• Nenhum resultado encontrado

Arranjos urbanos e subjetivos contemporâneos na invenção de territórios turísticos

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "Arranjos urbanos e subjetivos contemporâneos na invenção de territórios turísticos"

Copied!
293
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Arranjos urbanos e subjetivos contemporâneos na invenção de

territórios turísticos

Alex Reinecke de Alverga

NATAL-RN

(2)

Alex Reinecke de Alverga

Arranjos urbanos e subjetivos contemporâneos na invenção de

territórios turísticos

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação da Profª. Dra. Magda Diniz Dimenstein, como requisito parcial para obtenção do título de doutor em Psicologia.

NATAL-RN

(3)

Catalogação da Publicação na Fonte.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Alverga, Alex Reinecke de.

Arranjos urbanos e subjetivos contemporâneos na invenção de territórios turísticos / Alex Reinecke de Alverga. – 2011.

293 f. : il.

Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Natal, 2011.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Magda Diniz Dimenstein.

1. Turismo. 2. Urbanização – Natal (RN). 3. Subjetividade. 4. Capitalismo. 4. Psicologia social. I. Dimenstein, Magda Diniz. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/BSE-CCHLA CDU 316.6

(4)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

A tese intitulada “Arranjos urbanos e subjetivos contemporâneos na invenção de territórios turísticos contemporâneos”, elaborada por Alex Reinecke de Alverga, foi considerada aprovada por todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Psicologia.

Natal, 01 de abril de 2011 BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________

Profª. Dra. Maria Helena Zamora

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

_______________________________________________________ Prof. Dr. Luis Antonio dos Santos Baptista

Universidade Federal Fluminense

_______________________________________________________ Profª. Dra. Lisabete Coradini

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

_______________________________________________________ Prof. Dr. Edmilson Lopes Júnior

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

_______________________________________________________ Profª. Dra. Magda Diniz Dimenstein

(5)

O atlas do Grande Khan também contém os mapas de terras prometidas visitadas na imaginação mas ainda não descobertas ou fundadas: a Nova Atlântida, Utopia, a Cidade do Sol, Oceana, Tamoé, Harmonia, New-Lanark, Icária.

Kublai perguntou para Marco:

- Você, que explora em profundidade e é capaz de interpretar os símbolos, saberia me dizer em direção a qual desses futuros nos levam os ventos propícios?

- Por esses portos eu não saberia traçar a rota nos mapas nem fixar a data da atracação. Às vezes, basta-me uma partícula que se abre no meio de uma paisagem incongruente, um aflorar de luzes na neblina, o diálogo de dois passantes que se encontram no vaivém, para pensar que partindo dali construirei pedaço por pedaço a cidade perfeita, feita de fragmentos misturados com o resto, de instantes separados por intervalos, de sinais que alguém envia e não sabe quem capta. Se digo que a cidade para a qual tende minha viagem é descontínua no espaço e no tempo, ora mais rala, ora mais densa, você não deve crer que pode parar de procurá-la. Pode ser que enquanto falamos ela esteja aflorando dispersa dentro dos confins do seu império; é possível encontrá-la, mas da maneira que eu disse.

O Grande Khan já estava folheando em seu atlas os mapas das ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilônia, Yahoo, Butua, Brave New World.

- É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito.

E Polo:

- O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

(6)

AGRADECIMENTOS

Os anos de realização de um doutorado acionam uma extensa lista de colaborações

de distintas ordens, direta e indiretamente. Desejo exprimir o meu intenso reconhecimento e

gratidão:

À Magda Dimenstein pela orientação deste trabalho, confiança depositada, e pela

convivência que completa uma década, nascida de desassossegos em relação ao destino

social da loucura e reinventada para refletir acerca da vida nas cidades.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelas

bolsas de formação de pesquisador que permitiram a realização deste trabalho no Brasil e

em Portugal.

Aos amigos que foram colegas do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da

UFRN, Mariana Liberato, João Paulo Macedo, Frederico Leão, Ana Karenina, Jáder Leite,

cuja partilha do dia-a-dia era (e continua) a mais rica e efusiva alegria.

Aos professores Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Renato Peixoto do

Departamento de História da UFRN; Peter Pál Pelbart do Departamento de Filosofia da

PUC-SP, pelas infindáveis contribuições no percurso deste trabalho.

Ao professor João Leal do Departamento de Antropologia da Universidade Nova de

Lisboa, pela acolhida em Portugal, condução das orientações e pelos fartos e competentes

(7)

Aos professores Maria Helena Zamora, Luis Antonio Baptista, Lisabete Coradini e

Edmilson Lopes que gentilmente aceitaram compor a minha banca examinadora.

Aos amigos da “Vila do Chaves”, Vladimir Félix, Danilo Camuri, Sariny Leão, pela

convivência em tantos momentos importantes desta trajetória.

Ao amigo João André Bezerra da Silva, pela acolhida em Lisboa e por momentos de

boas recordações como aquelas músicas que cantávamos pelas ruas para espantar o frio e a

solidão em terras estrangeiras.

À Valeria Galizzi, Tiago Veloso, Mariana Portela, Mané do Café e o Tejo Bar, que

fizeram da temporada lusitana uma rica experiência de alteridade e de paixão por uma

cidade.

Ao casal Pablo Seixas e Pollyanna Gê, amigos desta e outras jornadas, enriquecida

agora com o notável Ian Gê Seixas.

Ao meu irmão Patrick Reinecke de Alverga e Lívia Cristina Campos de Alverga que

trouxeram meu sobrinho Paulo Sérgio e com ele todo “acréscimo” de leveza e sonhos.

Aos meus pais Margit Ellen Reinecke de Alverga e Sérgio Polari de Alverga (in

memoriam) cujo sentimento de gratidão sempre ultrapassa as palavras, por tudo.

À Laíssa da Costa Ferreira companheira de todos os momentos, decisiva na

finalização desta tese, meu presente da vida e horizonte infinito de amor, alegria e

(8)

SUMÁRIO

Lista de imagens...x

Lista de inserções...xii

Lista de inserções fotográficas...xiii

Resumo...xiv

Abstract...xv

Apresentação Excurso ao cotidiano da “Cidade do Sol e do Prazer”: Natal...16

Introdução Questões de partida e construção do campo problemático...31

Capítulo 1: Questões de método e instrumentos Campo de pesquisa: Ponta Negra...50

1.1- Primeiras incursões de campo à Ponta Negra: observação-participante, inspiração cartográfica e a produção de estranhamentos...52

1.2- Segunda fase: desafios do fazer etnográfico na investigação da oferta turística de Natal...71

Capítulo 2: O espectro do consumismo ou por uma arqueologia da turistificação...93

2.1- Breve introdução à turistificação de Natal ou invenção da “Cidade do Sol”...99

(9)

2.3- Capitalismo e Turismo: duas histórias, estratégias de consumo complementares..135

2.4- Narrativas sobre Natal a “Cidade do Prazer” ou “Seu sonho feito realidade”...149

Capítulo 3:

Os desejos e a(s) crise(s) ou por uma genealogia da turistificação...177

3.1- As crises como modus operandi do capitalismo e a recente epopéia de “a minha casa como garantia”...197

3.2- Contemporaneidades: crises, disputas, nova ordem global e

biopoder/biopolítica...230

3.3- Agenciamentos do biopoder na turistificação da capital potiguar...261

Considerações Finais

Ponta Negra: a paisagem do (des)encontro...278

(10)

LISTA DE IMAGENS

Imagem Página

1 Mapa da cidade do Natal dividida em bairros e regiões administrativas 53

2 Foto aérea da cidade do Natal 54 3 Receita cambial turística no mundo, na América Latina e no Brasil 109

4 Chega de turistas internacionais no mundo, na América Latina e no Brasil 109

5 Preserve-me e continue empregado 118

6 Pelo cartão-postal da cidade 119

7 Pelo direito à paisagem 119

8 Esgoto em Ponta Negra 123

9 Praia de Ponta Negra imprópria 124

10 Placa de boas-vindas à Noiva do Sol 152

11 Prospecto turístico 153

12 Prospecto turístico 2 154

13 Prospecto turístico 3 155

14 Prospecto turístico 4 155

15 Prospecto turístico 5 156

(11)

Imagem Página

17 Prospecto turístico 7 157

18 Prospecto turístico 8 157

19 Mobilização em Ponta Negra 224

20 Mobilização na Praça do Cruzeiro 226

21 Mobilização na Vila de Ponta Negra 227

22 Antigas barracas na praia de Ponta Negra 268

23 Praia de Ponta Negra depois da remoção das barracas 269

24 Projeto idealizado para reurbanização da orla de Ponta Negra 269

25 Detalhes do projeto idealizado para reurbanização da orla de Ponta Negra 270

(12)

LISTA DE INSERÇÕES

Número Página

1- Memórias e reurbanização da minha rua 39

2- Extorsões contra o turismo 45

3- Estrangeiros, gringos e os “de fora” 125

4- Pedro e um pouco de sua/nossa história 164

5- Fausto e Maquiavel na “Cidade do Prazer” 171

6- Contexturas de poder, dinheiro e concreto 188

7- Recortes de indignação, medo e violências 224

(13)

LISTA DE INSERÇÕES FOTOGRÁFICAS

Número Página

1- O espectro 93

2- Cercas invisíveis nas sombras da “Cidade do Sol” 177

3- Tramas 188

4- Especulação imobiliária às margens do Morro do Careca 197

5- Moldura do Morro do Careca 197

6- Privatização da paisagem 198

(14)

RESUMO

Buscamos consistência empírica e rigor analítico para o conceito de turistificação, através dos arranjos urbanos e subjetivos contemporâneos postos por uma paisagem social de (des)encontros entre os moradores e os estrangeiros que convivem na capital do Rio Grande do Norte, Natal. Nas últimas três décadas a cidade transformou-se em um dos principais destinos do país para o turismo nacional e internacional, fazendo do turismo um importante analisador da coreografia em busca de sincronia entre cidades e subjetividades, orquestrada pelas crises cíclicas e sistêmicas da incessante batalha por sobrevivência e expansão capitalística. Procedemos com uma pesquisa etnográfica e de inspiração cartográfica no bairro de Ponta Negra, cuja reurbanização da orla no ano de 2000 conduzida pelo poder público, influenciou a implantação de diversos estabelecimentos, serviços e práticas vinculadas à construção do maior pólo da indústria do turismo e do entretenimento em Natal. Propusemos uma arque-genealogia da turistificação inspirada na analítica de Michel Foucault, acrescida por autores em confluência ou de distintas orientações teórico-metodológicas, entre os quais ganham destaque Karl Marx, Gilles Deleuze e Félix Guattari, Michael Hardt e Antonio Negri, nas reflexões que se voltaram inicialmente para o avanço da esfera do consumismo enquanto instância capaz de articular a trajetória de desenvolvimento do sistema capitalista e a prática do turismo, promovendo alguns efeitos (in)desejáveis na dinâmica conflitiva das condições de existência do bairro de Ponta Negra, território que cada vez mais se (re)produz para atender aos desígnios do consumo por parcela abastada da população e estrangeira, encontrando na exclusão social e na inclusão diferenciada uma tendência crescente. Avançamos com uma análise dos “desejos de liberação”, aspectos fenomênicos do processo de produção de subjetividades, fornecendo um detalhamento da recente crise mundial inicialmente financeira, mas que se revelou social e política, através de um enredo derivado do funcionamento da especulação imobiliária, ao qual Natal se encontra implicado principalmente através da turistificação, evidenciando os contornos de uma crise generalizada no estabelecimento de uma nova ordenação balizada pela emergência de um contexto “biopolítico”, visto ser uma das principais vias que o capital recorre para sobreviver e se expandir, ao mesmo tempo orientador do processo de “embelezamento estratégico” ocorrido em Ponta Negra, por nós problematizados. Finalizamos avaliando a pertinência de se propor em análises posteriores a constituição de uma “nova ontologia social” face às interferências da turistificação em curso e a composição de uma “nova ordem” (g)local, que longe de caracterizar uma superação do sistema capitalista, trate de por em evidência a atual etapa de radicalização de uma utopia capitalística.

Palavras chave: Turistificação, cidades, produção de subjetividades, capitalismo,

(15)

ABSTRACT

We seek consistency empirical and analytical rigor to the concept of touristification in the course of the contemporary arrangements of subjectivity and urbanity stations through a landscape of social (dis)encounters between residents and foreigners living in the capital of Rio Grande do Norte, Natal. In the last three decades the city has become a major destination country for national and international tourism, making tourism an important monitor of choreography in search of synchrony between cities and subjectivities, orchestrated by the cyclical crises and the relentless battle for systemic capitalistic expansion and survival. We proceed with an ethnographic and cartographic inspiration in Ponta Negra, where the waterfront redevelopment in 2000 conducted by the government, influenced the implementation of various establishments, services and practices related to the construction of Natal’s major industry hub of tourism and entertainment. We proposed an arch-genealogy of touristification inspared on Michel Foucault analytical perspective, increased by authors in confluence or in different theoretical and methodological approaches, among which stand out Karl Marx, Gilles Deleuze and Felix Guattari, Michael Hardt and Antonio Negri. The reflections that initially turned to the advancement of the sphere of consumerism as the issue capable of articulating the developmental trajectory of the capitalist system and the practice of tourism, promoting some effects (un)desirable in the conflictual dynamics of the condition of the district of Ponta Negra, territory each again (re) produces the designs to meet the consumption by affluent portion of the population and foreign, encountering social exclusion and inclusion differentiated a growing trend. We go forward with an analysis of the "liberation of desire" phenomenal features of the process of producing subjective, providing a breakdown of the recent world’s financial crisis initially, but proved social and political crisis also, through a plot derived from the operation of real estate speculation, which Natal is mainly caught through touristification, showing the outlines of a generalized crisis in establishing a new order buoyed by the emergence of a context "biopolitical" since it is a major route that uses the capital to survive and expand, while guiding the process of "strategic beautification" held in Ponta Negra, problematized by us. We conclude by assessing the appropriateness of proposing on further analysis to explore the establishment of a "new social ontology” in terms of interference touristification ongoing and the constitution of a "new order" local/global, away from that characterize a system's capitalist overcoming, try to give emphasis in the current stage of the radicalization of a capitalistic utopia.

Key words: Touristification, cities, production of subjectivity, capitalism,

(16)

APRESENTAÇÃO

Excurso ao cotidiano da “Cidade do Sol e do Prazer”: Natal.

Acordar bem antes do que se gostaria com aquela irritante melodia do despertador,

tomar banho passando o sabonete, o shampoo e os compromissos do dia pela cabeça,

folhear um jornal de maneira quase desinteressada entre um gole de café e uma mordida na

torrada, escovar os dentes se encarando no espelho avaliando as marcas do tempo no

próprio rosto e, por falar em tempo, é bom não demorar muito para não atrasar os

compromissos...

Esta parece ser uma imagem bastante comum para muitas pessoas, contudo, estas

atividades aparentemente imersas em uma banalidade do dia-a-dia insinuam ser revestidas

por uma aura ritualística, afinal de contas, dentre outros aspectos da repetição diária, é

importante destacar que ler o jornal, por exemplo, é consultar a “bíblia dos tempos

modernos” (embora para alguns acompanhar jornais e blogs pela internet possa indicar o

ato análogo de um tempo “pós-moderno”), então por que não me atrasar apenas mais um

pouco e dedicar-me mais à exegética contemporânea enquanto acendo um cigarro e tomo

mais um café? Dez minutos para “mim” de leituras e tragadas, em uma jornada de mais de

oito horas de trabalho (inevitavelmente em parte expropriadas por alguém) de um dia

qualquer, no final das contas não vai fazer muita diferença... Ou vai?

Pretendo tratar da temática da presente tese de doutorado falando sobre estes dez

minutos, entre reportagens, nicotina, memórias, devaneios e cafeína, sem tomar muito

tempo, apenas trazendo alguns pontos do processo de construção da reflexão. Em outras

(17)

Natal que compuseram o nosso percurso doutoral. Deste modo, correndo o risco de ser

breve por demais, estarei atento ao que nos alertou Nietzsche sobre os grandes problemas.

Dizia o pensador alemão que estes são como banhos frios, é preciso entrar rápido e sair da

mesma forma.

Abro o jornal na página cinco, leio que Natal teve divulgação em uma das principais

feiras nacionais do setor do turismo. A Feira Internacional de Serviços de Turismo

realizada no Parque Anhembi de São Paulo reuniu empresários do Brasil e do Mercosul.

Lendo um pouco mais adiante é a vez do secretário de Turismo do Natal divulgar que o

município será a sede de um próximo evento de destaque nacional, a Bolsa de Negócios do

Turismo. Alguns parágrafos à frente e passo, da fala do secretário, para o

depoimento-propaganda de um jovem casal de uma grande cidade da região sudeste do país falando das

maravilhas que Natal ofereceu para sua lua-de-mel e dos diversos lugares paradisíacos que

a cidade possui (assim, lembro que na rodovia BR 101, na entrada de Natal pode-se ler

numa placa: “Bem-vindo a Natal, a Noiva do Sol”, lembro também que Noiva do Sol foi a

maneira como Câmara Cascudo batizou Natal. Interessante, o apelido que o historiador deu

tornou-se em uma espécie de reverência oficial a quem chega na cidade, isso talvez indique

que não é à toa que Natal é matéria-prima e cenário de sonhos nupciais, uma cidade para o

prazer).

Em outra coluna do canto direito da página fico informado por uma vistosa nota de

propaganda que um grupo italiano escolheu Natal para investir depois de uma detalhada

análise do mercado internacional. Fotos de prédios arrojados na Estônia, Itália, Estados

(18)

ambicionada construção com vista para o principal cartão-postal da cidade, o Morro do

Careca, na praia de Ponta Negra. Na mesma propaganda, o diretor da maior construtora do

estado, juntamente com o diretor da maior empresa imobiliária do Rio Grande do Norte se

unem em favor do grupo italiano em um harmônico dueto com estes versos: segurança,

solidez, profissionalismo, satisfação a níveis excelentes, confiança, bons negócios,

qualidade de vida.

Quase virando a folha do jornal reconheço que a foto onde aparece o Morro do

Careca juntamente com a logomarca do empreendimento é a mesma que estampa um

gigantesco anúncio no pátio de um dos principais shoppings centers da cidade. Bom, não

deve ser por acaso que este anúncio foi parar lá. Um esforço um pouco maior da memória

pode nos ajudar em uma pequena digressão para articularmos algumas tramas entre o setor

da construção civil, o cartão-postal da cidade, o apelido da cidade dado pelo folclorista e

historiador que virou reverência oficial, o casal em lua-de-mel, o turismo e o representante

do poder público, enfim, aspectos diariamente veiculados pela mídia de grande circulação

em Natal.

Então me permitam ser mais extenso no resgate da memória. Com grandes

incentivos do Governo do Estado, Natal irá, na década de 1970, sentir os espasmos de um

processo de urbanização industrial, especialmente pela via da indústria têxtil. A mudança

da feição urbana ocasionada pela industrialização requisitava a expansão da oferta de

unidades habitacionais. O Governo do Estado que não permitia que empresas de outros

(19)

setor da construção civil local se capitalizasse e se tornasse o grande empreendedor na

década seguinte.

A canalização de recursos públicos para setores oligárquicos locais, uma das

características da privatização do Estado, é realidade visível na construção da Via Costeira

iniciada no final da década de 1970. Os terrenos que margeavam a via pertencentes à

Marinha do Brasil foram doados ao Governo do Estado, que por sua vez, foram vendidos

para os empresários da rede hoteleira a um custo dez vezes mais barato que a vizinha Ponta

Negra custava na época. Assim, os construtores dos afastados e minúsculos conjuntos

habitacionais de ontem são os donos dos suntuosos hotéis e agências de viagem de hoje.

Curioso como hoje, exatamente na divisa da praia de Ponta Negra e da Via Costeira

é possível ver uma estátua do governador biônico que iniciou a construção desta via, que é

certamente uma das principais obras impulsionadoras do turismo na cidade. Flagrado com a

mão erguida, o ex-governador petrificado parece realizar incansavelmente um discurso de

apresentação da grandiosa obra para a multidão, mas nem todos que ali passam diariamente

praticando cooper, caminhadas ou apenas circulando pelo calçadão percebem, pois é

preciso ser um pouco delirante e a memória precisa ser evocada como mais uma arma de

resistência para acessarmos a história que as estátuas não contam, só assim escuta-se outro

pronunciamento: “Apresento aqui a Natal exclusiva para os turistas”.

Contudo, em meio a tantos parênteses e detalhes não percamos de vista a minha

tentativa de digressão, assim, o surto de industrialização tardia de Natal, ao qual me referia,

(20)

Esta operação de substituição se realizou de maneira tão concreta que o chão das principais

fábricas de ontem tornou-se o chão dos maiores shoppings centers da cidade de hoje.

Agora sim, vai ver que é por isso que o anúncio do grupo italiano foi parar no

interior do shopping. Mas e a Secretaria de Turismo, o que tem a ver com isso tudo? Para

se ter apenas uma noção, na brevidade do tempo que aqui pretendo, basta pensar na

importância que o turismo vai ocupar para a economia local e esta trajetória pode ser

resumida no nome que era dado para o órgão oficial que cuidava desta questão em Natal:

Secretaria Especial de Comércio, Indústria e Turismo (SECTUR).

Será que fui assaz convincente neste encadeamento? Creio que não... Então vou me

deter um pouco mais em alguns aspectos da urbanização turística vivenciada por Natal,

especificamente aqueles em que o grande historiador, o poder público, os empresários da

construção civil e imobiliária, o casal em lua-de-mel, as agências de turismo, ajudam a

construir: uma profusão de narrativas turísticas.

Deste modo, as narrativas turísticas produzem diversos movimentos. Contudo,

grosso modo, sugerem, incitam e antecipam o tipo de experiência que o turista deve ter, ao

passo que ordenam a cidade, diagramam o “cenário”, inventam territórios urbanos e

existenciais. Neste sentido, os guias, os folhetos turísticos e os anúncios de negócios,

cumprem a função de orientar o olhar do turista-consumidor-investidor, de oferecer uma

seleção dos locais que merecem atenção, dos adjetivos para descrevê-los, possibilitando, na

maioria das vezes, um prazer apenas de reconhecimento in loco. É em torno dessas

narrativas, que Natal é apresentada nas feiras turísticas e assim, territórios viram

(21)

Entretanto, o consumo de territórios requer a construção social de paisagens, seja

para o refrescamento visual, seja para o deleite, para o recreamento, lazer, o prazer de

vivenciar algo paradisíaco. Em outras palavras, Natal deve possibilitar a realização dos

mais fervorosos desejos, as narrativas sobre a cidade esforçam-se nesta direção. A

lua-de-mel pode ser entendida como uma apoteose do prazer, o depoimento do casal mais um

signo e vetor da turistificação experimentada por Natal, cidade que cada vez mais se afirma

enquanto uma “Cidade do Prazer”.

Mas por que pensar em Natal como uma “Cidade do Prazer” e o seu movimento de

turistificação? A nossa intenção é problematizar como esse turismo vem se constituindo

como uma ferramenta importante no ordenamento da cidade, como este turismo tem sido

divulgado e implementado, como ele vem sendo exercido em um caráter privatista e no

sentido de evitar o convívio com a diferença. Deste modo, fabricam-se subjetividades, bem

como a cidade e um turismo que estão cada vez mais voltados para reforçar determinados

padrões, modos capitalísticos orientados para necessidade de se atender um padrão turístico

internacional.

Assim, as belas avenidas da cidade como um espaço liso, de aceleração e circulação,

adornadas por canteiros floridos onde a pobreza e a miséria tenham dificuldade de se fixar,

são algumas das estratégias para não macular a promessa do cartão-postal. Os esforços no

sentido da produção de um belo cenário para o exercício do prazer sob um clima de

romance nupcial geram a tentativa de soterramento de diversos estratos da cidade, afastam

para as fronteiras mais distantes os embates, despotencializam os confrontos, escondem os

(22)

da cidade tenta sufocar as suas marcas e esta camada corresponde ao território de

experienciação da Cidade do Prazer.

Assim, o turismo vem assumindo feições que tornam Natal por excelência uma

cidade onde esse prazer pode ser vivido na sua magnitude, justamente pelo não encontro

com a alteridade, com a diferença, ou qualquer elemento de desordem que possa causar

mal-estar ao seu visitante. Dessa forma, o turismo está sendo compreendido como uma

estratégia biopolítica (referência aqui ao pensamento de Michel Foucault, acompanhado de

Deleuze e Guattari, Hardt e Negri), tornado-se um ordenador da cidade, da ocupação do

espaço público, em outras palavras, um vetor importante na produção de novos modos de

existência, de circulação na cidade, bem como algumas de suas lutas, resistências. Não se

trata, evidentemente, de imputar ao turismo a responsabilidade exclusiva pela fragmentação

e ocupação desigual, pois o turismo não é o único vetor de construção da exclusão, mas o

seu excessivo apelo econômico muitas vezes dificulta a tentativa de problematizá-lo.

Fico com a imagem da “Cidade do Prazer” na cabeça enquanto vou até a página dez

do jornal e leio uma reportagem sobre as alterações no Plano Diretor da Cidade. Sou

informado que em Ponta Negra, atualmente, diversas agremiações buscam combater a

penetração desenfreada do setor imobiliário no Bairro. Lutam para modificar as propostas

do Plano Diretor de Natal para com isto limitar a quantidade e a dimensão das construções

na área. Defendem que a reurbanização não perca de vista a expansão e melhoria da

qualidade de vida dos moradores, articulando preservação ambiental e o enfrentamento de

alguns problemas sociais como a segregação, a expulsão de antigos moradores, opressão

(23)

Os principais focos de luta apontam para a defesa do Morro do Careca, alvo

freqüente e cada vez mais cobiçado pelo setor imobiliário. Lendo esta reportagem recordo

de outra lida dias antes em que a promotora do meio ambiente de Natal se posiciona da

seguinte maneira:

A paisagem do Morro do Careca possui características tão singulares que tornou-se a identidade natural e cultural da cidade e de seus moradores. A paisagem é um atrativo até mesmo para o turismo mundial. (Gilka da Mata, Promotora do Meio Ambiente, Diário de Natal, 2006)1.

Estes pontos me levam a pensar que as feições turísticas e a cultura de um lugar não

são naturais, seus aspectos são incessantemente produzidos, estabelecidos, negociados,

reeditados. Luz e sombra, silêncio e som, ou em termos foucaultianos, visibilidades e

enunciados são elementos de um complexo processo social de estabelecimento de

discursos, dispositivos, táticas, estratégias que geram efeitos de atração, seleção,

esquadrinhamento do espaço, organização da cidade e de seus elementos.

Em outro jornal dias depois pautando a mesma questão é possível perceber o

posicionamento do prefeito ao comentar as emendas apresentadas até agora ao Plano,

afirma que o Executivo não irá aceitar mudanças que violem a preservação da paisagem

que é o maior patrimônio e o diferencial que Natal possui em relação às demais capitais.

Nas palavras do então prefeito:

Esse plano foi discutido por mais de dois anos por quantos quiseram participar de suas deliberações e não acredito que os vereadores que conhecem a realidade e as carências dos bairros de Natal irão querer modificar os percentuais da

1

(24)

outorga onerosa que já são os mais baixos dentre as capitais brasileiras ou que ficarão contra a proposta de manter a paisagem do Morro do Careca que é o nosso diferencial em relação as demais capitais nordestinas na disputa pela captação de turistas. (Tribuna do Norte, 2007)2.

Argumentou o prefeito, acrescentando que a meta é a aprovação do Plano Diretor na

sua integra. Deste modo, entendo que muito embora as narrativas turísticas se esforcem

com a clara intenção da produção de uma imagem singular de cidade, invista em uma

identidade para o lugar, contudo, paradoxalmente produzem cidades cada vez mais

parecidas umas com as outras. Este aspecto pode ser em parte atribuído ao fato das

interferências do capital estrangeiro em uma forma de reconfiguração urbana, voltada,

sobretudo, para atender o turismo nacional e internacional e distante das influências do e

para o habitante local.

Guardando algumas semelhanças em relação a sua vizinha Ponta Negra, aparece

Mãe Luíza, inicialmente uma favela e só recentemente um bairro. Localizada em área

privilegiada da cidade, com vista para o mar, há tempos Mãe Luíza teima em não se tornar

uma mera extensão da lógica da urbanização turística que assola a cidade, a partir de

diversos movimentos de enfrentamento ao desejo de imobiliárias locais e internacionais de

deslocar seus moradores em virtude dos projetos de modernização tencionados para este

lugar.

2

(25)

Recordo neste momento de uma fala lida dias antes em outro jornal, uma recordação

pertinente, pois a fala ilustra a condição de se encontrar na mira do setor imobiliário e é do

Padre Sabino Gentili, personagem central dessa histórica luta no bairro:

Quem não pensa a maioria das vezes não consegue entender o que de fato está acontecendo. Um bairro pobre e bem localizado como o nosso sempre atiçará a fome da especulação imobiliária. (Jornal Fala Mãe Luíza, 2006)3.

Mas voltando das recordações nada arbitrárias, ainda na reportagem da página dez é

possível ser informado do posicionamento do presidente do Sindicato da Indústria da

Construção Civil (Sinduscon-RN). Espantado, volto cinco páginas no jornal e percebo que

o presidente do Sindicato é a mesma pessoa que estava anunciando o empreendimento do

grupo italiano. Propõe o presidente do Sinduscon a revisão do Plano Diretor suprimindo a

condição de Área Especial de Interesse Social (AEIS) conquistado pelos moradores de Mãe

Luíza em negociação com o governo municipal há mais de dez anos. O empresário que

atestou a qualidade do empreendimento italiano tenta provar perante aos moradores e à

prefeitura que não é contrário aos interesses dos moradores do bairro. Contudo, algumas de

suas falas, revelam claramente os objetivos dessa revisão:

É um absurdo. Se o morador de Mãe Luíza quer aumentar sua propriedade, seu negócio, não pode. Ninguém pode melhorar de vida. É o único bairro de Natal onde as pessoas não podem decidir sobre seu futuro (...) Se uma coisa hoje vale R$ 10 mil, pode ser vendido por outro preço maior lá adiante. Além disso, a pessoa tem o direito de decidir. Se alguém se propõe comprar o imóvel, o

3

(26)

morador só vende se quiser. Isso que eles chamam de expulsão branca não existe. (Tribuna do Norte, 2007)4.

Afirma ainda o presidente do sindicato patronal que se os parâmetros fossem

modificados, o bairro iria poder contar com novos tipos de empresas como academias,

escolas, lojas, que trariam mais empregos e desenvolvimento: “Sabemos que há violência

em todos os bairros. Mas este atraso possibilita que esse problema exista ali. Todo dia os

jornais mostram isso” (Tribuna do Norte, 2007)5.

Uma última coisa ainda pode ser lida no jornal. A reportagem é finalizada trazendo

a fala de alguns moradores dos bairros de Ponta Negra e Mãe Luíza, professores

universitários, jornalistas locais que vêm denunciando que a população não resistiria ao

processo de valorização da área proposto pela modificação do plano diretor, criticando

ainda os discursos que articulam naturalmente pobreza e criminalidade com a falta de

desenvolvimento e modernização do bairro.

Fim dos meus dez minutos. Fecho o jornal, contudo, algumas questões permanecem

em aberto e passam a ressoar em meus pensamentos durante o caminho percorrido até o

meu compromisso.

A presente tese de doutorado buscou dar consistência a estas vivências e

pensamentos e é dedicada aos moradores e visitantes da cidade do Natal que em suas

trajetórias anônimas ou não, buscam resistências aos efeitos do poder, ao controle da vida e

4

Ibid., p.22

5

(27)

a um certo desenho da cidade que avilta o bem comum, despotencializa os conflitos,

extermina a alteridade.

Este panorama estimulou o interesse em investigar mais detalhadamente as

transformações ocorridas em Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte, acionadas a

partir do crescimento da atividade turística, bastante acentuado a partir das últimas duas

décadas.

Assim, o objetivo geral desta tese foi analisar como a atividade turística se

configura como uma das principais forças de transformação da cidade do Natal e dos

modos de vida que nela se processam. Além disso, nossos objetivos específicos foram:

• Investigar como a cidade do Natal passou a compor o mercado mundial dos

destinos turísticos;

• Discutir que efeitos a entrada de Natal no mercado mundial de destinos

turísticos têm produzido na organização da cidade e nos modos de vida

locais.

A estrutura geral de apresentação de nosso trabalho pode ser sintetizada na tentativa

de indicar consistência empírica e rigor analítico para o conceito de “turistificação”, por nós

entendido como o processo que combina uma “urbanização turística” e “urbanização para o

turismo”, um importante analisador para problematizar a invenção de uma paisagem social

formada por arranjos urbanos e subjetivos contemporâneos e sua dinâmica conflitiva que,

(28)

Um esclarecimento necessário ao leitor é que a usual divisão em capítulos que

também utilizamos em nosso trabalho acabou sofrendo algumas “interferências” do que

nomeamos por “inserções”. Assim, buscando respeitar a estrutura narrativa que o “objeto”

de investigação em nosso entendimento requisitava, além de uma coerência almejada com

os pressupostos teóricos que animam as reflexões. As intervenções comparecem à narração

como “acontecimentos”, por isso, irrompem e abrem passagem em uma estrutura de

encadeamento e argumentação mais geral. Tais “inserções” apresentam-se numeradas e

intituladas para se fazerem explícitas as suas coordenadas de enunciação que, desta

maneira, não se encontram no texto de maneira desordenada, mas sugerindo outro foco para

a questão em tela, buscando ampliar os olhares possíveis, abrindo outra ordem de demandas

e problemas, elementos que pareciam perder a sua força quando submetidas à estrutura

geral da tese.

Ao mesmo tempo, algumas das fotografias utilizadas possuíam, aos nossos olhos,

uma força argumentativa e de impelir à reflexão de tal maneira acentuada, que sugeria a

necessidade de alcançarem a condição de “inserção”, gerando assim a diferenciação que

adotamos entre as imagens e as “inserções fotográficas” que possuem uma numeração

específica, bem como um título que busca por em evidência o que tais fotografias nos

convocam e exigem de nossa analítica.

Considerando as exceções referidas, a introdução da presente tese trata das questões

de partida e da construção do campo problemático. O capítulo primeiro é destinado às

questões de métodos e instrumentos, ressaltando os aspectos que justificam a nossa escolha

(29)

teóricas e práticas de uma observação participante, da inspiração cartográfica e a produção

de estranhamentos requisitados em uma paisagem previamente familiar ao investigador; a

segunda fase é composta pelos desafios do fazer etnográfico na investigação da oferta

turística de Natal, descrevendo a delimitação das subáreas de observação no bairro, bem

como os principais informantes que contribuiram com a realização da investigação.

O segundo capítulo se reserva a problematizar o que nomeamos como uma

arqueologia da turistificação, através da focalização no avanço do consumismo enquanto

instância capaz de articular a confluência entre a trajetória de desenvolvimento do sistema

capitalista e da prática do turismo. Para tanto, partimos de uma introdução à turistificação

em Natal, para em seguida tratar especificamente de alguns efeitos (in)desejáveis acionados

pelo avanço da indústria do turismo, um dos principais vetores constitutivos do processo de

turistificação, que põe em movimento diversos atores e interesses conflitivos em relação às

condições de existência no bairro de Ponta Negra e na cidade do Natal em geral.

Na seqüência, analisamos de maneira mais pormenorizada o andamento que permite

evidenciar como o desenvolvimento da atividade turística aflui ao incremento do sistema

capitalista, ao passo que desenha os contornos contemporâneos da esfera do consumo. O

capítulo é concluído com a apreciação das narrativas sobre Natal, entendidas como

elementos primordiais do processo de invenção de um território que cada vez mais se

(re)produz para o consumo de parcela abastada da população local e, sobretudo,

estrangeira.

O terceiro capítulo propõe uma genealogia da turistificação, através da análise de

(30)

“desejos de liberação”, aspectos fenomênicos de uma transformação no processo de

produção de subjetividades, entendido como a principal via que o capital recorre na

atualidade para buscar repor e expandir os limites de alcance da exploração e obtenção do

lucro, necessários ao desenvolvimento do sistema. Em seguida, parte-se para um

detalhamento da crise inicialmente financeira, mas que se revelou social e política, através

de um grandioso enredo social derivado do funcionamento da especulação imobiliária, na

qual Natal se encontra embaraçada, sobretudo, através do processo de turistificação.

No momento posterior, a argumentação se dedica a pensar os aspectos da

contemporaneidade que designam os contornos de uma crise generalizada ou fundante do

projeto societal em curso, destacando as disputas no estabelecimento de uma nova ordem

global, panorama marcado pela emergência de um contexto biopolítico, visto ser o biopoder

uma das principais expressões dos embates capitalistas orientados para transpassar os

momentos de crise. O desfecho deste momento abre o último ponto de discussão que trata

dos agenciamentos do biopoder na turistificação da capital potiguar, etapa em que são

evidenciados e problematizados os efeitos do “embelezamento estratégico” ocorridos

recentemente em Ponta Negra.

As considerações finais se voltam para uma retomada dos principais marcadores

produzidos por nossa investigação, no intuito de avaliar a pertinência de se propor análises

posteriores que explorem a constituição de uma “nova ontologia social” face às

interferências da turistificação em curso e a proeminência da constituição de uma “nova

ordem” (g)local, que longe de caracterizar uma superação do sistema capitalista, trata de

(31)

INTRODUÇÃO

Questões de partida e construção do campo problemático

Viver em uma cidade que enfrenta um dos mais significativos processos de

turistificação no Brasil é certamente um dos fatores que mais contribuíram para a

proposição deste estudo. Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte, é o quarto maior

destino turístico pela via aérea do país. O turismo é o segundo produto mais importante da

balança comercial do estado, perdendo apenas para o petróleo, e o principal produto para a

economia da cidade do Natal. A capital potiguar é o ponto de partida de nossa investigação.

Tal investigação foi motivada também pela vivência de distintos aspectos do

cotidiano desta cidade que vem assumindo para si o título de cidade turística. Assim, vem

chamando nossa atenção, além da crescente e massiva presença de turistas na cidade,

especialmente de estrangeiros, a quantidade de novos estabelecimentos de hospedaria, o

preço dos serviços e de alimentação comparado ao de outras localidades, a falta de espaços

públicos para convivência e lazer, a voracidade da verticalização da cidade, o rápido

crescimento dos congestionamentos de trânsito devido ao excesso de veículos particulares,

o valor dos imóveis seja para compra, seja para aluguel, sendo que grande parte dos

anúncios imobiliários se encontra unicamente em língua inglesa, demonstrando a quem se

destinam.

Em outras palavras, nosso interesse pelo turismo é motivado pela sensação de viver

numa cidade que segue mudando rapidamente a sua paisagem social, restringindo o seu uso

para parcela crescente de seus moradores e se destinando cada vez mais para os turistas ou

(32)

Deste modo, constatamos que um dos elementos que podem indicar o movimento

em curso, diz respeito à maneira de se divulgar a própria cidade. Assim, temos que as

narrativas sobre Natal prometem vivências de prazeres incomuns, instigando os mais

fervorosos desejos. Uma rápida olhada nos guias e prospectos turísticos sobre Natal nos

coloca em contato com um universo imagético de narrativas sobre lazer, refrescamento,

alegria, paraíso, aventura, conforto, segurança, hospitalidade, dentre várias outras imagens

que podem ser observadas como promessas e profecias de cartões-postais.

Assim, alguns pontos podem ser elencados como condicionantes desta realidade: o

fato de possuir clima tropical com uma média anual de 300 dias de sol por ano lhe conferiu

o apelido dado pelo notório historiador potiguar Luís da Câmara Cascudo de “Noiva do

Sol”, além de outros títulos conferidos como o de “ar mais puro das Américas” atribuído

pela National Aeronautics and Space Administration (NASA-EUA) em 1994 e de “capital

mais segura do Brasil para se morar”, segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa

Econômica Aplicada (IPEA) do Governo Federal em 2005.

Dessa maneira, a construção de Natal enquanto a “Cidade do Sol”, com seu clima

ensolarado, praias, dunas e lagoas, enquadra-se perfeitamente na invenção de um lugar que

promete a seus visitantes a fuga para um reduto composto por uma sedutora (e em certo

sentido paradoxal) combinação de aventura e segurança.

Na direção de construir um referencial teórico-metodológico que permitisse abordar

tais questões, ao entrarmos em contato com a literatura específica do campo do turismo, a

leitura de um livro despertou interesse pelo assunto até então incomum pela citação que se

(33)

do turista – lazer e viagens nas sociedades contemporâneas. Encontrava-me em contato

com escritos basicamente voltados para a gestão e planejamento de serviços, modalidades

de turismo, impactos do turismo, dentre outros aspectos demasiado técnicos e gerenciais

para o meu interesse de pesquisa. Além disso, para um psicólogo de formação, acostumado

a trilhar os caminhos da investigação em Saúde Mental e da Reforma Psiquiátrica, não foi

tão evidente encontrar uma aproximação com o campo do turismo, embora ambicionada.

Não obstante, retomando o livro em questão, ao buscar argumentar por que o

turismo é importante hoje, Urry inicia com uma citação de Michel Foucault em o

“Nascimento da Clínica” que versa sobre como o desenvolvimento da clínica incide na

transformação do olhar do médico respaldado pela ciência. A curiosa citação de Foucault

tratando do universo da medicina em um livro sobre turismo é algo até certo ponto

improvável, de tal maneira que o próprio Urry tenta justificar a insólita epígrafe falando da

analogia entre a construção do olhar do clínico e o olhar do turista. Entretanto, para meu

descontentamento, toda a discussão do livro se desenvolve sem qualquer referência ao

marco inaugural ou a um sentido próximo, com exceção da última página. John Urry

encerra seu trabalho com as seguintes palavras:

Retornando a Foucault, as sociedades contemporâneas se desenvolvem menos na base da vigilância e da normatização dos indivíduos e mais na base da democratização do olhar do turista e da espetacularização dos lugares. (2001, p.208).

Que motivos podem ter levado o sociólogo a iniciar e finalizar o seu trabalho com

uma citação incomum para aquele campo de estudos, que é retomada nas suas últimas

(34)

arbitrário, pois poderia ser suficiente interpretar que este não era o objetivo do autor.

Contudo, nos intrigava a maneira como uma possivelmente fecunda perspectiva não

desenvolvida se insinuava naquela obra diante de nossa leitura. Este hiato livresco, ou

espécie de porvir, nos convidou para uma incursão analítica a partir do entendimento de

que a experiência turística depende primordialmente da atitude de lançar um olhar sobre

diferentes lugares, culturas, paisagens e este olhar é socialmente organizado a exemplo do

olhar do clínico.

Contudo, acreditamos não se tratar apenas do olhar, como se referia John Urry em

seu uso de Foucault, pois retomando de maneira mais detalhada esta discussão presente no

“Nascimento da Clínica” em concordância com o que expõe Machado (2006), não se pode

separar o olhar do dizer. A clínica se desenvolve pelo olhar, mas este olhar é ele mesmo,

linguagem. Assim, o “Nascimento da Clínica” irá investigar dois elementos intrínsecos, o

olhar e a linguagem e, embora exista um privilégio daquele sobre este, trata-se de um olhar

paradoxal:

Um olhar que escuta e um olhar que fala: a experiência clínica representa um momento de equilíbrio entre a palavra e o espetáculo. Equilíbrio precário, pois se baseia em um postulado: todo visível é enunciável e é inteiramente visível porque é inteiramente enunciável. (Foucault, 1972, p. 116 apud Machado, 2006, p. 95).

Deste modo, imbuídos de alguns questionamentos iniciais sobre a vivência do

dia-a-dia de uma cidade turistificada, da própria literatura do campo do turismo, dentre outros

(35)

considerávamos intrínseca às transformações acionadas pelo turismo: a questão da

alteridade.

Assim, a alteridade acionada através da paisagem social criada pelo encontro entre o

morador local e estrangeiro permitiria aprofundar o nosso conjunto de preocupações que

pôde ser assim traduzido: como a alteridade é produzida contemporaneamente em uma

“paisagem” urbana turistificada? Acreditamos que esta questão geral atravessou todo o

percurso da presente tese e se configurou como uma espécie de inquietação motriz, pois

resultou da aglutinação de uma série de outras questões específicas que serão apresentadas

com o caminhar do texto.

Deste modo, falar da trajetória de sua formulação e seus desdobramentos constitui

uma maneira de introduzir o doutorado que aqui se apresenta, despido de uma preocupação

com um ponto de origem, mas trilhado por lembranças, reflexões e afetos que compuseram

o campo problemático de nosso trabalho.

Uma das inspirações vitais para o nosso percurso passou a existir após atentas e

sucessivas leituras do livro “As cidades invisíveis” de Ítalo Calvino (2003). Encontrava-me

neste tempo ainda às voltas com os resultados de investigações anteriores, em que o tema

(36)

“alteridade radical” (para utilizar uma expressão cara ao Lévinas6), em um processo social

fortemente marcado pela captura e exclusão7.

Entretanto, como referido, creditamos ao escritor italiano a possibilidade de

transpor, em parte, este universo de preocupações (a produção da alteridade) para o âmbito

da reflexão sobre as cidades contemporâneas.

Afirma o próprio Ítalo Calvino sobre a obra em questão que provavelmente este é o

livro onde deva ter dito mais coisas, talvez pelo fato de ter conseguido reunir em um único

símbolo - a cidade, suas reflexões, conjecturas e experiências. Neste sentido, pondera ainda

que a cidade pode ser tomada como um ponto de tensão entre a racionalidade geométrica e

o enredo das existências humanas (Calvino, 2003a).

Destarte, “As cidades invisíveis” versam sobre os relatos de viagens e diálogos

travados entre o veneziano Marco Pólo com o monarca mongol Kublai Khan. Todas as

noites Pólo narrava a geografia fantástica de uma das terras do conquistador mongol,

situação necessária frente à impossibilidade do imperador conferir por conta própria, dada a

extraordinária dimensão que seu reino havia alcançado. Em um destes diálogos, que será

6 Lévinas, E. (1997). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade (P. S. Pivatto,trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.

(Originalmente publicado em 1991. Título original: Entre nous: Essais sur lepenser à l'autre).

7

(37)

aqui reproduzido, Marco Pólo revela aspectos que nos interessam de perto de seu ofício de

mercador-viajante e a necessidade de percorrer as cidades. Assim conta Calvino:

(...) Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos.

Marco entra numa cidade; vê alguém numa praça que vive uma vida ou um instante que poderiam ser seus; ele poderia estar no lugar daquele homem se tivesse parado no tempo tanto tempo atrás, ou então se tanto tempo atrás numa encruzilhada tivesse tomado uma estrada em vez de outra e depois de uma longa viagem se encontrasse no lugar daquele homem e naquela praça. Agora, desse passado real ou hipotético, ele está excluído; não pode parar; deve prosseguir até uma outra cidade em que outro passado aguarda por ele, ou algo que talvez fosse um possível futuro e que agora é o presente de outra pessoa. Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos.

– Você viaja para reviver o seu passado? – era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte maneira: – Você viaja para reencontrar o seu futuro?

E a resposta de Marco:

– Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá. (Calvino, 2003, p.28- 29).

Sem o intuito de extenuar a poética calviniana com as diversas análises possíveis,

limito-me a mencionar como esta obra conflagrou minha imaginação investigativa.

(38)

uma praça, por exemplo, pode inspirar uma emblemática imagem da alteridade. O rosto de

um desconhecido pode favorecer um devir da alteridade, uma observação atenta ou a

própria disposição para o encontro na paisagem urbana pode convocar também este devir.

Mas em que condições estes encontros se realizam hoje?

Zygmunt Bauman (2001) lança um posicionamento a este respeito ao resgatar uma

conhecida definição de Richard Sennett para pensar as cidades contemporâneas, definindo

que uma cidade é: “um assentamento humano em que estranhos têm a chance de se

encontrar” (p.111). Contudo, Bauman irá desenvolver o seguinte raciocínio: em contraste

com o encontro com parentes, amigos ou conhecidos, o encontro entre estranhos referido

por Sennett mais parece um desencontro, visto que é na condição de estranhos que se

realiza, algo sem passado e muito provavelmente sem futuro, ou seja, uma “oportunidade

única a ser consumida enquanto dure o ato” (p.111).

Merece destaque ainda o aludido trecho de Calvino. Este inspirou reminiscências

que serão aqui referidas, por expor nexos entre as transformações de minhas experiências

urbanas em Natal e, em certa escala, a turistificação da cidade. Muito embora tais

transformações não tenham relações explícitas com o crescimento da atividade turística,

pela maneira como argumentarei adiante, perceberemos que se encontram enredadas como

extremos complementares de um mesmo processo. Vale salientar que o percurso de

reflexão aqui descrito não se esquivou de um tom, em alguma medida, assumidamente

(39)

Inserção 1: Memórias e reurbanização da minha rua

Recordo da minha infância em meados da década de 1980 em um bairro à época

considerado de classe média, Lagoa Nova, localizado na zona sul de Natal. A praça do

conjunto Lagoa Nova I distante um quarteirão de minha casa, era o principal ponto de

encontro e aglomeração da vizinhança em busca de lazer e alento espiritual, tendo em vista

que a paróquia do bairro também se localizava em um dos extremos da praça. Basicamente

formada por caminhos irregulares de calçamento entre um vasto areal, supostamente para a

prática de caminhadas e corridas, algumas poucas árvores e igualmente escassos bancos, a

“Pracinha” como era chamada tinha em sua quadra “poliesportiva” o espaço mais

concorrido.

O estado de conservação da quadra, como não era raro, apenas permitia a prática do

futebol de salão. O que inibia outras modalidades esportivas, bem como a participação

feminina neste espaço, exceto na condição de espectadoras eventuais. Com o passar de

alguns anos, a deterioração da quadra era tamanha, que nem a prática do futebol era mais

aconselhável, realidade esta que deslocou o jogo de futebol para a rua em frente a minha

casa.

Além dos jogos de futebol, a rua, que era de terra batida e por isso não permitia a

passagem de muitos carros (sobretudo nos períodos de chuva), favorecia a realização de

outros jogos como tica (pega-pega), bandeirinha, garrafão, esconde-esconde, polícia e

ladrão, dentre outras brincadeiras de grupo que mobilizavam a vizinhança até altas horas da

noite, praticamente todos os dias. Outro hábito da época era dos moradores mais antigos da

(40)

algumas horas da noite conversando coisas do dia-a-dia e observando/participando do

movimento da rua.

Em meados da década de 1990, a situação já era outra, em virtude do calçamento da

rua, o jogo de futebol voltou a ser inviabilizado, especialmente pelo crescente fluxo de

carros, a aspereza e irregularidade da superfície da rua que causavam muitos acidentes para

os mais afoitos. Além disso, o aumento das responsabilidades escolares para uns, o ingresso

no mundo do trabalho para outros, ou ainda a mudança de domicílio para alguns, ou mesmo

os distintos rumos que cada um seguiu, desarticulou aquele grupo em uma altura

infanto-juvenil.

Contudo, mobilizado pelas leituras de Calvino, realizei, próximo à conclusão deste

trabalho, uma visita à praça que mais vividamente habita as minhas lembranças já referidas,

“a Pracinha”. Embora não fosse a entrada em outra cidade como nas narrativas sobre Marco

Pólo, não deixou de causar o meu estranhamento. A praça havia passado por uma

remodelação, tornando-a mais arborizada, o passeio com piso mais regular, alguns

brinquedos infantis foram instalados, em linhas gerais, “a Pracinha” fora reurbanizada.

No entanto, o que mais me chamou atenção foram as grades que agora protegiam

tanto o estacionamento da paróquia, quanto a quadra de esportes. As grades fechadas no

momento em que realizava a minha incursão limitavam o acesso aos espaços “públicos”.

Por sua vez, a pouca movimentação na praça e a quase impossibilidade de avistar alguém

usufruindo daquele final de tarde e início de noite de um dia de semana qualquer, traziam

(41)

Mas por que, mesmo incomodado, possuía intimidade com aquele vazio?

Perguntava-me sobre os motivos pelos quais morando tão próximo daquele espaço tinha

praticamente banido do meu dia-a-dia, mesmo com a transformação da Pracinha, em tese

para melhor, esta parecia ser uma atitude comum para a vizinhança. Recordava-me, ainda,

das insistentes falações de meus pais para não mais freqüentar a Pracinha até muito tarde,

pois aquele lugar estava se tornando cada vez mais perigoso, a partir da presença numerosa

de pessoas “de fora” do bairro, além das notícias que circulavam quase que atualizadas

diariamente sobre algum delito, furto, assalto, consumo de drogas que ocorriam naqueles

arredores.

A sensação de vazio seria o fio condutor que me permitia reconhecer, apesar das

mudanças concretas, que o desuso da praça em função do risco que ela passava a oferecer

aos moradores do bairro era característico daquele lugar.

Resolvi, então, acompanhado daquelas sensações, caminhar por minha rua, algo que

também não fazia há muito tempo. Com um olhar inevitavelmente comparativo e tendo

também as minhas lembranças como referência, a rua composta por apenas três quarteirões

aparentava abrigar pessoas de maior poder aquisitivo que outrora, a julgar pela fachada das

casas e a quantidade (e suntuosidade/preço) de carros em cada garagem. O fluxo de carros

na rua era ainda maior, as crianças brincavam apenas nas áreas de lazer dos condomínios e

o hábito dos mais velhos porem as cadeiras na calçada já não pertencia ao lugar. As poucas

pessoas avistadas não eram rostos familiares, embora aparentemente morassem próximas.

Não pude deixar de reparar a presença de quatro novos prédios vistosos desde a

(42)

cinco casas que agora compõem a rua (sendo que três destas cinco que não tinham estes

aparatos possuíam grades). Com a sensação de vazio redobrada, eis que encontro um amigo

e antigo vizinho saindo de carro após uma visita à casa de seus pais.

Logo depois das primeiras trocas de palavras típicas em uma situação de reencontro,

o meu amigo me pergunta com um sorriso de ironia:

“- O que você está fazendo andando por aqui, está perdido?”

Não sabendo como responder-lhe precisamente o que fazia por ali naquela rua feita

para carros, sem passeio para pedestres, respondi de maneira um pouco vaga:

“- Estou andando por nossa antiga rua, isso mudou muito...”

Comentário que foi prontamente retrucado:

“- É, agora é possível andar pela rua sem cair naquelas valas enormes abertas pela

chuva de quando isso aqui era só areia... mas cuidado! Não ande muito não, pois do jeito

que isto aqui se encontra é capaz de lhe roubarem até esse saco (apontando para um saco de

pão, única coisa que tinha na mão)”.

Um pequeno silêncio da minha parte foi interrompido pelo prosseguimento do

comentário dele:

“- Sabe aqueles nossos vizinhos muro com muro da minha casa? Só esse ano já

foram assaltados duas vezes, levaram tanta coisa e o susto foi tão grande que cobriram toda

área da frente e colocaram um sistema de vigilância. As nossas casas ainda não têm, mas

(43)

Prosseguimos a conversa mais detidamente atualizando o que sabíamos do destino

de alguns de nossos amigos, contudo, aquele encontro me ajudou a revelar pistas daquela

ambígua sensação de estranhamento e familiaridade, pois foi este também o clima de nosso

encontro.

Concluí aquele meu “passeio” e a decorrente “leitura espontânea” de minha rua com

o entendimento de que não apenas nos espaços desconhecidos e a partir de rostos

desconhecidos a experiência da alteridade é favorecida. O diverso também pode ser

produzido a partir do que está próximo e é (supostamente) familiar e, neste sentido,

assinalava uma ressalva no trecho de Calvino anteriormente mencionado.

Contudo, restava ainda refletir sobre a sensação acionada e no decorrer do percurso,

potencializada. Ainda Bauman (2006) fornece um entendimento acerca destas modificações

que pude observar a partir de minha rua: “Hoje em dia, existem em todo mundo casas que

servem apenas para proteger os seus moradores, e não para integrar as pessoas na zona

onde residem” (Gumpert e Drucker, 1998, apud Bauman, 2006, p.21).

Entretanto, como conferir rigor acadêmico para estas passagens? Como articulá-las

de tal maneira que não se limitem a ser uma passagem quase apenas a título de curiosidade

e nem sejam momentos violentados pela maneira, muitas vezes forçosa, de estabelecer uma

relação com a teoria? Na dificuldade de ficar seguramente distante destes dois limites, mais

uma vez trago os diálogos de Pólo e Khan narrados por Calvino para interceder pelo meu

intento de estabelecer um fio condutor analítico para minhas lembranças e experiências

Referências

Documentos relacionados

Resumo: A partir de uma arque-genealogia inspirada em Michel Foucault, o artigo analisa o saber de que o Brasil é o paraíso das mulatas, entendendo que esta identidade foi construída

Cândida Fonseca Duração e local: 11/09/2017 a 03/11/2017 – Hospital São Francisco Xavier Objectivos e actividades desenvolvidas: Os meus objectivos centraram-se na

O mecanismo de competição atribuído aos antagonistas como responsável pelo controle da doença faz com que meios que promovam restrições de elementos essenciais ao desenvolvimento

The first point at issue is that, if the national legislators adopt a human right approach in enacting the law, and if the rules are properly applied by the public

Na primeira, pesquisa teórica, apresentamos de modo sistematizado a teoria e normas sobre os meios não adversarias de solução de conflitos enfocados pela pesquisa, as características

Dois termos têm sido utilizados para descrever a vegetação arbórea de áreas urbanas, arborização urbana e florestas urbanas, o primeiro, segundo MILANO (1992), é o

A utilização dessas linguagens e recursos se deve por entendê-los como elementos que podem despertar o movimento interno do estudante (força motriz) para a construção

Foram determinadas mudanças nas instituições federais de ensino superior a partir do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais