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Edmund Mezger e o direito penal do nosso tempo

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Academic year: 2017

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ligação entre o penalista Edmund Mezger e o regime nazista somente veio a ter maior divulgação com a publicação do livro de Muñoz Conde Edmund Mezger y el derecho penal de su tiempo: estudios sobre el derecho penal en el nacionalsocia-lismo,em suas quatro edições, cada uma

sucessivamente ampliada com os dados colhidos ao longo de sua pesquisa. Os resultados dessa pesquisa surpreende-ram os estudiosos do Direito Penal. Até então, as referências a Mezger faziam-se por ter sido ele o autor de um dos mais famosos manuais de Direito Penal, uma versão resumida de

seu tratado, largamente utilizada na formação de boa parte dos penalistas alemães e por ter protagonizado uma das discussões téoricas mais acalora-das: o debate entre causalistas e finalis-tas, que dominou a dogmática alemã nos anos 50 e que logo congregou par-tidários de ambos os lados em diversos países, no Brasil inclusive.

A surpresa deu-se não só pela ima-gem anterior que se tinha desse autor, mas também porque a colaboração de Mezger com o regime de Hitler não foi nem um pouco discreta: ele era consi-derado um dos penalistas mais influen-tes da época.

RESENHA

MUÑOZ CONDE, FRANCISCO. EDMUNDMEZGER Y EL DERECHO PENAL DE SU TIEMPO: ESTUDIOS SOBRE EL DERECHO PENAL EN EL NACIONALSOCIALISMO. 4. ED. VALENCIA: TIRANT LOBLANCH, 2003.

Marta Rodriguez de Assis Machado

EDMUND MEZGER E O DIREITO PENAL

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Muñoz Conde relata com algum detalhe a trajetória de Mezger a partir de 1933: partidário de primeira hora do nacional-socialismo, foi nomeado nesse mesmo ano membro da Comissão de Reforma do Direito Penal, participando da redação dos textos legais que, dentre outras coisas, tinham como missão adap-tar o Direito Penal aos novos postulados políticos. A produção acadêmica de Mezger durante esse período seguia pelo mesmo caminho. No que foi neces-sário, tratou de adaptar sua teoria às idéias que caracterizavam o Direito Penal do nacional-socialismo, grosso modo:a vontade do Führer como fonte

do Direito Penal; a analogia na criação de tipos penais; a substituição do Direito Penal de resultado por um Direito Penal de perigo e do conceito de bem jurídico pelo de violação de um dever; e a idéia de pena como meio para a eliminação dos elementos daninhos ao povo e à raça.

O livro não se detém, entretanto, nos reflexos desse processo na teoria dogmática de Mezger – o que certa-mente teria sido interessante – mas volta a atenção para a sua participação decisiva na redação do Projeto de Lei sobre o Tratamento dos Estranhos à Comunidade e aos seus estudos na área da criminologia, em que desenvolveram suas idéias biologicistas como causa de condutas anti-sociais, utilizadas para justificar as propostas de medidas de higiene racial.

Mezger participou das discussões em torno da Lei do Delinqüente Perigoso de novembro de 1933, que introduziu no

Código Penal alemão a medida de custó-dia de segurança, permitindo manter o indivíduo, após cumprida a pena, em um centro de trabalho por tempo indetemi-nado. Esse instrumento foi fundamental para que se levasse adiante uma das fren-tes de repressão do nacional-socialismo que se fazia por meio dos tribunais civis, permitindo a internação e morte em campos de concentração de mais de 17.000 pessoas.

Um dado notável trazido por Conde é o de que a custódia de segurança tal como implementada com essa reforma era uma das propostas do Projeto de Reforma do Código Penal alemão de 1922, elaborado pelo então Ministro da Justiça da República de Weimar, Gustav Radbruch, homem de idéias em tudo distintas das que justificavam o autorita-rismo nazista e que veio a sofrer pessoal-mente perseguição e exílio nesse perío-do. Mais curioso ainda é que esse mesmo projeto serviu de base a movi-mentos progressistas de reforma penal na Alemanha, que resultaram no Projeto Alternativo de 1966.

No último período do regime, fase em que se pretendeu um endurecimen-to contra os “inimigos” externos e tam-bém internos, iniciaram-se os trabalhos preparatórios de um Projeto de Lei que não chegou a entrar em vigor, que pro-punha medidas ainda mais radicais con-tra os considerados estranhos à comunida-de (Gemeinschaftsfremcomunida-de):além do

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que apresentassem uma certa “tendência à delinqüência”. Além disso, outorgava a SS, um dos braços da polícia do Reich, poderes para agir diretamente e deter-minar a privação de liberdade por tempo indeterminado dos “inimigos do regime”, coisa que, pelo menos seguin-do a lei anterior, requeria algum contro-le judicial.

Em última instância, sob o funda-mento de proteção preventiva da comu-nidade, buscava-se a eliminação física de diferentes grupos de pessoas, que segundo o Projeto, em uma classificação que contou com a colaboração de Mezger, dividiam-se entre o grupo dos fracassados ou dos que, por sua persona-lidade e forma de vida e especialmente por seus defeitos de compreensão ou de caráter, eram incapazes de cumprir as exigências mínimas da comunidade; o grupo dos refratários ao trabalho e dos que levavam uma vida desordenada; e o grupo dos delinqüentes, pessoas que, por sua personalidade e forma de vida, deduziam-se tendências à comissão de delitos. Ou seja, medidas que alcança-vam, de um modo geral, além dos não arianos, os marginalizados sociais, men-digos, vagabundos, “delinqüentes” sexuais (incluindo entre estes os homos-sexuais), ladrões de pouca monta etc.

Depois de expor o Projeto, sem dele fazer um estudo exaustivo, Muñoz Conde chega na parte que mais lhe inte-ressa: mostrar a participação ativa de Mezger na sua elaboração, não só indi-cando que muitas das idéias ali consoli-dadas correspondiam “ao pé da letra” às idéias que Mezger havia publicado na

época, mas trazendo a público uma documentação inédita, os comentários de Mezger sobre o Projeto e as transcri-ções (traduzidas para o espanhol) dos informes que encaminhou ao Ministro da Justiça discutindo-o.

Paira ao longo da narrativa a incom-preensão (e até mesmo a indignação) do porquê do silêncio por tanto tempo sobre o passado nazista nada discreto deste autor, que, três anos depois de sua rápida passagem pela prisão em Nuremberg, voltou a ocupar a cátedra de Direito Penal na Universidade de Munich até sua aposentadoria em 1953 e chegou a ser nomeado pelo governo de Konrad Adenauer membro e vice-presi-dente da Grande Comissão de Reforma do Direito Penal.

Muñoz Conde tenta algumas expli-cações para esse silêncio, sem descartar a má-fé dos que conheciam a verdade e a esconderam.

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Por fim, sua hipótese central: a de que a publicação da monografia Modernas orientações da dogmática jurídico-penal (Moderne Wege der Strafrechtsdogmatik,

Munich, 1950), que inaugurou a crítica de Mezger à teoria final da ação que vinha sendo defendida por Welzel desde 1930, teria sido uma manobra para des-viar a atenção de seu passado e subir o nível da discussão a conceitos ontológi-cos e abstratos, para ficar em um plano da dogmática que se ocupava apenas da configuração das estruturas lógico-obje-tivas do conceito de ação criminosa e evitava assim qualquer compromisso com a realidade política. De fato, a publicação dessa monografia iniciou uma das mais importantes polêmicas da ciên-cia penal, entre os partidários da teoria causal e da teoria final da ação, que, segundo a hipótese de Muñoz Conde, teria funcionado como uma espécie de cortina de fumaça para esconder o passa-do nazista desse penalista.

Descontando o discurso por vezes excessivamente engajado de Muñoz Conde, não é possível avançar para além dessas especulações sobre o supos-to oportunismo de Mezger em se envolver nesse debate teórico. Mas temos ao menos que reconhecer que ele encontrou na polêmica causalismo ver -sus finalismo um disfarce perfeito.

Afinal, as idéias do Direito Penal nazis-ta, especialmente as ligadas ao Direito Penal da vontade, encontravam muito mais apoio nas teses finalistas e na sub-jetivação do conceito de injusto de Welzel, que na concepção causal, pre-ponderantemente objetiva de Mezger.

Muñoz Conde não deixa de tirar desse episódio uma advertência contra as tentativas de afastar o condiciona-mento político das construções dogmá-ticas e deixar clara sua simpatia pelas teses de Claus Roxin, que, em resposta às abstrações excessivas do finalismo, propõe um programa de vinculação do sistema do Direito Penal às valorações político-criminais e defende a necessida-de necessida-de reelaboração das categorias tradi-cionais da teoria do delito em função dos princípios políticos que a informam. Nesse ponto, Muñoz Conde não se deixa intimidar pela narrativa dos capítulos anteriores, que retrata as conseqüências nefastas da aproximação da dogmática à ideologia nazista. Ele defende que a rea-ção a isso não deve ser o isolamento des-ses campos, mas a reconstrução da dog-mática de acordo com os princípios políticos do Estado Democrático de Direito. Entretanto, diante de um tema tão difícil quanto este, Conde não se dis-põe a discutir a fundo a relação entre a dogmática e a política e o que evitaria a instrumentalização de uma pela outra. Instigado a refletir sobre o tema, resta ao leitor seguir as indicações dos textos de Roxin.

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sua opinião, são essenciais (como o princípio da proporcionalidade e da intervenção mínima), não traz em seus pressupostos nenhuma orientação polí-tico-criminal, além da própria autocon-servação do sistema, podendo adaptar-se a qualquer modelo de Estado ou sis-tema político-social.

O debate com Jakobs, entretanto, parece não evoluir, limitando-se à men-ção ao caráter antidemocrático do seu

Direito penal do inimigo.Mas o livro traz a

todo momento elementos que estimu-lam o leitor a tentar construir relações e levantar suas próprias hipóteses sobre esse tema atual do Direito Penal. Eu arriscaria a apontar uma delas.

Em seu texto intitulado Direito penal do inimigo (Madri, Civitas, 2003),

Jakobs propõe um sistema penal à parte, voltado àqueles que, por sua posição, modo de vida ou pertencimento a uma organização, tenham abandonado de forma duradoura o direito, ampliando, para esses casos, as possibilidades de cas-tigar comportamentos afastados da lesão ao bem jurídico e mantendo um sistema de penas elevadas e de supressão ou debilitação das garantias processuais.

A tese de Jakobs surge hoje, momento em que a dogmática penal encontra-se sob uma dupla pressão: de um lado, pelas demandas de expansão e antecipação da intervenção penal e, de outro, pela defesa da manutenção de um sistema de garantias. Ele parece tentar resolver essa tensão apostando na dico-tomia entre o Direito penal dos cidadãos e

o Direito penal do inimigo, delimitando

campos distintos de aplicação de um e

de outro e traçando um limite rígido entre o sistema de penas, vigente para os cidadãos, e o de medidas de segurança, para os inimigos.

Essa talvez seja uma das chaves pos-síveis para refletir sobre esse sistema à luz dos dados históricos trazidos por Muñoz Conde. De sua narrativa, que vai desde o Projeto Radbruch de 1922, passando pela Lei de Delinqüentes Perigosos de 1933, chegando ao Projeto de Tratamento aos Estranhos à Comunidade, há um fio condutor que não nos escapa: a percepção de que foi da relação entre penas e medidas de segurança e do jogo entre esses dois sis-temas que se articulou boa parte das tendências autoritárias do Direito Penal nazista.

Chamando a atenção para esse fato, fica difícil continuar discutindo as fun-ções da pena e avaliando os sistemas penais sem olhar para debaixo do tape-te, onde se escondem as medidas de segurança e o processo de definição dos perigosos à comunidade que lhe é subja-cente, elementos presentes nos ordena-mentos jurídicos ocidentais até hoje.

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a qualquer sistema penal que se cons-trua com base na dualidade de suas res-postas e que persista adotando o crité-rio periculosidade, além da culpabilida-de, para justificar medidas distintas para delinqüentes “normais” e delin-qüentes “perigosos”.

Para continuar nessa linha de reflexão e tentar compreender os caminhos que se nos apresentam hoje à luz dos que a dog-mática penal percorreu no passado nazis-ta, vale a pena tratar rapidamente da ten-dência do Direito Penal atual de amplia-ção e antecipaamplia-ção da sua intervenamplia-ção.

Ao tomarmos algumas das nossas leis especiais mais recentes em matéria penal, como a lei de tóxicos, as que dis-põem sobre o porte ilegal de armas, os crimes ambientais, os crimes contra as relações de consumo, os crimes financei-ros, os crimes de trânsito e os que envol-vem a manipulação genética, percebere-mos, de modo geral, duas características: esses diplomas referem-se à proteção de bens jurídicos universais ou coletivos, de titularidade difusa e conteúdos abstratos e operacionalizam a tutela penal de maneira distinta da tradicional, por meio do uso recorrente das incriminações de mera conduta e dos tipos de perigo abs-trato, que antecipam a intervenção do Direito Penal para momentos muito anteriores à lesão e ao risco ao bem jurí-dico, deles prescindindo.

Ocorre que, ao permitir a antecipa-ção da intervenantecipa-ção penal para atingir inclusive ações inofensivas, esse modelo se afasta dos critérios concretos da lesão ou ameaça ao bem jurídico e assim aban-dona o que até agora servira de base

material para legitimar a punição. O crime passa a ser interpretado como sim-ples violação do dever de observar uma determinada norma, concentrando-se muito mais no desvalor da ação que viola a norma do que no desvalor do resultado da conduta. O problema – correndo o risco de simplificá-lo – é que, sem o cri-tério da lesão ao bem jurídico, fica difícil estabelecer limites às possibilidades que tem o legislador de enumerar verbos que possam se converter em ações típicas. Difícil também diferenciar quando essas ações são incriminadas pelo potencial de perigo que representam a um bem jurídi-co ou quando são enumeradas no tipo apenas para descrever a forma de vida de algumas classes de pessoas que se quer atingir – como apontam as discussões acerca dos delitos de associação, ou seja, da incriminação do simples pertencimen-to a determinadas organizações.

Se, até agora, as idéias de um direito penal preventivo e a renúncia ao critério da lesividade fizeram com que a tutela penal regredisse da verificação do resul-tado à simples prática da ação descrita no tipo, a partir daí retroceder um pouco mais e voltar-se simplesmente contra um certo grupo de pessoas consi-deradas perigosas não parece ser um passo improvável.

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Penal fosse acionado pela simples viola-ção de deveres e para a proteviola-ção de valo-res abstratos, arbitrariamente definidos.

Em outras palavras, sem o critério da lesividade a bens jurídicos bem definidos ou outro critério capaz de estabelecer limites à intervenção penal, não temos como diferenciar um Direito Penal que protege a vida e a liberdade dos cidadãos de um Direito Penal que protege o são sentimento do povo alemão.Para dizer mais,

um Direito Penal que, como propõe Jakobs, protege a confiança no ordena-mento jurídico e o respeito às normas, sem nenhum outro referencial que diga quando é legítimo punir, aceita que em seu nome possa ser feito muito mais do que se desejaria em uma democracia.

É verdade que na Alemanha nazista outras medidas, por exemplo, a utiliza-ção da analogia e o controle dos tribu-nais, foram também decisivas para arti-cular a repressão pela via do Direito Penal, mas me parece extremamente

relevante retornar a essa questão no momento atual, em que os debates dog-máticos giram exatamente em torno da relativização do critério da lesão ao bem jurídico como pressuposto da imputação. A idéia aqui não é simples-mente associar um dos lados do debate aos desdobramentos do nacional-socia-lismo, mas chamar a atenção para o fato de que, se os critérios atuais de legiti-mação da imputação não respondem mais à realidade do Direito Penal e das políticas criminais, devemos então refletir sobre a necessidade de substituí-los por algum outro que estabeleça limites para o desenvolvimento de ten-dências autoritárias.

Nessa reflexão, são da maior impor-tância pesquisas históricas como a de Muñoz Conde, que, ao tratar de um autor como Edmund Mezger e das cir-cunstâncias dogmáticas e políticas de seu tempo, revelam tanto sobre o Direito Penal do nossotempo.

Marta Rodriguez de Assis Machado

DOUTORANDA EMDIREITO PELODEPARTAMENTO DEFILOSOFIA ETEORIAGERAL DODIREITO DAUSP PESQUISADORA DAESCOLA DEDIREITO DESÃOPAULO DA

FUNDAÇÃOGETÚLIOVARGAS(DIREITOGV) E DONÚCLEO

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