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A circulação do discurso da Amway: do controle à prática discursiva.

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Academic year: 2017

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D.E.L.T.A., 29:Especial, 2013 (405-422)

RESUMO

Neste trabalho, com o intuito de contribuir com as refl exões sobre a circulação dos discursos, analisamos aspectos relativos à circulação do discurso da Amway, uma empresa norte-americana de vendas em rede que tem atuado há um certo tempo no Brasil. Mais exatamente, analisamos as condições dessa circulação no momento em que ocorreu de modo mais intenso, isto é, na década de 90, quando havia milhares de pessoas em diversas partes do país envolvidas com a venda dos produtos da empresa e/ou com o seu consumo. Nosso estudo se baseia na Análise do Discurso de linha francesa, com ênfase nas refl exões de Foucault sobre os mecanismos de controle do discurso e na noção de prática discursiva, tal como reformulada por Maingueneau. A análise revela que o discurso da Amway apresenta aspectos de uma doutrina e que, como uma prática discursiva, não pode ser pensado de modo separado dos sujeitos que veiculam o discurso, do modo como os organiza numa hierarquia específi ca, nem dos eventos que promove e que são promovidos em nome da empresa. Nesses termos, a análise evidencia como os discursos dizem respeito não só a um conjunto de textos, mas também a uma rede institucional relativa ao grupo social que a enunciação do discurso supõe e torna possível.

Palavras-chave: vendas em rede; circulação; doutrina; prática discursiva.

A circulação do discurso da

Amway:

do controle à prática discursiva

The circulation of Amway's discourse:

from control to social practice

Anna Flora Brunelli (Unesp - Câmpus de São José do Rio Preto/FEsTA)

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ABSTRACT

In this paper, we intend to contribute to the debate about the circulation of the discourses. To do that, we analyze aspects regarding the circulation of Amway’s discourse, a North-American network sales company that has been working in Brazil for a while. Precisely, we analyze the conditions of this circulation at the time it was more intensively, ie, in the 90s, when there were thousands of people in several parts of the country selling the company´s products or consuming them. This study has been based on French Discourse Analysis with focus on both Michel Foucault’s insights on the control mechanisms of discourse and Maingueneau’s reformulated notion of discursive practice. The analysis reveals that Amway’s discourse displays features of a doctrine, and, as a discursive practice, it cannot be conceived of as separated from the subjects who convey it, nor from its hierarchical organization, nor from the events that the company promotes and those which are promoted under its name. In these terms, the analysis shows how the discourse is not only a set of texts, but also concerns to the institutional network related to the social group that the enunciation of discourse presupposes and makes it possible.

Key-words: network sales; circulation; doctrine; discursive practice.

Introdução

Neste trabalho, com o intuito de contribuir com as refl exões sobre a circulação dos discursos, analisamos aspectos relativos à circulação do discurso da Amway, uma empresa norte-americana de vendas em rede que tem atuado há um certo tempo no Brasil. Mais exatamente, analisamos as condições em que esse discurso circulou nos anos 90, primeira década de funcionamento da empresa no país1. Nosso interesse por esse discurso se justifi ca por ser um discurso que circulou no Brasil de modo bastante intenso, pelo menos no período em questão2, quando

1. Os resultados apresentados limitam-se apenas ao período em questão. Ainda hoje a empresa continua funcionando no Brasil, mas, como não tivemos acesso ao material que a empresa disponibiliza atualmente aos seus vendedores, não temos condições de avaliar as mudanças pelas quais o discurso pode ter passado, o que foge dos objetivos deste trabalho.

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havia milhares de pessoas, de diversas regiões, envolvidas com a venda e/ou com o consumo dos produtos da empresa.

A característica principal de uma empresa como essa, de vendas em rede, é que seus vendedores, que também são consumidores dos seus produtos, devem não só promover a venda desses produtos como também atrair novos vendedores/consumidores para que se fi liem à empresa. Cada novo vendedor/consumidor fi ca subordinado ao vende-dor/consumidor que o trouxe à empresa, assim como os subsequentes trazidos por ele, e assim sucessivamente, formando um sistema em rede. O número de pessoas ligadas a um vendedor/consumidor - a dimensão de sua rede - e o nível de vendas dessa rede determinam uma escala de promoções e de ganhos crescentes sobre o valor das vendas.

No próximo item, investigamos as restrições que regeram a circu-lação do discurso da Amway no período citado, considerando, nesse processo, a participação dos vendedores dos produtos da empresa, chamados por ela de distribuidores.

1. A circulação do discurso da Amway na década de 90

No início dos anos 90, as principais atividades da Amway, isto é, a venda de produtos da empresa e a expansão das redes de distribuição, com a adesão de novos distribuidores, eram feitas essencialmente boca-a-boca, pelos próprios distribuidores, que também precisavam frequen-tar reuniões de treinamento, seminários, workshops e convenções.

Dentre o material destinado aos distribuidores para a execução das atividades de venda e de expansão da rede, constava um manual no qual se encontrava uma série de determinações que lhes restringia e regrava o discurso. A título de exemplifi cação, vejamos as seguintes passagens relativas a algumas dessas restrições:

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(02) Os Distribuidores não estão autorizados a fazer qualquer oferta de acordo, nem a vincular de qualquer forma a Amway a qualquer queixa originada do uso de produtos (ou serviços) da Amway que não aquelas estabelecidas nas cláusulas referentes a “Garantia de Satisfação Amway”. (Manual de Negócios - Amway do Brasil, p. 41)

(03) Durante qualquer apresentação do Plano de Vendas e Marketing da Amway, o Distribuidor: não afi rmará que um Distribuidor pode benefi ciar-se exclusivamente patrocinando outros a serem Distri-buidores, ou obtendo produtos (ou serviços) para uso pessoal às custas do Distribuidor; não afi rmará que os Distribuidores estão sujeitos a qualquer obrigação de patrocinar futuros Distribuidores (....); não afi rmará que o Distribuidor pode conseguir êxito na exploração de seu negócio Amway com pouco ou nenhum dis-pêndio de esforço ou tempo (...). (Manual de Negócios - Amway do Brasil, p. 45)

(04) Se a Amway determinar que qualquer literatura produzida pelo Distribuidor, fi ta cassete ou outro material de apoio viola as normas aplicáveis, prejudicam ou venham a prejudicar seu negócio ou sua reputação, a Amway reserva-se o direito de ins-truir o Distribuidor de não começar ou a imediatamente cessar a produção, distribuição ou veiculação de tais materiais. A falha em obedecer a tal instrução dará o direito à Amway de rescindir o contrato com o Distribuidor e a imputar ao Distribuidor a res-ponsabilidade por quaisquer custos, prejuízos ou outras dívidas imputadas à Amway como resultado da produção, distribuição ou veiculação de tal material. (Manual de Negócios – Amway do Brasil, p. 48)

As passagens anteriores fazem parte dos Princípios Comerciais Amway encontrados no Manual de Negócios – Amway do Brasil. Conforme podemos perceber, por meio de alguns desses princípios comerciais, a Amway restringia o que os distribuidores podiam ou não dizer sobre a empresa, sobre a sua proposta comercial, sobre os seus produtos. Havia, inclusive, restrições relativas aos locais onde os produtos (incluindo a sua “proposta de negócios”) podiam ou não ser apresentados a terceiros, conforme esclarece a passagem abaixo:

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outros eventos desse tipo. Essa proibição abrange igualmente a venda, exibição em oferta por terceiros, quando o Distribuidor tenha conhecimento de que tais terceiros estão adquirindo os produtos Amway para vendê-los, exibi-los ou oferecê-los nesses locais. (Manual de Negócios - Amway do Brasil, p. 41)

Por outro lado, a passagem abaixo, também retirada da mesma fonte que as anteriores, revela outras restrições impostas pela empresa. Estas restrições diziam respeito não mais ao discurso dos distribuidores, mas aos próprios distribuidores, isto é, a quem podia ou não falar em nome da empresa para vender os produtos e promover a proposta, completando, desse modo, o quadro das restrições impostas pela empresa:

(06) A oportunidade de se tornar Distribuidor Amway é oferecida a todas as pessoas, independentemente de sexo, raça, nacio-nalidade, crenças políticas ou religiosas, desde que elas sejam maiores de 18 anos e legalmente capazes de dirigir atividades comerciais. A Amway se reserva o direito, de aceitar ou rejeitar qualquer pedido de nomeação como Distribuidor, sem ter que dar qualquer justifi cativa para sua aceitação ou rejeição. (Manual de Negócios - Amway do Brasil, p.39)

(07) A Amway se reserva o direito, a seu exclusivo critério, de rejeitar qualquer renovação de Contrato de Distribuição de Distribuidor que tenha, através de ações ou omissões, prejudicado a imagem da Amway perante seus clientes, fornecedores, autoridades e o público em geral, ou que tenha violado os termos e condições do Contrato de Distribuição Amway. (Manual de Negócios – Amway do Brasil, p. 40)

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Os distribuidores, por sua vez, na qualidade de vendedores dos produtos e da transação comercial da Amway, aderiam ao discurso da empresa e atuavam, desse modo, como seus propagadores.

Para verifi car a convergência desses discursos, passamos a cotejá-los. Levantamos, inicialmente, os enunciados básicos do discurso da empresa. Conforme Fiorin (1988), enunciados básicos são os que representam os enunciados de um discurso, isto é, eles representam os enunciados efetivamente produzidos. Estes, por sua vez, saturam semanticamente as formas das invariantes, por meio de paráfrases nas quais diversos elementos linguísticos propagam os conteúdos dessas invariantes.

Para o levantamento dos enunciados básicos do discurso da Amway, consideramos todo o material que era disponibilizado aos distribuidores. Trata-se de um material bastante diversifi cado que inclui um catálogo de produtos, listas de preços, materiais para apresentação da proposta comercial da empresa, carta de boas-vindas, manual de negócios, etc. A análise desse material nos levou à identifi cação dos seguintes enunciados básicos:

1) qualquer um pode alcançar o sucesso, realizar seus sonhos, fi car rico;

2) quem trabalha muito é recompensado;

3) para ter sucesso, fi car rico, você deve ter seu próprio negócio;

4) a Amway oferece as condições para você ter seu próprio ne-gócio e para expandi-lo e, assim, fi car rico.

5) para ser bem sucedido na Amway, você precisa defi nir quais são os seus sonhos/objetivos, pois eles são a fonte de sua mo-tivação;

6) como distribuidor Amway, você tem responsabilidades e de-veres: é responsável pelo seu próprio sucesso, deve trabalhar com responsabilidade e dedicação, deve entusiasmar seu grupo e compartilhar a proposta comercial da Amway com outras pessoas;

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8) a Amway é um sucesso (no exterior e no Brasil);

9) com a proposta que a Amway promove você pode adquirir uma série de vantagens: mais poder aquisitivo, mais tempo livre, gerência de um negócio particular, possibilidade de oferecer ajuda a outras pessoas etc;

10) a Amway reconhece que tem responsabilidades e cumpre-as, dedicando-se e preocupando-se com você e com o bem estar de sua família.

Para a análise do discurso dos distribuidores da Amway, consi-deramos inicialmente a Amagram, uma revista da empresa que circu-lava bimensalmente. Nessa publicação, havia uma seção, intitulada Reconhecimento, na qual se encontravam relatadas, em 3ª. pessoa, as trajetórias bem-sucedidas dos distribuidores que estavam no topo da hierarquia da empresa. Trata-se, mais exatamente, de pequenas nar-rativas que tinham, como objetivo aparente, contar como melhorou a vida desses distribuidores após seu ingresso na Amway. A grande semelhança encontrada em todas as narrações analisadas nos permite esquematizá-las de acordo com um único modelo, composto por cinco partes, presentes em praticamente quase todas as narrativas, a saber:

• primeira parte: apresentação do(s) distribuidor(es) cuja história vai ser reproduzida (geralmente um casal de classe média);

• segunda parte: apresentação dos problemas vividos pelo(s) distribuidor(es) antes de ingressar(em) na empresa (pouco dinheiro, pouca realização profi ssional, sonhos não realizados, pouco tempo para lazer etc.);

• terceira parte: descrição do ingresso na Amway e do esforço realizado para promover a proposta da empresa;

• quarta parte: descrição do sucesso obtido e das vantagens al-cançadas (dinheiro, tempo para lazer, viagens patrocinadas pela empresa, satisfação pessoal etc);

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Considerando-se conjuntamente os enunciados básicos e as narra-tivas, podemos verifi car que as narrativas ecoam os enunciados básicos do discurso da Amway, uma vez que:

– a terceira e a quarta parte se ligam ao enunciado básico n. 2 do discurso da empresa, confi rmando, portanto, que, para quem trabalha muito, há muitas recompensas;

– a quarta parte ecoa o enunciado básico n. 9, confi rmando que a proposta da Amway realmente funciona, trazendo benefícios aos seus distribuidores. A esse respeito, vale destacar que os distribuidores relatam, justamente, o que a Amway propõe, ou seja, um nível de vida economicamente superior. Comprova-se assim também o enunciado básico n.1 do discurso da empresa, segundo o qual qualquer um pode realizar seus sonhos, fi car rico, alcançar o sucesso, e o enunciado básico n. 4 (“A Amway oferece as condições para você ter seu próprio negócio e para expandi-lo e, assim, fi car rico”).

– o enunciado n. 6, referente à responsabilidade que os distribui-dores têm de conquistar novos distribuidistribui-dores (consumidistribui-dores/ vendedores), está presente em todos os depoimentos, de forma indireta, no momento em que eles, comentando sobre seus planos de futuro, citam o desejo de ajudar outras pessoas. Essa ajuda, muitas vezes, é defi nida como a intenção que o distribuidor tem de oferecer o chamado “plano de negócios” da Amway para pessoas próximas, que é justamente o que a empresa incentiva em seus manuais.

Diante do exposto, podemos dizer que as narrativas da seção Re-conhecimento tinham, no contexto em que circulavam, as seguintes funções interligadas:

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credibilidade do discurso, uma vez que se podia perceber aí a voz das pessoas cujas histórias estavam sendo contadas, garantindo, então, o que estava sendo dito. A esse respeito, nota-se que, acima do texto verbal, havia sempre uma foto do(s) distribuidor(es), como seu(s) nome(s) e sobrenome(s), numa espécie de cabeçalho para identifi car quem estava falando. A foto e o nome completo ajudavam a dar credibilidade aos relatos, já que identifi cavam e mostravam de quem se tratava. Assim, para quem tinha dúvidas, ali estavam histórias de pessoas reais, iden-tifi cáveis, relatos de suas experiências bem-sucedidas;

ii) incentivar distribuidores de níveis inferiores e outros recém-chegados, fornecendo-lhes orientações para as suas atuações. Como as narrativas confirmavam que a proposta da Amway realmente funcionava, elas serviam de incentivo para outras pessoas que ainda não tinham obtido êxito. A segunda e a quarta parte eram fundamen-tais, nesse sentido, pois confi rmavam que, apesar de as recompensas dependerem de muito trabalho, elas realmente chegariam e em larga escala. Assim, tratava-se de uma estratégia para incentivar possíveis distribuidores que estivessem desanimados (talvez porque estivessem trabalhando sem alcançar os tão esperados benefícios), procurando convencê-los de que seus esforços não seriam em vão. Para os recém-chegados, o que era narrado na segunda e na quarta parte, ainda que funcionasse também como um incentivo, valia também como uma espécie de mensagem indireta, um aviso de que teriam que trabalhar muito antes de alcançarem os benefícios3.

Há ainda mais uma observação a ser feita a respeito dessas narra-tivas. Recheadas de conselhos para o sucesso da proposta da empresa, na voz dos distribuidores, portanto daqueles que falavam baseados em suas próprias experiências bem sucedidas, eles ecoavam especialmente as instruções dadas pela própria Amway, em seu Manual de Negó-cios, sobre o modo como os distribuidores deveriam desenvolver a proposta da empresa. Dessa forma, os distribuidores afi rmavam que todos deviam trabalhar seriamente, confi ar nas pessoas de sua linha

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ascendente (os “patrocinadores”), seguir-lhes os passos e acatar-lhes os conselhos, não perder o entusiasmo, não desistir etc. No quadro a seguir, apresentamos alguns exemplos nos quais os enunciados da Amway (coluna 1), relativos a essas instruções, são parafraseadas por enunciados relatados4 dos distribuidores, presentes nas narrativas (coluna 2). Vejamos os exemplos:

Quadro 1: Relações de convergência entre o discurso da Amway sobre o modo de condução de sua proposta comercial e o discurso dos distribuidores sobre o mesmo tema

Enunciados do dis-curso da empresa6

Enunciados relatados dos distribuidores7

O sucesso do seu ne-gócio depende do seu trabalho e do seu es-forço. (p.6)

Suas dicas para o sucesso são: “(...) e trabalhar duro”. (p.7) Segundo ele, “quatro coisas são necessárias para se ter sucesso: fé, crença, confi ança na Linha Ascendente e muito, muito traba-lho”. (p.7)

“Para quem está disposto a aprender e a trabalhar muito, o sucesso virá”. (p.9)

Siga os conselhos da-dos a você pelo seu Patrocinador e pelos seus “uplines” (linha ascendente). (p.1)

Suas dicas para quem deseja sucesso são: “(...) ligue-se a seu Patrocinador (...)”. (p.7)

“Siga os passos da sua Linha Ascendente e vá a Diamond”. (p.8)

Acham importantíssimo que cada Distribuidor esteja atento às orientações de sua Linha Ascendente (...). (p.9)

“A maneira que encontramos para sermos líderes e melhorarmos como pessoas foi (...) e atenção aos conselhos da nossa Linha Ascendente”. (p.10)

Seu sucesso neste ne-gócio será determinado pela frequência e per-sistência em mostrar a oportunidade de negó-cio para outros. (p.6)

“Existem muitas pessoas esperando que alguém lhes ofereça uma oportunidade. Portanto, vá a luta”. (p. 6)

“Além disso quero ver muitas pessoas conseguindo atingir seus sonhos através deste negócio (...)”. (p.9)

“Assim, temos que ser bons líderes e levar os outros pelo caminho certo: nossa meta é chegar a Diamond e levar o maior número de pessoas conosco”, afi rmam. (p.9)

Suas metas são (..) e patrocinar sempre pessoas novas, procu-rando aquelas que tenham um grande sonho, como eles mesmos. (p.10)

4. Conforme é possível observar nos exemplos, o relato era feito em estilo direto e tam-bém indireto.

6. Fonte: Manual de Negócios Amway do Brasil.

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Faça um Compromisso Consigo Mesmo. De-termine que você me-rece estas realizações e que você não desistirá nem abandonará até alcançá-las. (p.3)

“Alguns perguntam por que nem todos vão a Diamond. Para isto, é preciso tomar uma decisão, (...) e nunca desistir”. (p.4; grifo nosso)

“Aos Distribuidores que estão começando ou estão desanimados, eles lembram que é fundamental (...) e ter muita, muita persistên-cia” .(p.10; grifo nosso)

Além das narrativas da seção Reconhecimento, para análise do discurso dos distribuidores da Amway, consideramos também as palestras proferidas por eles durante as convenções e os seminários promovidos em nome da empresa. Tais palestras eram disponibiliza-das, posteriormente, aos demais distribuidores, por meio de fi tas K-7s. Da mesma forma que as narrativas, essas palestras, proferidas pelos distribuidores dos mais altos níveis da Amway, também ecoavam o discurso da empresa. Na verdade, as palestras eram muito semelhantes às narrativas da revista Amagram. A diferença é que, nas palestras, os relatos de experiência eram feitos na primeira pessoa, com mais deta-lhes. Além disso, havia ênfase nos conselhos dados aos distribuidores de níveis inferiores. As palestras funcionavam, então, como uma aula para ensinar ao principiante (ou àquele que não estava progredindo) o que devia fazer e o que devia evitar para alcançar o sucesso. Desse modo, desempenhavam as mesmas funções que as narrativas da Re-vista Amagram.

No próximo item, daremos continuidade à análise da circulação do discurso da Amway, considerando conjuntamente os aspectos ob-servados até o momento.

2. Aspectos doutrinários do discurso da Amway

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(...) a produção do discurso é, ao mesmo tempo, controlada, seleciona-da, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por objetivo conjurar seus poderes e seus perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar seu peso, sua temível materialidade (Foucault, 1996: 8-9).

Segundo Foucault, um dos procedimentos que permitem o controle dos discursos é a determinação das condições de seu funcionamento, isto é, impõe-se aos indivíduos que pronunciam um discurso qualquer um certo número de regras que impedem que qualquer um tenha acesso a esse discurso. Dentre as restrições relativas às possibilidades de os sujeitos enunciarem, o autor cita a doutrina, entendida basicamente como um discurso que procura se difundir, mas essa difusão se dá entre indivíduos que vão defi nir seu pertencimento recíproco justamente por adotarem tal discurso. A esse respeito, o autor afi rma:

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Podemos afi rmar, então, que o discurso da Amway funcionava como uma doutrina, se considerarmos, simultaneamente, os seguintes aspectos: (i) o discurso da Amway atuava como um sistema de restrição que controlava o discurso de seus distribuidores; (ii) em contrapartida, os distribuidores da empresa ecoavam o discurso da própria empresa, o que os tornava sujeitos legítimos desse discurso e, especialmente, os aproximava, constituindo o grupo dos sujeitos do discurso. É um duplo jogo: de um lado, a empresa restringia a enunciação de seus distribuidores; de outro lado, os distribuidores, ecoando o discurso da empresa, reconheciam-se entre si e a si mesmos como sujeitos desse discurso, e, ao fazerem isto, contribuíam para a expansão do discurso da empresa.

Desse modo, os distribuidores garantiam a vez de falar, uma vez que só apareciam narrando suas histórias, direta ou indiretamente, tanto na seção Reconhecimento quanto nos eventos da empresa (convenções, seminários e workshops), aqueles que tinham sucesso na proposta comercial promovida pela empresa e, assim, confi rmavam o que ela afi rmava. Construía-se, assim, uma ligação entre esses sujeitos, esta-belecida por meio da semelhança de suas enunciações, que contribuía para a diferenciação do grupo. Em outros termos: as suas enunciações colaboravam para a solidifi cação de um certo padrão enunciativo que moldava o discurso dos distribuidores, portanto, daqueles que falavam em nome da empresa, como vendedores de seus produtos, de sua transa-ção comercial e, especialmente, como propagadores de seu discurso.

3. Do discurso à prática discursiva

No item anterior, verifi camos que a Amway, como outra empresa qualquer, havia estabelecido uma série de princípios para o funciona-mento de sua proposta comercial. Dentre esses princípios, havia alguns relativos à enunciação de seus distribuidores, o que é esperado, uma vez que a proposta da Amway se vendia “boca-a-boca”; daí a necessidade de a empresa estabelecer o que os seus distribuidores podiam e não podiam falar para terceiros.

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de ordem legal e o modo como o discurso da Amway circulava, uma versão de um sistema de restrições, nos termos de Foucault, compro-vando, portanto, a sua tese de que o poder e o controle estão em toda parte. Por meio desses princípios, a Amway defi nia os sujeitos de seu discurso (limitando quem podia promover e continuar promovendo a sua proposta comercial), os locais de sua circulação (palestras, seminá-rios e reuniões de treinamento e reuniões para apresentar a proposta da empresa, sempre de acordo com certas restrições) e, essencialmente, o discurso de seus distribuidores (o que eles podiam e deviam dizer e o que eles não podiam dizer). Dito de outro modo: o discurso da empresa, como um sistema de restrição, promovia sua circulação de acordo com um certo padrão e em condições bem específi cas, o que lhe protegia dos poderes e perigos de outros discursos que poderiam atrapalhar, justamente, essa circulação e também sua expansão.

Feitas essas observações, vale ainda registrarmos que o desen-volvimento de uma análise como essa, que destaca a estreita relação que há entre o discurso e os sujeitos, vai ao encontro das refl exões de Maingueneau sobre a natureza complexa dos discursos (1989, 2005).

Para o autor, o discurso não deve ser pensado somente como um conjunto de textos, mas como uma prática discursiva. A noção de prática discursiva, como sabemos, foi inicialmente formulada por Foucault, para quem o discurso não é um conjunto de signos relativos a conteúdos prévios ou representações, mas é uma prática, ou seja, “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que defi niram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfi ca ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa (Foucault, 1997: 136).

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autor observa, citando, para exemplifi car, as refl exões de Michel de Certeau sobre o tema. Vejamos:

É impossível analisar o discurso histórico independentemente da instituição em função da qual ele é organizado em silêncio; ou pensar em uma renovação da disciplina que seria assegurada apenas pela modifi cação de seus conceitos (De Certeau 1975, apud Maingueneau, 2005: 127).

Adotando essa perspectiva, Maingueneau reconhece que a noção de formação discursiva não evidencia de modo satisfatório a imbricação que há entre os aspectos textuais e os não textuais da discursividade. Por isso, prefere adotar a noção de prática discursiva, conceito que emprega para designar a “reversibilidade essencial entre as duas faces, social e textual, do discurso” (Maingueneau, 1989: 56). Assim, a noção de prática discursiva, no modo como é reformulada pelo autor, relaciona o discurso ao grupo ou à organização de grupos no interior dos quais são produzidos, isto é, gerados os textos que dependem da formação discursiva. Esse grupo, a que Maingueneau chama de “comunidade discursiva”, diz respeito às instituições, às relações entre seus agen-tes e a tudo que esses grupos implicam no plano de sua organização material e de seus modos de vida, mas sempre dentro dos limites da enunciação, da gestão dos textos.

Isso signifi ca que, para Maingueneau, não existe relação de exterio-ridade entre o funcionamento do grupo e o de seu discurso, que estão, desde sempre, imbricados. Por isso, as coerções que possibilitam o discurso precisam ser pensadas junto com as que possibilitam o grupo, pois as duas instâncias são conduzidas pela mesma lógica.

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seu nome (reuniões organizadas pelos distribuidores com terceiros para vender produtos e expandir a rede, com a adesão de novos dis-tribuidores).

Como um dos aspectos da prática discursiva em análise, podemos dizer que os eventos em questão reforçavam o discurso da empresa para os distribuidores, o que colaborava fortemente não só para a permanên-cia desses distribuidores na empresa (e, desse modo, no discurso) como também para a adesão de novos distribuidores. Consequentemente, promoviam-se a sustentação e a expansão do discurso da empresa, o reconhecimento mútuo de seus sujeitos e especialmente a própria ma-nutenção da empresa, que dependia crucialmente dos distribuidores, com o consumo e venda dos produtos, expansão das redes, frequência aos eventos etc.

De fato, Pedroso Neto (2010), analisando o funcionamento da Amway, do ponto de vista da antropologia e da sociologia econômica, revela o papel fundamental desses eventos na reprodução da coesão organizacional da empresa. Segundo o autor, tais eventos, encontros entre agentes, tinham mesmo “funções constitutivas”, entre as quais estava a de instituir ou estabilizar as principais convenções sociais que os distribuidores compartilhavam, ou, nos nossos termos, o próprio discurso dos distribuidores. Nas palavras do autor:

Essas convenções eram coerentes, se entrefortaleciam e necessariamen-te eram mobilizadas performaticamente pelos agentes em momentos cruciais da realização de seus interesses particulares. Basicamente, ao tentar recrutar um novo agente para sua rede, qualquer distribuidor, querendo ou não, acreditando ou não, tinha que mobilizar o repertó-rio de argumentos e as convenções que ele ouvia o tempo todo(...). (Pedroso Neto 2010: 96-7; grifo nosso)

Pedroso Neto também verifi ca como os eventos promoviam o fortalecimento do discurso da empresa, preparando-o, inclusive, para situações polêmicas. Desse modo, analisando as atividades de treina-mento dos distribuidores, o autor nota que o seu conteúdo estabelecia certas convenções muito marcadas

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práticas, representações e discursos performativos que reforçavam as práticas, representações e discursos performativos análogos dos outros distribuidores. E, por outro lado, esses princípios se enrijeciam espontaneamente, no “calor” dos confl itos ou das disputas práticas, representações e discursos performativos refratários aos ataques e constrangimentos de outros grupos sociais, os nãos que os distribui-dores recebiam, as gozações e até mesmo os insultos. (Pedroso Neto 2010:114-115; grifo nosso)

Conforme o exposto, entendemos como o discurso não é só uma questão de conteúdo, mas também um modo de organização social vinculado à circulação dos enunciados, conforme enfatizam as refl exões de Maingueneau sobre o tema.

4. Considerações fi nais

Neste trabalho, analisamos aspectos relativos à circulação do dis-curso da Amway, no Brasil, na década de 90. Inicialmente, tratamos de aspectos que nos permitiram considerar o discurso da Amway como uma doutrina, nos termos de Foucault (1996), isto é, como um sistema de regras, cuja difusão se dá entre indivíduos que vão defi nir seu per-tencimento recíproco justamente por adotarem tal discurso.

Posteriormente, ampliamos a refl exão e consideramos o discurso da Amway como uma prática discursiva, evidenciando o vínculo do discurso com os sujeitos que o veiculavam (os distribuidores), com o modo como esses sujeitos estavam organizados numa hierarquia específi ca, com os eventos que eram promovidos pela empresa e com os que eram promovidos em seu nome.

Com essasobservações sobre o vínculo que há entre a face verbal e a institucional do discurso, esperamos ter contribuindo para evidenciar a complexidade da discursividade, isto é, “a dualidade radical da lingua-gem, a um só tempo, integralmente formal e integralmente atravessada pelos embates subjetivos e sociais” (Maingueneau, 1989: 12).

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Referências bibliográfi cas

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Referências

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