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A casa: estreitos laços entre literatura e arquitetura

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Academic year: 2017

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unesp

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP

MARIA TEREZA DE FRANÇA ROLAND

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ESTREITOS

LAÇOS

ENTRE

LITERATURA

E

ARQUITETURA

Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, área de concentração: Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras –

Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do

título de Doutor em Estudos Literários.

Linha de pesquisa: Relações intersemióticas

Orientador: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz

Gandini Baldan

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MARIA TEREZA DE FRANÇA ROLAND Roland, Maria Tereza de França

A casa: estreitos laços entre arquitetura e literatura / Maria Tereza de França Roland. – 2008

f: 159

Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista, Araraquara, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara

Orientador: Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan

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ESTREITOS

LAÇOS

ENTRE

LITERATURA

E

ARQUITETURA

Tese de Doutorado, apresentado Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como

requisitopara obtenção do título de Doutor em Estudos

Literários.

Linha de pesquisa: Relações intersemióticas

Orientador: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz

Gandini Baldan

Data de aprovação: 20/10/2008

MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:

Presidente e Orientador: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan. (Orientadora/ Presidente da banca)

Universidade Estadual Paulista – UNESP. Campus de Araraquara

Membro Titular: Prof. Dr. Mário Henrique Simão D’Agostino

Universidade de São Paulo (FAUUSP)

Membro Titular: Profª Drª Diana Junkes Martha Toneto Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP)

Membro Titular: Profª Drª Guacira Marcondes M. Leite

Universidade Estadual Paulista – UNESP. Campus de Araraquara

Membro Titular: Profª Drª Renata M. Facuri C. Marchezan Universidade Estadual Paulista – UNESP. Campus de Araraquara

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À Ude Baldan, orientadora e amiga, fonte inesgotável de entusiasmo e confiança. Ao Ignácio Assis Silva (in memorian), cuja inevitável presença, apesar da ausência, me estimulou

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a todos que, direta ou indiretamente, colaboraram para a realização deste trabalho, em especial

À Fafibe, pelo apoio financeiro. Aos amigos, professores e funcionários que colaboraram de diferentes maneiras com este trabalho. Sou grata à Profª Aparecida do Carmo Frigeri Berchior, Diretora Acadêmica, pela amizade e tolerância e a Paulo Ferrarezi, pelos abraços reconfortantes. Aos coordenadores dos cursos de Letras e de Comunicação Social do Imes-Fafica, Antônia Ângulo e Marcelo Lapuente, pelo apoio e compreensão nos momentos finais do trabalho.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, com os quais tive a oportunidade de conviver e aprender nesses anos em que estive ligada ao programa. Aos amigos e colegas da Pós-Graduação pela convivência estimulante.

Aos membros do Grupo CASA, pelos encontros que muito contribuíram para as reflexões necessárias à pesquisa.

Aos funcionários da seção de pós-graduação, em especial, Clara Bombarda, por sua inesgotável atenção e paciência.

Aos professores Mário Henrique e ao Arnaldo Cortina pelos questionamentos, sugestões e indicações bibliográficas feitas na qualificação.

Aos amigos: Fernanda Zucarelli, Mariângela Vilkas, Rodrigo Martins, Cristiane Campanelli, Sandra Oliveira e Siumara Quintella que, consciente ou inconscientemente, partilharam comigo reflexões fundamentais para a realização e conclusão do trabalho. Nossos “cafés filosóficos” estão aí, implícitos.

Sou profundamente grata àqueles que acompanharam mais de perto a realização da pesquisa:

À minha orientadora Profª Drª Ude Baldan, pela orientação democrática, pela amizade, confiança e, sobretudo, pelo entusiasmo contagiante.

À minha irmã Angélica, com quem dividi descobertas e incertezas. Sua participação ativa como leitora e interlocutora foram fundamentais.

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RESUMO

O presente trabalho parte da hipótese de que as contribuições dos escritos e da arquitetura de Le Corbusier para a poesia de João Cabral de Melo Neto transcendem as influências ditadas pelo clima intelectual e artístico da época. É conhecido o interesse do poeta pelas artes plásticas e a simpatia pela idéia da construção da obra literária, que resultam numa poesia racionalmente elaborada, calculada e medida. Como no fazer arquitetônico, em que o projeto antecede a construção, o fazer poético é assumido como um processo de construção material precedido pelo exercício projetual baseado em premissas rigorosas de lucidez, clareza, contenção e cálculo.

Leitor de Le Corbusier, João Cabral toma do ideário modernista traços formais e procedimentos de composição que ressaltam o despojamento, a precisão e a geometrização das formas construídas. Nada é dado pelo acaso; tudo é cálculo, obedecendo a um sistema rigoroso de construção. “Máquina de habitar” e “máquina de comover” são duas expressões usadas por Le Corbusier para definir sua concepção da arquitetura, em geral, e da casa, em particular: as funções prática e mítica do edifício-casa serão satisfeitas pela construção de edifícios projetados segundo a economia e o cálculo a fim de responder a necessidades humanas de habitação e de emoção plástica, alcançada com as formas simples da geometria.

No entanto, não foi apenas a lição da economia e do cálculo, aprendida do arquiteto franco-suíço, que o poeta incorporou à sua obra. “Máquina de habitar” e “máquina de comover”, o objeto arquitetônico exige e pressupõe a criação de espaço interior que contenha o homem e com o qual ele possa interagir. E é nesse aspecto – da construção do espaço – que o diálogo de Cabral-Corbusier se mostra mais provocador: embora verbal e bidimensional, uma vez que as palavras são dispostas sobre um campo de dimensões planares – altura e largura -, a poesia de João Cabral é projetada e construída segundo estratégias de estruturação que permitem reconhecer o efeito de tridimensionalidade necessário para que a espacialidade se atualize. E, mais ainda, esse efeito de espacialidade arquitetônica convida o sujeito a experimentar esse espaço penetrando-o e movimentando-se em seu interior.

As relações entre a poesia cabralina e a arquitetura corbusiana serão explicitadas através da apresentação do projeto estrutural que rege a construção de Quaderna, obra em que o diálogo

arquitetura-poesia parece se realizar de forma mais plena, bem como da leitura de quatro dos poemas que a integram: “Estudos para uma bailadora andaluza”, “A mulher e a casa”, “O motorneiro de Caxangá” e “Jogos frutais”. Villa Savoye, de Le Corbusier, apresenta-se como referência arquitetônica para a leitura intersemiótica.

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RÉSUMÉ

Ce travail part de l’hypothèse que l’apport des écrits et de l’architecture de Le Corbusier à la poésie de João Cabral de Melo Neto transcende les influences imposées par le climat intellectuel et artistique de l’époque. L’intérêt du poète pour les arts plastiques et son penchant pour l’idée de la construction de l’œuvre littéraire sont bien connus. Il en résulte une poésie rationnellement élaborée, calculée et mesurée. Tout comme le faire architectonique où le projet précède la construction, le faire poétique est conçu comme un processus de construction matérielle qui est précédé par l’exercice projetuel, lui-même basé sur des prémisses rigoureuses de lucidité, de clareté, de contention et de calcul.

En tant que lecteur de Le Corbusier, João Cabral reprend dans les idées modernistes, des traits formels et des procédés de composition qui font ressortir le dépouillement, la précision et la géométrisation des formes construites. Rien n’est dû au hasard; tout est calculé et obéit à un système rigoureux de construction. “Machine à habiter” et “machine à émouvoir” sont deux expressions de Le Corbusier pour définir sa conception de l’architecture, en général, et de la maison, en particulier; les fonctions pratique et mythique de l’édifice-maison seront respectées par la construction d’édifices projetés selon l’économie et le calcul, afin de répondre aux besoins humains d’habitation et d’émotion plastique, une émotion qui sera suscitée par les formes simples de la géométrie.

Néanmoins, le poète n’a pas seulement incorporé dans son œuvre la leçon d’économie et de calcul de l’architecte franco-suisse. “Machine à habiter” et “machine à émouvoir”, l’objet architectonique exige et présuppose la création de l’espace intérieur qui renferme l’homme et avec qui ce dernier peut interagir.Et, c’est sous cet aspect – de la construction de l’espace – que le dialogue Cabral-Corbusier se montre le plus provocateur: bien que verbale et bidimensionnelle, étant donné que les mots sont disposés sur un champ aux dimensions planes – hauteur et largeur-, la poésie de João Cabral est projetée et construite selon des stratégies de structuration qui permettent de retrouver l’effet de tridimensionnalité qui est nécessaire à la création d’une spatialité.Et mieux encore, cet effet de spatialité architectonique invite le sujet à expérimenter cet espace en y pénétrant et en s’y déplaçant.

Les relations entre la poésie de Cabral et l’architecture de Le Corbusier seront explicitées à travers la présentation du projet structurel qui régit la construction de Quaderna, œuvre dans

laquelle le dialogue architecture-poésie semble se faire d’une manière plus complète, et également à travers la lecture de quatre des poèmes qui la composent: “Estudos para uma bailadora andaluza”, “A mulher e a casa”, “O motorneiro de Caxangá” et “Jogos frutais”. La Villa Savoye de Le Corbusier constitue une référence architectonique pour la lecture intersémiotique.

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ABSTRACT

This current work starts with the hipothesis that Le Corbusier´s writings and architecture towards João Cabral de Melo Neto transcend the influences dictated by the intellectual and artistic ambience of that time. The poet´s interest for plastic arts and likeness toward the idea of literary work construction is widely known, and it results in a rationally elaborate, calculated and measured poetry. As in the architectonic making, in which the project precedes the construction, poetic making is assumed like a process of material construction preceded by the projectual exercise based on strict lucidity, clarity, contention and calculation premises.

A reader of Le Corbusier, João Cabral takes, from the modernist ideologies, formal features and composition procedures which emphasize the dispossession, accuracy and geometrization of the constructed forms. Nothing is given by chance; everything is calculated, obeying a strict construction system. “Machine à habiter” and “machine à émouvoir” are two

expressions used by Le Corbusier to define his conception on architecture, in general, and on the house, in particular: the practical and mythical functions of the building/house will be met through the construction of buildings constructed according the economy and calculations in order to cater to human needs in living and plastic emotion, which is reached with the simple geometric forms.

However, it was not only the economy and calculations lessons, learned from the French-Swiss architect, that the poet embodied into his work. “Machine à habiter” and “machine à émouvoir”, the architectonic object demands and presupposes the creation of interior space that

contains man and with which he can interact. It is in this aspect – space construction – that the Cabral-Corbusier dialogue is more provocative: albeit verbal and bidimensional, once words are displayed on a field of plain dimensions – height and width – João Cabral´s poetry is projected and constructed according structuration strategies that allows recognizing the effect of tridimensionality, which is necessary so that spatiality updates itself. And, even more, this architectonic spatiality invites one to experiment this space by penetrating it and moving it in its interior.

The relationships between Cabral´s poetry and Corbusian architecture will be disclosed through the presentation of the structural project that directs the Quaderna construction, a work

in which the architecture-poetry dialogue seems to happen in a more complete form, as well as the reading of four of the poems that complete it: “Estudos para uma bailadora andaluza”, “A mulher e a casa”, “O motorneiro de Caxangá” and “Jogos frutais”. Le Corbusier´s Villa Savoye is an architectonic reference for intersemiotic reading.

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...p. 12

1. PROJETO E CONSTRUÇÃO DE QUADERNA ...p. 23

2. REFLEXÕES SOBRE A CASA...p. 60

3. VILLA SAVOYE – LE CORBUSIER...p. 80

4. A ESPACIALIDADE ARQUITETÔNICA DE QUADERNA...p. 132

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...p. 153

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Arquitetura. Literatura. Um saber e um fazer que pensa, projeta e constrói espaços habitáveis utilizando-se de barro, pedra, tijolo, concreto etc. Um saber e um fazer que pensa, projeta e constrói espaços ficcionais utilizando-se de palavras. Um convite a habitar. Um convite a ler. Habitar e ler são mais do que usar. O uso pode ser reduzido a uma ação mecânica ou mecanizada pela rotina. Mas habitar e ler implicam relações conscientes, ativas, em que sujeito e objeto estão interligados pelo habitar e ser habitado, pelo ler e ser lido. Nesse sentido, o ato de ler pode ser considerado uma forma de habitar. O homem habita o espaço e é habitado por ele; o leitor habita a obra e é habitado por ela. Muitas vezes, porém, a rotina da vida cotidiana faz com que nos convertamos em meros usuários dos objetos com os quais nos relacionamos, arquitetônico ou literário. Muitas vezes, usamos o espaço, lemos um romance ou um poema mecanicamente, sem que nos conscientizemos da necessidade de habitá-los ou de que eles só se realizam plenamente na relação ativa com o habitante-leitor. Fora dessa relação, permanecem apenas como potencialidade. Um poema sem leitor não passa de um punhado de palavras dispostas no papel, à espera de ser lido; uma casa sem habitante também não passa de espaço vazio, sem vida, à espera de ser habitado.

Esta pesquisa busca explorar as relações entre arquitetura e literatura e, para isso, algumas considerações iniciais servirão de balizas a fim de ajudarem a demarcar o território a ser visitado:

1) Arquitetura e literatura são formas distintas de manifestação artística, que unem a inteligência abstrata e racional à imaginação criadora na produção de obras de valor estético, autônomas e significativas. Apresentam-se, dessa forma, como construções humanas complexas, que envolvem conhecimento, invenção, expressão e produção, e revelam não apenas o universo socio-histórico-cultural em que foram produzidas, mas também um modo particular de encarar (assumir) e exercer a atividade criadora, a qual podemos chamar de projeto poético ou

simplesmente poética, que rege o fazer artístico. Um exemplo de como podemos ler numa das

falas finais de Raimundo, de Os três mal-amados, de João Cabral de Melo Neto:

RAIMUNDO:

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objeto sólido que depois imitarei, o qual depois me definirá. Penso para escolher: um poema, um desenho, um cimento armado – presenças precisas e inalteráveis, opostas a minha fuga. (MELO NETO, 1994, p.63)

Se consideramos o espaço, assim como a literatura, “como uma forma susceptível de erigir-se numa linguagem espacial que permite ‘falar’ de uma coisa diferente do espaço” (GREIMAS, 1981, p.116), estaremos tomando-os como linguagem, como significante que tem

como significado o homem, a sociedade e seu contexto histórico e sócio-cultural.

2) Arquitetura e literatura são manifestações artísticas, porém, de naturezas distintas. A arquitetura se dedica à criação de espaços habitáveis, enquanto a literatura busca criar verbalmente simulacros da vida do homem no mundo, suas ações, pensamentos, sentimentos, dilemas existenciais, sociais, políticos, éticos e culturais. A matéria a ser enformada pela

literatura é a palavra; a arquitetura, por sua vez, tem, à sua disposição, uma multiplicidade de materiais – tijolo, pedra, concreto, madeira etc. - para dar forma ao espaço interior1, o verdadeiro objeto da arquitetura.

Podemos estabelecer, assim, uma relação de homologia entre essas duas artes:

arquitetura literatura

Matéria tijolo2 palavra

Substância da expressão

extensão3 sons

forma significante espaço poesia (texto literário)

Em outras palavras, se a literatura simula a vida do homem no mundo, ela é também

construtora de espaços ficcionais4. A diferença entre essas duas modalidades de espaço criado

1 Nas palavras de Bruno Zevi, “o caráter essencial da arquitetura – o que faz distingui-la das outras atividades

artísticas – está no fato de agir com um vocabulário tridimensional que inclui o homem. (...) a arquitetura é como uma grande escultura escavada, em cujo interior o homem penetra e caminha.” (ZEVI, 1978, p.17). Assim, nas palavras do autor, “o que não tem espaço interior não é arquitetura” (ZEVI, 1978, p.24).

2 Tijolo é apenas um exemplo; a relação permaneceria a mesma se ao invés de tijolo tivéssemos escrito pedra,

concreto ou qualquer outro material utilizado na construção civil.

3

Segundo Greimas, a extensão “pode ser considerada como a substância que, uma vez enformada e transformada pelo homem, torna-se espaço, isto é, forma” significativa. (Greimas, 1981, p.115)

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reside na natureza verbal e “ficcional” do espaço literário e na natureza física e “real”, do

espaço arquitetônico.

É preciso não esquecer, porém, que é a existência do espaço interior habitável que faz da arquitetura, arquitetura, e não a plasticidade da caixa mural, embora seja ela quem dá forma ao espaço interior, ao recortá-lo da continuidade do espaço exterior:

a arquitetura não provém de um conjunto de larguras, comprimentos, e alturas dos elementos construtivos que contêm o espaço, mas precisamente do vácuo, do espaço contido, do espaço interior em que os homens andam e vivem. (ZEVI, 1978, p.18)

3) Ao contrário das demais artes, que não precisam responder a finalidades objetivas imediatas (entre as quais se encontra a literatura), a construção de um edifício, qualquer que seja ele, é dependente da utilidade prática imediata a que se destina. Ariano Suassuna fala em “Artes úteis” e “Belas Artes”:

certas Artes, como a Arquitetura, são quase que um meio caminho entre as Artes úteis e as chamadas Belas Artes, pelo que devemos considerar, primeiro, a necessidade em que se viu o homem, primeiro de construir abrigos ou casas, e

depois de construir casas e templos belos, como impulso artístico humano igual

aos outros. (SUASSUNA, 2005, p. 280-1)

E acrescenta:

Na verdade, a Arquitetura, além de procurar, como as outras Artes, a criação da Beleza, possui sempre um objetivo de destinação prática e dependente, mais do que qualquer outra, de condições alheias à vontade livre do artista, pois a obra a fazer, o prédio a construir, deverá servir de moradia, de templo, de casa comercial, de fábrica etc., de modo que, nela, até as condições sociais da comunidade interferem, de maneira mais direta e forte, no trabalho de criação. (SUASSUNA, 2005, p. 300)

Assim, quando falamos em objeto arquitetônico destinado a servir como habitação

humana, como escola, teatro, templo etc., duas considerações se fazem necessárias: por um lado, o objeto arquitetônico apresenta-se como algo feito para atender a necessidades específicas, definidas pelo que, em arquitetura, chama-se programa arquitetônico. Esse programa considera

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desse uso (número e tipo de cômodos, fluxo entre os cômodos, acessibilidade, altura do pé direito, aberturas etc.). A esse uso e às necessidades dele decorrentes, somam-se outras

determinantes que condicionam o projeto, tais como: a topografia do terreno, as construções do entorno, a orientação solar, as verbas disponíveis, a legislação e código de edificações, necessidades técnicas (ligadas à estabilidade estrutural, ao conforto ambiental e acústico, por exemplo). Todas essas exigências de ordem prática balizarão o fazer do arquiteto, desde a definição do partido arquitetônico a ser adotado (matriz formal que sintetiza intenções

estético-espaciais do arquiteto para cada projeto específico) até a construção do edifício.O que significa dizer que um objeto arquitetônico particular é definido por uma somatória de elementos que vão desde a edificação em si (solução espacial, técnica e estética dada à caixa mural) à adequação do espaço para o seu uso futuro. Em outras palavras, se a solução estético-espacial conferida à caixa

mural é um dos elementos que participam da definição das qualidades espaciais do edifício, o uso de um edifício construído - uma casa, uma igreja, uma escola, um supermercado etc. – é definido pela sua função prática.

A propósito da casa, por exemplo, Ludmila Brandão escreve:

Note-se que ‘casa’ não é apenas a edificação, o conjunto arquitetônico, ainda que possa ser tomado como tal, até porque o que a define, em arquitetura, não é

a configuração espacial, mas o seu uso. Grosso modo, a casa seria resultante de

uma modalidade de uso de um espaço construído, ou seja, quando atendesse às funções previstas para operar como ‘uma casa’. (BRANDÃO, 2002, p.64)

Uma obra literária – um poema, um romance, um conto etc. -, ao contrário da obra arquitetônica, não se define pelo seu uso, mas pela sua construção. A respeito da literatura,

reproduzimos abaixo o que dizem Antonio Candido e Leyla Perrone-Moisés:

Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: (1) ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; (2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente.

Em geral pensamos que a literatura atua sobre nós devido ao terceiro aspecto, isto é, porque transmite uma espécie de conhecimentos, que resulta em aprendizado, como se ela fosse um tipo de instrução. Mas não é assim. O efeito das produções literárias é devido à atuação simultânea dos três aspectos, embora

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mensagem é construída: mas esta maneira é o aspecto, senão mais importante,

com certeza crucial, porque é o que decide se uma comunicação é literária ou

não. (CANDIDO, 2004, p.176-7).

A literatura é arte (...); como representação, expressão ou documento histórico-ideológico, a obra literária pode servir a outras disciplinas; mas a crítica literária, embora necessite de apoio em outras disciplinas, é em primeiro lugar crítica estética. Mesmo em suas formas mais fantásticas e “artificiais”, a literatura não se separa do mundo; entretanto, sua relação com ele é indireta, filtrada por inúmeras mediações. Seus efeitos sobre o real também são indiretos, incomensuráveis em termos práticos, mas sensíveis em termos de valorização da práxis. Daí sua “inutilidade” e sua indispensabilidade. (PERRONE-MOISÉS, 2000, p.13)

4) Porém, retomando a afirmação de Ludmila Brandão citada acima, se “‘casa’ não é apenas edificação”, se é resultante de um tipo específico de uso do espaço construído, sesó se

realiza enquanto casa quando atende “às funções previstas para operar como ‘uma casa’”, não é possível tomá-la apenas como objeto. O caráter instrumental do objeto arquitetônico (seja ele

casa, igreja ou outro qualquer) o situa numa posição intermediária entre a categoria dos objetos e a dos sujeitos.Atendendo às “funções previstas para operar como uma ‘casa’”, torna-se partícipe da ação de habitar e permite vê-la tanto como objeto quanto como sujeito que participa da criação de efeitos de sentido de “estar-em-casa” (ou não). Quando afirmamos que o espaço participa da

criação de efeitos de sentido, estamos dizendo que a ação do sujeito-espaço não é determinista, não impõe uma maneira ou sensação de habitar. Afirmar isso seria simplificar a relação que estabelece com o homem que habita o espaço. Pelo contrário, um mesmo espaço arquitetônico pode criar efeitos de sentido de opressão ou de bem-estar para diferentes habitantes, dependendo das condições gerais de habitação (físicas, emocionais, históricas, sociais, econômicas etc.).

Assim, o objeto arquitetônico que abrigará uma escola, um templo, uma casa ou outra função qualquer, somente cumprirá seu destino (somente terá sua função prática realizada) na relação com os seres humanos que o habitarão. Segundo Bloomer e Moore, a experiência do edifício se fundamenta na experiência corporal:

(17)

A arquitetura é, portanto, uma arte corporal e, por isso, a observação das relações entre corpo e espaço, entre sujeito e objeto, são fundamentais para sua compreensão:

Estamos convencidos de que si no entendemos la manera en que los individuos y las comunidades se vem afectadas por los edificios, en qué modo éstos proporcionan a las personas sentimientos de gozo, identidad y lugar, nunca podremos distinguir la arquitectura de otras actividades constructivas cotidianas. (BLOOMER; MOORE, 1983, p.9)

Assim, podemos dizer que, por incluir o homem, a função prática pressupõe solicitações que transcendem o pragmatismo de seu destino: para além da simples caixa habitável, o objeto arquitetônico guarda, inscritas em seus espaços, aberturas e fechamentos, solicitações advindas de sua função mítica e simbólica. Por exemplo, a função de sensibilização para a intimidade, aconchego, proteção, conforto, se for uma casa, ou de sensibilização para o encontro com Deus, para o encontro do humano com o sobre-humano, do natural com o sobrenatural, do profano com o sagrado, se for uma igreja. Em outras palavras, o espaço da casa ou o da igreja devem receber sobredeterminações dos componentes figurativos que sirvam de suporte à configuração temática de estar “em casa” ou “na casa de Deus”. São volumes, formas, cores, perfumes, sons, afetos,

presenças e memória que ganham significado e existência pela relação entre o espaço e seu habitante.

Ainda nas palavras de Ludmila Brandão,

podemos dizer que, como na arte, a casa é um ser de sensação, um composto de

perceptos e afectos que emerge dessa bricolage material e imaterial, dessa

conjunção de elementos heterogêneos de toda ordem, que a todo momento se resume num só enunciado: - estou em casa! O expressivo é, por isso, primeiro em relação ao possessivo. (BRANDÃO, 2002, p.65)

5) Em Introdução à estética, Ariano Suassuna toma a classificação de Dessoir, que faz a

seguinte divisão entre as artes:

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Artes plásticas, Escultura, Pintura e Arquitetura. As Artes temporais

caracterizam-se por elementos sucessivos; têm como meios de realização,

execução e interpretação os sons e os gestos; são a Mímica, a Literatura e a Música. (SUASSUNA, 2005, p. 287-8)

Discordamos dessa classificação no que diz respeito ao repouso e aos elementos

justapostos atribuído às artes espaciais. Acreditamos haver, também, movimento e sucessividade nas obras de arte consideradas espaciais, assim como na fruição e contemplação delas,

principalmente no caso da arquitetura. A representação gráfica do espaço própria da linguagem arquitetônica, que o reduz a duas dimensões (se representado em corte, elevação ou fachada) ou três dimensões (em perspectiva - altura, profundidade e largura), induz-nos a menosprezar um dos elementos que participam da constituição da espacialidade: o tempo. Nesse sentido, é esclarecedora a apresentação que Bruno Zevi faz a respeito da “quarta dimensão” da perspectiva:

A quarta dimensão pareceu corresponder rigorosamente ao requisito das dimensões da arquitetura. (...) Na arquitetura – conforme se calculou – existe o mesmo elemento “tempo”; além disso, este elemento é indispensável à atividade construtora: da primeira cabana, da primeira caverna do homem primitivo à nossa casa, à igreja, à escola, ao escritório onde trabalhamos, todas as obras de arquitetura: para serem compreendidas e vividas, requerem o tempo da nossa caminhada, a quarta dimensão. (ZEVI, 1978, p.22-3)

Zevi acrescenta, porém, que as quatro dimensões (altura, largura, profundidade e tempo) são suficientes para definir o “volume arquitetônico” ou “caixa mural” que contém o espaço. Entretanto, para dar conta do espaço em si – protagonista da arquitetura - seria necessário considerar outras infinitas dimensões, em busca de elementos que pudessem determinar a experiência espacial (corporal, já vimos) que a obra arquitetônica proporciona.

Nesse sentido, a arquitetura pode se aproximar de um tipo de literatura que não apenas represente o espaço (narrando ou descrevendo), mas efetivamente “crie” espaços com palavras

(como acreditamos ser o caso da poesia de João Cabral de Melo Neto).

(19)

disposição gráfica das palavras no papel pode chegar a um nível de complexidade tão alto que torna possível identificar a existência (implícita ou explícita, como no caso da poesia concretista, por exemplo) de um projeto gráfico que rege a sua visualidade. E, nesse caso, pode ser

considerada muito próxima das artes ditas espaciais ou “do repouso”, como quer Dessoir, ou simplesmente artes plásticas ou visuais.

6) Vimos que a arquitetura constrói espaços físicos, com contornos materiais precisos, em que se pode penetrar e habitar, enquanto a literatura escreve e constrói espaços de palavras e

papel, habitados por personagens, e que podem convocar, também, o leitor a penetrar e habitar. E assim como a experiência do espaço arquitetônico se faz na interação homem-espaço, o fazer literário pode ir além de “falar” sobre o espaço (narrar, descrever ou poetizar) e efetivamente criar efeitos de sentido de espacialidade que podem exercer um poder de afecção sobre o leitor,

promovendo uma experiência que é também corporal, estésica (e cinestésica), assim como a experiência do espaço arquitetônico.

Porém, tanto a obra arquitetônica como a literária são autônomas. Embora haja um arquiteto responsável pela sua idealização e concepção, ele não pode controlar o uso e o comportamento das pessoas no espaço construído, assim como o poeta não pode controlar totalmente as leituras e interpretações de sua obra. Ambos podem, sim, lançar mão de procedimentos que criem os efeitos de sentido desejados. Dessa forma, se por um lado o espaço traz em si uma capacidade de afecção, apresentando-se como uma espécie de sujeito que age sobre as pessoas, por outro lado esse sujeito-espaço também sofre a ação dos seus habitantes. Se a arquitetura produz sensações, sensibilidades, independente das intenções primeiras do arquiteto, essas sensações são produzidas na interação com outros elementos espaciais (materiais ou não) e na interação com os seres humanos. A arquitetura é, portanto, por um lado, produtora de sensação, de sentido e de subjetividade e, por outro, produto dessas mesmas sensações e subjetividades.

Assim, nem o espaço arquitetônico pode ser concebido apenas como lugar, sítio ou

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com os elementos propriamente espaciais e com as pessoas. Por sua vez, o fazer literário, ao

escrever o espaço, nem sempre se restringe a descrevê-lo; mais do que isso, é capaz de produzir

textos-espaços que convocam não apenas os olhos e o intelecto na sua fruição, mas, sobretudo, que mobilizam os sentidos do leitor. Dennis Bertrand fala em uma capacidade de “produzir e restituir parcialmente significações análogas às de nossas experiências perceptivas mais concretas” (BERTRAND, 2003, p.154).

Tomando, pois, a habitabilidade como um traço comum à arquitetura e à literatura,

elegemos a casa, objeto arquitetônico construído a fim de servir como habitação humana, como

eixo norteador de nossos estudos e assunto para o cotejo intersemiótico. Pensar sobre a casa e sobre a poesia é também pensar sobre a casa como poesia, revelando uma poética, e a poesia como casa, que dá lugar a relações íntimas entre sujeitos e entre sujeito e objeto (freqüentemente

tornado sujeito).

As leituras para a seleção do corpus nos levaram ao poema “A mulher e a casa”, de João

Cabral de Melo Neto. Leitor de Le Corbusier, João Cabral toma do ideário modernista traços formais e procedimentos de composição que ressaltam o despojamento, a precisão e a geometrização das formas. A afinidade do poeta com o arquiteto franco-suiço definiu as coordenadas do território onde nos situaríamos: o cotejo entre a arquitetura de Le Corbusier e a poesia de João Cabral de Melo Neto.

Partimos da hipótese de que as contribuições dos escritos e da arquitetura de Le Corbusier para a poesia de João Cabral transcendem as influências ditadas pelo clima intelectual e artístico da época. É conhecido o interesse do poeta pelas artes plásticas e a simpatia pela idéia da construção da obra literária, que resultam numa poesia racionalmente elaborada, calculada e medida. Como no fazer arquitetônico, em que o projeto antecede a construção, o fazer poético cabralino é assumido como um processo de construção material precedido pelo exercício projetual baseado em premissas rigorosas de lucidez, clareza, contenção e cálculo. Nada é dado pelo acaso; tudo é cálculo, obedecendo a um sistema rigoroso de construção.

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emoção plástica, alcançada com as formas simples da geometria. A referência à obra do arquiteto é constante, não apenas em entrevistas e depoimentos dados pelo poeta, como em sua obra, explicitada, por exemplo, pela epígrafe do livro O engenheiro: “...machine à èmouvoir”.

No entanto, acreditamos, não foi apenas a lição da economia e do cálculo, aprendida do arquiteto franco-suíço, que o poeta incorporou à sua obra. “Máquina de habitar” e “máquina de comover”, o objeto arquitetônico exige e pressupõe a criação de espaço interior que contenha o homem e com o qual ele possa interagir. E é nesse aspecto – da construção do espaço – que o diálogo de Cabral-Corbusier se mostra mais provocador: embora verbal e bidimensional, uma vez que as palavras são dispostas sobre um campo de dimensões planares – altura e largura -, a poesia de João Cabral é projetada e construída segundo estratégias de estruturação que permitem reconhecer o efeito de tridimensionalidade necessário para que a espacialidade se atualize. E, mais ainda, esse efeito de espacialidade arquitetônica convida o sujeito a experimentar esse espaço penetrando-o e movimentando-se em seu interior.

As relações entre a poesia cabralina e a arquitetura corbusiana serão examinadas e explicitadas, assim, seguindo o seguinte percurso: o Capítulo 1, traz a apresentação das etapas de elaboração e desenvolvimento do projeto que rege a construção de Quaderna, desde os primeiros

“croquis”, presentes no livro Os três mal-amados. A apresentação não tem o rigor de um

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para uns [a composição] é o ato de aprisionar a poesia no poema e para outros o de elaborar a poesia em poema; (...) para uns é o momento inexplicável de um achado e para outros as horas enormes de uma procura...

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1. PROJETO E CONSTRUÇÃO DE QUADERNA

Escrita entre 1956 e 1959, durante a segunda temporada de João Cabral na Espanha, a obra Quaderna é composta por vinte poemas em que as referências a elementos da cultura e da

paisagem espanholas, à paisagem nordestina e ao feminino revelam-se instrumentos de reflexão sobre a realidade e sobre o próprio fazer poético. Segundo Secchin, com este livro, João Cabral

Retoma uma abrangência temática já expressa em Paisagens com figuras: o

Nordeste, a Espanha, e o diálogo entre ambos, marcados pelo vetor comum de

uma condição humana definida pelos signos da carência e do menos. Quaderna,

todavia, não se limita a esse horizonte: pela primeira vez na obra cabralina destaca-se a presença do feminino como referência do poema. (SECCHIN, 1985, p.133)

Condição humana e realidade de um lado, problematização do poema e metalinguagem de outro. Despojamento, prevalência da visibilidade plástica geometrizada, presentificação do concreto em sua substantividade desadjetivada, preocupação com a função comunicativa da poesia e metalinguagem são características presentes na poesia cabralina, não apenas nas obras acima mencionadas, mas desde a primeira obra, Pedra do sono, publicada em 1942:

Neste livro [Pedra do sono] já se encontram em germe algumas das qualidades

da poesia cabralina: o despojamento, o gôsto pela imagem visual, de táctil substantividade (“No espaço do jornal / a sombra come a laranja”), aquilo que Cabral diz ter aprendido com a poesia de Murilo Mendes (“dar precedência à imagem sobre a mensagem, ao plástico sobre o discursivo”), e algo que sem dúvida aprendeu com a gente de 22 e apurou com Drummond, certo humor seco servido por uma ágil manipulação de sintagmas extraídos diretamente do coloquial e postos em contraste com outras áreas mais “puras” de seu vocabulário, para aquêle efeito de choque ou dialética – que sempre o interessou – entre poesia e prosa. O poeta começa também a debruçar-se criticamente sobre o próprio poema (CAMPOS, 1967, p.69)

O que aparece “em germe” em Pedra do sono vai se definindo enquanto projeto nas obras

seguintes (Cf. BARBOSA, 1975). A tematização do poema e a discussão das modalidades de expressão poética podem ser observadas nas “falas” das personagens drummondianas de Os três mal-amados, obra de 1943, que, metalingüisticamente, ao falarem de seu objeto de amor, falam

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João remetem ao universo do livro de estréia e as de Joaquim mantêm a prevalência emocional, nas falas de Raimundo, encontramos a síntese do parti pris5 conceitual e programático que regerá

a obra de João Cabral como um todo:

RAIMUNDO:

Maria não era um corpo vago, impreciso. Eu estava ciente de todos os detalhes de seu corpo, que poderia reconstruir à minha vontade. Sua boca, seu riso irregular. Todos esses detalhes não me seria difícil arrumá-los, recompondo-a,

como num jogo de armar ou uma prancha anatômica (OC, p.606)

RAIMUNDO:

Maria era também o jornal. O mundo ainda quente, em sua última edição e mais recente. (OC, p.62)

RAIMUNDO:

Maria era também a folha em branco, barreira oposta ao rio impreciso que corre em regiões de alguma parte de nós mesmos. Nessa folha eu construirei um objeto sólido que depois imitarei, o qual depois me definirá. Penso para escolher: um poema, um desenho, um cimento armado – presenças precisas e inalteráveis, opostas a minha fuga. (OC, p.63)

RAIMUNDO:

Maria era também o sistema estabelecido de antemão, o fim onde chegar. Era a lucidez, que, ela só, nos pode dar um modo novo e completo de ver uma flor, de ler um verso. (OC, p.64)

Segundo o crítico, as falas de Raimundo contêm não apenas a definição do poeta pela construção do objeto, mas também “uma lição de compromisso (...) com a própria relação que se

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Solução proposta ou escolhida para resolver uma situação. Em arquitetura, parti pris ou partido arquitetônico são as diretrizes gerais adotadas no projeto, expressas pela concepção formal da obra a ser construída. Diz respeito à distribuição das massas construídas no terreno em que será implantado o edifício, aos volumes das edificações, à proporção entre cheios e vazios, aos principais materiais e técnicas construtivas a serem empregados na construção. Resulta da consideração de uma série de determinantes que condicionam o projeto: o programa do edifício, a topografia do terreno, o clima, a orientação solar, materiais e verba disponíveis para a construção, código de edificações e a intenção plástica do arquiteto. Por exemplo, um partido horizontal é aquele em que predominam as formas e circulação horizontais e um partido vertical aquele em que predominam formas e circulação verticais. (Cf, ALBERNAZ; LIMA, 1998)

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estabelece, pelo próprio ato de construção, entre o poeta e o seu objeto.” (BARBOSA, 1975, p.37).

A Maria-poesia é praia freqüentada, cujo ar livre e luz delimitam e iluminam - com exatidão e nitidez - os gestos do poeta; é fonte que jorra em tempo, espaço e forma previstos e determinados pela vontade do poeta; é corpo conhecido e construído como prancha anatômica; é campo percorrido; é árvore (objeto “sólido” e “prático”) que se planta na terra e lança os galhos para o céu; é aguardente que permite ouvir o rumor dos sonhos que serão submetidos à vontade do poeta; é jornal que traz notícias do mundo; é livro que permite entender e construir a realidade e o poema; é a folha em branco, em que será construído o objeto sólido a ser imitado e que definirá o poeta. Nas palavras de João Alexandre, “o que o poeta imita, e o que o define, é sua

construção”. (BARBOSA, 1975, p.38).

Como no fazer arquitetônico, em que o projeto antecede a construção, o fazer poético é assumido como um processo de construção material precedido pelo exercício projetual baseado em premissas rigorosas de lucidez, clareza, despojamento e cálculo (o “sistema estabelecido de antemão”). Esse projeto, previsto e determinado pela vontade do poeta, resultará numa construção que é, simultaneamente, celebração e prática de uma poesia racional que rejeita qualquer possibilidade de intervenção da inspiração e do acaso. Opção que será explicitada teoricamente na conferência que proferiu em 1952, intitulada “Poesia e composição: a inspiração e o trabalho de arte”, em que se pode ler:

não se pode negar que essa atitude [que aceita o predomínio do trabalho de arte] pode contribuir para uma melhor realização artística do poema, pode criar o poema objetivo, o poema no qual não entra para nada o espetáculo de seu autor e, ao mesmo tempo, pode fornecer do homem que escreve uma imagem perfeitamente digna de ser que dirige sua obra e é senhor de seus gestos.

Nestes poetas já o trabalho artístico não se limita ao retoque, de bom gosto de boa economia, ao material que o instinto fornece. O trabalho artístico é, aqui, a origem do próprio poema. Não é o olho crítico posterior à obra. O poema é escrito pelo olho crítico, por um crítico que elabora as experiências que antes vivera, como poeta. Nestes poetas, geralmente, não é o poema que se impõe. Eles se impõem o poema, e o fazem geralmente a partir de um tema, escolhido por sua vez, a partir de um motivo racional. (OC, p.733)

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raramente um corte num objeto ou um aspecto particular de um objeto visto pela luz especial de um momento. Durante seu trablaho, o poeta vira seu objeto nos dedos, iluminando-o por todos os lados. E é ainda seu trabalho que lhe vai permitir desligar-se do objeto criado. Este será um organismo acabado, capaz de vida própria. É um filho, com vida independente, e não um membro que se amputa, incompleto e incapaz de viver por si mesmo. (OC, 734)

Na obra poética seguinte, O engenheiro, de 1945, João Cabral enuncia, no título e na

epígrafe que traz a conhecida frase de Le Corbusier "...machine à émouvoir”, a adesão às propostas do arquiteto franco-suíço, veiculadas em obras como Depois do Cubismo, publicada

em 1918 (OZENFANT; JEANNERET, 2005), na série de artigos sobre a arquitetura, escritos nos anos 1920-21 para a revista L’Esprit Nouveau, reunidos, em 1923, em Por uma arquitetura

(CORBUSIER, 2004), e em obras posteriores, como A arte decorativa (CORBUSIER, 1996), de

1925 e La maison des hommes, de 1942, assinado conjuntamente com François de Pierrefeu

(PIERREFEU; CORBUSIER, 1942).

Em Depois do Cubismo, Amédée Ozenfant e Charles-Edouard Jeanneret (que mais tarde

adotaria o nome de Le Corbusier) discutem a crise do cubismo, reconhecendo o mérito dos cubistas por terem compreendido as lições de seus precursores (Ingres, Coubert, Cézzane etc.), no que diz respeito à submissão do tema à plástica e à redução do real às formas geométricas, mas criticando, porém, uma suposta tendência cubista ao ornamental ou decorativo a que acreditavam ter levado a fragmentação excessiva do objeto. Além disso, os autores discutem a situação da arte e o papel social do artista e do intelectual no novo universo marcado pela industrialização e pela guerra.

Neste contexto de modernidade, a máquina representava não apenas o avanço tecnológico e econômico e a possibilidade de domínio racional e científico da natureza, como também representava a possibilidade de renovação social e artística. O desenvolvimento econômico e tecnológico teria seu reflexo estético na renovação das várias linguagens artísticas, pela assimilação de características maquinistas (como velocidade e simultaneidade, funcionalidade e racionalidade, vistas como princípios impulsionadores da experimentação artística), enquanto a contrapartida social e ética se faria sentir no questionamento e renovação da função social da arte e do artista.

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dado que o espírito científico se desenvolverá cada vez mais e com ele a indústria: ou bem a arte será a de uma época de ciência, e não pode permanecer no estado atual; ou não será a arte de uma época de ciência e cessará de existir. Pois toda arte que deixa de ser de sua época morre.

A ciência progride somente à força de rigor. O espírito atual é uma tendência ao rigor, à precisão, à melhor utilização das forças e das matérias, à mínima perda, enfim uma tendência à pureza.

Essa é também a definição da arte. (OZENFANT; JEANNERET, 2005, p.50)

Os autores criticam também a arquitetura, que teria se transformado em mera decoração e estaria morta, se não fosse o trabalho dos engenheiros, cujas obras mostravam-se regidas por uma “pureza” de princípios construtivos, pelo rigor do cálculo, pelo número. Aliás, “Purismo” é o termo proposto por Ozenfant e Jeanneret para definir e caracterizar a arte e o espírito modernos posteriores ao cubismo. Segundo essa concepção de arte, a obra deve pautar-se pelo reconhecimento de invariantes plásticas e sua materialização deve propor uma construção rigorosa, clara, simples, pura, avessa a qualquer interferência do acaso:

A pintura deve propor construções tão claras quanto a geometria; elas poderão parecer ainda mais emocionantes com a intervenção da sensibilidade ao fazer participar o fator humano. Mas isso implica uma realização completa que não deixa nenhum lugar ao acaso. O acaso é réprobo da arte; é o contrário da arte. (OZENFANT; JEANNERET, 2005, p.77)

Nos textos sobre a arquitetura, escritos para a revista L’Esprit Nouveau (1920-1), reunidos

em Por uma arquitetura (CORBUSIER, 2004), Le Corbusier volta a exaltar a estética do

engenheiro e retoma as críticas à arquitetura, presentes em Depois do cubismo. Economia,

cálculo e a produção industrial devem servir de modelo para a criação artística. A lei da economia e do cálculo, aprendida com os engenheiros, implica uma concepção da obra de arte avessa a tudo que for desnecessário ou supérfluo:

Os florões, as lâmpadas e as guirlandas, as ovais rebuscadas onde pombas triangulares se beijam e se entrebeijam, as alcovas guarnecidas de almofadas em forma de abóbadas de veludo, de ouro e de preto, não são mais que os testemunhos insuportáveis de um espírito morto. Estes santuários asfixiados dos bem-pensantes ou por outro lado as besteiras “gagás” dos caipiras nos ofendem.

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E ainda:

Os arquitetos vivem na estreiteza das aquisições escolares, na ignorância das novas regras de construir, e suas concepções param habitualmente nas pombas que se entrebeijam. Mas os construtores de transatlânticos, ousados e sábios, realizam palácios junto dos quais as catedrais são bem pequenas: e eles os atiram na água!

A arquitetura asfixia-se nos hábitos. (LE CORBUSIER, 2004, p.61)

Sob esse ponto de vista, a obra de arte deve ser regida pela pureza de princípios construtivos dos instrumentos mecânicos, construídos para funcionar com exatidão e eficiência. A lição da máquina, aprendida com esses instrumentos produtivos da indústria, corrobora essa concepção de arte que tem como premissa o rigor inerente à lógica de construção e o funcionamento das máquinas, sem abdicar de sua função de satisfazer necessidades humanas: a máquina é concebida pelo homem para responder a necessidades humanas. Para Le Corbusier, a máquina – avião, navio, automóvel ou casa - é e deve ser resposta a um “problema bem colocado”:

A lição do avião não está tanto nas formas criadas e, para começar, é preciso aprender a não ver em um avião um pássaro ou uma libélula, mas uma máquina de voar; a lição do avião está na lógica que presidiu ao enunciado do problema e que conduziu ao sucesso de sua realização. Quando um problema é colocado, na nossa época, sua solução é fatalmente encontrada. (CORBUSIER, 2004, p.71)

Assim, a arte, e em especial a arquitetura, deveria abandonar a estética ornamental (decorativa e fútil) em favor da estética da indústria moderna. A casa, encarada como uma “máquina de morar”, deveria ser concebida com lucidez e precisão por um espírito novo e responder a necessidades humanas (físicas e emocionais).

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Os engenheiros fazem arquitetura porque empregam um cálculo saído das leis da natureza e suas obras nos fazem sentir a HARMONIA. Existe então uma estética do engenheiro, pois é preciso, ao calcular, quantificar certos termos da

equação, e aí é o gosto que intervém. Ora, quando semaneja o cálculo estamos

num estado de espírito puro e, neste estado de espírito, o gosto segue caminhos seguros.

(...) Ora, hoje são os engenheiros que conhecem, que conhecem a maneira de sustentar, de aquecer, de ventilar, de iluminar. (...)

O diagnóstico é que, para começar pelo começo, o engenheiro que procede por conhecimento mostra o caminho e tem a verdade. É que a arquitetura, que é coisa de emoção plástica, deve, no seu domínio, COMEÇAR PELO COMEÇO TAMBÉM E EMPREGAR OS ELEMENTOS SUSCETÍVEIS DE ATINGIR NOSSOS SENTIDOS, DE SATISFAZER NOSSOS DESEJOS VISUAIS, e dispô-los de tal maneira QUE SUA VISÃO NOS AFETE CLARAMENTE pela delicadeza ou pela brutalidade, pelo tumultuo ou pela serenidade, pela indiferença ou pelo interesse; estes elementos são elementos plásticos, formas que nossos olhos vêem claramente, que nosso espírito mede. Essas formas primárias ou sutis, brandas ou toscas, agem fisiologicamente sobre nossos sentidos (esfera, cubo, cilindro, horizontal, vertical, oblíqua etc.) e os comovem. Sendo afetados, somos suscetíveis de perceber além das sensações grosseiras; nascerão então certas relações, que agem sobre nossa consciência e nos conduzem a um estado de júbilo (concordância com as leis do universo que nos dirigem e às quais todos os nossos atos se submetem) em que o homem usa plenamente de seus sons de lembrança, de exame, de raciocínio, de criação.

A arquitetura, hoje, não se lembra mais daquilo que a começa. (CORBUSIER, 2004, p. 7 – grifos do autor)

Em outras palavras, se a arquitetura pressupõe a exatidão do cálculo que está no centro do pensamento da engenharia, e deve considerá-la, vai além dela; enquanto a matemática utilizada pelo engenheiro é uma matemática exata, voltada aos aspectos puramente práticos, de construção das edificações e das máquinas, a matemática do arquiteto é uma matemática utilizada visando também a produzir efeitos de ordem sensorial (o que nada têm a ver com os “estilos” definidores da prática dos arquitetos da época):

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Para o arquiteto, portanto, economia e cálculo, bases do pensamento do engenheiro, devem estar unidos à ousadia e à imaginação, bases do pensamento do arquiteto. Porém, ousadia e imaginação emocionam quando operadas pelo cálculo, pela matemática subjacente à geometria das formas simples. Ou seja, a arquitetura vai além do cálculo, mas deve encontrar nele sua origem.

“Máquina de habitar” e “máquina de emocionar” são as duas expressões usadas por Corbusier para definir sua concepção da casa e da arquitetura: as funções prática e mítica serão satisfeitas pela construção de edifícios rigorosamente projetados segundo a economia, o cálculo, a fim de responder a necessidades humanas de habitação e de emoção plástica, garantida pela clareza das formas simples, da geometria. Enquanto máquina, a casa não pode ser concebida a partir de uma gramática pré-estabelecida; deve ser resultado de um problema bem colocado e equacionado, levando-se em conta, além do programa arquitetônico (necessidades humanas em relação ao espaço a ser construíco), questões de ordem econômica, social, urbana.

Não é casual, portanto, a opção de João Cabral pelo título dado à sua terceira obra, O engenheiro, assim como não é casual a epígrafe de Le Corbusier. Para Benedito Nunes,

A epígrafe mesma de O engenheiro, tomada a Le Corbusier, ”... machine

à emouvoir”, indica-nos que o autor já atribui a esse fazer poético a natureza de

um ato de construção. Pois a feitura do poema, que se qualifica de máquina de

comover, obedecerá analogicamente à mesma razão construtiva e geométrica

que gera o projeto técnico de uma máquina e a planta de um edifício, traçados a

lápis e a esquadro numa folha de papel.7 (NUNES, 1971, p.41)

Se o fazer poético tem a mesma natureza de uma ato de construção, é a partir da razão construtiva do engenheiro que ela se realiza. As características pessoais e profissionais do

7 O crítico continua o parágrafo afirmando que “como tôda máquina se constrói pela função que a define e que lhe

determina o tipo de trabalho a executar, o edifício e o poema se corresponderão, de acôrdo com o ideal de O engenheiro, na ordem funcional que os aproxima, sendo o primeiro máquina de habitar e o segundo máquina de comover.” (NUNES, 1971, p. 41). Não é isso, a nosso ver, que propõe Le Corbusier. Pelo contrário, o arquiteto é claro ao afirmar, em Por uma arquitetura, que não é apenas a atenção à função prática que define a arquitetura, mas a atenção às duas funções, prática e mítica:

Quando uma coisa responde a uma necessidade, ela não é bela, ela satisfaz toda uma parte de nosso espírito, a primeira parte, aquela sem a qual não há satisfações ulteriores possíveis; (...).

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engenheiro exaltado por Le Corbusier, que podemos ver ecoando na obra de Cabral, vêm tanto da utilização de materiais e técnicas modernas de construção como da economia, objetividade e funcionalidade que regem seu exercício profissional.

Além disso, se, num primeiro momento, nos perguntamos por que a figura do engenheiro e não a do arquiteto é usada no título, já que a epígrafe remete ao arquiteto franco-suiço, a leitura dos poemas que integram a obra permite reconhecer que há, nesse momento do processo projetual e construtivo da poética cabralina, a afirmação de um fazer poético que se aproxima do fazer da engenharia, em que prevalece o estudo das características dos materiais utilizados, das condições do terreno (orientação, topografia, incidência dos ventos), do destino da construção e o dimensionamento e especificação da estrutura. Nessa obra, é a construção em si que está em jogo e ela é vista pelo prisma do engenheiro. Podemos estabelecer uma relação de homologia envolvendo os termos “poema”, “construção”, “poeta” e “engenheiro”: o poema está para a construção civil assim como o poeta está para o engenheiro (poema : construção :: poeta : engenheiro). O olhar do arquiteto e sua preocupação com a organização física e estética do

espaço, em função do homem que o habitará, surgirá em obras posteriores, como veremos adiante.

Vale a pena, porém, determo-nos um pouco nesta oposição entre engenheiros e arquitetos e acompanhar as reflexões de Le Corbusier acerca desta questão. Em La Maison des hommes,

François de Pierrefeu e Le Corbusier apresentam um esquema que resume o que, para eles compõe a natureza e a missão do “mestre-de-obra” (Cf. PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942). A fim de rever as bases da arquitetura da nova civilização maquinista, os autores resgatam esse termo medieval - “mestre-de-obra” -, não apenas para restituir sua dignidade, mas, sobretudo, para, na busca de sua definição, traçar as linhas-mestras do profissional que deveria ser o responsável pelas obras que a vida moderna exigia.

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assumiram posturas diferenciadas (e quase opostas) em relação à construção: de um lado o arquiteto, privilegiando o conhecimento do homem e da arte; de outro lado o engenheiro, dando maior relevo e importância ao conhecimento técnico. Essa tendência foi agravada pelo direcionamento dado à formação acadêmica que, especializada e especializadora, dirigia a formação profissional ou para a estética pura ou para a matemática pura, representando, respectivamente, segundo os autores, o “perigo das Belas Artes” e o “perigo da politécnica”: “la façade préférée au logis” e “le kilowatt préférée au muscle” (PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p 114).

Resgatar o sentido medieval do “mestre-de-obra” significava, assim, reunir os dois pólos de conhecimento e transformá-los nos suportes da construção moderna. Na junção dos dois tipos de conhecimento estaria, pois, “o segredo e a razão de ser do mestre-de-obras”:

Le maître d’œuvre idéal serait um humaniste, qui composerait en

lui-même, pour les animer de son souffle, deux acteurs distincts, un architecte et un engénieur. (PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p. 108)

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fonte: PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p. 117

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engenheiro estão representados por dois círculos, colocados respectivamente acima e abaixo de uma faixa horizontal central, que representa, por sua vez, um inventário de edificações.

A cor azul simboliza o “conhecimento do homem”: necessidades espirituais, intelectuais, cívicas, sociais, familiares, fisiológicas, materiais.

A cor vermelha simboliza o “conhecimento das leis da física” (empírico e científico): conhecimento dos materiais, da lei da gravidade e da estática, da resistência dos materiais, o conhecimento das hipóteses matemáticas de cálculo.

É relevante observar que o círculo superior, que representa as predisposições técnicas e a cultura do arquiteto, tem a maior parte de sua área em azul e apenas uma faixa em vermelho, enquanto no círculo inferior, que representa as predisposições e a cultura do engenheiro, a proporção é inversa. Segundo os autores,

Sensibilité et technique doivent figurer en effect, sous des dosages différents mais fondues ensemble inséparablement, dans l’une et l’autre discipline. (PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p. 118)

A faixa horizontal central, que representa um inventário das edificações, é dividida em nove setores8, dispostos da esquerda para a direita, de acordo com uma seqüência determinada pela função prática das edificações: 1- templo ou monumentos (religiosos ou patrióticos); 2- hotéis, bibliotecas, teatros etc. (lazer e cultura); 3- hospitais, casas de repouso, sanatórios (saúde); 4- estádio de esportes, clubes, escolas etc. (esporte e educação); 5- a casa (família); 6- edifícios de administração, públicos ou privados, escritórios (trabalho - serviços); 7- oficinas e pequenas fábricas (trabalho – artesanato e manufaturas); 8- indústrias e empresas (trabalho - indústrias); 9- pontes, estradas, barragens etc. (obras de infra-estrutura).

Duas setas partem do centro do inventário (da casa), em diagonal, uma para a direita, definindo um gradiente crescente do que chamam “homem econômico”, e outra para a esquerda, definindo um gradiente crescente do que chamam “homem espiritual”. Essas setas diagonais dividem cada um dos vários setores do inventário das edificações inventariadas em dois triângulos, um azul e um vermelho.

8

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Dois eixos coordenados permitem comparar as edificações inventariadas: no eixo horizontal, temos o gradiente de importância das coerções dos materiais, das exigências da física e do cálculo; no eixo vertical, o gradiente da a liberdade de criação e do direito à beleza.

A casa ocupa a posição central do inventário de edificações e é representada por dois

triângulos iguais, um azul e um vermelho, mostrando que, na casa, “raison et sensibilité y concourent à parts égales” (PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p. 118).

As edificações colocadas à esquerda da casa requerem uma predominância do arquiteto

sobre o engenheiro. Nesses casos, dizem os autores, o “mestre-de-obra” será um arquiteto. Por outro lado, as edificações colocadas à direita do eixo central exigem uma predominância do engenheiro sobre o arquiteto e, nesses casos, o “mestre-de-obra” será um engenheiro, embora, lembram os autores, a contribuição do arquiteto não seja dispensada nem mesmo se a obra for inteiramente técnica, como uma barragem.

Assim, a epígrafe Le Corbusier, ao mesmo tempo em que evoca as propostas do arquiteto franco-suiço, anuncia, junto com o título, não apenas o ideal construtivo almejado, mas sobretudo o tipo de edificação a ser construída e o “mestre-de-obra” encarregado de sua construção. Talvez possamos nos valer do esquema proposto por Pierrefeu e Corbusier para entender as várias expressões utilizadas indiferentemente para qualificar o poeta: “poeta-engenheiro”, ”poeta-arquiteto”, ”poeta-construtor” ou ”pedreiro do verso”. Essas expressões contêm, mesmo que à revelia de quem as usa, uma concepção (acertada ou equivocada, dependendo do caso) acerca das predisposições, cultura, formação técnica específica dos vários profissionais. Embora as expressões sejam próximas ou afins, como afirma Eucanaã Ferraz (2000, p.21), uma vez que todos os profissionais arrolados participam da atividade construtiva, elas não são sinônimas e apontam para diferenças significativas na maneira de definir seu objeto e seu método de atuação. O que não quer dizer, obviamente, que um profissional seja melhor do que os outros; significa, apenas, que há diferenças na relação que estabelecem com seu objeto (qualquer que seja a natureza da edificação a ser construída) e que cada construção ou etapa da construção convoca um determinado profissional. Em Precisões: sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo, Le Corbusier coloca o problema da seguinte forma:

Coloquei o engenheiro em primeiro plano. Por uma arquitetura (meu

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constituía, até certo ponto, uma antecipação. Em breve eu iria pressentir o “construtor”, “o novo homem dos novos tempos”.

O engenheiro é análise e aplicação dos cálculos; o construtor é síntese e criação. (LE CORBUSIER, 2004, p.45)

Outro aspecto ligado ao título da obra e dos poemas que a integram deve ser observado. Trata-se da identidade sintática da construção dos títulos dos poemas que compõem o livro, cuja constância reiterativa, afirma Eucanaã Ferraz, revela-se como um aspecto construtivo significativo (Cf. FERRAZ, 2000). Entre os vinte e dois poemas que compõem a obra, os dezesseis primeiros têm os respectivos títulos construídos por artigo definido + substantivo. Nos

cinco poemas seguintes a construção de base é: preposição a + nome de um homenageado. E no

último poema, adjetivo + substantivo + adjetivo.

Se, por um lado, essa constância reiterativa faz eco a mais um dos postulados de Le Corbusier, o do módulo construtivo, já que a mesma fórmula (não se trata de fôrma, salientamos, mas de constante matemático-formal) é tomada como base para a construção dos títulos, por outro lado, esse recurso construtivo revela um modo de aproximação e de estudo do objeto tomado como fonte de interesse.

Como salienta Ferraz, no primeiro e maior grupo de poemas aproximados pela construção dos títulos, o

artigo definido indica que o substantivo é um ser conhecido do leitor ou ouvinte, seja por ter sido mencionado antes, seja por ser objeto de um conhecimento pela experiência. (FERRAZ, 2000, p.116)

Dessa forma, segundo o ensaísta, ao pressupor um conhecimento prévio partilhado com o leitor, os títulos dos poemas propõem um diálogo com o leitor, que é “convidado à leitura, à interpretação das coisas do mundo”. Se há na construção dos títulos uma busca de aproximação entre o texto e o leitor, e não negamos que haja, não podemos deixar de observar também que há uma declaração de intenção (um termo de compromisso?) de exploração cognitiva, de aproximação e compreensão do construtor em relação aos objetos que se põe a estudar e construir.

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formulado (colocado) no título. É o que encontramos no poema “O engenheiro”, homônimo ao título da obra, em que os ecos da lucidez da fala de Raimundo, de Os três mal-amados, se

expandem em uma nítida tomada de posição a favor de valores ao mesmo tempo éticos e estéticos característicos do fazer do engenheiro, como exaltado por Le Corbusier: a construção buscada e empreendida a partir do cálculo e da economia, em prol do bem comum9.

Nos poemas seguintes, o módulo construtivo é preposição a + nome de um homenageado.

Como aponta Ferraz,

O endereçamento pressupõe o termo precedente (o poema), subentendido, e sublinha seu destinatário, aqui também o próprio motivo da escrita. (FERRAZ, 2000, p.117)

Se nos poemas anteriores o que prevalecia era a busca de aproximação e compreensão dos objetos de estudo, ou de um certo fazer artístico generalizado pela profissão do construtor, como no caso de “O engenheiro”, nesse grupo de poemas-homenagem o que prevalece é a aproximação em relação às premissas que presidem os modos de conceber e fazer - poético, pictórico, futebolístico – de seus homenageados, individualizados agora pela nomeação. O estudo do fazer dos homenageados permite reconhecer afinidades e divergências e evidencia a necessidade de definir e explicitar ainda mais rigorosa e claramente as premissas que devem reger a sua própria ação construtiva.

Essa busca de definição e explicitação de uma dicção própria está presente, também, no último poema da obra, “Pequena ode mineral”. Neste poema, porém, a aproximação não se dá a partir do fazer de um homenageado, como no grupo anterior de poemas, mas a partir da própria tradição literária. O título do poema tem a seguinte construção sintática: adjetivo + substantivo + adjetivo. O centro da construção do título, o substantivo “ode”, remete para o próprio poema,

uma vez que o termo, de origem grega – oidê, canto - designa uma forma poética tradicional,

destinada ao canto com acompanhamento musical. Trata-se, portanto, de um metapoema, que, enquanto tal, põe em questão os valores subjacentes à forma poética da tradição lírica, apontando para uma nova maneira de encarar a feitura do poema.

9 Não podemos nos esquecer da utopia corbusiana segundo a qual os novos princípios construtivos da máquina e,

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No plano do conteúdo, o substantivo “ode” é qualificado e especificado pelos adjetivos que o ladeiam: “pequena” define a extensão dimensional do substantivo e “mineral” define a natureza do objeto a ser construído. No plano da expressão, os dois adjetivos que envolvem graficamente o substantivo “ode” (pela posição anterior e posterior em relação ao substantivo) funcionam como uma espécie de “contorno” gráfico-visual que mantém o substantivo sob controle físico, definindo-lhe a tamanho (pequena) e matéria (mineral).

A “ode” surge, assim, como “material sólido natural, inorgânico, de composição química definida e estrutura interna regular” (Cf. HOUAISS, 2001, p. 1926), substância que ocupa lugar no espaço, sujeita a receber determinada forma ou sobre a qual pode atuar algum agente. A posição dos adjetivos do título afirma e reitera a espacialidade implícita nos signos “pequena” e “mineral”. Ao mesmo tempo, o núcleo sêmico dos signos “ode” e “mineral” apontam, respectivamente, para a musicalidade e regularidade eufóricas, culturalmente obtidas, e para a solidez inorgânica e regular, naturais do mineral.

A oposição entre natureza e cultura presente no título do poema anuncia, pois, a intenção de aderir a fazer poético que toma como modelo um elemento da natureza – o mineral - e sua constituição formal, sobrepondo espacialidade à musicalidade.

Os adjetivos circunscrevem o substantivo, determinando os limites de sua “área”, podendo ser comparados às paredes que definem o espaço interior de uma construção arquitetônica. Embora se encontre num espaço interior criado por esse “contorno”, a espacialidade criada não revela, porém, um caráter plenamente arquitetônico, pois, ainda que exista espaço interior, esse espaço é bidimensional, planar e gráfico, no qual estão dispostos os elementos a serem problematizados e a maneira segundo a qual serão manipulados. Ou seja, o foco de atenção não é, ainda, o espaço em si, mas a matéria a ser enformada, o modo e o processo de construção.

Se a existência de espaço interior é condição sine qua non para que a edificação seja

Referências

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