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Literatura e ensino médio: algumas considerações sobre teoria e prática

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Academic year: 2023

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Pesquisas em Lingüística e Literatura: Descrição, Aplicação, Ensino - ISBN: 85-906478-0-3

O processo educativo é uma prática de natureza essencialmente metodológica. O ensino de literatura, por sua vez, não foge a essa regra geral. Isto não quer dizer que o ato pedagógico, que vem historicamente experimentando diversas tendências metodológicas, se faça continuadamente de acertos.

Muito pelo contrário. A sua história se faz de muitos equívocos, contradições, tentativas frustradas de êxito.

De um modo geral, a literatura acadêmica tem apresentado muitas alternativas de respostas para esse problema. Dentre tantas, apontamos aqui pelo menos duas: a própria debilidade da teoria, que não consegue alcançar aquela efetiva mudança pedagógica a que se propõe, ou a não apropriação devida da teoria por parte de professores e outros profissionais da educação.

Via de regra, a prática da sala de aula tem-se pautado por uma interpretação teórica externa, como que estranha ao próprio cotidiano escolar. Queremos dizer com isto que muitas vezes o ensino se constrói com base em idéias ou teorias que não foram propriamente desenvolvidas para o ato de ensinar, para o dia-a- dia da sala de aula, o que tem provocado diversos distúrbios no processo ensino-aprendizagem.

O ensino de literatura nas escolas brasileiras não tem escapado a essa realidade, muitas vezes expressando uma não correspondência entre orientação teórica e a efetiva prática do professor. Bakhtin(2000)1, em seu texto Os estudos literários hoje, ao mapear diversas tendências nos estudos contemporâneos sobre literatura, tem o cuidado de observar que essas tendências também são visíveis no ensino da disciplina, mais especificamente no ensino médio. Vejamos, primeiramente, o que ele nos diz sobre a falta de uma diretriz teórica linear, sólida, que norteie a pesquisa literária:

“Por falta de audácia, nenhuma descoberta permitiu colocar problemas gerais numa ótica nova, nenhum leque de fatos específicos nasceu no imenso universo da literatura, nenhum combate sério e benéfico foi travado para defender uma teoria. Predomina na pesquisa algo como o medo do risco, o medo de arriscar uma hipótese.(...) Por isso, a ausência da menor luta entre as tendências e o medo ante a menor hipótese audaciosa levam ao reinado do truísmo e do clichê, o que não nos falta”.

Leahy-Dios(2001)2, ao escrever sobre a concretização do ato educativo pela via da linguagem literária, e juntando a esse seu primeiro raciocínio a expressão do binômio teoria-prática nos nossos cursos de Letras, demonstra-se mais pontual, mais incisiva que Bakhtin:

“Carecemos, entretanto, juntamente com nossos alunos, de idéias a respeito da exeqüibilidade de tais princípios na prática real. Quando a questão entra no terreno da práxis nossa de cada dia, é frágil a sustentação da relação entre teorias críticas e conteúdos e programas.

Sabemos criticar e demolir o modelo que existe, que conhecemos como alunos e professores, e que não mais nos satisfaz; mas ainda não temos certeza de como otimizar e reconstruir a pedagogia lingüístico-literária do cotidiano escolar”.

Diante da não existência de uma audácia teórica apontada por Bakhtin, ressaltando-se que o autor, no texto citado, faz

referências a algumas exceções nesse quadro, e da insegurança ou mesmo incapacidade de alunos e professores no trato com teorias já existentes, como registra Leahy-Dios, não é de se estranhar um ensino de literatura confuso, solto, sem diretrizes substancialmente definidas. Toda essa confusão é refletida nas mais variadas formulações curriculares, nos mais diversos perfis que a disciplina assume nos programas, nas tantas diferentes concepções e atitudes do professor no seu trabalho com o estético, com o literário na sala de aula.

Temos aqui, concorrendo nas mais diversas direções, múltiplas acepções de um mesmo problema: a má formação do nosso professor. A propósito, Porcher(1982)3 afirma ser este o item mais problemático da pedagogia moderna. E, segundo ele, quando se trata de formação estética, então, as deficiências, os desvios são ainda maiores, bem mais agravantes. E o que é pior:

o autor ressalta ser esse despreparo estético uma condição universal, que se percebe nos mais diferentes países, mesmo naqueles considerados economicamente mais abastados, ou artisticamente mais privilegiados.

Souza(1991)4 consegue ser mais explícito ao descrever os principais caminhos teóricos que têm norteado os estudos literários e, conseqüentemente, influenciado o ensino de literatura.

De acordo com este autor, as mais diversas tendências teóricas, contemporâneas ou não, podem ser agrupadas em três grandes correntes: textualistas, fenomenológicas e sociológicas.

Sob o nome de correntes textualistas o autor agrupa várias tendências, dentre elas algumas mais conhecidas no Brasil, como a estilística, o formalismo russo, o new criticism, o estruturalismo. Resguardadas as especificidades de cada uma, estas tendências se unem pela abordagem que privilegia o texto literário como objeto único de análise. Em sala de aula, a ênfase que é dada à estrutura formal da obra, suas partes segmentais, sua forma lexical, seus elementos gramaticais, a medição do verso ou o número de personagens no texto, entre outros aspectos, denunciam uma concepção teórica textualista por parte do professor.

A teoria dos estratos, a escola de Zurique e a crítica hermenêutica, tendências inspiradas no pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger, formam as chamadas correntes fenomenológicas, também influenciadoras de posturas em sala de aula. Se tomamos, por exemplo, a teoria dos estratos, do polonês Roman Ingarden, em que uma obra consistiria num conjunto de camadas que se sobrepõem de modo equilibrado, podemos visualizar uma costumeira prática das nossas aulas de literatura: a leitura ou interpretação do texto poético, por exemplo, obedecendo-se a uma fragmentação do texto em diversas camadas que, por sua vez, formam um todo harmônico – camada fônica, lexical, sintática, semântica.

Vale salientar que muitas vezes o professor adere a uma ou outra teoria por influência de autoridades do ambiente escolar, pela divulgação dessa teoria em algum curso que o professor venha a freqüentar, ou por sua divulgação em algum canal de comunicação que lhe seja mais acessível, pela presença da teoria no livro didático, ou mesmo por puro modismo. Em muitos casos, a influência se dá como que de forma inconsciente, sem que o professor se dê conta das conseqüências daquele seu gesto na prática da sua sala de aula. É importante ainda ressaltar, como lembra Lajolo(200l)5, que

“história e teoria literárias, quando transformadas em argumento de autoridade, quer como justificativa para

Literatura e ensino médio: algumas considerações sobre teoria e prática

Francisco Afrânio Câmara Pereira

Universidade Estadual do Rio Grande do Norte

ABSTRACT: Historically, theoretical trends have been influencing the literature teaching of our schools. The authority these trends have in the academic world creates and/or alters methodological behaviors in the classroom. The confuse practice, without discernment, of the literature teacher on high-school, is an expression of this multiplicity of theoretical trends.

PALAVRAS-CHAVE: literatura; ensino médio; correntes teóricas.

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679 a inclusão de determinado texto ou autor no currículo

escolar, quer como endosso de interpretação deste ou daquele texto, podem ser paralisantes”.

Isto é: o professor, por sua frágil formação, poderá não saber discernir esse discurso de autoridade que emana da história e teoria literárias. Dessa maneira, em sua prática escolar poderá alterar ideais teóricos, endossar teorias equivocadas, ou ainda fazer silenciar outras leituras e outros possíveis caminhos interpretativos. Lajolo lembra do peso das teorias, bem como da influência da comunidade intelectual que sanciona essas teorias, sobre os professores, dificultando muitas vezes o trabalho desses profissionais.

Como correntes sociológicas temos a crítica existencialista, a crítica marxista e a crítica sociológica. Imenso tem sido o alcance de tais tendências, abarcando desde pesquisas ditas engajadas a outras de nível metodológico mais arrojado.

Nas palavras do próprio Souza, as análises de cunho sociológico estão “apoiadas numa concepção de literatura como transparência e/ou condicionamento direto a situações sociais”(Idem)6.

Na sala de aula, o viés sociológico dado aos estudos literários tem, de alguma forma e em alguma medida, contribuído para ampliar qualitativamente esses estudos, eliminando alguns equívocos. Como exemplos, hoje se sabe muito mais da relação literatura e sociedade e da influência direta do social na composição da obra literária. Em alguns casos, chega-se mesmo a compreender que

“as sugestões e influências do meio se incorporam à estrutura da obra - de modo tão visceral que deixam de ser propriamente sociais, para se tornarem a substância do ato criador”(Candido, 1987)7.

A propósito, ainda há que se considerar, dentro dessa matriz sociológica, a relação literatura e subdesenvolvimento, em que a obra literária reflete uma condição de dependência política e econômica dos países que formam o chamado terceiro mundo, ou, numa direção oposta, a obra debate-se vigorosamente contra tal condição. Candido(Idem)8 e Schwarz(1989)9, por exemplo, são nomes de críticos brasileiros que falam sobre essa situação. Essa dupla direção na construção do texto literário e, por conseguinte, uma situação parecida quando da sua leitura interpretativa, tem ocupado uma parte significativa do ensino de literatura na escola brasileira.

Voltemos ao texto de Bakhtin e veremos que ainda há um largo caminho a percorrer:

“A ciência literária deve, acima de tudo, estreitar seu vínculo com a história da cultura. A literatura é uma parte inalienável da cultura, sendo impossível compreendê-la fora do contexto global da cultura numa dada época. Não se pode separar a literatura do resto da cultura e, passando por cima da cultura, relacioná- la diretamente com os fatores sócio-econômicos, como é prática corrente.. Esses fatores influenciam a cultura e somente através desta , e junto com ela, influenciam a literatura”(Op. cit.)10.

Em outras palavras, o teórico está a nos dizer que a análise sociológica desvinculada da análise cultural não consegue abarcar o significado de uma obra. Ou ainda: que mesmo uma leitura que se quer estritamente sociológica, será falsa se não considerar a influência direta da cultura sobre a formação do social. A visão bakhtiniana nos adverte, por conseguinte, de que é reducionista, ou mesmo inútil, aquela leitura de sala de aula que prestigia numa obra, por exemplo, aspectos econômicos ou ideológicos de uma dada realidade social, ignorando os seus determinantes culturais. Ou, num outro exemplo, é igualmente reducionista estudar um determinado “período literário” – como se costuma fazer – desprezando-se a história antecedente e posterior a ele, esquecendo-se de que o desenvolvimento humano, histórico e cultural é contínuo, ininterrupto. Os fatos humanos que vêm a inspirar uma determinada obra não estão isolados, os homens não estão sozinhos, a humanidade não está presa a uma dada época, a um determinado tempo. Tudo é socialmente

dependente e se dá numa relação dialógica, como diria o próprio Bakhtin. E como bem lembra Gonçalves Filho(2000)11:

A densidade de uma obra literária se expressa quase sempre pela densidade de nossos dramas sociais e, por que não acrescentar, de nossos dramas existenciais e históricos.(...) Ninguém lê Dostoievski porque ouviu dizer que se trata de uma bela estrutura de linguagem.É também, mas é por algum fator mais relevante, mais forte, a identificação dos dramas correntes em nosso ser universal comum: a dor, a solidão, o medo e a possibilidade, aberta pela literatura, de uma vida mais vasta que a mediocridade de nosso quotidiano e menos penumbrosa que nossos pesadelos. E ainda pela capacidade de transcendência da própria condição humana(...). E o que confere encanto a uma obra literária é essa festa do imaginário, esse eterno feriado do espírito que nos induz a lutar contra os nossos grilhões”.

Nas últimas décadas têm surgido no cenário acadêmico novas idéias, novas formas de perceber o texto literário. Se bem que algumas dessas idéias, conforme já observado, não se dirijam unicamente ao trato com a literatura. Dentre elas, destacam-se a estética da recepção, os estudos comparativos e a teoria da complexidade do sociólogo francês Edgar Morin. A título de ilustração, vejamos o que diz Morin(1997)12 sobre literatura, numa perspectiva de ensino da disciplina:

“A literatura é um mundo aberto ao mesmo tempo às múltiplas reflexões sobre a história do mundo, sobre as ciências naturais, sobre as ciências sociológicas, sobre a antropologia cultural, sobre os princípios éticos, sobre política, economia, ecologia... Tudo depende de uma seleção inteligente das obras. (...) O objetivo maior das discussões sobre os novos caminhos da Educação não é a preparação dos programas de ensino, mas a separação daquilo que é considerado como saberes essenciais e evitar o empilhamento dos conhecimentos”. (grifos do autor)

A ênfase no leitor, como preconiza a estética da recepção, o estudo comparativo da literatura e a perspectiva interdisciplinar, ou mesmo transdisciplinar, como sugere Morin, são ainda “ensaios”, tentativas metodológicas em nossas salas de aula, dificultando, neste artigo, uma análise dessas novas investidas teóricas no ensino de literatura. No nosso modo de ver, diga-se de passagem, esse novo ideário teórico está quase que totalmente restrito ao espaço universitário, mais especificamente nos cursos de Letras. Parece-nos que o ensino médio – universo maior do ensino de literatura -, bem como o ensino fundamental, ainda desconhecem as novidades.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. “Os estudos literários hoje”. In:

_______Estética da criação verbal. 3 ed., São Paulo:

Martins Fontes, 2000.

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios.

São Paulo: Ática, 1987.

GONÇALVES FILHO, Antenor Antônio. Educação e literatura.Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2000.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo.

6 ed., São Paulo: Ática, 2001.

LEAHY-DIOS, Cyana. Língua e literatura: uma questão de educação?. Campinas: Papirus, 2001.

MORIN, Edgar. Meus demônios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

PORCHER, Louis. Educação artística: luxo ou necessidade?. 5 ed., São Paulo: Summus Editorial, 1982.

SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. 4 ed., São Paulo: Ática, 1991.

SCHWARZ, Roberto. Que horas são?. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Referências

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