AFINAL, PARA QUE SERVE A ESCOLA?
REPRESENTAÇÃO FEITA POR ADULTOS ALFABETIZADOS Ε ANALFABETOS.
Leda Verdiani Tfouni* Geraldo Rontanelli* Ana Mana Alvares** Roberta Μ. da S. Garcia**
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo investigar qual a opiniγo que grupos de adultos alfabetizados e nγo alfabetizados fazem da escola, bem como as suas representaηυes subjacentes acerca do papel social dessa instituiηγo. Mais especificamente, procurase verificar se a experiκncia concreta com a vida escolar, aliada ΰ alfabetizaηγo, leva as pessoas a terem opiniυes sobre a escola que seriam diferentes daquelas opiniυes de pessoas analfabetas, com pouca, ou nenhuma, experiκncia escolar,
I - INTRODUÇÃO
Em uma sociedade altamente letrada, que atingiu um alto grau de desenvolvimento tecnolσgico e cientνfico, a condiηγo dos analfabetos nγo somente os aliena do conhecimento produzido e sistematizado, impedindoos de ter acesso a ele pela impossibilidade de ler e escrever, como tambιm os aliena de si mesmos, por forηar a Uma abdicaηγo de suas prσprias prαticas culturais, o que ideologicamente acentua a marginalizaηγo. O mesmo argumento ι vαlido para grupos alfabetizados com baixo grau de escolaridade, visto que, apesar de saberem ler e escrever, acabam ficando marginalizados devido ΰ falta de qualificaηγo, a qual estα intimamente relacionada com a escola e o ensino especializado (Tfouni, 1987).
Sabese que o conhecimento valorizado pela sociedade circunscrevese principalmente a esse conhecimento especializado oferecido pela escola, a qual, por conseguinte, ι vista como um veνculo que propicia a ascensγo social. A literatura a respeito deste tema ilustra suficientemente essa discussγo. Segundo alguns autores, nγo se pode entender a educaηγo, que na realidade brasileira restringese principalmente ao βmbito escolar, sem considerar seus determinantes sociais, ou seja, devese compreendκla atravιs da anαlise de suas relaηυes com as dimensυes polνticas, sociais e econτmicas da sociedade. De acordo com Saviani (1982), a sociedade ι marcada por uma acentuada divisγo de
* Docentes do Departamento de Psicologia e Educaηγo da Faculdade de Filosofia, Ciκncias e Letras de Ribeirγo Preto U.S.P.
classes, que se manifesta pelas "condiηυes de produηγo de vida material" (op.cit. p.8) e as relaηυes sociais fundamse, essencialmente, na base da forηa. Assim, de uma forma geral, a classe que possui mais forηa se apropriaria da produηγo material e do controle sobre a vida social, dominando a classe mais fraca, que se torna marginalizada.
O papel da escola, nesse contexto seria, entγo, o de reproduzir e reforηar a marginalidade social, jα que esta seria inerente ao sistema no qual a escola estα inserida. Conseq٧entemente, os conhecimentos produzidos pela classe dominante, que sγo considerados como o saber legνtimo, sγo apropriados por esta classe e dificilmente a parcela marginalizada da populaηγo tem acesso a esse corpo de conhecimento. O conte٥do que a escola transmite ι todo baseado em um conjunto de saber condizente com as necessidades da classe privilegiada e nγo com as da classe dominada, que nem sequer possui o mesmo vocabulαrio. No entanto, a classe dominante prega a superaηγo da marginalidade pela escola, atravιs de discursos, como "oportunidades iguais para todos", alιm de outros nos quais estα embutida a idιia de ascensγo social. Essas idιias veiculadas pela ideologia dominante nγo passam, porιm, de ilusγo, jα que a escola reproduz as relaηυes sociais, mantendo o "status quo".
Assim, este segmento desprivilegiado da populaηγo, por ter necessidades prioritαrias, como alimentaηγo, habitaηγo e sa٥de, acaba relegando a segundo plano a questγo da educaηγo, que nγo estα ligada de forma tγo direta ao problema da sobrevivκncia. Podese observar nestas camadas a inserηγo precoce dos indivνduos no mercado de trabalho. Por outro lado, contraditoriamente, exigese, cada vez mais, um grau maior de escolaridade para o ingresso no mercado de trabalho, mesmo que determinadas funηυes nγo requeiram, necessariamente, esse saber escolar como mostra Spindel (1985, apud Madeira, 1986 ) a propσsito da contrataηγo de menores brasileiros. Vale ressaltar ainda que, muitas vezes, esse saber nγo garante o sucesso profissional. Desta forma, parece haver pouca relaηγo entre a escolaridade, de um lado, e a renda e a igualdade de oportunidades, do outro.
Apesar das dificuldades em assegurar a escolarizaηγo para os filhos, pesquisas como aquelas realizadas por Scarfon (1979), Lella (1987), Vieira e Mello (1987), entre tantos outros, mostram que grupos sociais marginalizados sonham com uma melhoria das condiηυes de vida, para si e para seus filhos, e relacionamna com o estudo e a obtenηγo de um diploma.
II - METODOLOGIA Ε ANÁLISE DOS DADOS
A pesquisa foi realizada com 328 adultos residentes na regiγo de Ribeirγo Preto S.P., divididos em oito grupos: "bσias frias" alfabetizados; "bσiasfrias" analfabetos; adultos alfabetizados que residem e trabalham na zona urbana; adultos analfabetos que residem e trabalham na zona urbana; adultos alfabetizados que residem na zona urbana e nγo trabalham; adultos analfabetos que residem na zona urbana e nγo trabalham; adultos alfabetizados que residem e trabalham na zona rural; e finalmente adultos analfabetos que residem e trabalham na zona rural. Vale notar que os alfabetizados tiveram seu grau de escolaridade controlado (no mαximo atι a 5a
sιrie do Ρ grau completa ). Por outro lado, alguns analfabetos tiveram experiκncia com o ensino formal, havendo freq٧entado a escola, em alguns casos, por atι 7 anos (isto, no entanto, nγo foi suficiente para garantirlhes a aprendizagem mνnima possibilitada pela escola, que ι aprender a ler e a escrever).
Comparando os dois grupos, alfabetizados e analfabetos, podese dizer que eles diferem entre si nγo somente com relaηγo ΰ atfabetizaηγo, como tambιm quanto a: grau de escolaridade, tempo de escolarizaηγo, experiκncia com o ensino formal, e distribuiηγo quanto ao sexo. Assemelhamse, no entanto, no fato de serem marginalizados das profissυes mais especializadas que, dentro do mercado de trabalho, sγo exercidas por aqueles que possuem pelo menos instruηγo de nνvel superior.
Os dados a respeito da representaηγo sobre a escola foram colhidos atravιs da pergunta Tara que serve a escola?". As respostas dadas pelos adultos foram gravadas, transcritas, e submetidas a um processo de categorizaηγo, baseado em uma anαlise do conte٥do das mesmas. A Tabela 1 mostra o resultado desta anαlise.
Notase, inicialmente, examinando a Tabela 1, que a representaηγo da escola subjacente ΰs categorias de 1 a 6 ι predominantemente positiva, enquanto que a categoria 7 agrupa aquelas opiniυes que denotam uma representaηγo negativa da escola por estes adultos.
A categoria 1, "A escola vista como propiciadora de melhores condiηυes futuras" contιm a idιia de que o fato de freq٧entar a escola por si sσ pode proporcionar ΰs pessoas melhores condiηυes de vida, principalmente no que diz respeito ΰ situaηγo econτmica. Notase que essa representaηγo da escola ι a mais freq٧ente, tanto para os alfabetizados quanto para os analfabetos, havendo um percentual maior entre os analfabetos (37,3% contra 34.5%).
"A escola vista como um ambiente socializador que propicia o desenvolvimento individual e social" ι a categoria que aparece em terceiro lugar, e exprime a idιia de que a escola nγo transmite apenas o conhecimento formal, mas serve tambιm para que as pessoas sintamse mais adaptadas ao seu ambiente social, podendo, assim, desenvolverse individualmente atravιs da facilitaηγo para estabelecer contatos sociais .Aqui tambιm nγo existe diferenηa entre os adultos alfabetizados e os analfabetos.
"A escola vista como detentora exclusiva do conhecimento e responsαvel por sua transmissγo" ι uma categoria que expressa o modo pelo qual os adultos parecem representarse como agentes passivos no processo ensinoaprendizagem, ao mesmo tempo em que atribuem ΰ escola o papel de transmissora de conhecimentos que ela detιm de forma absoluta. Vemos aν um percentual maior para os adultos alfabetizados (11.5%) do que para os analfabetos (9,1%).
Finalmente, temos que apenas um adulto analfabeto representa a escola como propulsora do desenvolvimento tecnolσgico, o que denota uma visγo mais abrangente do papel da escola, voltada para o progresso social como um todo.
Por fim, a categoria 7 agrupa as representaηυes denominadas "negativas". Revelam uma representaηγo desfavorαvel sobre o papel da escola, tanto do ponto de vista individual ("A escola por si sσ nγo garante um bom emprego") quanto do ponto de vista social mais amplo ("A escola nγo ensina a viver; o mundo ι que ensina"). A porcentagem do grupo alfabetizado (2.8%) ι maior do que a do grupo analfabeto (1.9%).
III. DISCUSSÃO
Atravιs dos dados obtidos podemos constatar que ambos os grupos estudados atribuem um alto valor ΰ escola, jα que grande parte das categorias relacionam a freq٧κncia ΰ escola e os conhecimentos nela adquiridos com idιias de ascensγo social, desenvolvimento individual e social, entre outras.
O ideal da doutrina liberal de escola para todos e de garantia de mobilidade social atravιs da escolarizaηγo, sabese bem, nγo funciona em sociedades como a nossa. No entanto, os adultos pesquisados, tanto alfabetizados e com alguma escolaridade, quanto os analfabetos, parecem representar a instituiηγo escolar de maneira idealizada, de acordo com a forma como ela ι representada no discurso oficial.
Assim, nas categorias de 1 a 5, na Tabela 1, vemos a escola representada como a ٥nica instituiηγo capaz de criar condiηυes mais satisfatσrias, tanto no trabalho, quanto nas relaηυes sociais. Esses conte٥dos expressam ainda o desejo desses adultos de adquirir conhecimento, o que parece indicar que atribuem um valor positivo ΰ posse do saber sistematizado e "oficial" transmitido pela escola, saber esse que, para eles funcionaria como facilitador da participaηγo e convivκncia em outros ambientes sociais, alιm de ter o poder de amenizar aspectos desagradαveis e αsperos do cotidiano. Essa aspiraηγo simbσlica, que tem a funηγo de amenizar esse cotidiano sofrido, ligada ao ideal de "ter cultura", e "ter diploma", estα presente nos dois grupos de adultos estudados, mas parece expressarse de forma mais elaborada no grupo alfabetizado, e de maneira mais difusa nos analfabetos. Temos aν um efeito da maior vivκncia e da experiκncia concreta com a escola, o que evidencia a existκncia do chamado "currνculo oculto", que passa, ao lado dos conte٥dos explνcitos (programαticos) toda uma ideologia autςpromocional, que tem a funηγo de ocultar que ι exigido, no processo de escolarizaηγo, um saber prιvio do qual esses adultos sγo destituνdos, o que impossibilita a continuaηγo do processo, gerando o fracasso escolar. Como conseq٧κncia, o indivνduo acaba atribuindo a si prσprio a culpa pelo fracasso.
frustraηγo frente ao fracasso. Com efeito, sabese que atualmente existe uma super valorizaηγo da escola, que estα ligada ΰ exigκncia cada vez mais acentuada de um maior grau de escolaridade para o ingresso no mercado de trabalho, mesmo que determinadas funηυes nγo requeiram necessariamente o saber escolar (Braverman, 1977). Muitas vezes, ainda, esse saber nγo garante o sucesso profissional. Leila (1987) mostra, atravιs de pesquisa realizada com adultos
analfabetos, que existe tambιm no Brasil uma exigκncia cada vez maior de qualificaηγo (e escolaridade) para ocupaηυes similares. Assim, alguns dos adultos estudados colocam a instituiηγo escolar como algo fora, quer da sua realidade, quer de suas necessidades, quer de suas expectativas, o que eq٧ivale a nγo aceitar o sonho para si, sem que isso os impeηa de continuar sonhando um futuro melhor para seus filhos: "boa piora os pequenos, porque para o adulto nγo serve mais...". (CNPq, FAPESP, Fundo de Pesquisa USP).
V - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Braverman, H. "Nota final sobre qualificaηγo" in: Braverman, H. Trabalho e Capital Monopolista. Zahar: Rio de Janeiro, 1977.
Leila, C. de "Os livrostexto do primαrio intensivo para adultos: principais interesses e opiniυes de seus usuαrios". Cadernos de Pesquisa, 61, 3041,
1987.
Madeira, F. R. "Los jσvenes en el Brasil: antigos supuestos y nuevos derroteros." Revista de la CEPAL, Santiago, no 29,5780, agp. 1986.
Saviani, D. "As teorias da educaηγo e o problema da marginalidade na Amιrica Latina." Cadernos de Pesquisa, 42,818,1982.
Scarfon, M. de L. Crescimento e Misιria. Sνmbolo: Sγo Paulo, 1979.
Spindel, Cheywa R. Ό menor assalariado registrado: condiηυes de trabalho em αreas metropolitanas. Textos IDESP, Sγo Paulo, na
8,1985.
Tfouni, L. V. "A inteligκncia prαtica e a prαtica da inteligκncia". Arquivos Brasileiros de Psicologia, 39 (3), 4456.1987.
Vieira, L. M. F. e Melo, R. L. C de "A creche comunitαria Casinha da Vovσ: prαtica de manutenηγo/prαtica de educaηγo". Cadernos de pesquisa, 62, 6078,1987.
ABSTRACT