• Nenhum resultado encontrado

Do problema da alteridade no pensamento freudiano: uma construção.

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "Do problema da alteridade no pensamento freudiano: uma construção."

Copied!
20
0
0

Texto

(1)

RES UMO:Procura-se refletir sobre o tem a da alteridade em Freud,

pensando as relações do autor com o pensam ento greco-rom ano e a tradição judaica. Objetiva-se, ainda, construir algum as figuras de alteridade, capturar os diferentes graus de com parecim ento do Ou-tro que podem ser pensados com o causas do sujeito. A partir da lei-tura dos artigos técnicos de Freud, busca-se apreender as diferentes figuras de alteridade que atravessam a teoria e a clínica freudianas.

Palavras - chave : Alteridade; freudism o; sujeito.

ABSTRACT: Th e problem of alter ity in th e Freu dian th in kin g: a

con str u ction . Th is article aim s at reflectin g on th e th em e of alterity in Freu d stu dyin g th e relation s of th e au th or w ith th e Greek-Ro-m an an d Jew ish tradition . The purpose also is to construct soGreek-Ro-m e figures of alter ity, catching the different degrees of the presence of the “ other” , that can be thought of as causes of the subject. From the reading of technical articles we have tried to understand the different figures (Gestalten) of alterity that the Freudian theory and clinic face.

Ke y w ords : Alterity, Freudianism , subject.

O

problem a da alteridade não se apresenta de m odo explícito e claram ente tem atizado no texto freudiano, pois a obra de Freud é relativam ente tributária da lógica identitária pre-sente no pensam ento ocidental, ou seja, os paradigm as grego e rom ano exercem grande fascínio sobre o psicanalista. Atenas e Rom a1 são as cidades que habitam os sonhos de Freud; o seu

Doutora em psicologia, PUC-SP; m estre em filosofia, UFMG; professora da PUC-MG/ Betim ; psicóloga clínica.

Ja cq u e lin e d e Olive ira More ira

*Trabalho baseado em tese acadêm ica: “Figuras de alteridade no pensa-m ento freudiano”, 2003. 262 p. Tese. ( Doutorado epensa-m Psicologia Clíni-ca) . Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ( Orientador: Luís Cláu-dio Mendonça Figueiredo.)

(2)

desejo de ser reconhecido pelo m undo ocidental o conduz ao berço dessa cultu-ra. Mas a tradição presente na tram a edípica de Freud é a judaica, nesse caso, a cidade de Jerusalém será inscrita no inconsciente de Freud, m as a hum ilhação a que é subm etido o povo judaico, incluindo-se aí a de seu pai, Jacob Freud, leva-o na direçãleva-o de Atenas e Rleva-om a. O tem a da alteridade é fundam ental na tradiçãleva-o judaica, e está expresso na figura de Deus, a alteridade por excelência, enquanto que o pensam ento greco-rom ano prioriza2 a lógica da identidade. Assim , a

pro-blem ática da alteridade, em conseqüência da relação am bígua de Freud com o judaísm o, aparece im plícita em seus textos.

Não podem os negar a am bigüidade freudiana em relação ao judaísm o, no entanto, ao final do texto “As resistências à psicanálise” ( 1924/ 1974) , Freud chega a declarar que a nova teoria exige um grau de aptidão e aceitação da “situação de oposição solitária — situação com a qual ninguém está m ais fam ilia-rizado do que um judeu” ( FREUD, 1925, p.275) . Na interpretação de Fuks ( 2000) , no ato de aproxim ar a psicanálise do judaísm o, Freud não se lim ita a ressaltar a condição de solidão teórica e histórica em que vive, m as se refere, tam bém , à condição de estrangeiridade, de sustentação da alteridade e da diferença, m arcas com uns do judaísm o e da psicanálise. Sobretudo se pensarm os que a psicanálise se situa historicam ente no cam po da filosofia da consciência. Fuks segue em sua interpretação, aproxim ando a experiência da Diáspora judaica, definida com o dispersão, com o ruptura, com os pacientes da psicanálise que se encontram divi-didos no “‘país do Outro’ aquele que está além de toda fronteira: o inconsciente” ( FUKS, 2000, p.48) .

Corroborando a lógica identitária inaugurada na Grécia, o pensam ento m o-derno irá afirm ar de m odo inequívoco, desde a instauração do Cogito Cartesiano, a prim azia do eu. Assim , para m uitos autores, o conjunto do pensam ento m oder-no pôde ser interpretado com o incluído oder-no que se deoder-nom ioder-nou “paradigm a da filosofia do sujeito e da consciência”. No entanto, em bora possa parecer parado-xal, Freud colocou-se com o um crítico vigoroso do consciencialism o filosófico que caracteriza esse paradigm a do pensam ento m oderno. Não obstante, Freud não explicita as im plicações e os pressupostos de suas teorias e, assim , não de-senvolve tematicam ente a questão da alteridade.

Foi exatam ente essa não-explicitação que nos estim ulou a abordar a obra freudiana sob tal prism a. A partir da leitura de alguns textos de Em m anuel Lévinas ( 1980) , o tem a da “alteridade” pareceu-nos um legítim o operador conceitual,

(3)

que perm itiria um a leitura renovada do texto freudiano, um novo ângulo de leitura que nos daria instrum entos para explorar questões pertinentes tanto para a teoria quanto para a clínica.

Acreditam os que a m ais relevante discussão levinasiana sobre a “Problem ática da Alteridade” esteja na reflexão de inspiração bíblica sobre Deus enquanto figu-ra negativa de um a “Alteridade Radical”. A discussão situa-se no cam po da teolo-gia apofática ou negativa, segundo a qual, sendo absolutam ente transcendente, Deus não pode ser racionalm ente conhecido e apreendido num a tram a conceitual. Nessa perspectiva, a “Alteridade Radical” não poderia se colocar em contraposição a um a “identidade Originária” pois, enquanto radical, por princípio, não pode-ríam os defini-la, e esta é um a exigência prim ordial do pensam ento levinasiano. Entretanto, a idéia levinasiana de “Alteridade” pode ser tam bém tom ada com o um a categoria filosófica, ou seja, com o um predicado fundam ental (praedicamentum), com o um m odo fundam ental de ser da realidade, um a dim ensão necessária para q u e p o ssam o s co m p reen d er a realid ad e. Assim co n ceb id a, a catego r ia d e “Alteridade” nos ajuda a dem arcar um cam po discursivo e a estabelecer os con-tornos de um universo teórico, de um saber que se diferencia e se relaciona.

Nossa proposta visa dem onstrar que, ao nos aproxim arm os do texto freudiano a partir dessa categoria de “Alteridade”, pode ser evidenciado um aspecto de sua originalidade, com o texto fundante de um saber inovador e sui generis. Isto é, à luz da categoria de “Alteridade”, a psicanálise — enquanto saber que tom a com o objeto o “inconsciente” — pode ser interpretada com o instauração de um novo cam po discursivo que escapa à lógica identitária que em geral preside a consti-tuição da racionalidade científica. O “inconsciente”, tom ado com o o “objeto” por excelência da psicanálise, seria com preendido, em seu estatuto originário, com o um a dim ensão da “Alteridade”.

Nesse sentido, nossa aproxim ação com o pensam ento de Lévinas se inscreve com o um a m otivação inicial, em bora não tenham os a pretensão de realizar m aior aproxim ação entre o pensam ento levinasiano e o freudiano.

Nossa intenção consiste, portanto, em retom ar o texto freudiano, porém não apenas para reiterar m ais um a vez as suas idéias, m as para abordá-lo a partir de um a perspectiva que lhe seja sim ultaneam ente estranha e fam iliar (Unheimlich/

Heimlich) , isto é, o horizonte da alteridade. Acreditam os que essa perspectiva pos-sibilitará o estabelecim ento de novas articulações conceituais, tanto em nível da teoria pura ( m etapsicologia) quanto em nível da clínica.

(4)

d im en sõ es alter itár ias su b jacen tes às in tr in cad as tram as p sico p ato ló gicas investigadas por Freud na constituição da subjetividade, com o, tam bém , revelar as vicissitudes da alteridade no interior da reflexão sobre a cultura.

A obra freudiana foi produzida num contexto filosófico em que predom inava o pensam ento da identidade e do ‘m esm o’ e, neste sentido, a tem ática da dife-rença e da alteridade não poderia ser plenam ente explicitada por suas teorias, um a vez que estas se form am num outro horizonte teórico. No entanto, as diver-sas épocas da história do pensam ento ocidental não podem ser definidas com o se fossem “blocos m onolíticos” e, assim , em bora um a determ inada problem á-tica teórica goze de hegem onia, isso não significa que nela não circulem , ainda que de m odo m arginal e pouco elaborado, outros tem as, idéias e intuições que só m ais tarde serão trabalhados de m aneira intensiva. Assim , um autor, ainda que não os elabore intencionalm ente e não os tem atize de modo claro, poderá trazê-los de m odo im plícito e obscuro ou até m esm o com o um a perspectiva inerente à lógica de seu discurso. Essa investigação, na linha daquilo que não é form ulado de m odo claro na obra dos pensadores verdadeiram ente em inentes, tem se m os-trado um a abordagem herm enêutica fecunda e, portanto, nos autoriza a supor que, no caso do texto freudiano, ainda que a problem ática da alteridade não apareça com o um a preocupação central do autor, pode oferecer-nos um a possi-bilidade de leitura enriquecedora, tanto para a discussão teórica quanto para a prática clínica.

Talvez a ausência de expressões com o “outro” e “alteridade” possa traduzir a tendência solipsista que caracteriza o paradigm a da consciência que dom ina o pensam ento m oderno. Segundo Schneider, o m ovim ento de “edificar um a bar-reira entre si e o outro, entre o sujeito e objeto, dom ina não som ente a tendência fundam ental da filosofia clássica, tendência questionada por Lévinas; m as tam -bém é discernível no interior da trajetória freudiana”( SCHNEIDER, 1997, p.71) . Para Assoun, seria m érito de Lacan a introdução da problem ática da “Alteridade” no interior da psicanálise, pois Freud prom ove um a “explosão do outro num discurso que faz da ciência sua única legitim idade sem ântica” ( ASSOUN, 1997, p.98) . Fuks, em sua leitura do texto de Assoun sobre a questão da alteridade na psicanálise, reforça nossa posição. A autora revela:

“Pode-se concordar com Assoun quando ele diz que Freud não teve a necessidade, na produção de sua teoria, de designar um a instância discursiva do Outro, m as é preciso contrapor que nem por isso deixou de atrelar a psicanálise à presença da inquietante

(5)

Segundo Assoun, Lacan se opõe “ao egologism o identitário que am eaça o destino do ‘freudism o’, m esm o ao preço de se introduzir um a instância discursiva do ‘Outro’ que o próprio Freud não sentia de fato com o necessária” ( ASSOUN, 1997, p.92) .

Birm an, atento à am bigüidade presente no texto freudiano, anuncia duas di-ferentes versões de leitura que relacionam a psicologia com a problem ática filoidentificação, irá se im pondo no discurso freudiano a exigência de um a di-m ensão ética, pois a presença traudi-m ática do outro na constituição da subjetivi-dade im plica no reconhecim ento de um a dívida sim bólica.

Para Birm an, a “introdução ao narcisism o” coloca a problem ática da alteridade na cena analítica, m as o autor ressalva que será com o conceito de pulsão que a dim ensão alteritária aparecerá de m aneira decisiva. As reflexões sobre a alteridade rem etem -nos ao universo do pulsional, universo no qual a presença e/ ou ausên-cia do “outro” aparece com o fundam ental para a econom ia libidinal do “eu”, pois a constituição do “eu” é possibilitada exatam ente através da oferenda do “outro”. A presença do “outro” é condição de possibilidade da constituição do “eu”, o que não im plica, porém , na aceitação de um hum anism o adocicado, na defesa de um a harm onia preestabelecida, pois o que caracteriza o discurso psica-nalítico é o reconhecim ento do caráter traum ático dessa presença constitutiva do o u tro. Assim , p ara Bir m an , teríam o s n o texto fr eu d ian o u m a crescen te problem atização da perspectiva da alteridade. Segundo ele:

“...o sujeito em psicanálise seria m arcado pela alteridade, m arca constitutiva do seu ser [ ...] se o sujeito se constitui pela costura entre o corpo pulsional e o Outro, num

m ovim ento sem pre recom eçado e insistente, ele é atravessado pela alteridade” . ( BIRMAN, 1996, p.62) .

Mezan pensa a questão da alteridade, centrando a discussão na concepção crítica freudiana acerca da cultura. Revela que o “outro” aparece em “quatro posições possíveis: ou é objeto da pulsão, ou um m eio de obter este objeto, ou um obstáculo que se interpõe entre este e o sujeito, ou, por fim , um m odelo para o sujeito” ( MEZAN, 1985, p.454) . O autor não irá se dedicar às m odalidade que se referem à esfera do objeto; pois o seu objetivo é refletir sobre a form a em que o “outro” m antém sua alteridade na relação de constituição do “eu”. O tem a da identificação, com o um a m odalidades originária na relação entre eu e o outro, e as dificuldades im postas por essa afirm ação constituem o terreno fértil onde irão florescer as reflexões de Mezan sobre a alteridade.

(6)

desvelar outras dim ensões de alteridade e, com este propósito, tom am os com o inspiração a afirm ação de Horus Vital Brazil, que assinala:

“a m ultiplicidade dos objetos-causa do desejo inconsciente, que, em bora finitos,

apontam , na sua diversidade, para as m últiplas configurações da alteridade dos sujei-tos na dim ensão fenom ênica. Esta estrutura diacrítica e alteritária im põe a concepção de um Outro com o um com plexo sêm ico, com m últiplas derivações sem ânticas, o que é um a questão da fenom enologia.” ( BRAZIL, 1998, p.166)

A descrição fenom enológica das figuras de alteridade revela-nos várias for-m as de presença do outro, que pretendefor-m os construir.

ALTERIDADE E JUDAÍS MO: A HERANÇA PATERNA

Flem , ao pesquisa para O homem Freud: O romance do inconsciente, traduz as angústias de um conquistador entre Atenas, Roma e Jerusalém. O filho de Jacob identifica-se e sofre com a hum ilhação do pai. É preciso que seus agressores se curvem diante do gênio judeu, resgatando, assim , a im agem de seu pai. O filho, através da grandiosidade de sua obra, vinga a hum ilhação paterna, m as o preço parece ser um afastam ento da herança paterna e um a aproxim ação com a cultura dos agressores. Em texto escrito a Roback, Freud declara que Jerusalém é sua parte de incultura, seu continente negro, esquecido em nom e da necessidade de filiação com a cultura greco-latina. Freud se filia à cultura ocidental através da vertente greco-rom ana, buscando reconhecim ento intelectual. Segundo ainda Flem , “a Jerusalém invisível para a qual Freud não tem conteúdo nem palavras, esclarece-se pelo olhar que ele dedi-ca a Rom a e Atenas. São esses os espelhos de sua identidade” ( FLEM, 1993, p.75) . Jerusalém é invisível e silenciosa, m as sua força é inegável. Freud vive no seio de um a contradição intransponível. Rom a e a tradição helênica se opõem ao judaísm o. Corroborando essa hipótese de um Freud entre Rom a e a tradição judaica, podem os citar um sonho do m estre, no qual ele é levado a um a colina e vê Rom a velada pela neblina. Esse sonho rem onta à idéia da terra prom etida, é Canaã que aparece no subtexto. Nas palavras de Fuks, “o aparecim ento deste significante Rom a-Canaã, efeito da lógica do sonho, é por si m esm o revelador que dispensa interpretações” ( FUKS, 2000, p.34) .“Sonhos desse estilo parecem -nos resultantes do conflito de ser pai de um a obra ocidental e filho de um pai judeu” ( FLEM, 1993, p.90) .

A fam ília de Freud é originária da Galícia Oriental, e integra o grupo deno-m inado Ostjuden, judeus orientais que, segundo Fuks:

(7)

judeus de fala alem ã. É provável que Jakob e Am alie tenham sofrido algum a discrim i-nação ao se instalarem na parte proletária e m iserável do bairro judeu...” ( FUKS, 2000, p.18)

Esse conflito interno produz efeitos na obra de Freud. Com o adm irador de Rom a e Atenas, a lógica da identidade será resguardada, m as com o filho do juda-ísm o, a dim ensão da alteridade se fará presente. Freud não tem atiza de form a explícita a dim ensão da alteridade. Parece-nos que a dim ensão do Outro irá se afirm ando em silêncio no m ovim ento da obra de Freud. Seria preciso assum ir explicitam ente a tradição judaica para que o outro aparecesse sem véu. Segundo Badiou, será o m ovim ento de assum ir o judaísm o que perm itirá a Lévinas o reconhecim ento da Alteridade com o ponto de partida. Para Lévinas, a origem grega da m etafísica subordinou o pensam ento à lógica do Mesm o que desconhe-ce o outro. É preciso, pois, buscar um a origem que anuncie a anterioridade ontológica do outro. Nas palavras de Badiou:

“É preciso portanto girar o pensam ento em direção a um a origem diferente, um a o r igem n ão grega, q u e p r o p õ e u m a ab er tu r a r ad ical e p r im eir a ao O u tro, ontologicam ente anterior à construção da identidade. É na tradição judaica que Lévinas encontra o ponto de apoio para esse giro.” ( BADIOU, 1995, p.34)

Assim , preten dem os com preen der a posição de Freu d sobre o tem a da alteridade com o resultado do seu conflito entre duas fortes tradições, a greco-rom ana e a judaica. Freud tem com o ponto de apoio a origem grega, m as a presença silenciosa de Jerusalém produz efeitos, e a problem ática da alteridade aparece ainda que recoberta pelo véu da lógica grega.

Não pretendem os psicanalisar Freud; estam os atentos à advertência de Fuks, que, estudando com cuidado alguns textos que refletem sobre a relação de Freud com o judaísm o, percebe a tentação e conseqüente incursão dos autores na operação de subm eter Freud à psicanálise. Fuks cita Mezan, em sua crítica con tu n -den te a esse tipo de abordagem : a psican álise n ão é de m odo algu m ‘retorno do repr im ido’( FUKS, 2000) . Devem os ter cuidado para não cair em tal falácia. A nossa reflexão descreve a prioridade do tem a da alteridade na cultura judaica e as am bigüidades de Freud em relação a essa herança e, com o conseqüência, em relação à questão da alteridade. Freud não tem atiza o tem a de form a explícita, não encontram os nenhum texto intitulado “O problem a da alteridade”, m as a problem ática atravessa todo o pensam ento de Freud: não seria esse duplo fenô-m eno resultante da relação de Freud cofenô-m o judaísfenô-m o?

(8)

pai da psicanálise entre duas grandes tradições. Freud tenta com preender o seu m al-estar e a sensação de incredulidade diante da Acrópole. Ele e seu irm ão esta-vam em Rom a e surge a possibilidade de ir a Atenas, m as não seria perm itido desem barcar na Grécia sem passaportes. Qual seria o passaporte de entrada? Para poder ingressar no m undo ocidental, ser reconhecido com o grande pensador, seria necessário negar o “Pai”? Freud anuncia a sua divisão: um Freud judeu, um Freud ocidental. Parece que a im possibilidade infantil pensada por Freud em ver Atenas é um a expressão do receio de que seja im possível a vitória, ou seja: com o poderá um filho de um judeu conquistar Atenas? Freud confirm a nossa hipótese ao convidar para sua argum entação a idéia dos arrasados pelo sucesso. O sofre-dor não se perm ite a felicidade: a frustração interna ordena-lhe que se aferre à frustração externa. A frustração interna é a m aterialização do severo superego, e este, por sua vez, é o representante da herança paterna, no caso de Freud, da tradição judaica que foi hum ilhada e torturada pela cultura greco-rom ana. Freud revela que duvidava de que um dia chegaria tão longe, e o desejo adolescente de viajar estava vinculado à insatisfação com a casa e a fam ília. A vergonha de ser judeu coloca Atenas e Rom a nos sonhos de Freud, m as a herança paterna produz um m al-estar diante das cidades. Freud anuncia:

“Pode ser que um sentim ento de culpa estivesse vinculado à satisfação de haverm os

realizado tanto: havia nessa conexão algo de errado, que desde os prim eiros tem pos tinha sido proibido. Era relacionado com as críticas da criança ao pai [ ...] Parece com o se a essência do êxito consistiria em ter realizado m ais do que o pai realizou [ ...] Assim , o que interferia em nossa satisfação de viajar a Atenas era um sentim ento

de respeito filial.” ( FREUD, 1936, p.245)

O filho realizou m ais do que o pai, m as a que preço? Foi reconhecido por aqueles que hum ilharam sua fam ília e tradição, está no centro da cidade-berço da cultura ocidental e é reconhecido com o um grande pensador, m as o preço foi negar seu pai e o judaísm o. Diante da Acrópole, Freud vive a experiência psíquica de desrealização e fracasso.

Entretanto, cabe um a ressalva: a relação de Freud com o pai é m uito m ais com plexa, pois Jacob Freud se filia ao grupo dos judeus ilum inistas, buscando um a aceitação pela com unidade. A Bíblia de Philippson, adotada pelo pai, é pre-senteada a Freud com a dedicatória que anuncia o desejo de que o filho se torne o novo judeu do ilum inism o.3 O próprio Jacob aproxim a Freud da corrente

(9)

ocidental, m as sua origem ortodoxa m arcou toda a fam ília com o signo da m isé-ria e do fracasso; só Freud venceu. Talvez nesse m om ento, Freud tenha se distan-ciado do judaísm o e se aproxim ado de Atenas e Rom a. A estratégia do pai funcio-nou para aproxim ar o filho do ilum inism o, m as não o aproxim ou do judaísm o. Desta form a, as relações am bíguas de Freud com a tradição judaica parecem -nos um a fonte de com preensão para a ausência explícita da palavra alteridade, e, concom itantem ente , representa um a form a de com preensão para a presença im plícita do tem a da alteridade na constituição do sujeito. Jerusalém é a cidade que atravessa a tram a edípica de Freud, m as sua decepção com o pai o coloca na trilha de Atenas e Rom a; contudo, as m arcas edipianas não desaparecem .

Parece-nos pertinente refletir por que a tradição judaica evoca o tem a da alteridade. Derrida, na reconstrução de Fuks, revela que “a identidade do Judeu consigo m esm o talvez não exista”. Judeu seria o outro nom e dessa im possibili-dade de ele ser ele próprio. Fuks acrescenta: “a judeipossibili-dade sobressai com o um dos nom es do não-idêntico” ( FUKS, 2000, p.76) . A ausência de um a pátria coloca o povo ju d eu n a situ ação d e n ô m ad e e, p o r co n seq ü ên cia, d e p er m an en te estrangeiridade. Segundo Fuks, o guia de leitura de Freud em Moisés e o monoteísmo é a precedência do nom adism o e da errância sobre a sedentarização na história do povo judeu, colocando, pois, a estrangeiridade com o valor suprem o. Fazer do profeta do judaísm o, Móises, um estrangeiro, um egípcio, está em perfeita con-sonância com o princípio do judaísm o, a saber, o princípio da estrangeiridade, da diferença, daquilo que escapa. É interessante notar que Freud nos “Estudos autobiográficos” ( 1925) ressalta a condição de errância de sua fam ília, acen-tuando, pois, a prevalência da estrangeiridade sobre a identidade na sua história pessoal.

Reafirm ando a situação de estrangeiridade, podem os falar sobre a trans-cendência absoluta de YHVH, anunciando a presença que se define por um a ausência. O tetragram a é im pronunciável e, portanto, escapa à representação, colocando com o ponto de partida para o ethos judaico a questão da alteridade radical. Fuks busca na leitura de Lévinas sobre o Deus judaico elem entos para com preender a dim ensão de alteridade constitutiva do povo judeu. Reproduzi-m os, pois, as passagens do texto de Fuks que se dedicaReproduzi-m à leitura do terReproduzi-m o

(10)

Acreditam os que a religião judaica acentua a questão da alteridade porque a experiência da Diáspora, do êxodo, a prevalência do nom adism o e da errância e, ainda, a experiência de um Deus que se apresenta com o pura ausência, pura diferença, conflita com a idéia de identidade; anuncia a prevalência da Alteridade sobre a identidade.

A reflexão sobre o problem a da Alteridade em Freud através da sua relação com o judaísm o parece-nos fascinante, m as não corresponde diretam ente ao objetivo proposto nesse texto, a saber, refletir sobre a incidência da alteridade no interior da obra freudiana.

AS DIFERENTES FIGURAS DE ALTERIDADE: AS CATEGORIAS DO DIS CURS O

Na prim eira página de “A pulsão e suas vicissitudes”( 1915) , Freud anuncia alguns pressupostos epistem ológicos da psicanálise. O autor defende a tese de que a ativi-dade científica consiste prim ordialm ente “na descrição dos fenôm enos” ( FREUD, 1915, p.137).Freud revela que a psicanálise difere da filosofia, pois a últim a parte de conceitos básicos e procura apreender todo o universo. Ao contrário, a psicaná-lise “se atém aos fatos de seu cam po de estudo, procura resolver os problem as im ediatos da observação, sonda o cam inho à frente com o auxílio da experiên-cia” ( FREUD, 1923, p.323) . Confirm ando essa tese no texto “Sobre o narcisism o: Um a introdução”( 1914/ 1974) , Freud aconselha o psicanalista a não abandonar a observação pela especulação, porque nas bases de um a teoria especulativa tere-m os conceitos nebulosos, enquanto que utere-m a ciência é erigida a partir da “inter-pretação em pírica” ( FREUD, 1914, p.93) . Frente aos desafios da explicação dos fenôm enos clínicos, Freud revela que é um a grande tentação adentrar o universo da especulação, “feita sob o patrocínio de um a escola filosófica, [...] m as nenhum substituto pode satisfazer os requisitos da ciência” ( FREUD, 1919, p.133) .

(11)

Seguindo esse conselho, gostaríam os de focalizar nossa reflexão sobre o pro-blem a da alteridade no pensam ento freudiano a partir de considerações sobre a teoria da clínica, ou m elhor, de ponderações técnicas.

Freud inicia um a de suas recom endações sobre a técnica da psicanálise con-vocando a arte do ensino do jogo de xadrez, tom ando-a com o um a m etáfora para a com preensão do ensino da arte da psicanálise.

“Todo aquele que espere aprender o nobre jogo do xadrez nos livros, cedo

descobri-rá que som ente as aberturas e os finais de jogos adm item um a apresentação sistem á-tica exaustiva e que a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a abertu-ra desafia qualquer descrição desse tipo. Esta lacuna na instrução só pode ser preen-chida por um estudo diligente dos jogos travados pelos m estres.” ( FREUD, 1913,

p.164)

A idéia subjacente a esta afirm ação de que o aprendizado deve contem plar o “estudo diligente dos jogos travados pelos m estres” parece-nos revelar que o lugar m ais apropriado para saber sobre a técnica e a práxisda psicanálise não é o livro, m as sim a experiência clínica m esm a; sobretudo aquela estabelecida no seu próprio processo analítico. Pois será o m ovim ento no interior do próprio pro-cesso de análise que anunciará a com plexidade das noções de transferência e repetição, que são conceitos fundam entais da clínica psicanalítica.

O conceito de transferência é discutido no artigo técnico “A dinâm ica da transferência” ( 1912) . Nele, Freud parte do pressuposto de que a “com binação entre disposição inata e influências sofridas durante os prim eiros anos produz um m étodo específico de conduzir a vida erótica”, que ele nom eia “clichês estereotípicos”. Esses clichês são constantem ente repetidos, de m odo que a apro-xim ação em direção a um a nova pessoa é acom panhada de idéias e ações prede-term inadas pela história dos laços libidinais do sujeito. Um a parcela desse histó-rico de catexias libidinais volta-se para a figura do analista. O cliente inclui o analista num circuito psíquico de laços libidinais que rem ontam à sua história edípica. Nesse sentido, a transferência será concebida com o um a verdadeira con-dição de possibilidade para o processo analítico e introduz a dinâm ica da relação eu / outro com o um a possibilidade de reflexão e direção para os destinos do circuito pulsional do sujeito em análise. A noção de transferência exige, no m íni-m o, coíni-m o é óbvio, a presença de dois teríni-m os a existência de uíni-m eu e uíni-m outro. A com preensão da dialética eu/ outro no processo analítico está condicionada à posição a partir da qual se busca a reflexão: a perspectiva do cliente difere da dim ensão do analista.

(12)

conduzem o sujeito à busca de um a ajuda especializada. Ao procurar um a análi-se, o sujeito, sem m uita clareza, dem anda intervenções de um outro-abstrato que se torna a expressão de saber sobre ele que ele m esm o não possui.

Esta teoria científica, encarnada pelo analista, possibilitaria com preender os fenôm enos hum anos, através de conceitos abstratos que perm item categorizar e analisar os fatos que efetivam ente se realizam na realidade da vivência em pírica, que é sem pre particular. Toda produção de conceitos é um a abstração da realida-de im ediata, ou seja, é um a form a realida-de m ediatização entre a vivência em si e a com preensão do sujeito. O hom em busca form as alteritárias que possam tornar com preensível sua vivência. Os m itos, as religiões e as ciências representam “ alter idades” n a fo rm a de sabedor ias qu e organ izam , fo rn ecem sen tido e com preensibilidade às experiências hum anas. A psicanálise integra esse grupo que nom eam os com o “alteridades abstratas”, que possibilita aos sujeitos, através de um a form a de saber, um a possível com preensão sobre a sua vivência. Parece-nos im portante enfatizar que esta figura de alteridade que denom inam os “ou-tro-abstrato” refere-se, em linhas gerais, a um a construção sim bólica que oferece ordenação para a experiência concreta. No caso, os m itos, religiões e ciências exercem função de outro-abstrato que por vezes são utilizados com o form a de-fensiva diante da verdade prim eira — a verdade da castração — que é condição de possibilidade dessas form as. Parece paradoxal, as grandes form as sim bólicas criadas pela hum anidade surgem para prom ulgar a lei sim bólica constitutiva da vida hum ana, m as são utilizadas com o form a de defesa contra essa ordem m aior. Assim , podem os encontrar dois níveis de outro-abstrato: os m itos, religiões e ciências exercem a função de outro-abstrato, de form as universais que perm item a com preensão da condição hum ana e a lei da castração, que se apresenta com o o outro-abstrato, que determ ina todas as nossas construções, seria o ponto zero da existência. Nesse m om ento, cabe um a interrogação ética sobre a prática do analista. Seria função ética do analista prom ulgar a lei da castração sem tréguas? Ou seria a busca de um term o m édio entre o desvelam ento dessa verdade básica e form as de suportá-la? Essa é um a questão que deve ser respondida por cada um em sua clínica.

(13)

com o analista, depositando nele suas im agos e desejos inconscientes; não vê a pessoa do analista, pois é prisioneiro da transferência. No processo psicanalítico, o outro participa nos processos transferenciais com o m igrações clandestinas dos desejos inconscientes.

Freud enfatiza o encontro entre o cliente e a “alteridade do saber”, represen-tada pela função do analista, quando revela que no processo analítico não ocorre um encontro entre dois sujeitos num sentido m eram ente dialógico. Não se trata do diálogo entre dois sujeitos e nem , m uito m enos, de um encontro entre sujei-to e objesujei-to, com o prescreve a clássica teoria do conhecim ensujei-to. Segundo Freud, o analista “deve sim plesm ente escutar e não se preocupar se está se lem brando de algum a coisa” ( FREUD, 1912, p.150) . Não se trata de um a busca de conheci-m ento lógico ou de uconheci-m a teoria prévia e forconheci-m alconheci-m ente explícita sobre a experiên-cia do cliente, pois o analista ouve de um outro lugar. Entretanto, o analista não deve escutar apenas a partir da tram a de sua subjetivação, não deve ouvir sim -plesm ente com o um outro concreto, m as deve encarnar, na sua função, o “outro-abstrato” do saber psicanalítico. De acordo com Freud, o analista “deve ser opaco aos seus pacientes e, com o um espelho, não m ostrar-lhes nada, exceto o que lhe é m ostrado”( FREUD, 1912, p.157) . O analista deve evitar a m anifestação desm e-dida de sua pessoa, deve ser um a presença discreta e não ocupar o lugar de um outro próxim o ao cliente. Freud adverte que os psicanalistas jovens e ávidos ficarão tentados a colocar sua própria individualidade livrem ente no debate; o princípio subjacente a essa atitude seria a idéia da reciprocidade, da sim etria, que os levaria a trocar um a confissão por outra. Nas relações psicanalíticas, esse tipo de técnica pode induzir, ainda no início do processo, o surgim ento de barreiras ou resistências inconscientes; pois não podem os esquecer que o analista é intro-duzido no circuito de repetições libidinais do cliente. Freud recom enda aos ana-listas um a “frieza em ocional que cria condições vantajosas para am bas as partes: para o m édico, um a proteção desejável para sua própria vida em ocional, e, para o paciente, o m aior auxílio que lhe podem os hoje dar” ( FREUD, 1912, p.153) .

Em suas recom endações ( 1913) , quando Freud sugere a seleção de pacientes, algum leitor desavisado poderia pensar que a decisão de aceitar ou não um clien-te depende exclusivam enclien-te da sim patia do analista pelo candidato à análise. Des-sa form a, na seleção de clientes, estaria presente de m aneira decisiva a individua-lidade do psicanalista. Mas Freud esclarece que “esteve-se apenas em preendendo um a ‘sondagem ’, a fim de conhecer o caso e decidir se ele é apropriado para psicanálise” ( FREUD, 1913, p.165) .

(14)

Assim , o sujeito, ao buscar um processo analítico, não visa um encontro entre am igos, um encontro intersubjetivo m as, de m odo m ais ou m enos explícito, a sua visada é a dim ensão de “alteridade do saber”; e o analista de sua parte não deve desfilar sua individualidade, não deve apresentar-se com o um outro con-creto. Muitas vezes, o conhecim ento da vida do analista por parte do cliente pode ser algo doloroso e até m esm o negado. Alguns clientes espantam -se ao encontrar o analista com endo um sanduíche, e existem casos de clientes que só percebem a gravidez da analista quando esta anuncia a sua saída para o parto.

Mas estaríam os defendendo a tese de um analista desencarnado, com total ausência de sua dim ensão de outro? Não é possível despojar-se totalm ente da individualidade e, m ais, a ética da psicanálise exige o reconhecim ento da castra-ção, por isso o analista não deve persistir fixado em um a dim ensão de “outro-abstrato”. Não podem os elevar um a função, ainda que essencial ao processo ana-lítico, a um a realidade hegem ônica em nom e da qual seria anulado a concretude do encontro entre analista e analisando.

(15)

o sem elhante, pode-se ter presente um a form ação inconsciente no lugar do va-zio do des-encontro. Vejam os o exem plo:

“Você entra num táxi e fala com o m otorista: ‘Puxa que frio!’. Você está esperando

que o m otorista responda: ‘É m esm o!’. Estam os com dois sem elhantes insatisfeitos com o frio... [ ...] Se o m otorista não responde, você vai procurar outro sem elhante. [ ...] [ ...] talvez ele queira m e assaltar. Isto daria o assaltado e o assaltante, que for-m afor-m outro casal de sefor-m elhantes. Mas se você não encontrar ufor-m sefor-m elhante...

Even-tualm ente vai aparecer no que você falou, um efeito de sujeito. Por exem plo, apesar do frio você irá esquecer seu casaco, produzir um ato falho. Enfim , qualquer tipo de form ação inconsciente.” ( CALLIGARIS, 1989, p.32)

Um a cliente contou-m e um episódio em que um rapaz perguntou se ela conhecia a cidade de Tiradentes. Ela respondeu que não. Ele disse, então, que aquela era um a ótim a cidade para casais de nam orados. Algum tem po depois, ela relatou seu carnaval na cidade de Diam antina, com a expectativa de que eu, a sua analista, iria intervir no conteúdo de seu relato, falar algo sobre as suas atuações durante o carnaval. Mas eu, sim plesm ente , a interroguei: “Não era em Tiradentes?” e a cliente respondeu de m odo inesperado: “Eu já des-esperei”. Em seguida co-m eçou a rir e disse: “Eu queria dizer que já havia deixado de esperar, co-m as na verdade estou m esm o desesperada.” O que m e pareceu interessante é que a au-sência de um sem elhante para a fala referente aos acontecim entos em Diam antina produziu um ato falho. É na possibilidade do des-encontro do diálogo sim étrico que a dim ensão inconsciente do cliente em erge. Quando o analista escuta, sem se preocupar com a sucessão lógica dos fatos, quando ele volta seu inconsciente com o um a antena parabólica na direção da transm issão inconsciente do cliente, ele cria um hiante ou um a vacância que possibilita o surgim ento do diferente, do “estranho fam iliar”, do alteritário.

Assim , além da presença do “outro-abstrato” do saber, em sua função tera-pêutica, o psicanalista trabalha, tam bém , a partir da posição de um outro do eu, ou seja, especificam ente a partir de seu inconsciente, daquilo que designam os com o o seu “alteritário”.

(16)

transferencial entre eu e outro, entre cliente e analista não está em questão o analista com o um outro-pessoa, ou seja, na sua individualidade. Na transferên-cia, o analista é convidado a ocupar um lugar de outro, m as referente aos jogos inconscientes do cliente. O cliente projeta no analista as figuras de outros, con-vocando outros próxim os à sua rede libidinal para atuar na transferência. A pes-soa do analista é substituída por um a outra pespes-soa próxim a à história libidinal do cliente. Freud pondera que:

“...esta catexia recorrerá a protótipos, ligar-se-á a um dos clichês estereotípicos que se acham presentes no indivíduo; ou para colocar a situação de outra m aneira, a catexia incluirá o m édico num a das séries psíquicas que o paciente form ou. Se a ‘im ago paterna’ foi o fato decisivo no caso, o resultado concordará com as relações

reais do indivíduo com o seu m édico.” ( FREUD, 1912, p.134)

Freud descreve dois tipos básicos de transferência: a transferência positiva e a negativa. Na prim eira, podem os encontrar a presença de sentim entos am istosos conscientes e o prolongam ento de im pulsos eróticos recalcados. A transferência positiva m ais a segunda m odalidade de transferência, a negativa, trabalham para a resistência. Na transferência de conteúdos inconscientes, Freud anuncia que:

“Os im pulsos inconscientes não desejam ser recordados da m aneira pela qual o tra-tam ento quer que o sejam , m as esforçam -se por reproduzir-se de acordo com a atem poralidade do inconsciente e sua capacidade de alucinação. Tal com o acontece nos sonhos, o paciente encara os produtos do despertar de seus im pulsos

inconscien-tes com o contem porâneos e reais; procura colocar suas paixões em ação sem levar em conta a situação real.” ( FREUD, 1912, p.143)

(17)

de sua hostilidade é a pessoa do analista. Para a resistência, o cliente convoca o “outro-pessoa” do analista, porém , é claro que não se trata da individualidade do analista, m as da fantasia do cliente sobre a pessoa do analista, um a vez que esta é sobreposta às im agos inconscientes transferenciais.

Parece-nos interessante ressaltar que, no processo terapêutico, o analista apa-rece com o um objeto que suscita a transferência. O term o objeto introduz um a nova m odalidade de reflexão sobre a presença do outro no processo analítico. Freud revela, ao tratar da questão da dinâm ica da transferência, que:

“Originalm ente , conhecem os apenas objetos sexuais, e a psicanálise dem onstra-nos que pessoas que em nossa vida real são sim plesm ente adm iradas ou respeitadas po-dem ainda ser objetos sexuais para nosso inconsciente.” ( FREUD, 1912, p.140)

O cliente, no m om ento em que convoca, para a sua resistência, a presença do psicanalista na m odalidade de “outro-pessoa”, ainda que desconsiderando, na ver-dade, a individualidade do analista, o está colocando na posição de “outro-objeto”, de instrum ento para a repetição dos seus laços libidinais inconscientes. A posição de “outro-objeto” parece-nos ser aquela que m ais nega a dim ensão de alteridade, de diferença, ou seja, que visa estabelecer um encontro com o idêntico. Mas a operação resvala e anuncia o diferente através do “outro-transferencial”. Neste sen-tido, o m anejo da transferência é decisivo, pois o analista se retira do lugar de outro-objeto, de alvo direto do am or ou do ódio, e anuncia a im ago inconsciente, o “outrotransferencial” que diz do desejo e produz um efeito de sujeito. É im -portante enfatizar que todo analista, enquanto profissional, se coloca no lugar de outro-objeto para o cliente, se oferece para a m anifestação da transferência.

O “outro-objeto” parece-nos, no interior da teoria psicanalítica, um im por-tante grau de m anifestação da alteridade, pois o inconsciente visa o objeto de satisfação no encontro com o “outro-pessoa”. Busca-se o objeto perdido, causa do desejo e, conseqüentem ente , do sujeito, pois o sujeito não é a causa de si m esm o, apenas pode advir a partir do outro. Sendo que este outro se apresenta para o inconsciente na form a de objeto de satisfação, teorizado na m itíca “Vivência de satisfação”. Freud define desejo, no “Projeto” ( 1895) , com o o m ovim ento de investim ento no traço de m em ória, buscando a vivência alucinatória da prim eira e m ítica experiência de satisfação. Desejo é, pois, busca do objeto perdido que foi oferecido pelo outro com o um a resposta ao desam paro do infans. Nesse senti-do, o outro é anterior ao eu e condição de possibilidade de sua existência bioló-gica e sim bólica. Na relação com o “outro-pessoa” busca-se o “outro-objeto”, objeto da pulsão, da experiência de satisfação, objeto perdido.

(18)

ou tro, sen do qu e essa relação é atravessada pela problem ática do n arcisism o. O “ outro-narcísico” representaria um a diferente m odalidade de m anifestação de alteridade. O “ outro-narcísico” não tem o estatuto de um a alteridade abs-trata, pois é preciso a presença concreta do outro no processo de constituição do eu; m as não é sim plesm ente um a outra pessoa, na m edida que aparece na tram a de constituição da subjetividade com o um a m arca fantasm ática, um tra-ço im aginário. Podem os aventar a hipótese de que, no narcisism o pr im ário, o outro precisa encarnar a perspectiva da pessoa próxim a, m as anunciando sem -pre a dim ensão im aginária. Enquanto que, no narcisism o secundário, que co-loca a questão do vínculo cultural, o “ outro-pessoa” privilegia a dim ensão do “ outro-abstrato” .

Assim , a partir da leitura herm enêutica dos Artigos Técnicos, quando provo-cam os o texto com o tem a da alteridade, construím os seis figuras de alteridade, ou seis graus de m anifestações da alteridade, que podem ser ordenadas em um a escala decrescente de radicalidade. Sendo que a m áxim a presença de alteridade, no nosso esquem a, situa-se no “outro-abstrato”, traduzida pela verdade da cas-tração e em seguida pelas form as universais de saber. A segunda form a refere-se ao “outro-pessoa”, im portante elem ento nas discussões éticas, m as que guarda certa estranheza em relação à psicanálise. O “outro-alteritário” representa a ter-ceira m anifestação da alteridade; trata-se de um a m odalidade que com bina di-m en sões abstratas ou sidi-m bólicas codi-m a exper iên cia do su jeito. O “ ou tro-transferencial” aparece com o quarta form a de alteridade, que tam bém com bina dim ensões concretas e sim bólicas, pois depende da presença de um a outra pes-soa para desencadear o processo de transferência. Na quinta figura, terem os o “outro-narcísico”, que aparece com o um a exigência interna da teoria psicanalí-tica, m ais precisam ente da teoria sobre a constituição da subjetividade. Se o eu ou o “outro-pessoa” é o palco de m anifestação de todas as dim ensões de alteridade, o “outro-narcísico”, por sua vez, atravessa todas as relações, na m edida que ele é condição de possibilidade do eu, do “outro-pessoa”, do sujeito. Enfim , descreve-m os udescreve-m a sexta descreve-m odalidade de alteridade: o outro-objeto enquanto dispositivo propulsor do desejo.

(19)

A categoria de alteridade se im põe com o um com plexo sêm ico de m últiplas derivações sem ânticas, exigindo um a descrição fenom enológica para capturar os diferentes graus de com parecim ento do outro; sendo que essas diversas figuras de alteridade podem ser pensadas com o causas do sujeito, ou seja, o sujeito em erge a partir da incidência do outro. E essas figuras podem ser utilizadas em leituras clínicas ou teóricas da psicanálise.

Recebido em 4/ 4/ 2003. Aprovado em 29/ 8/ 2003.

REFERÊNCIAS

ASSOUN, P-L. ( 1978) Freud, filosofia e filósofos. Rio de Janeiro: Francisco Alves. . ( 1983) Introdução à epistemologia freudiana. Rio de Janeiro: Im ago. . ( 1997) “O sujeito e o outro em Lévinas e Lacan”. Cadernos de Subjetividade. v. 5, n.1, São Paulo, Educ, p.91-116.

BADIOU, A. ( 1995) Ética: um ensaio sobre a consciência do mal. Rio de Janeiro: Relum e Dum ará.

BIRMAN, J. ( 1997) Estilo e modernidade em psicanálise. São Paulo: Ed. 34. . ( 1996) “Indeterm inism o e incerteza do sujeito na ética da psi-canálise ( um a leitura sobre o fundam ento ético do discurso freudiano) ”, in FRANÇA, M. I. ( org.) , Ética, psicanálise e sua transmissão Petrópolis: Vozes. BRAZIL, H. V. ( 1998) O sujeito da dúvida e a retórica do inconsciente. Rio de Janeiro:

Im ago.

CALLIGARIS, C. ( 1989) Introdução a uma clinica diferencial da psicose. Por to Ale-gre: Artes Médicas.

FLEM, L. ( 1993) O hom em Freud: O rom ance do inconsciente. Rio de Janeiro: Cam pus.

FREUD, S. ( 1974) Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, Rio de Janeiro, Im ago.

( 1950 [ 1895] ) “Projeto para um a psicologia científica”, v. I, p.303-410.

( 1900) “Interpretação dos sonhos”, v. IV e V, p.11-611. ( 1912) “Dinâm ica da transferência”, v. XII, p.131-146.

( 1912b) “ Recom endações aos m édicos que exercem a psicanálise” , v. XII, p.147-162.

( 1913) “Sobre o início do tratam ento”, v. XII, p.163-190.

( 1915 [1914]) “Observações sobre o am or transferencial”, v. XII, p.207-221.

( 1914 b) “Sobre o narcisism o: um a introdução”, v. XIV, p.85-122. ( 1915a) “A pulsão e seus destinos”, v. XIV, p.129-164.

( 1919 [ 1918] ) “Linhas de progresso na terapia psicanalítica”, v. XVII, p.199-214.

(20)

( 1936) “Um distúrbio de m em ória na Acrópole”, v. XXII, p.291-306. FUKS, B. ( 2000) Freud e a judeidade: A vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar.

LÉVINAS, E. ( 1980) Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70.

MEZAN, R. ( 1998) Tempo de muda: Ensaios de psicanálise. São Paulo: Com panhia das Letras.

. ( 1985) Freud, pensador da cultura. São Paulo/ Brasília: Brasiliense/ CNPq.

RIZZUTO, Ana M. ( 2001) Por que Freud rejeitou Deus? São Paulo: Loyola. SCHNEIDER, M. ( 1 9 9 7 ) “ A proxim idade em Lévin as e o N ebenm ensch

freudiano”. Cadernos de Subjetividade. n. 1, v. 5, São Paulo, Educ, p.71-90.

Jacqueline de Oliveira Moreira

Rua Congonhas,161 São Pedro 30330-100 Belo Horizonte MG Tel ( 31) 3223-3951

Referências

Documentos relacionados

A iniciativa parti- cular veiu em auxílio do govêrno e surgiram, no Estado, vá- rios estabelecimentos, alguns por ventura falseados em seus fins pelos defeitos de organização,

transformador; mas agora a potência total transferida à carga divide-se entre os dois transformadores, sendo que todos os diodos de saída são dimensionados para

O presente trabalho foi realizado em duas regiões da bacia do Rio Cubango, Cusseque e Caiúndo, no âmbito do projeto TFO (The Future Okavango 2010-2015, TFO 2010) e

Como parte de uma composição musi- cal integral, o recorte pode ser feito de modo a ser reconheci- do como parte da composição (por exemplo, quando a trilha apresenta um intérprete

Contemplando 6 estágios com índole profissionalizante, assentes num modelo de ensino tutelado, visando a aquisição progressiva de competências e autonomia no que concerne

Considerando a presença e o estado de alguns componentes (bico, ponta, manômetro, pingente, entre outros), todos os pulverizadores apresentavam alguma

Após extração do óleo da polpa, foram avaliados alguns dos principais parâmetros de qualidade utilizados para o azeite de oliva: índice de acidez e de peróxidos, além

São eles, Alexandrino Garcia (futuro empreendedor do Grupo Algar – nome dado em sua homenagem) com sete anos, Palmira com cinco anos, Georgina com três e José Maria com três meses.