homens, há de ser recebida como sendo a vontade de todos eles; de modo que ela possa utilizar de todo poder e as faculdades de cada pessoa particular, para a preservação da paz e defesa comum”.

54 HOBBES, op. cit., p. 115.

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governo – democracia, aristocracia ou monarquia –, o “gládio da justiça” e o

“gládio da guerra” pertencem a quem possui o mando supremo, seja um homem ou um conselho, e não considera a hipótese de divisão do poder soberano para diferentes titulares, pois o exercício de funções não é mais do que delegação do soberano da cidade. Por conseguinte, Hobbes não desce a detalhes de como essas atividades podem ser organizadas nos diferentes tipos de Estado.

Hobbes inverte a perspectiva de seus predecessores quando trata da fun- ção da lei natural: em vez de justificar os limites do poder soberano, a lei natural, na verdade, o isenta de quaisquer limites, na medida em que, para os súditos, a única lei natural sobrevivente no estado civil é a que impõe a obrigação de obe- decer ao soberano. Se “as leis da cidade não obrigam o governante”55, se as ordens do governante são leis, após o pacto, nem mesmo o direito à vida está protegido no estado civil. O que o soberano ordena são as leis civis, e, dado que os indivíduos estão obrigados a obedecer às leis civis, só existe, de fato, um direito, imposto por quem detém a autoridade suprema: o direito positivo. Por essa razão, Bobbio56 considera Hobbes o primeiro positivista ou o último jusna- turalista, pois a obra hobbesiana é uma passagem ou um limite entre as duas principais teorias das fontes do direito: em Hobbes, a doutrina do jusnaturalismo é adotada para reforçar o poder civil, e não para limitá-lo, como farão Locke e a maioria dos filósofos políticos que o seguiram.

2.2 Locke

John Locke57, o primeiro filósofo político moderno a advertir sobre a utili- dade de uma separação do poder soberano de acordo com as diversas funções estatais independentemente da forma de governo, construiu sua teoria política seguindo os passos de Hobbes, com a descrição do estado de natureza e fa- zendo desse conceito um elemento essencial de seu sistema de pensamento.58 Embora em suas obras de juventude tenha sustentado a posição hobbesiana segundo a qual, na passagem do estado de natureza para o estado civil, o indivíduo renuncia ao poder de disposição sobre as coisas indiferentes59 e o

55 HOBBES, op. cit., p. 110.

56 BOBBIO, Locke e o direito natural, p. 1-20. Ver, também, de BOBBIO, sobre Hobbes, Ensaios escolhidos, p. 41-44, e Sociedade e estado na filosofia política moderna. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. p. 34-39.

57 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo (Ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil). Tradução de E. Jacy Monteiro. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores).

58 Cf. BOBBIO, Locke e o direito natural, passim.

59 O dois Tratados sobre o magistrado civil são essas obras, cf. BOBBIO, Locke e o direito

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atribui ao soberano, sem qualquer limite, isto é, sem a sobrevivência de seus direitos naturais, a sua obra da maturidade – os dois tratados sobre o governo civil – está centrada na ideia de que o bom governo é o governo limitado por leis naturais.60

2.2.1 A liberdade natural

No primeiro tratado da juventude, editado em 1661, Locke assume uma posição não liberal ao afirmar que, depois da instituição do Estado, os indivídu- os não têm mais qualquer direito sobre as coisas indiferentes, pois renunciaram à disposição sobre essa esfera e a atribuíram ao soberano, sem qualquer limite.

As coisas indiferentes são aquelas nem ordenadas nem proibidas: é a esfera do lícito em sentido estrito, das ações possíveis, ou da “liberdade natural”, como afirmou Hobbes: liberdade, no sentido jurídico, é faculdade de fazer tudo o que não é ordenado ou proibido pelas leis naturais.61 As leis naturais – derivadas de Deus ou da razão – obrigam todos os homens a fazer ou deixar de fazer algo, mas existe uma esfera de ações que não são nem ordenadas nem proibidas. O domínio das leis positivas humanas, impostas pelo poder soberano, é justamen- te essas coisas indiferentes, isto é, as coisas não atingidas pelas leis naturais, já que, no domínio das coisas reguladas pelas leis naturais, o poder do soberano limita-se a implementar os ditames da lei natural. O problema será, então, saber qual o limite da renúncia dos indivíduos a seu poder natural ou qual a extensão do poder estatal na esfera das coisas indiferentes. Como assinalou Bobbio62, a posição liberal é a de:

quem reconhece que o Estado não tem o direito de intervir nas coisas indiferen- tes, ou se o tem, esse direito está sujeito a limites intransponíveis – esses limites intransponíveis são indicados pelos chamados “direitos naturais”, que podem ser definidos como o conjunto dos direitos que tem o indivíduo sobre as coisas indife- rentes, mesmo depois de instituído o Estado.

As diferenças entre as obras da juventude de Locke e de sua maturidade podem ser explicadas se se tiver em mente que as primeiras foram escritas no período mais turbulento da história inglesa, o da Guerra Civil, em 1642, e as segundas, quando a Revolução de 1688 já estava consolidada, com a balança

natural, p. 93-108.

60 Sobre a vida e obra de Locke, ver páginas iniciais da obra editada na Coleção “Os Pensadores”

e BOBBIO, Locke e o direito natural, p. 88 e ss.

61 HOBBES, Do Cidadão, p. 218: “a liberdade natural é um direito que as leis permitem, e não um que elas constituem”.

62 BOBBIO, Locke e o direito natural, p. 94.

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inclinada, de forma definitiva, em favor do Parlamento. Os Tratados sobre o ma- gistrado civil refletem o clima de restauração de 1660, em que todos ansiavam pela paz. Por isso, para Locke, nessas obras juvenis, a segurança vem antes da liberdade, justificando-se, assim, o poder absoluto, uma vez que a instauração deste era a única forma de escapar da anarquia, como já havia sido demons- trado por Hobbes, no De cive. Já nos Tratados sobre o governo, provavelmente escritos simultaneamente, entre 1679 e 1683, o problema central é a garantia da liberdade e propriedade – os primeiros direitos naturais – frente ao poder despótico. Assim, segundo Locke, “o poder que tem o mando deve governar mediante leis declaradas e recebidas e não por prescrições extemporâneas e resoluções indeterminadas”.63

2.2.2 O poder político e os direitos subjetivos

Considerando ser o poder político “o direito de fazer leis com pena de morte”, de regular e preservar a propriedade, empregando a força da comuni- dade “na execução de tais leis”64, bem como o de defender a comunidade de ameaças exteriores, Locke afirma que, no estado de natureza, todos têm o po- der executivo da lei da natureza e são juízes em causa própria, e não havendo a garantia de respeito às leis naturais, este é um estado de guerra “intermitente”

ou “parcial”.65 A contraposição a Hobbes é clara: o inconveniente de um estado de guerra – estado de natureza – não é a falta de lei ou de um soberano abso- luto, e sim de um “juiz imparcial”, verbis:

Quando os homens vivem juntos conforme a razão, sem um superior comum na Terra que possua autoridade para julgar entre eles, verifica-se propriamente o es- tado de natureza. Todavia, a força, ou um desígnio declarado de força, contra pes- soa de outrem, quando não existe qualquer superior comum sobre a Terra a quem apelar, constitui o estado de guerra. [...] A falta de um juiz comum com autoridade coloca todos os homens em um estado de natureza; a força sem o direito sobre a pessoa de um homem provoca um estado de guerra não só quando há como quando não há juiz comum.66

Partindo do pressuposto de que o estado de natureza não é só uma premissa hipotética, mas uma situação histórica real67, Locke conclui que os homens se reúnem no estado civil para instituir um juiz imparcial, isto é, uma

63 LOCKE, op. cit., p. 88.

64 LOCKE, op. cit., p. 34.

65 A expressão é de BOBBIO, Locke e o direito natural, p. 182.

66 LOCKE, op. cit., p. 41.

67 LOCKE, op. cit., capítulo II, 14, p. 39.

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instituição capaz de proporcionar a reparação dos danos e a punição dos cul- pados, preservando, dessa forma, seus direitos naturais – liberdade, igualdade e propriedade – e tornando possível sua convivência natural. O estado civil não é criado, então, “por qualquer pacto”, e sim por aquele em que os homens con- cordam, mutuamente e em conjunto, “formar uma comunidade, fundando um corpo político”.68

Ao contrário de Hobbes, que considerava a instituição do estado civil o instrumento por excelência de conservação da vida e, por isso mesmo, esta era o único direito remanescente dos indivíduos, independente da vontade do sobe- rano, Locke concebeu a existência de outros direitos, anteriores e superiores ao Estado, afirmando ser o objetivo principal da união dos homens em comunidade política a preservação desses direitos, principalmente o de propriedade.69

Por tudo isso, o poder absoluto ou arbitrário, sem leis fixas, não se pode harmonizar com os fins da sociedade e do governo pelo qual os homens aban- donam o estado de natureza. Destarte, se para Hobbes só existiam os direitos assegurados pelo soberano – os direitos constituídos –, para Locke o estado civil tão somente reconhecia – declarava – direitos preexistentes. O contrato so- cial, ao ser celebrado por homens igualmente livres (e não entre governantes e governados) não criaria, então, nenhum direito novo, já que era tão somente um acordo entre sujeitos reunidos para empregar sua força coletiva na execução das leis naturais, renunciando a executá-las de mão própria. O objetivo primeiro

68 LOCKE, op. cit., capítulo II, 14, p. 39.

69 Propriedade é um conceito central na teoria política de Locke. Segundo ele, Deus deu aos homens a terra e o tudo o que ela contém – em comum – a fim de que estes a utilizassem para maior proveito da vida e da própria conveniência. O homem, ao transformar a natureza com o trabalho de seu corpo e suas mãos, torna-a objeto de apropriação individual: “O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se- lhe algo que lhe pertence, e por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, anexou-lhe por esse trabalho algo que o exclui do direito comum de outros homens.” Como assevera Bobbio, Locke se opos à teoria jurídica tradicional da ocupação como título de aquisição originária da propriedade (posse de res nullius), sustentando o fundamento da propriedade na especificação, ainda que não de forma explícita, porque a teoria da ocupação era “um modelo distante do seu horizonte mental e de seus propósitos de reforma política em uma sociedade, como a inglesa, marcada por uma burguesia ativa, em luta contra a aristocracia tradicional, com base econômica na terra”. A outra razão para fazer do trabalho o fundamento da propriedade seria a mentalidade economicista de Locke, segundo a qual é o trabalho que dá valor às coisas, sugerindo o princípio do valor-trabalho, central para o pensamento econômico e político dos séculos seguintes. Ver: LOCKE, op. cit., capítulo I, 3, p. 34; capítulo V, p. 45; capítulo VII, 87, p. 67; capítulo VII, 94, p. 70; capítulo IX, 124, p. 81; e assim por diante. BOBBIO, Locke e o direito natural, p. 193-194; YOLTON, John W. Dicionário Locke. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

p. 207-212.

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do pacto social seria a preservação da vida, da liberdade e da propriedade, as- sim como reprimir as violações desses direitos naturais.

2.2.3 Os governos e sua forma

Locke afirma a necessidade de se distinguir o processo de criação da comunidade, pelo contrato social, do subsequente processo através do qual a comunidade confia o poder político – poder de fazer e executar as leis – a um governo. Dessa forma, porque falta, no estado de natureza, “uma lei estabele- cida, firmada, conhecida, recebida e aceita mediante consentimento comum, como padrão do justo e injusto e medida comum para resolver quaisquer con- trovérsias entre os homens”70, um juiz imparcial conhecido “com autoridade para resolver quaisquer dissensões, de acordo com a lei estabelecida”71, e, finalmente, um poder que sustente as sentenças justas, “dando-lhe a devida execução”72, os homens abandonam o poder isolado que têm de castigar e o transferem a um só indivíduo, escolhido entre eles, que o exercerá conforme as regras que a comunidade – ou os que forem por elas autorizados – estabe- lecer. A partir daí, Locke assevera que “nisso se contém o direito original dos poderes legislativo e executivo, bem como dos governos e das sociedades”.73 A consequência dessas afirmações é a noção segundo a qual quem tem o poder supremo de qualquer comunidade está obrigado a governar mediante leis esta- belecidas e conhecidas do povo, por juízes indiferentes e corretos, com o dever de dirimir os conflitos conforme essas leis e a empregar a força da comunidade somente na execução de tais leis. O governo é, então, o exercício dos poderes Legislativo, Judiciário, Executivo e da Prerrogativa.

Quanto às formas que pode assumir um governo, Locke assevera, se- guindo a clássica distinção aristotélica, que são três: democracia, quando o po- der de fazer leis pertence à maioria originária e tais leis são executadas “por meio de funcionários que ela própria nomeia”; oligarquia, quando o poder de fazer leis reside na “mão de alguns homens escolhidos, seus herdeiros e suces- sores”; e monarquia, quando reside “nas mãos de um único homem”.74 Assim, a forma da comunidade é definida conforme se situe o poder de fazer as leis.

Partindo desse pressuposto, Locke assegura ser a separação das funções es-

70 LOCKE, op. cit., p. 82.

71 Ibidem.

72 Ibidem.

73 LOCKE, op. cit., p. 83.

74 Ibidem.

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tatais o expediente capaz de garantir que o poder não seja exercido arbitraria- mente, independentemente da forma que a comunidade possa assumir75, uma vez que, após promulgar as leis, os que a fizeram devem a ela se submeter:

em comunidades bem ordenadas, nas quais o bem de todos se leva em conta como é devido, o poder legislativo vem às mãos de diversas pessoas que, conve- nientemente reunidas, têm em si, ou juntamente com outras, o poder de elaborar as leis; depois de assim o fazerem, novamente separadas, ficam sujeitas às leis que fizeram, o que representa obrigação nova e mais próxima para que as façam tendo em vista o bem geral.76

2.2.4 Os poderes estatais

Os poderes estatais são, para Locke, três: fazer as leis e difundi-las, julgar os conflitos da comunidade e acompanhar a execução das leis que se elaboram e ficam em vigor. Os poderes constituídos também são três: o Legislativo, que compreende o Judiciário, já que legisladores e juízes imparciais têm idêntica função, estabelecer o direito77; o Executivo, que aplica a força para assegurar a observância das regras; e a Prerrogativa, “discrição de quem dispõe do poder executivo”78 (o rei ou o povo), ou “o poder de agir de acordo com a discrição a favor do bem público, sem a prescrição da lei e muitas vezes mesmo contra ela”.79 A Prerrogativa é, então, para Locke, nada mais do que o poder soberano

75 “[...] seja qual a for a forma de governo sob a qual se acha a comunidade, o poder que tem o mando deve governar mediante leis declaradas e recebidas e não por prescrições extemporâneas e resoluções indeterminadas” (Op. cit., p. 88).

76 LOCKE, op. cit., p. 91.

77 Essa tese, de que Locke pensa o Judiciário como parte do Legislativo, é sustentada por Bobbio, com apoio em passagens textuais, in Locke e o direito natural, p. 232-233. Compartilha- se, aqui, dessa posição, porquanto se tem em vista a história da formação do direto inglês, isto é, a tradição da common law, em que o juiz cria regras de direito. Assim, é natural e consequente que ele compreenda a função judicial na função legislativa. Sobre a história do direito inglês e norte-americano e respectivas diferenças com o direito dos países que adotam a tradição romano- germânica, ver: DAVID, René. Os grandes sistemas de direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1993, passim; DAVID, René e BLANC-JOUVAN, Xavier. Le droit anglais. 7. ed. Paris: PUF, 1994 (Collection “que sais-je?”); KOSCHAKER, Paul. Europa y derecho romano. Madrid: Editoral Revista de Derecho Privado, 1955.

78 LOCKE, op. cit., capítulo XIV, 159, p. 98.

79 LOCKE, op. cit., capítulo XIV, 160, p. 98. Em relação a esse poder exercido por quem detém o Poder Executivo, pode ter sido a origem doutrinária do discutido quarto poder – o Poder Moderador – da Constituição brasileira de 1824, outorgada pelo Imperador D. Pedro I, conforme art. 98 (“O poder moderador é a chave de toda a organização política e é delegado privativamente ao imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”).

Autores nacionais, como Nelson Saldanha e Paulo Bonavides, sustentam ser a letra constitucional um componente doutrinário, a partir de uma alteração de um texto de Benjamin Constant : Cours de

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originário, a soberania originária, ou, ainda, a faculdade administrativa do rei.80 Os poderes que devem estar separados, necessariamente, são o Le- gislativo e o Executivo, pois fazer leis e aplicá-las são funções que devem ser confiadas a órgãos distintos para não reinar a arbitrariedade. O Legislativo é o poder superior, que reúne as funções de fazer as leis e difundi-las e as de julgar os conflitos, e o Executivo, cuja função é garantir a observância das normas de convivência estabelecidas pelos legisladores ou juízes (imparciais)81, é poder subordinado. Com isso, Locke teoriza sobre a supremacia do Poder Legislati- vo (doutrina constitucional que é a base dos Estados modernos), porque este depende diretamente do consentimento popular e é seu fiduciário.82 Ligado ao Poder Executivo, e repousando nas mesmas mãos, encontra-se o Poder Fede- rativo, “poder de guerra e de paz, de ligas e alianças”83, ou seja, de relacionar- se externamente. Em última instância, é o aspecto externo do poder coativo do Estado ou da soberania.

A obra de Locke, na verdade a teorização da experiência político-cons- titucional da Revolução Inglesa de 168884, tornou-se objeto de investigação de

politique constitutionelle. Assim, ver SALDANHA, Nelson. A teoria do poder moderador e as origens do direito político brasileiro, in Quaderni Fiorentini, XVIII, Firenze, 1993. p. 253-265; e BONAVIDES, Paulo e PAES DE ANDRADE. História constitucional do Brasil. Brasília, 1989. p. 96-97. O texto da primeira Constituição brasileira se encontra em Textos históricos de direito constitucional, organizado por Jorge Miranda (Lisboa: Casa da Moeda, 1990. p. 197-227), e MENDES DE ALMEIDA, Fernando.

Constituições do Brasil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1967.

80 LOCKE, op. cit., p. 98 e 100; YOLTON, op. cit., p. 198.

81 LOCKE, op. cit., capítulo XII, 144, p. 91, onde se lê: “[...] as leis elaboradas imediamente e em curto prazo têm força constante e duradoura, precisando para isso de perpétua execução e assistência, torna-se necesssária a existência de um poder permanente que acompanhe a execução das leis que se elaboram e ficam em vigor. E desse modo os poderes legislativo e executivo ficam frequentemente separados”.

82 “[...] sendo o legislativo somente um poder fiduciário destinado a entrar em ação para certos fins, cabe ao povo um poder supremo para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verificar que age contrariamente ao encargo que lhe confiaram” (op. cit., p. 92, capítulo XIII, 149, p. 93); “Em todos os casos, enquanto subsiste governo, o legislativo é o poder supremo; o que deve dar leis a outrem deve necessariamente ser-lhe superior” (p. 150).

83 LOCKE, op. cit., capítulo XII, 146, p. 91. Nas monarquias constitucionais atuais, ou mesmo nos sistemas presidencialistas “mistos” (de tipo francês), a repartição de competências entre o rei e o presidente, de um lado, representando o Estado ou a nação nas relações externas, e o primeiro-ministro, de outro, representando o Poder Executivo – o governo – propriamente dito, é uma decorrência dessa concepção.

84 Segundo Franco Bassil, foi depois da primeira Revolução Inglesa, de 1640, que Cromwell, no Instrument of governement (1653), codificou a distinção entre Poder Legislativo e Poder Executivo.

Por um breve período, o da restauração monárquica, o rei voltou a concentrar os poderes Legislativo e Executivo, até o Bill of rights, de 1689, que impôs, definitivamente, limitações às prerrogativas reais. (Il principio della separazione dei potere [evoluzione problematica]. Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, Milão, ano XV, n. 1. p. 23, 1965).

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juristas que dela fazem diferentes interpretações: Malberg85, por exemplo, asse- vera que Locke distinguiu, na verdade, quatro poderes – Legislativo, Executivo, Federativo e Prerrogativa. Bobbio, ao contrário, entende que, para Locke, “o poder civil articula-se em dois distintos poderes, o Legislativo e o Executivo, cujas relações constituem o objeto principal do debate em torno da organização do poder político”.86 Independentemente da posição que se tome a respeito de quantos são os poderes constituídos no Estado, forçoso é reconhecer-se que a obra de Locke, refletindo as condições políticas de seu tempo87, foi o ponto de partida para as investigações de Montesquieu, que, finalmente, formulou a teoria moderna da separação dos poderes, distinguindo-os por suas funções.

Conclusão

O problema da origem do Estado e da constituição dos governos pode ser compreendido como uma investigação que tomou por base a realidade concreta da vida de cada Estado à época em que cada teoria foi formulada: os antigos descreveram as características típicas das cidades gregas e de Roma, derivan- do das atividades que cada autoridade exercia uma divisão dos assuntos des- ses Estados; Spinoza abstraiu qualquer Estado em particular, face à condição de “apátrida” do povo judeu; Hobbes partiu da organização da monarquia ingle- sa, e não se encontra, em sua teoria, outra divisão das atividades do Estado que não seja tão somente direções do Poder Monárquico; Locke, por fim, deu expressão à nova ordem estatal inaugurada pela Revolução Inglesa de 1688, em que o rei se encontra limitado em algumas de suas atribuições. Ainda assim, não rompeu definitivamente com a antiga concepção de que o rei representa a soberania do povo e que, a ele, devem corresponder os poderes Executivo, Federativo e a Prerrogativa (poder mais ou menos discricionário). Em última instância, segundo Locke, há que se considerar a Coroa como o órgão supremo do Estado – o órgão soberano. A teoria moderna decisiva sobre o Estado foi a de Montesquieu88, porque este, ao contrário de seus antecessores modernos,

85 MALBERG, Carré de. Contribution à la théorie générale de l’état. Paris: Sirey, 1922. p. 3.

86 BOBBIO, Locke e o direito natural, p. 231.

87 Na época de Locke, o monarca inglês detinha, privativamente, o Poder Executivo, o Poder Federativo e a Prerrogativa; compartilhava com o Parlamento o Poder Legislativo. É por isso que Malberg assevera ser a teoria de Locke uma simples teoria de distinção entre poderes, já que não afirma a necessidade absoluta de uma separação orgânica dos poderes.

88 Do espírito das leis, publicado pelo editor suíço J. Barrillot, com o extenso título: Do espírito das leis ou das relações que as leis devem ter com a constituição de cada governo, costumes, clima, religião, comércio, etc. O texto consultado é o publicado na Coleção “Os Pensadores” (São Paulo:

Abril Cultural, 1979).

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pensa o Estado como fruto das ‘leis naturais’, e não necessariamente baseado no consenso/vontade.89

Montesquieu foi o primeiro a propor um princípio de explicação universal da história ao mesmo tempo estático – a totalidade natureza-princípio expli- cando as diversas leis e instituições de um governo dado – e dinâmico – a lei da unidade da natureza e do princípio, que permite pensar sobre o devenir das instituições e sua transformação em história real.90 O aspecto mais importante de sua teoria (e que está subjacente em todas as Constituições ocidentais), to- davia, reside no fato de ele haver dado conta da realidade sociológica com o fim de elaborar um sistema de organização da atividade estatal que assegurasse, ao mesmo tempo, uma forma de governo livre e a liberdade fundamental dos cidadãos. Isso só foi possível, contudo, porque seus antecessores modernos romperam com uma tradição secular ao priorizar na organização social, como fundamentais, a liberdade individual, os direitos subjetivos inalienáveis e a ideia de um contrato social originário.

89 Montesquieu reconhece a existência de quatro “leis naturais” básicas relativas: a) à procura da paz, porque, neste estado, “todos se sentem inferiores e dificilmente alguém se sente igual”; b) à procura de alimentos, porque, “ao sentimento de fraqueza, o homem acrescentaria o sentimento de suas necessidades”; c) ao desejo de se unir sexualmente; e d) ao desejo de viver em sociedade, porque, além do sentimento, os homens também conseguem ter conhecimentos, sendo este

“um novo motivo para se unirem”, de forma que, unidos em sociedade, os homens acabam por estabelecer as leis positivas: o direito das gentes – leis que regulam as relações entre os diferentes povos; direito político – leis para as relações entre governantes e governados; e direito civil – leis reguladoras das relações entre os particulares. Nesse tópico, Monstequieu também assevera implicar o poder político, necessariamente, “a união de muitas famílias”, e ser o melhor governo, isto é, o que está de acordo com a natureza, aquele “cuja disposição particular melhor se relaciona com as disposições do povo para o qual foi estabelecido”. EL, I, II, p. 26-28. Ver: MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores). Publicada pelo editor suíço J. Barrillot, em 1748, com o extenso título: Do espírito das leis ou das relações que as leis devem ter com a constituição de cada governo, costumes, clima, religião, comércio, etc.

90 Cf. ALTHUSSER, Louis. Montesquieu, la política y la historia. Madrid: Editorial Ciencia Nueva, 1968. p. 46.

Referências

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2 O ‘falacioso’ discurso pós-moderno do fim da luta de classes assim o é pelo fato de que “as classes sociais significam para o marxismo, num único e mesmo movimento, contradições e