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O "cálculo" subjetivo dos cancionistas.

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 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. , p. -, dez. 

O “cálculo” subjetivo dos cancionistas

Luiz Tatit1

Resumo

Ao estabelecer a relação entre melodia e letra, o cancionista combina recursos naturais, procedentes da sua fala cotidiana (linguagem verbal com suas entoações), com recursos musicais de estabilização sonora (afinação das alturas, definição das durações rítmicas etc.) e ainda programa o andamento (mais rápido ou mais lento) das canções com suas recorrências temáticas ou suas curvas melódicas passionais para conduzir letras que falam ora de encontros afetivos eufóricos, ora de desencontros e sofrimentos. Embora os compositores e intér-pretes criem dominâncias no uso desses recursos (mais fala e menos música ou vice-versa; mais tematização e menos passionalização ou vice-versa) a cada canção produzida, quase sempre promovem dife-rentes graus de mistura entre eles para obter um resultado artístico mais eficaz.

Palavras-chave

Composição de canções, melodia e letra, música e fala

Recebido em 30 de junho de 2014

Aprovado em 17 de agosto de 2014

TATIT, Luiz. O “cálculo” subjetivo dos cancionistas. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 59,

p. 369-386, dez. 2014. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i59p369-386

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 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. , p. -, dez. 

The Songwriters Subjective “Calculation”

Luiz Tatit

Abstract

By establishing the relationship between melody and lyrics, the songwriter combines natural resources coming from their everyday speech (verbal language and its intonations), with sound stabiliza-tion music features (pitch heights, setting the rhythmic durastabiliza-tions etc.). Moreover, plans the tempo (faster or slower) of the songs with their thematic recurrences or their passionate melodic curves to drive lyrics that speak sometimes of euphoric affective encounters, sometimes misunderstandings and sufferings. Although composers and performers create dominances in the use of these resources (more talk and less music or vice versa; more thematisation and less passionalisation or vice versa) every song produced, almost always provide different degrees of mixing between them to get a more effec-tive artistic result.

Keywords

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o início da era do rádio e da

gravação de discos, os compositores brasileiros concebiam o seu trabalho como verdadeira reciclagem de falas. Essas mesmas que usamos e descartamos todos os dias eram por eles reconstituídas e preparadas para durar mais tempo em forma de canção. Tal preparação consistia em reaproveitar as direções melódicas sugeridas pela entoação efêmera que acompanha nossas conversas diárias e estabilizá-las com recursos musicais: ampliação de tessitura, definição das alturas e durações, harmonização, caracterização de compassos, tonalidade, andamento etc. Era comum que os músicos de fato ou os maestros só entrassem nessa última fase para finalizar a obra, elaborar o arranjo instrumental e obter a gravação definitiva.

Essa dependência inicial da fala fazia com que todos os fragmentos da composição já tivessem em geral melodia e letra. A busca de parceiros representava a necessidade de alongar a canção com outros fragmentos que também já tivessem versos entoados. Por isso, era prática habitual um compositor entregar ao seu colega uma parte da obra esperando que ele criasse uma segunda parte, ambas já com melodia e letra. Já havia, como hoje, a parceria entre melodistas e letristas, mas não era a regra. Sem um real convívio com as técnicas musicais e literárias, nossos primeiros cancionistas preferiam ter como matéria-prima as frases já melodizadas da linguagem oral.

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compositores instrumentistas começaram a se encarregar de todo o tratamento musical de suas melodias e, só quando as consideravam concluídas, passavam para a etapa de criação das letras. Às vezes, eles próprios se ocupavam da nova fase, outras, convocavam seus amigos letristas. Os cancionistas da bossa nova consolidaram de vez esse modo de compor que dependia diretamente do aumento expressivo da compe-tência instrumental dos compositores e do esmero com que elaboravam a linha melódica antes de entregá-la aos cuidados do parceiro.

Claro que os dois modelos de composição sempre coexistiram na história da canção. No mesmo ano (1962) em que Carlos Lyra lançava “Influência do Jazz”, denunciando (e ironizando) sua fonte de inspiração para o novo tratamento melódico, Noite Ilustrada alcançava enorme sucesso com o samba “Volta Por Cima”, de Paulo Vanzolini, cuja criação era nitidamente fundada nos contornos da fala, como qualquer samba dos anos 1930. O primeiro compositor extraía a melodia da harmonia e do suingue do violão. O outro mal sabia segurar seu instrumento, mas se virava muito bem com as entoações impregnadas na própria fala. Quase na mesma ocasião, Baden Powell, violonista notável, propunha uma melodia semierudita (à maneira de Villa-Lobos) para que Vinicius de Moraes pusesse letra. O resultado foi “Samba em Prelúdio”, canção romântica claramente regida por diretrizes musicais que, no final, soavam atenuadas pelas frases amorosas e coloquiais do grande letrista. Esse incremento dos recursos musicais convivia com a radicalização dos efeitos figurativos, ou seja, com reciclagens de fala pura na criação de canções, como é o caso de “Deixa Isso Pra Lá” (Alberto Paz e Edson Menezes), outro grande sucesso nacional lançado em 1964 por Jair Rodrigues. Originalmente muito simples, esse samba ganhou impor-tância com o passar do tempo pela presença explícita da linguagem oral em seu desenvolvimento “melódico”, antecipando características que só seriam ouvidas bem mais tarde com a chegada do rap no país.

Estabilização musical e unidades entoativas

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esforço físico repetitivo adotado pelos antigos executantes. Ainda nos anos 1990, Renato Russo já dizia: “Aprendemos a usar o estúdio como um instrumento”.2 De fato, os cancionistas do rock também demonstravam

especial interesse pelas soluções musicais antes de se concentrarem na criação da letra. O depoimento do mesmo Renato Russo ao compo-sitor Leoni mostra bem como se tornou a feitura de canção nas últimas décadas:

Basicamente a gente trabalha da seguinte maneira: O Bonfá começa um ritmo, aí a gente inventa uma linha de baixo qual-quer, em cima da linha de baixo, como a guitarra demora para ser arranjada, eu tenho uma ideia de teclado e já vou fazendo e encai-xando […] e a letra é a última coisa.3

Hoje sabemos que a convivência dos dois modelos de composição é perene no cancioneiro nacional, mas o que pretendemos destacar é outra coisa. Começando por reciclagens de falas, à maneira de Vanzolini, ou por elaborações melódico-musicais, à maneira da bossa-nova ou dos roqueiros citados, há sempre um momento na confecção da obra em que ambas as vertentes se encontram para configurar a canção, ou seja, em que a instabilidade entoativa se musicaliza para não mais se diluir em fala cotidiana e em que as frases musicais se convertem em unidades entoativas (ou figurativas), pela ação necessária do recorte linguístico.

Não é difícil demonstrar que as canções-rap se ancoram na inconstância das figuras locutivas4, mas, a partir daí, revelam uma busca

incessante de estabilidade musical, quer na criação de motivos temáticos que ajudam na explicitação dos tempos fortes dos compassos, quer na produção obsessiva de rimas e assonâncias que propiciem a fixação de alguma regularidade para o canto. Por outro lado, as composições que procedem das linhas instrumentais só se completam quando revelam suas unidades entoativas subjacentes, ou seja, quando suas frases meló-dicas passam a ser também modos de dizer. Vejamos um exemplo desse último caso.

 SIQUEIRA JÚNIOR, Carlos Leoni Rodrigues. Letra, música e outras conversas. Rio de Janeiro: Gryphus, , p. .

 SIQUEIRA JÚNIOR, Carlos Leoni Rodrigues. Letra, música e outras conversas. , p. .  As figuras locutivas são representações do nosso modo de dizer os conteúdos na

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A conhecida canção “Ainda É Cedo”, lançada pela banda Legião Urbana, foi composta nos anos 1980 por Dado Villa-Lobos, Renato Russo, Marcelo Bonfá e Ico Ouro-Preto. Sua criação deve ter seguido um roteiro próximo ao descrito acima por seu líder. Assim, depois de concluída a melodia com suas bases instrumentais, os autores (especialmente Renato Russo) passaram a transformar as frases melódicas (notas musi-cais) em unidades entoativas (contornos vomusi-cais) que indicam o “dizer” do canto. É próprio da melodia entoativa adquirir um compromisso direto com a emissão e o corpo do intérprete, o que assinala a diferença essencial entre tocar e cantar. Claro que esse cantar só se completa quando podemos entender também os signos pronunciados pelo intér-prete. Um simples solfejo ou mesmo um vocalise5 poderiam fazer a voz

se aproximar da função instrumental sem estabelecer o vínculo entre as inflexões melódicas e a cena (subjetiva ou objetiva) relatada, mas não é esse o caso. Em “Ainda É Cedo” temos um canto pleno com frases meló-dicas já convertidas em unidades entoativas: “Uma menina me ensinou / Quase tudo que eu sei...”.

É comum que as frases melódicas, em sua maioria, correspondam às unidades entoativas, mas nem sempre os autores mantêm essa regu-laridade. O início de duas estrofes dessa mesma canção, com frases melódicas idênticas, pode nos ajudar a compreender como se criam unidades entoativas diferentes a partir do mesmo perfil melódico. Na primeira vez, as duas frases melódicas, quando letradas (“Ela também estava perdida / E por isso se agarrava em mim também”), correspondem igualmente a duas unidades entoativas6:

Figura 1: Desenho melódico de “Ainda É Cedo” – 13º e 14º versos.

No entanto, ao criar a letra para o retorno da mesma melodia (“Ela falou você tem medo/ Aí eu disse quem tem medo é você”), os autores, em

 A rigor, esse seria igualmente o caso do canto em língua estrangeira, quando o ouvinte não domina o idioma do intérprete. Acontece que, nessa circunstância, os cantores mantêm um vínculo afetivo – inexistente no solfejo – com os conteúdos de sua língua natural de tal sorte que as unidades entoativas quase podem ser deduzi-das pelos receptores.

 Esse diagrama representa o desenho melódico que conduz a letra. As barrinhas entre palavras e sílabas equivalem a intervalos de semitom entre as notas. A linha vertical representa divisão entre as unidades entoativas surgidas a partir da letra.

1

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vez de duas, isolam quatro unidades entoativas fazendo uso de simples operações enunciativas que modulam linguagens indiretas e diretas: (1) “Ela falou”, sujeito em terceira pessoa, no passado, ou seja, o eu-lírico se reporta à fala de um outro ocorrida num tempo distante; (2) “você tem medo”, sujeito em primeira pessoa (só o “eu” pode se dirigir a “você”, pronome com função de “tu” na nossa língua) dizendo, no presente, o que o outro teria dito no passado; (3) “Aí eu disse”, sujeito em primeira pessoa, mas se referindo ao que disse no passado; (4) “quem tem medo é você”, sujeito em primeira pessoa dizendo, no presente, o que ele próprio teria dito no passado:

Figura 2: Desenho melódico de “Ainda É Cedo” – 29º e 30º versos.

Esses recursos enunciativos, habituais na literatura ou em qual-quer manifestação da linguagem verbal, tomam vulto especial no universo da canção em virtude do encanto irresistível da voz. Tudo que é cantado se torna também um modo de dizer atual. Ao pronunciar “você tem medo” dentro da melodia proposta, o intérprete está reproduzindo, no instante em que canta, a curva entoativa executada pela personagem (ela, a menina) em outra ocasião. Da mesma forma, ao replicar “quem tem medo é você”, refaz a curva que o próprio “eu” teria flexionado para dizer a frase em tempos atrás. Nos dois casos, as curvas são refeitas aqui e agora pela voz do cantor, de tal maneira que os sentimentos a elas asso-ciados parecem reviver na voz e interpretação de quem canta.

Esses recursos nos ajudam ainda a compreender a natureza da unidade entoativa. Se compararmos esses quatro segmentos com os dois do diagrama anterior, veremos que as curvas (2ª e 4ª) identificadas com o diálogo mantido pelo casal (“você tem medo” e “quem tem medo é você”), não são audíveis como tais no primeiro diagrama, já que lá não podem ser isoladas dos seus segmentos anteriores. Em função da letra composta, só podemos considerar como unidades entoativas os dois segmentos integrais: “Ela também estava perdida / E por isso se agarrava em mim também”. Portanto, os contornos das frases melódicas possuem unidades entoativas virtuais que poderão ser ignoradas ou, ao contrário, salien-tadas pelo letrista. Seja como for, importa-nos o fato de que as canções geradas por manobras musicais produzem unidades entoativas tanto

1 2 3 4

Ela falou cê

vo tem

me

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eu

disse quem

tem medo é

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quanto as que provêm diretamente da fala, com a diferença que aquelas só definem suas unidades depois do recorte linguístico. Se pensarmos no caso extremo da composição de “Carinhoso”, cuja melodia havia sido composta por Pixinguinha em 1917, podemos dizer que suas unidades entoativas só foram reveladas ao público em 1937, após a intervenção de Braguinha (João de Barro), autor da famosa letra. Depois disso, já trans-formada em canção, a obra foi regravada por centenas de intérpretes e atingiu o sucesso que hoje conhecemos.

A noção de unidade entoativa é, portanto, um pré-requisito para configurarmos o perfil do artista que atua genericamente na área musical, mas que é dotado de propensão cancional. Mesmo que jamais proponham suas atividades nesses termos, os cancionistas parecem intuir o quantum ideal de música e fala para as suas obras e chegam a evitar excessos de uma e de outra como se comprometessem o destino final do trabalho.

Essas noções possuem um sentido relacional preciso. Excesso de música, nesse caso, é carência de fala, é falta de linguagem oral dentro da obra para completar o seu sentido. Retrata a situação em que o cancio-nista já compôs uma boa melodia, mas anda em busca de uma letra que revele suas unidades entoativas e configure um tema identificado com suas inflexões. A longa espera (consciente ou não) de Pixinguinha por uma letra que retirasse o seu choro, de apenas duas partes, de um limbo musical que à época previa para o gênero três partes também ilustra o caso da música excessiva e da falta de figuras locutivas. Mas a tão corri-queira procura de letrista que possa encaminhar uma criação melódica para o mundo da canção é sempre um exemplo desse “cálculo” subjetivo que prefere desprezar um pouco da autonomia musical em favor de um modo de dizer mais compatível com os conteúdos do dia-a-dia.

O excesso de fala, que hoje é cultivado com funções específicas no rap e em alguns tipos de funk, já foi, sobretudo no passado, um trans-torno para os compositores que padeciam então de carência musical e necessidade imediata de colaboração de um músico que estabilizasse suas invenções espontâneas. O depoimento de Paulo Soledade a respeito de Fernando Lobo é bastante representativo desse sentimento de falta:

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esqueça”. Depois de eu tocar no violão, a ideia já ficava mais difícil de esquecer.7

Embora se beneficiasse dos lampejos momentâneos que lhe traziam à mente palavras entoadas, Fernando Lobo sabia que tais frag-mentos, como qualquer frase do nosso cotidiano, se perderiam se não contassem com um registro quase instantâneo que, naquele tempo, dependia de reprodução instrumental ou de escrita em partitura. O “cálculo”, nesse caso, seguia outro princípio: menos espontaneidade oral e mais recursos musicais, sob pena de pôr em risco o material recém-criado. O depoimento de Nássara confirma como a falta musical era frequente na era do rádio:

O Lamartine Babo, assim como eu também não toco instrumento nenhum, a não ser arranhar muito mal, o Lamartine também. O Lamartine Babo não tocava instrumento nenhum, ele fazia música mentalmente. Agora, uma memória musical espantosa, fabulosa, inacreditável […] Ele, por exemplo, chegava ao Pixinguinha, que fez a maioria das orquestrações das músicas dele, e ele solfejava a harmonia, aquelas introduções, tudo mental (solfeja): pararara tararara larilarirara. Enfim, era eu também…, o Wilson Batista, o Haroldo Lobo, a maioria não conhecia música.8

Note-se que o principal aqui não é destacar a insuficiência musical dos compositores de canção, uma vez que quase todos partilham essa pouca intimidade com a linguagem musical stricto sensu. A questão é a falta de música para a estabilização e perenização da obra, algo que hoje, do ponto de vista técnico, praticamente não existe mais. Os recursos de gravação eletrônica já foram devidamente disseminados entre músicos, não-músicos e aficionados da canção, a tal ponto que a linha divisória entre artista e público-ouvinte está cada vez mais fluida. Boa parte das plateias de espetáculos musicais é formada por autores de um ou mais CDs independentes. O que permanece é a opção estética ou funcional de dosagem dos recursos musicais tendo em vista o efeito final que se pretende causar no ouvinte. Hoje é possível operar na tangente da fala sem que se perca o material sonoro criado. Pode-se desconsiderar a

 BOTEZELLI, J. C. Pelão  PEREIRA, Arley. A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes, vol. . São Paulo: Sesc, , p. .

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afinação das alturas e todo o apoio harmônico que antes pareciam peças fundamentais na estrutura da composição. Pode-se também dispensar a métrica dos versos, embora, no caso do rap, ela seja compensada por uma implementação compulsiva de rimas finais e internas que não deixam de ser traços de musicalização. Aqui, para obter o efeito de denúncia numa contextuação de vida quase épica, nada melhor que menos música e mais fala, ainda que, assim mesmo, além das aliterações exacerbadas, a hiper-dosagem do ritmo percussivo mantenha em pauta a presença musical.

A estratégia bossa-nova

Em campo oposto, houve tendências na bossa nova que exploraram o máximo possível os recursos musicais no âmbito da canção, não apenas as célebres dissonâncias harmônicas, mas também o improviso vocal tão incentivado nos circuitos de produção do jazz. Nas experiências-limite, chegavam a neutralizar o conteúdo da letra com vocalises (“sabadabadá...”) para evitar o apelo figurativo (falar das coisas do mundo e das relações humanas). Restava apenas a voz como um modo de dizer, mas sem foco no que era dito. Não são muitos os compositores brasileiros que apos-taram nessas tendências. Nossas canções deixam em geral pouco espaço para o improviso puro e simples; sempre que aparece, exerce funções de passagem, introdução, finalização etc. e jamais se confunde com o núcleo cancional determinado pela relação melodia e letra.

Por mais que se esmerassem na condução harmônica da melodia, os bossanovistas logo sentiam necessidade das figuras locutivas defi-nidas pelas entoações embrionárias de toda melodia. Sentiam falta de letra, mas não de qualquer letra. Os versos ideais eram aqueles que anun-ciavam a presença do cantor, recortavam as unidades entoativas, mas não se deixavam levar pelo “peso” do conteúdo. Para tanto, além da adoção do registro quase infantil (“O Barquinho”, “Trem de Ferro”, “Presente de Natal”, “O Pato”, “Lobo Bobo”) e dos comentários sobre a própria música (“Samba da Minha Terra”, “Samba de Uma Nota Só”, “Bim Bom”), os autores recorriam aos temas gerais pouco conflitivos (“Brigas, Nunca Mais”) que, de certo modo, se anulavam como conteúdo, orientando a atenção do ouvinte para o encaixe fonético das palavras na levada do samba. Falavam do amor, da felicidade e da natureza, temática que João Gilberto sintetizou no título do seu segundo LP: O amor, o sorriso e a flor (verso da canção “Meditação”, de Tom Jobim e Newton Mendonça).

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do formato cancional. Criando letras nessa esfera de generalidade e eutimia, os mentores da bossa nova se resguardavam do lado escuro da vida, das asperezas do cotidiano, das divergências sociais e das paixões intensas do indivíduo. Evitavam ainda as ironias, as denúncias e as cons-truções de duplo sentido. As letras eram o que eram, serviam apenas para “dizer” a melodia e não para carregar o ouvinte até as profun-dezas do conteúdo humano. João Gilberto mal arrisca pôr letra em suas pouquíssimas composições e, não raro, propõe alterações de texto para interpretar a seu modo composições alheias. Podemos dizer que a letra, na bossa nova, é para atenuar a abstração musical, mas não para mergu-lhar em assuntos do mundo exterior ou do universo emocional. Esse mínimo é o seu quantum ideal de fala.

Todos os demais gêneros9 da canção brasileira se mostram mais

abertos à participação da fala e à exploração de outras regiões, menos vagas, do seu conteúdo linguístico. Todos permitem maior semantização dos temas tratados, ainda que muitas vezes o próprio letrista prefira um recorte comedido do contínuo melódico para evitar sugestões ideológicas com as quais não se identifique. Mas encontramos conteúdos intensifi-cados no rock, no samba-canção, na antiga canção de protesto, na valsa, na marchinha carnavalesca, na produção tropicalista, na música serta-neja, na música axé, no funk, no reggae e até no iê-iê-iê. Ou seja, a regra é a intensificação, em graus diversos, do conteúdo da letra, o que se traduz automaticamente num aumento do papel da fala na composição. A bossa nova, exercitando uma dicção muito peculiar, testou o limite da canção no horizonte musical, mostrando até que ponto podemos dessemantizar10

uma letra, já que é impossível eliminá-la, para valorizar suas proprie-dades sonoras em comunhão com a linha melódica e a levada rítmica.

A estratégia rap

Como deixamos entender, o rap, ao contrário, testa o limite da canção no horizonte da linguagem oral, mostrando até que ponto podemos investir nos significados linguísticos, servindo-nos da ento-ação quase pura, para transmitirmos informações verbais, normalmente intensas, sem perdermos os traços musicais que garantem sua âncora

 Os gêneros referem-se em geral ao padrão rítmico adotado pela composição, embo-ra nem sempre as interpretações se mantenham fiéis ao ritmo de origem.

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na linguagem da canção. As composições já surgem com suas unidades entoativas, sem estabilidade nas alturas, mas contando especialmente com as aliterações fonéticas e com o respaldo da base percussiva. Embora o gênero tenha sido importado de bairros norte-americanos (a maioria dos gêneros é importada ou sofre forte influência do que se faz fora do país), veio ocupar um lugar preciso na história na nossa canção. Seu formato, menos música mais fala, é ideal para se fazer pronunciamentos, manifestações, revelações, denúncias etc. sem que se abandone a seara cancional. Podemos dizer que o trabalho musical, no rap, é para restabe-lecer as balizas sonoras do canto, mas nunca para perder a concretude da linguagem oral ou conter a crueza e o peso de seus significados pessoais e sociais. Esse mínimo percussivo e aliterativo é o seu quantum ideal de música.

A aceleração e a tematização

A maioria esmagadora das canções nacionais apresenta, em boa medida, tanto os recursos de estabilização musical quanto os dados de semantização linguística. Observando esse vasto repertório, perce-bemos que outro tipo de oscilação obriga o cancionista a se posicionar no campo da linguagem, tendo em vista a natureza de conteúdo que deseja transmitir em cada obra. A ligação entre as notas de uma melodia pode ser muito bem definida por movimentos acelerados que dão consistência rítmica à forma geral da música e menos relevância aos tons individuais emitidos pelo intérprete. Mas essa ligação pode permanecer um tanto dissipativa nos movimentos lentos que estendem as durações, criando sons com alguma independência da estrutura musical (embora jamais se desprendam totalmente dessa rede de relações). Gisèle Brelet, musicó-loga que muito refletiu sobre o parâmetro andamento na música erudita, traduz a desaceleração nos seguintes termos11:

[...] a lentidão encarna mais particularmente a exigência de indi-vidualização dos sons; também a ligação [entre as notas] se torna mais precária, e o intérprete aí sempre corre o risco de romper a

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continuidade do desenho melódico e de anular a duração musical deixando-a a mercê da dispersão.12

Para a autora, portanto, a ligação ou a individualização das notas decorrem sobretudo do andamento e acabam determinando a densidade musical da obra. O movimento vivo, por caracterizar constantemente o formato geral da peça, assegura o vínculo entre as notas e o arrebatamento imediato que isso causa, não deixa espaço para a dispersão melódica e muito menos para a desconexão do ouvinte com o presente musical, razão pela qual está sempre associado ao divertimento do corpo e do espírito e menos envolvido com a profundidade de seu alcance musical. Ao contrário, o movimento lento é caracterizado pela tendência à indi-vidualização das notas e pelo detalhamento de suas nuances rítmicas e harmônicas. É o que torna a música mais expressiva, pois nos permite demorar nas sutilezas da sua forma e confrontá-la com nossa própria duração subjetiva, repleta de esperas daquilo que não é ainda, mas que, para nós, já é13. As notas quase individualizadas nos comunicam a

insu-ficiência do instante musical e, simultaneamente, nos convidam a passar do tempo da obra para o nosso tempo interno, a despeito de todos os incô-modos subjetivos que isso possa trazer.

Segundo Brelet, a ligação entre as notas está plenamente assegu-rada no movimento acelerado, uma vez que seus tons são apreendidos como um conjunto indivisível e a obra se mostra semelhante a si mesma no decorrer do seu desenvolvimento. Não há risco de que se rompa a continuidade do desenho melódico. No movimento desacelerado, o fenô-meno da individualização das notas, embora valorize a complexidade rítmica e harmônica da peça, pode às vezes ameaçar a ligação entre os tons justamente pelo efeito de suas descontinuidades. Mas a exploração das nuances sonoras que aumentam a densidade musical das obras lentas é sempre acompanhada, de acordo com a musicóloga, de uma “resistência à atomização da frase”, o que gera um equilíbrio entre a moderação do alentecimento e o elã da rapidez. Mesmo se referindo à música em geral, Gisèle Brelet traz uma importante contribuição para pensarmos o papel do andamento nas melodias de canção e para, mais uma vez, estabelecermos o cálculo subjetivo que leva os cancionistas a dosarem, desta vez, o quantum de aceleração e desaceleração adequado às suas canções:

 BRELET, Gisèle. Le temps musical: essai d’une esthétique nouvelle de la musique. Paris: PUF, , p. .

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Assim, o andamento, em vez de ser uma medida abstrata e arbi-trária imposta à obra de fora para dentro, exprime seu devir em sua estrutura concreta, o contínuo e o descontínuo em suas exigências correlativas. A ligação deve sempre ser suficientemente rápida para que as individualidades sucessivas dos sons não deixem entre si um vazio e, entretanto, suficientemente lenta para que floresça a originalidade das sonoridades diversas. É a razão pela qual há um limite tanto para a rapidez como para a lentidão que se destroem a si próprias quando há exagero; a rapidez, rápida demais, é pura precipitação e a lentidão, lenta demais, torna-se languidez: uma perde seu elã e a outra, sua plenitude.14

A importância do andamento no mundo da canção também é notória e, além isso, a oscilação entre seus extremos adquire ainda maior relevo por se tratar de um universo de sentido especialmente concen-trado no tempo (três minutos, em média). A concepção acelerada produz igualmente melodias bem estruturadas, com grupos de notas unifi-cados que evitam qualquer dispersão individual da sonoridade. Esses traços, porém, combinam-se na canção com recorrência de motivos que contribui diretamente para a formação de identidade melódica entre os temas. É a chamada tematização, processo que organiza tanto pequenos segmentos da linha do canto quanto segmentos mais amplos, conhecidos como refrãos. As melodias aceleradas e tematizadas mais involuem do que evoluem, não abandonam o seu centro. Com esses recursos que valo-rizam as relações de identidade, elas pedem letras que, de algum modo, também retratem comunhão entre personagens e seus objetos de valor. Nada melhor que letras que celebrem conquistas, aquisições materiais ou espirituais, encontros amorosos, qualidades pessoais, enfim, todo tipo de conjunção narrativa.

Assim como fizemos alusão às experiências-limite que levam a um “excesso de música” ou a um “excesso de fala” captados pelo cancio-nista, agora podemos nos referir ao eventual “excesso de tematização” praticado por quem quer reforçar o papel da identidade na melodia e, por decorrência, na letra. Essa tendência era muito cultivada na música popular anterior aos processos de gravação como garantia de sobre-vivência dos melhores motivos melódicos gerados espontaneamente. Normalmente esses trechos já surgiam “colados” a uma letra, ainda que

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esta muitas vezes sofresse variações. Claro que, durante as brincadeiras de rua, podiam aparecer novas estrofes e mesmo algum desenvolvimento melódico, contanto que as novidades voltassem ao núcleo já consagrado, ou seja, ao refrão, pois nele estava inscrita a memória daquela criação específica.

A possibilidade de registro das composições eliminou essa função mnemônica do refrão, mas reavivou sua função identitária. Toda vez que precisasse enaltecer valores, ações ou qualidades por meio dos quais um personagem ou o próprio eu-lírico pudessem ser reconhecidos, o cancio-nista ativava a tematização, visto que a recorrência melódica facilmente se compatibiliza com a ideia de um sujeito em conjunção com objetos ou com outros sujeitos. Se pensarmos no refrão de “Andar Com Fé”, de Gilberto Gil, a repetição de sua linha melódica mostra que há uma iden-tidade entre seus elementos sonoros equivalente à ideniden-tidade entre o eu e a fé expressa pela letra.

Mas nunca uma canção se baseia apenas em identidade pura. A quase exigência de outra(s) parte(s) com características variadas demonstra que, ao estabelecer seus processos de tematização, o cancio-nista já introduz alguns desdobramentos motívicos que servem para atenuar o projeto reiterativo e fazê-lo nutrir-se também de alteridade. No fundo, essa presença da variação desfaz o efeito obsessivo da recor-rência e, ao mesmo tempo, revitaliza sua tendência à involução como um ganho estético, já que a principal função desses discretos abandonos do refrão ou dos temas reincidentes é justamente a de retomá-los adiante com maior intensidade (prova disso é o sabor típico do retorno ao refrão).

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A desaceleração e a passionalização

A tal escolha contrária, em sua plenitude, envolve três categorias essenciais, todas prestigiando a alteridade: desaceleração, saltos interva-lares e transposição brusca de registro (grave, médio e agudo). Já vimos, com Brelet, que a lentidão tende a individualizar as notas e a potencia-lizar o seu caminho harmônico criando um ambiente sonoro propício à configuração da espera dentro e fora do processo musical. No caso das canções, essas características se estendem ao domínio da letra susci-tando temáticas relacionadas à perda amorosa, à saudade, à carência, enfim, à busca do outro, tanto no passado (nostalgia) como no futuro (esperança). Os grandes saltos intervalares introduzem na melodia uma descontinuidade que, de certo modo, ameaça a sua integridade15, pois

apressa a evolução de sua trajetória pondo em relevo o lado “impaciente” da espera. Se as notas em pauta forem especialmente individualizadas por longas durações, o salto se torna ainda mais dramático na voz do cantor, uma vez que figurativiza um canto plangente, um lamento, oriundo do espaço subjetivo do próprio enunciador. A representação expandida do salto intervalar é a transposição de registro. Em vez do salto localizado, temos aqui um trecho integral da canção que se projeta para o agudo exigindo do intérprete um esforço de emissão compatível. Obras como “Travessia” (Milton Nascimento e Fernando Brant), “Força Estranha” (Caetano Veloso) e “Oceano” (Djavan) ilustram bem esse modelo em que a primeira parte oscila entre as regiões grave e média, enquanto a segunda ocupa inteiramente o registro agudo. Enfim, as três categorias mencionadas distinguem o núcleo da canção passional, aquela que enfatiza a importância do outro na constituição do sujeito e a existência inexorável da descontinuidade na expressão lenta do canto.

Como no caso da canção temática, a canção passional também dispõe de recursos para atenuar um possível excesso de passionalização decorrente da tricotomia categorial. É comum que a expansão lenta da melodia se dê progressivamente, de maneira escalar, sem intervenção importante dos saltos intervalares (ex.: “Valsinha”, de Vinicius de Moraes e Chico Buarque). Mesmo quando esses ocorrem, é igualmente comum que sejam sucedidos por sequências gradativas de tons, tanto ascendentes quanto descendentes, como se as gradações compensassem

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o movimento brusco praticado pelos saltos. Outro recurso de atenu-ação das passagens descontínuas no interior das canções passionais é a gradação de segmentos melódicos (motivos), dado que essa gradação se transforma em lei de evolução, típica de uma espera serena (ex.: a primeira parte de “Eu Sei Que Vou Te Amar”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes). Tudo ocorre como se os processos graduais restaurassem um tanto da recursividade da tematização e, com ela, o princípio de identi-dade pouco presente nas composições passionais.

Por mais que queira se expressar numa esfera passional, intima-mente ligada à desaceleração, ao sentimento de falta e à espera impaciente do outro, o cancionista naturalmente se afasta da forma extremada da paixão incorporando leis de gradação ou mesmo adotando algum tipo de refrão para salvaguardar sua própria identidade durante o processo de busca. Os autores da bossa nova, por exemplo, jamais deixaram de tratar dos assuntos amorosos tão caros aos artistas do samba-canção e do bolero que precederam o movimento, só que nunca o fizeram do mesmo jeito. Mesmo conservando o andamento lento, tendiam a abandonar as longas durações vocálicas e as amplas inflexões melódicas exploradas pelos antigos sambistas em proveito dos movimentos gradativos (basta cantarolarmos o início de “Minha Namorada”, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes) e até reiterativos (início de “Lobo Bobo”, de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli), de modo a valorizar o elo entre as notas e, consequen-temente, o ritmo global que assegurava o elã melódico do então novo gênero.

Para concluir

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graduar os intervalos melódicos e introduzir alguma recorrência nos movimentos verticais (grave/agudo) do canto para, justamente, injetar identidade no domínio da alteridade, marcado por grandes inflexões vocais. São meios musicais que em geral repercutem na letra como sugestões de elos à distância ou de esperas pacientes, tendo como fundo a desunião.

Essas atenuações não são mais que “cálculos” subjetivos intuiti-vamente elaborados pelos cancionistas toda vez que se entregam a um processo de criação. Se a canção brasileira tem hoje um perfil facilmente identificável, isso se deve a essa prática pouco consciente, mas meticulo-samente desenvolvida por nossos artistas nos últimos cem anos.

Sobre o autor

Luiz Tatit

Referências

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