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As marcas da cidade: a dinâmica da pixação em São Paulo.

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Academic year: 2017

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DA PIXAÇÃO EM SÃO PAULO*

Alexandre Barbosa Pereira

Numa terça-feira do ano de 2003, caminhando pela Aveni-da Paulista próximo à Rua Aveni-da Consolação, encontrei alguns pixadores conhecidos meus, Acusados, DML e Vital, que

me convidaram para acompanhá-los ao seu point na Rua

Vergueiro1. Aceitei o convite e segui com eles.

Disseram-me que planejavam passar por baixo da catraca do ônibus, sem pagar a passagem. Fomos até o ponto e perguntei se não era complicado passar por baixo da roleta na Avenida Paulista, se ali não era mais difícil conseguir a liberação do

* Adoto aqui a grafia da palavra pixação, com “x”, e não com “ch”, conforme rege

a ortografia oficial, para respeitar o modo como os pixadores escrevem o termo que designa sua prática. Esse modo particular de grafar é apontado por alguns pixadores como uma maneira de diferenciar-se do sentido comum atribuído à norma culta da língua: pichação. “Pixar” seria diferente de “pichar”, pois este últi-mo terúlti-mo designaria qualquer intervenção escrita na paisagem urbana, enquanto o primeiro remeteria às práticas desses jovens que deixam inscrições grafadas de forma estilizada no espaço urbano.

1Point é o espaço onde os pixadores se encontram, em um dia e horário fixos, para

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cobrador para viajar sem pagar. Eles responderam que não; era só intimar o cobrador e passar. Vital, o mais novo, ainda brincou comigo e disse que, em caso de resistência, eu, com a minha pasta, poderia dizer que roubei um banco e que “tava dando fuga” com o dinheiro e as armas, pois assim o cobrador “ficaria na moral”.

Após um tempo de espera, embarcamos. Acusados foi o escolhido para ir à frente e pedir ao cobrador a liberação de nossa passagem. Começou com uma ardilosa encenação de humildade: falando baixo, com gestos contidos, simu-lando certa vergonha, pediu ao cobrador para “por favor” nos deixar passar por baixo. Tudo com muita educação. O cobrador respondeu que não. Ele insistiu. O diálogo ficou tenso; o cobrador levantou a mão e bateu na caixa onde guarda o dinheiro, dizendo: “Já falei que não vai passar e pronto”. Acusados, então, não teve dúvidas em se desfazer do personagem subserviente. Mandou o cobrador abaixar a mão e disse que, se não quisesse deixar passar, tudo bem, mas que “não era pra levantar a mão para ele não!”. Come-çou também a provocar, falando do brinco que o cobrador usava e passou a chamá-lo de “viado”. Saímos do ônibus, e Acusados, antes de descer, parou na porta e insultou o cobrador um pouco mais.

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jeito” nele. Fomos para o fundo do ônibus. Uma senhora, visivelmente assustada, prestava atenção em nossa conversa. Vital, para provocar, ainda brincou comigo mais uma vez, perguntando-me se o dinheiro e as armas estavam na minha bolsa. Rimos, mas a senhora ficou ainda mais assustada.

No restante da viagem pela Avenida Paulista, eles fala-ram do preço absurdo da passagem de ônibus (na época, R$ 1,70) e, como não podia deixar de ser, de pixação. Na hora de descer, todos agradecemos ao cobrador e lhe

dese-jamos um bom trabalho. Seguimos para o point da

Verguei-ro – o mais importante de então – onde pixadores de diver-sas regiões da cidade se encontrariam.

Minha pesquisa de campo com os pixadores

aconte-ceu fundamentalmente entre os anos de 2001 e 20052. Ela

se deu em várias etapas, a principal delas constituiu-se da

observação de campo nos seus points, o da Rua Vergueiro

em particular. No percurso feito durante a etapa de pesqui-sa, também participei de festas, fui à casa de alguns adep-tos da pixação, percorri as lojas do piso inferior da Galeria

do Rock3 que vendem produtos ligados à pixação (como

vídeos, tintas spray, revistas e álbuns de figurinhas), realizei entrevistas com vinte jovens e segui com eles, algumas vezes, em seus rolês4 pela cidade. Se os pixadores encontram-se no centro de São Paulo para pixar e para tecer redes de socia-bilidade, é na periferia que a maioria deles mora e forma seus grupos de pixo. Dessa maneira, a cidade com as suas centralidades e com as suas periferias foi o campo principal de observação da pesquisa.

Este artigo está organizado em três partes. Na primei-ra, discute-se o modo como se configura a dinâmica da

2 Essa pesquisa foi objeto da dissertação de mestrado que defendi pelo Programa

de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP. Ver Pereira (2005).

3 Nome pelo qual é conhecido o centro de compras localizado entre a Rua 24 de

Maio e o Largo do Paissandu.

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pixação em São Paulo: as motivações suscitadas, como ela se relaciona com outras manifestações juvenis e a confor-mação de um circuito dos pixadores na cidade. A segun-da parte aborsegun-da dois aspectos relevantes segun-da conduta dos pixadores, o da transgressão e o do risco, que não reme-tem nem direta, nem necessariamente, ao vandalismo e à criminalidade. Por fim, na última parte do artigo, trata-se do modo pelo qual os pixadores articulam-se na cidade e que nos faz pensar melhor os centros e as periferias de São Paulo. Como veremos, se olhar para a cidade nos faz entender um pouco mais os pixadores, olhar para os pixa-dores também nos ajuda a compreender um pouco mais a cidade. O artigo apresenta, portanto, dois argumentos centrais, a saber: 1) do estudo das dinâmicas da pixação na cidade pode-se compreender, de modo específico, faces da dinâmica da relação urbana centro-periferia na São Paulo contemporânea; 2) essa inversão de perspectiva, que privi-legia a pesquisa empírica ao debate normativo, questiona a figuração de senso comum baseada na associação direta de pixação e vandalismo.

O estilo da pixação em São Paulo

A pixação em São Paulo, ou o “pixo”, como seus autores costumam também chamá-la, é uma manifestação estética de parte da população jovem das periferias. Trata-se da gra-fia estilizada de palavras nos espaços públicos da cidade que se referem, quase sempre, à denominação de um grupo de jovens ou ao apelido de um pixador individual. Essa pixa-ção possui um formato bastante peculiar: com traços retos e angulosos, ela diferencia-se do que seria o estilo

norte-ame-ricano de pixação, designado tag, cujo formato

arredonda-do lembra mais uma rubrica5.

5 O tag é, mesmo no Brasil, o estilo mais comum de pixação. Ele é, por exemplo,

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À esquerda, o formato da pixação paulistana, e à direita, o estilo tag. Este último, em São Paulo, é feito geralmente com pincéis atômicos ou giz de cera e não com tintas spray, como os pixos (Pereira, 2004).

Ao lado do pixo principal, esses jovens deixam outra inscrição: o símbolo da grife a qual pertencem.

Da esquerda para a direita, o símbolo da grife Turma da Mão; o nome do pixo “vagais” e a inicial do nome dos autores do pixo (na gíria dos pixadores, aqueles que “fizeram o rolê ”) (Pereira, 2004).

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estar a ela associados. Os pixadores que integram uma mes-ma grife devem, no entanto, prestar algumes-mas obrigações recíprocas. A mais fundamental é elevar a popularidade da grife, ou seja, espalhar o seu símbolo pelo maior número de locais da cidade. Para garantir que isto seja cumprido, uma das exigências para se ingressar em algumas grifes é já ter certa notoriedade, o que significa já estar inserido no mundo da pixação e com muitas marcas pela cidade. Dessa maneira, os pixadores elevam o prestígio de seu pixo por estarem associados a uma grife e esta, por sua vez, consegue uma maior divulgação. Outros deveres daqueles que ingres-sam numa grife são o de reverenciar os pixadores daquela aliança que já morreram, mesmo sem tê-los conhecido, e também o de ser inimigo dos pixadores das grifes adver-sárias. Há uma grande rivalidade e muitos conflitos entre algumas grifes de pixadores.

Em São Paulo, a pixação estabelece uma relação bas-tante complexa com outra manifestação estética, o grafi-te. Enquanto em outras cidades do mundo o que aqui se denomina pixação é apenas um estilo dentro do grafite, na capital paulistana ela é vista por uns como o seu oposto – o grafite é entendido como arte enquanto ela é considerada sujeira e poluição visual – e, por outros, como um estágio inferior do grafite, que seria o patamar mais alto dessa for-ma de expressão. Por conta dessa aversão à pixação, princi-palmente pelo poder público e pela imprensa, os grafiteiros conseguiram adquirir até certa notoriedade junto à mídia e à população. Atualmente, muitos deles são contratados para realizar seus trabalhos em portas e fachadas de comércios, escolas e equipamentos públicos como forma de combate e prevenção à pixação. Além daqueles que têm seus trabalhos expostos em importantes galerias de arte da cidade. Contu-do, conforme já afirmamos, a pixação e o grafite estabele-cem relações que não podem ser resumidas nas fórmulas:

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Há momentos entre essas duas manifestações estéticas de maior associação e outros de maior diferenciação.

Os points ajudam a entender muito do modo pelo qual

os pixadores se apropriam da cidade. Há vários pontos de encontro de pixadores em São Paulo, mas o mais importan-te deles é o central. Por conta da repressão policial a esses encontros, ele já teve pelo menos três endereços: o Largo da Memória, no Vale do Anhangabaú, as imediações do Centro Cultural São Paulo e, desde 2005, o entorno da Galeria do Rock e da Galeria Olido, em frente ao Largo do Paissandu – todas localidades centrais da cidade de São Paulo.

Os pixadores são, em sua maioria, jovens moradores de bairros periféricos de São Paulo e o seu point central cons-titui um espaço de encontro de indivíduos de diferentes regiões. Sua localização na região central da cidade deve-se justamente ao fato de esdeve-ses jovens virem da periferia. O centro é um lugar estratégico por ser um ponto de conver-gência e também um espaço de passagem para todos. Da mesma forma, ele é estratégico para o próprio ato de pixar o espaço urbano: “dá mais ibope pixar no centro, pois é por onde passam pixadores de todos os lugares”, afirmaram-me muitos deles. Em outras palavras, aquele que deixar sua marca nos muros e edifícios das áreas centrais de São Pau-lo obterá maior visibilidade e, consequentemente, maior notoriedade junto aos seus pares. Na pixação, quem pixa no maior número de lugares, em pontos de maior destaque

e em lugares mais arriscados consegue mais status dentro do

circuito dos pixadores.

No point central, os pixadores tecem uma vasta e

com-plexa rede de relações de reciprocidade que se expande por toda a região metropolitana de São Paulo. Relações que geralmente se iniciam por uma prática bastante peculiar: a troca de folhinhas. Essa troca é o modo pelo qual jovens que

não se conhecem no point podem estabelecer um primeiro

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de outro, pergunta “o que ele lança”, “de qual quebrada

ele é”6 e, enfim, pede para que ele assine uma folhinha. O

outro, se for da mesma geração deste7, além de assinar a

folhinha, solicita uma retribuição e também pede para o primeiro assinar uma folhinha para ele. As folhinhas são folhas de papel com dobras que demarcam linhas, nas quais eles pedem para que os colegas deixem a sua pixação escri-ta. Elas são colecionadas em pastas e aquele que juntar mais consegue também maior destaque e reconhecimento no circuito da pixação. As folhinhas dos pixadores mais famo-sos e mais antigos no ofício são as mais valorizadas. Além das folhas de papel, cadernos e agendas são outros suportes utilizados para as assinaturas. A coleção de assinaturas de pixadores constitui um acervo em que suas inscrições, tão efêmeras na cidade, conseguem uma permanência maior, constituindo para muitos deles uma memória da pixação e da própria juventude.

A partir da troca de folhinhas, outras relações de

reci-procidade são acionadas. O point é um lugar para se

divul-gar festas de pixação que ocorrem nos bairros da periferia e produtos ligados à pixação, como vídeos e álbuns de cro-mos de pixos. Contudo, a principal relação que ali se mobi-liza diz respeito às alianças entre os pixadores e ao próprio deslocamento dos pixadores pela cidade. Ao encontrar com pixadores de outras regiões da cidade, distantes do seu local de moradia, eles estabelecem uma dinâmica em que combi-nam entre si para um acompanhar o outro em pixações nos

6 O termo quebrada é usado para denominar os bairros pobres da periferia de

São Paulo. Ele também é muito utilizado pelos jovens do hip-hop. Voltaremos ao assunto mais adiante.

7 Na dinâmica da troca de folhinhas, os pixadores mais novos e menos

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seus respectivos bairros. O point é um espaço para se fazer

um rolê nas quebradas de outros pixadores. Isto permite o

acesso a um bairro desconhecido com maior segurança e ainda garante que a pixação seja inscrita no maior número possível de lugares da cidade, o que lhe confere

notorieda-de. As alianças com outros pixadores para se fazer um rolê

em outras quebradas não impede, entretanto, que muitos deles dirijam-se sozinhos a outras regiões da cidade, pois não há uma demarcação de territórios onde um grupo ou

outro não possa pixar8. Além disso, quanto mais longe de

seu bairro de origem um pixador conseguir chegar e

dei-xar sua marca, maior status ele obterá entre os pares. Para

os pixadores paulistanos, não é bem visto alguém que atue apenas nas proximidades de onde mora; é preciso ir para longe, pixar no centro da cidade e em outros bairros

distan-tes para ser considerado um “pixador de verdade”9.

Essa relação com o espaço urbano faz com que os pixa-dores estabeleçam um modo bem particular de desloca-mento pela cidade, pois, em um primeiro modesloca-mento, há os trajetos dos pixadores de seus bairros na periferia para os

seus encontros no point e, em um segundo momento, a

par-tir dos contatos feitos com jovens de outros bairros no point, há os deslocamentos para outros bairros da periferia para pixar ou para participar de alguma festa de pixação.

Além dos points e das festas que acontecem na

perife-ria, outros pontos importantes de encontro de pixadores em São Paulo, mas que não são exclusivamente deles, são

as pistas de skate; o piso da Galeria do Rock – que

concen-tra ainda as lojas de produtos ligados ao hip-hop e à estética

8 A única proibição neste sentido refere-se à não sobreposição de um pixo por

outro, prática denominada por eles como atropelo. Os atropelos configuram a maior ofensa na prática da pixação.

9 Esse modo de apropriar-se do espaço urbano demonstra que, em São Paulo, a

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afro – sem falar nos shows e nos eventos de hip-hop e de

grafite. Todos esses espaços e eventos configuram uma par-te do circuito dos pixadores na cidade que, como se pode perceber, perpassa práticas das quais muitos pixadores

tam-bém são adeptos, como o skate e o hip-hop. Dessa maneira,

pode-se afirmar que o circuito dos pixadores em São Paulo dialoga com outros circuitos ou faz parte de um circuito maior, pois ele se insere em dinâmicas que remetem a um estilo de se vestir e de se portar considerado jovem e deno-minado usualmente como “cultura de rua”.

A transgressão pelo risco

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seu artigo no código penal, o 155. Criou-se até uma grife exaltando o furto, a Love 155.

Há, portanto, um flerte com a criminalidade, que para alguns se encerra nestas ações consideradas leves. Para outros, no entanto, tais atos podem transformar-se em uma participação efetiva em crimes mais graves, como o narco-tráfico e os assaltos à mão armada. O modo como a polícia procede com eles nas ruas – quase sempre com violência – acaba por tornar a opção pela criminalidade ainda mais atra-ente. Os pixadores relatam muitos casos de agressões verbais e físicas. Quando são flagrados pixando, o mais comum é terem os seus corpos pintados com suas próprias tintas. Pou-cas vezes, no entanto, são presos. Neste contexto, desafiar ou enganar a polícia, ainda que não seja diretamente por causa da desigualdade de forças, é apontado por eles como um grande fator de motivação para a prática da pixação.

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Contudo, o que fazem, muitas vezes, é dizer que todos prati-cam crimes no país, mas apenas eles são condenados. Assim se posicionam quando são acusados de vândalos, como se sua prática fosse um mal menor se comparada aos outros problemas do país – como os políticos corruptos, exemplo sempre levantado. Quando são entrevistados por jornalistas, eles articulam esse discurso do protesto muito bem.

Outra expressão desta relação dos pixadores com a transgressão refere-se aos próprios nomes dos grupos dos pixos, que apontam para algumas regularidades analíticas. Em grande parte, o conteúdo expresso nas marcas pixadas remete a temáticas associadas à transgressão e à margina-lidade. Em alguns casos, incorporam-se adjetivos com os quais o senso comum, a imprensa e mesmo o poder público costumam designá-los: vândalos e delinquentes. Essa forma como são tratados em geral também acaba por reforçar a afirmação de uma postura marginal e transgressora. Pode-se perceber, nas denominações das pixações, três grandes con-juntos temáticos: a criminalidade, a sujeira e a loucura, esta última associada às drogas ou ao próprio ato de pixar10.

Além da transgressão e da marginalidade, outra possibi-lidade de interpretação é a apresentada por Angelina Peral-va (2000), que tenta explicar o ingresso de parte da juventu-de no narcotráfico e na prática do surfe ferroviário11 no Rio de Janeiro a partir da ideia de risco. Segundo esta autora,

10 1 – Criminalidade e marginalidade: Acusados; A Máfia; Arsenal; Arteiros; Artigo 12

[artigo do Código Penal que se refere ao tráfico de drogas]; Baderneiros; Bandit’s; Chacina; Delinquentes; Facção; Febem; Fugitivos; Gangsters; Homicidas; Ilegais; Imorais; Justiceiros; Kaloteiros; Kanalhas; Larápios; Marginais; Metralhas; Parasi-tas; Patifes; Pilantras; Rifle; Sacanas; Sapecas; SkopeParasi-tas; Suspeitos; Vadios; Vagais; Vândalos; Vítimas. 2 - Sujeira, excremento e poluição: Abutris; Arrotos; Dejetos; Ka-tarro; Lixomania; Os Cata Lixo; Os Dorme Sujo; Perebas; Sujos; Trapos; Vômitos. 3 – Loucura, drogas e seus efeitos: Adrenalina; Aloprados; Alucinados; Brisados; Cana-bis; Chapados; Dopados; Duentes; Hemp’s; Jamaica; Lunáticos; Pirados; Malucos; Marofas; Os Fuma Erva; Psicopatas; Psicose; Vício.

11 Uso “não convencional” dos trens, em que os jovens vão do lado de fora dos

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esses jovens, pobres em sua grande maioria, estariam mais submetidos aos riscos urbanos e, em especial, aos da vio-lência. Por esse motivo, as condutas de risco poderiam se apresentar como forma de resposta ao próprio risco. Segun-do Peralva, isto decorreria Segun-do fato de já haver uma familia-ridade com o risco. No caso dos pixadores, entretanto, a conduta de risco constitui também outra maneira de trans-gredir, pois o que eles querem é ir além do que as regras impõem e desafiar os perigos. O risco, aliás, parece ser a principal transgressão que estes jovens procuram. Não por acaso, quem pixa em lugares de maior dificuldade, seja pela altura, seja pela vigilância, adquire maior notoriedade.

Para se entender por que esses jovens infringem as nor-mas e buscam – como o risco de escalarem edifícios altos, de serem pegos pela polícia e mesmo assassinados por um segurança particular – é preciso retomar a principal carac-terística da pixação: a efemeridade. Esta parece ser o maior obstáculo que desejam superar com suas pixações pela cida-de. De forma paradoxal, eles tentam imortalizar seus nomes em um suporte extremamente efêmero que é a paisagem urbana. Enquanto fixam suas marcas com letras estilizadas à procura “da fama por outros meios”, como costumam afirmar, a cidade tenta arrancá-las da paisagem. As coleções de folhinhas aparecem, nesse sentido, como uma forma de fazer com que os seus pixos permaneçam e não sejam apa-gados da memória.

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é uma continuidade, algo que vença a efemeridade caracte-rística da pixação e que permita que a sua marca possa ser apreciada por futuras gerações de pixadores. Porém, para eles próprios, a pixação também é algo passageiro em suas vidas. Nenhum deles quer realmente continuar correndo riscos por muito mais tempo. Embora haja pixadores que já chegaram à faixa dos 30 anos, eles são exceções e, em sua maioria, ou não pixam mais, ou pixam com frequên-cia muito menor que os mais novos e, mesmo assim, em lugares que não ofereçam grandes ameaças. A maioria dos mais velhos apenas goza do fato de ter começado a pixar há muito tempo e de, por isso, possuir grande admiração e respeito por parte dos pixadores.

Periferias no centro

No centro de São Paulo, todas as noites, uma vez por sema-na, jovens de diferentes bairros da periferia de São Paulo encontram-se e articulam um espaço de trocas pautado pelas regras da pixação e por determinados elementos que podem ser atribuídos como sendo característicos de deter-minados segmentos, majoritariamente juvenis, de morado-res da periferia paulistana. “De qual quebrada você é?”; esta é uma das primeiras perguntas que um pixador faz a outro que ainda não conhece. Isto mostra, logo de início, que ser de alguma quebrada é um fator importante ali. Esse termo evoca uma identificação com o espaço da periferia, ou com a representação que estes jovens constroem deste espaço. A quebrada remete ao risco, à violência e à carência, mas também ao sentimento de pertencimento e às relações de solidariedade e companheirismo.

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conceito de periferia com o movimento descrito por Mar-shall Sahlins, no qual os atores sociais assumem a cultura como elemento de afirmação e resistência, ao mesmo tempo em que a problematização desse conceito é feita pelos antro-pólogos. O discurso dos rappers sobre a periferia, por exem-plo, deixa o foco no estigma um pouco de lado e direciona sua atenção mais ao pertencimento do que à carência.

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Esses dois movimentos estão sempre atuando simultanea-mente na concepção de quebrada, corrente entre os pixa-dores. Um valoriza o bairro, o local de moradia, portanto, restringe. O outro universaliza, explicitando uma condição comum: a de moradores dos bairros pobres da periferia, que, neste caso, aponta para uma reversão de estigma, pois se tor-na valor positivo. Há, entretanto, um receio entre os pixado-res dessa valorização da quebrada apenas como bairro onde se mora. Ocorre certo mal-estar quando há uma sobrevalori-zação da própria quebrada, principalmente quando se aponta para uma rivalidade com outras regiões ou bairros da cidade. Eles, de certa maneira, tentam evitar as disputas que tenham o território e a defesa deste como referência. Quando a valori-zação do bairro acontece, é de maneira velada e sutil.

Com a valorização da noção de periferia12 entre os pixa-dores – inspirada em grande parte pelo movimento

prota-gonizado pelo hip-hop – pode-se perceber nos encontros do

point a criação de uma lógica em que não ser da periferia

torna-se um elemento de pouco ou nenhum prestígio. Esse fato pode ser comprovado pelo modo como os jovens mais abastados que ingressam na pixação tentam disfarçar sua origem social, escondendo o seu local de moradia ou incor-porando certo estilo periférico de se vestir que alude, em

grande medida, ao estilo hip-hop. Com isso, periferia passa

não apenas a ser uma categoria espacial, como também uma categoria identitária que faz referência à pertença de classe, mas que não se restringe a esse fator. Categoria que também traz consigo modos particulares de se portar e de se relacionar com os pares da periferia.

Um dos elementos relacionais importantes neste contex-to e que é bastante forte entre os pixadores é a questão da humildade. Em diversos momentos os pixadores ressaltavam

12 Atualmente, esse movimento de valorização da periferia tem tido grande

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a sua importância. Sobre o estabelecimento de contato inicial

com outro pixador no point, diziam, é preciso “saber chegar

na humildade”. Uma pessoa considerada portadora de humil-dade é tida como de grande valor entre eles. Porém, não se é humilde quando se rebaixa ao outro, mas quando não se age com superioridade e arrogância. Curiosamente, por meio de uma prática em que se destacar e aparecer mais do que os outros é a regra, os pixadores têm na valorização dessa noção própria de humildade um modo de garantir as relações de troca e aliança que estabelecem em meio às rivalidades e con-flitos suscitados pela competição no mundo da pixação.

Entretanto, a humildade para os pixadores pode apa-recer com formas e significados diferentes. No instante em que entram em contato com outros personagens da cidade, quando parados pela polícia ou quando precisam viajar de ônibus sem pagar, eles põem em prática, com humildade e com certa subserviência, o modo mais adequado para se portar com esses atores sociais detentores de algum poder. Nesses casos, adota-se uma estratégia para não ser punido ou para se conseguir certos benefícios; trata-se, pois, de uma humildade dissimulada. Na relação com autoridades de menor poder, ou que não detêm o monopólio legítimo da coerção física, a humildade como subserviência pode ser usada como uma estratégia inicial para a obtenção de deter-minados fins, mas, assim como na relação entre eles, a con-duta humilde pode ceder lugar a uma atitude de confronto. Entretanto, eles não assumem que a postura adotada com esses personagens seja a de humildade, pois o que enten-dem por esse termo apenas se concretiza entre os iguais, entre eles que são pixadores. Tem-se, então, a outra forma de manifestação da humildade, do modo como ela realmen-te é enrealmen-tendida no conrealmen-texto da pixação.

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à periferia, como o hip-hop e as torcidas organizadas, mas

também no mundo prisional13. A humildade, na verdade,

faz parte de um tríptico em que estão presentes, além dela, as ideias de lealdade e de proceder, constituindo um pre-ceito bastante citado entre grupos cuja composição é

majo-ritariamente da periferia da cidade14. A noção de proceder

remete a dois significados: o de procedência (de origem, de proveniência) e o de procedimento (de modo de portar-se, enfim, de comportamento). Pode-se afirmar que estes dois sentidos da palavra proceder estão presentes no uso feito pelos pixadores e por estes outros grupos. Assim, para eles, o proceder refere-se a normas de procedimento permeadas por noções de procedência social. Neste sentido, agir com humildade é um procedimento valorizado pelos pixadores em seu circuito e demonstra que aquele que o faz seja con-siderado alguém que detém proceder, que conhece os códi-gos e sabe estabelecer relações.

As dinâmicas da relação com a periferia – como espaço mais geral de articulação que extravasa o bairro particular – e as regras de procedimento relacionais afetam o próprio modo da pixação paulistana, pois, para esses jovens, sair para pixar em outras regiões da cidade é muito mais inte-ressante do que apenas pixar em seu próprio bairro. Para eles, inclusive, é no momento em que deixam de atuar ape-nas na quebrada onde moram e saem para pixar em outras quebradas, ou mesmo no centro da cidade, que se tornam pixadores de verdade. Quando indagados sobre o ano em que iniciaram, a maioria deles apresenta duas datas, aquela em que começou no bairro de uma forma mais localizada e menos intensa e a data de quando “realmente” iniciou-se na pixação; ou seja, de quando saiu para pixar em outras quebradas, em outras partes da cidade, que não a região

13 A esse respeito ver a análise da noção de proceder feita por Marques (2007). 14 Esse é o caso da torcida organizada de futebol do Corinthians, a Gaviões da Fiel,

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próxima ao local de moradia. Desse modo, a pixação em São Paulo não funciona como demarcadora de um territó-rio específico, onde outros grupos não podem entrar.

Circular pela cidade e deixar sua marca é a regra prin-cipal da pixação. No entanto, é difícil afirmar que os pixa-dores sejam desterritorializados, conforme apontam muitos estudos sobre grupos juvenis inspirados por autores como Deleuze e Guattari (1997) ou Maffesoli (2001). Na verdade, a partir desta valorização da periferia como categoria de per-tencimento e de reconhecimento, pode-se dizer que os pixa-dores são hiperterritorializados, pois, mesmo em seus encon-tros no point do centro da cidade, são as relações concebidas sobre e na periferia que estão sendo postas em ação. E nessa dinâmica da pixação, a periferia aparece, simultaneamente, como una e múltipla. Dessa forma, pode-se afirmar que, se toda desterritorialização implica uma reterritorialização em outros termos, conforme apontam Deleuze e Guattari, os pixadores, ao percorrerem a cidade para os encontros nos

points, para ir às festas ou mesmo para deixar sua marca em

um muro, estão em um processo constante de reterritoriali-zação da periferia. A pixação é nômade; os pixadores, não.

Alexandre Barbosa Pereira

é doutorando em Antropologia Social pelo PPGAS/USP e pesquisador do NAU/USP.

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entram em cena. Dissertação de mestrado em Antropologia. São Pau-lo: FFLCH-USP.

Outros materiais:

HIKIJI, R. S. 2008. Cinema de quebrada. São Paulo: Lisa/Fapesp NTSC (45

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AS MARCAS DA CIDADE: A DINÂMICA DA PIXAÇÃO EM SÃO PAULO

ALEXANDRE BARBOSA PEREIRA

O artigo tem como foco os pixadores na cidade de São Pau-lo. Trata-se de jovens que percorrem as ruas da cidade dei-xando inscrita em muros, prédios e viadutos a sua marca. Tal prática, porém, não é vista com bons olhos pela população paulistana, que vê na pixação uma forma de degradação da paisagem urbana. Aborda também o modo particular com que estes jovens se apropriam do espaço urbano pelo

esta-belecimento de pontos de encontro, os seus points. Os

pixa-dores têm uma maneira de conceber o centro e a periferia de São Paulo que dialoga com a dinâmica da metrópole. Embora se identifiquem com a periferia de onde são oriun-dos, eles têm o centro como importante local de atuação. A pesquisa revelou como eles estabelecem relações de troca, aliança e conflito entre si na cidade.

Palavras-chave: Pixadores; Cidade; Juventude; Antropologia urbana.

THE CITY’S MARKS: THE TAGGERS DYNAMICS IN SÃO PAULO

The article has as focus the taggers in the city of São Paulo, who covers the streets of the city to leave written in walls, buildings and viaducts their marks. Such practice, however, is not seen with

good eyes by the paulistana population who sees in this writing a

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how they establish exchange relations, alliances and conflicts between them in the city.

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