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Espaços públicos de São Paulo: o resgate da urbanidade

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Academic year: 2017

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Universidade Presbiteriana Mackenzie

Mauro Calliari

Espaços públicos de São Paulo: o resgate da

urbanidade

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo

da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção

do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo

Orientador: Prof. Dr. Valter Caldana

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C158eCalliari,Mauro Sérgio Procópio

Espaços públicos de São Paulo: o resgate da urbanidade/Mauro Sérgio Procópio Calliari – 2014.

151f. : il. ; 30cm.

Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014. Bibliografia: f. 145-151.

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Agradecimentos

Agradeço a todos aqueles que participaram dessa caminhada, que se tem um quê de solitária, não teria sido possível sem os outros.

Aos professores Carlos Guilherme Mota e Heliana Comin Vargas, pela leitura cuidadosa, pelas orientações preciosas e pela atenção.

Aos professores do Mackenzie, pela acolhida.

À Nadia Somekh, Eunice Abascal e Abilio Guerra, pelos conselhos e pela força.

Aos meus colegas do mestrado, Roberta, Ana Carolina, Marcelo, Cássia, Silvia, Felipe, Cristina, Renata, Luis, Mauricio, Carla, Bezerra, Lótos, Fernanda, Patricia, Amanda, Mariana, Helena e demais companheiros de busca pelo sentido das coisas.

À Regina Meyer e Jorge Bassani, por me ajudarem a entrar num mundo novo.

Aos meus amigos queridos, que se submeteram cotidianamente ao exercício de passear pela cidade e vivenciar a urbanidade, Jota, Pierre, Flavinho, Lang, Melão. Ao Mauricio, por isso e também pelas fotos.

À minha família, pela disposição de discutir tudo, sempre. Dudo, Marcelo, Marcos, Glycia, Lu, Flavio, Ana Paula, Paula, Sabrina.

Ao meu orientador, Valter Caldana, pela honestidade intelectual, pela generosidade e pela disposição de encarar as minhas muitas hesitações. Alguns insights só aparecem depois de muitas horas e muitos cafés com pão de queijo.

Ao meu pai, pelo interesse em tudo o que acontece.

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Resumo

Esse trabalho trata da apropriação do espaço público na história de São Paulo.

Ele se utiliza de dois pilares conceituais: o primeiro é a discussão sociológica com base na obras de Richard Sennet e Olivier Mongin sobre a importância dos papéis públicos para a constituição da identidade do homem urbano e a ruptura do equilíbrio entre as esferas pública e privada na cidade contemporânea. O segundo é a conceituação das características do espaço que induzem a fruição: o significado, a diversidade, a inserção na cidade e os próprios aspectos físicos.

A periodização proposta parte da historiografia escolhida para destacar os eventos históricos da cidade que transformaram a maneira com que a sociedade paulistana se apropriou dos espaços públicos. O percurso histórico acompanha as mudanças na apropriação do espaço, tanto no uso cotidiano, como nos grandes eventos simbólicos, desde o momento em que a comunidade se transforma em cidade, passando por movimentos de crescimento, fragmentação, periurbanização segregação, até chegar ao final do século XX.

A cidade do século XXI é discutida no último período, à luz do ordenamento institucional proposto pelo novo plano diretor, dos movimentos da sociedade civil, como as marchas de junho de 2013 e, finalmente, da ressignificação, vivenciada na prática, de alguns locais emblemáticos.

Palavras-chave: Sennet, Mongin, apropriação dos espaços públicos, papéis públicos, cisão, fragmentação, espaços públicos, História de São Paulo, Praça Roosevelt, identidade.

Abstract

This paper wishes to discuss the appropriation of the Public Space in the history of São Paulo.

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characteristics of spaces that foster the interaction of people: the meaning, the diversity, the context and the physical characteristics.

The proposed historic review shows how the appropriation of the Public Spaces has changed according to historical context and highlights the most significant events which helped shape the daily fruition of the city by its dwellers.

The city of the 21st Century is discussed in the last part, where forces that seem to be impacting the use of the public space in São Paulo are debated: the new Master Plan, movements from the Society and the daily use of places that seem to depict a strong desire to recapture the original meaning of the public realm.

Key words: Sennet, Mongin, appropriation of public spaces, public roles, history of São Paulo, fragmentation, public spaces in São Paulo, Praça Roosevelt.

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Espaços públicos de São Paulo: o resgate da urbanidade

Sumário

Página

Introdução 7

1. O espaço público como expressão da identidade 1.1. Theatro mundi: o palco da vida

1.2. O narcisismo e a ruptura do equilíbrio entre o público e o privado

1.3. A recuperação da experiência urbana

13 14

21 28

2. O espaço público como lugar de encontro 2.1. O lugar: espaço com significado

2.2. A orientação no espaço: identidade e visão serial 2.3. A fruição do espaço: diversidade

2.4. As pessoas no espaço: escala humana

38 38 43 45 49

3. O espaço público em São Paulo 3.1. A comunidade

3.2. A cidade burguesa 3.3. A cidade dos carros 3.4. A cidade dos muros 3.5. A cidade hoje

54 63 73 88 99 117

Considerações finais 137

Referências bibliográficas 146

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Introdução

O estudo dos espaços públicos é um desejo pessoal há anos.

Começou com o flanar pela cidade, embrenhando sem saber na teoria da deriva e observando as pessoas nas calçadas, estações, feiras, praças. A fruição da cidade parecia ter ligação com a vivência da diversidade e o reconhecimento da alteridade.

Ora, se é nos espaços públicos que grande parte das trocas entre pessoas acontece, algumas questões começaram a tomar corpo: por que alguns lugares são tão agradáveis, interessantes, vitais, e outros, não? O que torna esses locais especiais para as pessoas?

À medida que mais questões foram surgindo, apareceu também a necessidade de um conhecimento mais profundo da cidade e da sua evolução. Quais foram as características das diversas configurações urbanas ao longo da história e quais foram as forças definidoras das suas configurações atuais?

Tomou forma, assim, o desejo de fazer um mestrado, o que permitiria estruturar a busca por essas repostas. A sala de aula do Mackenzie, porém, foi apenas um pedaço da experiência, que incluiu visitas, preparação de trabalhos e apresentações, participação num grupo de estudos sobre operações urbanas, a preparação de um seminário de Patrimônio Histórico e Desenvolvimento, o primeiro artigo publicado, um estágio docente na disciplina de Evolução Urbana, muitas leituras sugeridas pelos professores, eventos promovidos pela escola e fora dela, aulas como aluno especial na FAU-USP, participação ativa nos debates relativos ao Plano Diretor e infinitas conversas com professores e colegas.

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Foi através das conversas com o orientador prof. Valter Caldana que a pesquisa começou a ganhar foco e encontrar um fio condutor. Mesmo assim, pode-se dizer que esse trabalho ainda pretendeu fazer um percurso razoavelmente longo, o que certamente é uma contingência da situação de um pesquisador que precisa, não só saciar suas próprias dúvidas, mas demonstrar que já conseguiu dominar os códigos e o léxico da nova área que escolheu abraçar.

O objeto de estudo dessa dissertação é, portanto, o espaço público e, mais especificamente, a apropriação do espaço público pela população da metrópole contemporânea.

Afinal, é no espaço público que se manifesta a urbanidade, que rege os encontros entre as pessoas da cidade. É no território da urbanidade que a cidade completa (ou não) a experiência pessoal, através das trocas, da conversa, dos imprevistos, do flanar, do viver a aventura coletivamente.

Mas do que trata a urbanidade?

O conceito de urbanidade tem a ver com a vida nas cidades e com o comportamento adequado a esse ambiente. A expressão é sinônima de civilidade, o que reforça a idéia da maneira correta de se portar no ambiente civil. A ligação histórica entre o morar na cidade e o adotar determinado comportamento se revela no adjetivo “urbano”, que se refere tanto a quem vive na cidade como a quem se comporta de maneira cortês, afável, “civilizada”.

Ao pensar na raiz latina do termo, a urbis, pode-se imaginar a Roma antiga, com seus prováveis um milhão de habitantes, tendo que criar regras que permitissem a convivência de tantas pessoas num mesmo espaço. Dessa forma, o conceito exprime um modo de atuação adequado, uma cortesia diante dos concidadãos.

Esse sentido aparece quando se quer chamar a atenção para as regras que regulam a convivência entre pessoas diferentes1. Portanto, está-se falando do tipo de

1Um exemplo dessa utilização no sentido de educação, cortesia: “Analistas, colunistas e editorialistas

foram mais ou menos unânimes em condenar o bate-boca entre os ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski. Um dos argumentos mais usados é o de que desavenças explícitas reduzem a confiança da população no Judiciário, o que é ruim para o país. Tenho uma visão um pouco diferente. É claro que um pouco mais de urbanidade no Pretório Excelso não faria mal a ninguém, mas acho bom que as pessoas tenham a oportunidade de ver a Justiça um pouco mais como ela de fato é, e não como os manuais gostam de descrevê-la“. Coluna de Helio Schwartzman na Folha de São Paulo

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convivência que acontece entre pessoas que ocupam o mesmo ambiente nas grandes cidades.

Muitas vezes serão estranhos, mas haverá algum traço comum de comportamento que permitirá relacionamento mínimo para as trocas que devem acontecer nos ambientes que são obrigados a compartilhar: uma pessoa compra uma recarga de celular enquanto pede orientações na banca de jornal, outra oferece o lugar no banco de metrô a alguém mais velho; numa praça, um skatista espera que passe uma mulher com um carrinho de bebê; duas pessoas que nunca se viram, de repente se vêem lado a lado, enquanto assistem a uma performance de um artista de rua; dois estranhos falam do tempo enquanto compram um guarda-chuva.

Henri Lefebvre2 trata da migração do caráter das cidades ao longo do tempo. Segundo ele, o predomínio da cidade sobre o campo foi acontecendo gradualmente, até que os valores urbanos predominaram sobre os valores associados ao campo. Assim, a “urbanidade da cidade se coloca em oposição à “rusticidade do campo. É o predomínio da ilustração, da erudição sobre a ingenuidade e a brutalidade.

Nessa progressão histórica do urbano, inicialmente, o caráter predominante da cidade era o político. A cidade política foi substituída pela cidade comercial, que deu lugar à cidade industrial. É nesse ponto da história que se dá a inflexão do agrário para o urbano. A cidade industrial, por sua vez, também está cedendo lugar, a algo novo: atualmente a própria idéia de cidade parece estar sendo substituído por um conceito genérico do “urbano”, que se origina do espraiamento sem fim, nutre-se do consumo de milhões e que passa a determinar os rumos da industrialização e da agricultura.

Estamos agora, numa “zona crítica”, em que a dominância do urbano sobre o território é tão consolidada que há a ameaça dos próprios valores do pertencimento que eram inerentes à cidade diante dos novos signos do urbano: ela se torna “estipulação, ordem repressiva, inscrição por sinais, códigos sumários de circulação (percursos) e de referência.”

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Mas a cidade não deixa de ser o palimpsesto, de que falou Bernardo Secchi 3. As camadas que se sobrepõem no pergaminho histórico ainda perduram e talvez seja possível dizer que as características da cidade política, da cidade comercial, da cidade industrial ainda convivam, de modo que o vetor resultante esteja mais para o caleidoscópio pós-moderno que para uma determinada direção.

O lugar que escolhemos para descrever o processo histórico de apropriação do espaço público é São Paulo. De comunidade a cidade, de cidade a metrópole. A história da cidade será olhada sob a ótica da ocupação dos espaços, tentando descrever as dinâmicas que os moldaram. Delas, serão escolhidos exemplos que concretizam a experiência urbana nas áreas públicas, mas, também num sentido inverso, o que a expressão física dos espaços públicos pode contar a respeito dos processos sociais da cidade.

Para se chegar até o objetivo de entender as dinâmicas de apropriação do espaço público, foram necessárias algumas etapas intermediárias, de modo que se vá aproximando gradativamente do objeto de análise:

Entender a importância dos espaços públicos para a formação de identidade

da metrópole contemporânea;

Descrever a relação entre as diferentes morfologias e o comportamento dos

usuários nos espaços públicos;

• Relacionar a criação e apropriação de espaços da cidade de São Paulo

aos seus fenômenos históricos.

Cada um desses passos carrega consigo uma pergunta implícita a ser respondida. No primeiro, a pergunta está no próprio enunciado: “qual é a

importância dos espaços públicos para a formação de identidade da

metrópole contemporânea?”.

Essa pergunta foi abordada no capítulo 1. Nele, foram descritos os estudos de

autores que se debruçaram sobre a significação sociológica e imagética dos espaços públicos para a cidade contemporânea. Se, por um lado, parece haver uma convergência das análises na direção da importância dos espaços públicos na

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formação de identidade das cidades ocidentais, as grandes transformações da metrópole contemporânea ainda estão em curso, o que torna mais difícil a busca por uma resposta que abarque a sua nova forma urbana e seus efeitos nos habitantes.

A tecnologia digital é outra força transformadora que tem o potencial de alterar a relação dos habitantes com a cidade. O trabalho também abordou essa questão: diante da informação digital, do comércio eletrônico, do trabalho remoto e das redes de relacionamento, qual é o papel do espaço público físico, real, concreto?

A descrição do comportamento dos homens no espaço é o próximo passo. Ele traz uma pergunta adjacente: “quais são as características dos espaços públicos que facilitam encontros entre as pessoas?”.

Para começar a abordar a questão, o ponto de partida do capítulo 2 foi a

própria definição de espaço. Como veremos na obra de alguns autores fundamentais, a dimensão física não encerra a totalidade do conceito, que se modula através da própria atividade humana, estabelecendo uma relação de duas mãos entre uso e significado.

Em seguida, foram apresentados os trabalhos de estudiosos que procuraram relacionar o comportamento das pessoas à qualidade do espaço criado. Ora, como qualquer arquiteto que tenha concebido algum edifício na cidade ao longo dos séculos não deixou de criar cidade, o desafio aqui será o de selecionar aqueles autores que procuraram sistematizar os conhecimentos e observações do comportamento a partir do espaço.

Não se trata, portanto, de descrever os efeitos da boa arquitetura sobre os homens e sim de procurar detalhar os aspectos dos espaços públicos que são propícios especificamente à fruição desses espaços e que possibilitem o encontro e a troca entre as pessoas.

O último – e mais importante – passo foi investigar “qual é o papel do espaço público na constituição da identidade de São Paulo”. Ele foi

enfrentado no capítulo 3, através de uma busca sobre referências históricas ao

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composição de forças da época. Na medida do possível, procurou-se usar os elementos desenvolvidos no capítulo 2, para descrever os locais: significado, contexto em relação à cidade, diversidade de usos e de freqüência, e a escala humana, traduzida em seus elementos físicos.

Ao final da periodização, a chegada à S.Paulo do século XXI traz uma questão em si: é possível detectar na cidade contemporânea alguma característica discriminante em relação à ocupação dos espaços atualmente? A São Paulo de hoje será analisada, não em busca de uma resposta à questão, mas de indícios que possam exprimir as ações institucionais, as discussões em torno de planos e, principalmente movimentos da sociedade civil.

Num ano em que as ruas da cidade de São Paulo foram tomadas por multidões nas chamadas “jornadas de junho”, é impossível não se perguntar se um dos pleitos da sociedade contemporânea não tem a ver com a retomada dos espaços públicos da cidade.

A conclusão do estudo procurou levar em conta essa questão, inserindo-a numa discussão sobre a recostura das cisões da cidade e a retomada do papel político do espaço público.

Numa nota pessoal, o trabalho trouxe um olhar novo sobre a cidade. Se antes o flanar trazia apenas a fruição individual da cidade, atualmente, ele parece ter incorporado uma prontidão insuspeita sobre o significado dos espaços e o sorriso ao reconhecer nos encontros um pedacinho da história da cidade.

Como esse estudo se propõe a estruturar o que já existe, talvez fosse pretensão adicionar que um de seus objetivos seria tentar contribuir para a melhoria da qualidade do espaço público na cidade. A pequena utopia faz lembrar a provocação que Jan Gehl lançou ao auditório do Mackenzie em sua palestra de 20 de junho de 2012, discutindo o papel das pequenas ações e intervenções: –“será que sua cidade melhora todo dia, um pouquinho? A minha, sim”.

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1. O espaço público como expressão da identidade

Ao longo da história, o espaço público tem sido uma parte fundamental na formação da identidade das cidades ocidentais. A ágora grega, a praça do mercado medieval, os centros cívicos barrocos, os bulevares de Paris, os parques burgueses, as ruas da cidade industrial, todos esses locais foram território da convivência e intercâmbio social, político e econômico entre seus habitantes.

E hoje? Será que os movimentos em curso na metrópole contemporânea podem representar uma ruptura na relação da cidade com o espaço público?

A resposta a essa pergunta exigiu um percurso lógico, de três passos. O primeiro deles é a demonstração de como a convivência entre concidadãos nos espaços públicos tem a ver com a constituição da res-publica e, num plano mais individual, a formação do próprio senso de identidade desses homens.

Demonstrada a importância histórica do espaço público, procurou-se entender quais são as mudanças estruturais e morfológicas que a cidade ocidental sofreu nas últimas décadas do século XX: a sua inserção na economia global, a economia em rede, a desindustrialização e a nova divisão espacial resultante permitiram identificar o fim do equilíbrio entre o público e o privado.

O terceiro passo foi discutir em que condições se poderia aspirar ao retorno da experiência urbana, que pressupõe a fruição completa do ambiente urbano o consumo, a representação política e o direito à cidade pelos seus habitantes.

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1.1. Theatro mundi: o palco da vida

O livro O Declínio do Homem Público, de Richard Sennet, publicado em 1974, é basilar para a compreensão da importância da vida pública nos últimos séculos. Foi escrito num momento emblemático da história contemporânea, logo após a deflagração da crise do petróleo, um dos pontos de inflexão do início das transformações que ainda estão em curso, mas que já estão moldando um novo paradigma social, descrito por vários autores, entre os quais David Harvey como a pós-modernidade4.

Nesse livro, Richard Sennet conta a gênese do que ele chama de doença contemporânea – o narcisismo, e seus efeitos na vida pública. Vejamos o encadeamento de ideias que ele propõe, num texto recheado de referências psicológicas e sociológicas.

Uma maneira de definir a cidade pode ser através do convívio que ela proporciona. Assim, “uma cidade é um assentamento onde estranhos devem provavelmente se encontrar”5. Essa experiência de encontro com estranhos em local público é a essência da civilidade, o conjunto de atos e regras que normatiza a convivência entre pessoas que não têm intimidade entre si.

A civilidade tem um papel importante para a manutenção da própria individualidade. Ao conviver com os diferentes, um indivíduo ganha capacidade de compreensão sobre si mesmo. A convivência com a alteridade em graus variados de intimidade faz com o que o habitante da cidade tenha que representar papéis que permitam intercâmbios e trocas dentro de determinadas regras. O papel é o “comportamento apropriado a algumas situações, mas não a outras”. É ele que garante a verossimilhança em público: adotar um comportamento comum que todos concordam ser adequado.

4 HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: edições Loyola, 1993.

5 SENNET, 1988, p.324. Ao longo do livro, essa mesma definição é encontrada outras vezes, com pequenas variações. Em uma delas, por exemplo, a frase muda para “cidade é um assentamento onde estranhos podem se encontrar, cotidianamente”. Cada uma parece enfatizar um determinado

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É preciso levantar um cuidado relativo a esse ponto. A convivência em sociedade não é um ato inconsequente. A psicanálise abordou os problemas advindos da vida em sociedade e localizou a origem do conflito justamente na presença do “outro”.

Se a vida em sociedade traz, a priori, um conflito entre o EU e o outro, será que a adoção de papéis públicos não seria apenas uma estratégia de sobrevivência diante de um mal inevitável? Ou, colocando a questão de outra maneira, será que o habitante da cidade encena um papel público apenas como estratégia de sobrevivência? Ou ainda, está-se falando de pontos de vista opostos?

Há que se investigar, portanto, se o desconforto causado pela convivência em grupo é ou não incompatível com o fato dessa convivência auxiliar na formação de uma identidade individual.

A obra de Sigmund Freud, o Mal estar na civilização6pode ajudar a responder a esta aparente contradição. Segundo ela, naturalmente, os homens estão em busca da felicidade e querem se tornar e permanecer felizes”. Entretanto, há três fatores que impedem essa busca: o próprio corpo, na medida da sua decrepitude; o mundo externo, com suas dificuldades e obstáculos; e, finalmente os outros seres humanos, ou melhor, as relações com os outros seres humanos.

“Descobriu-se que o homem se torna neurótico porque não pode suportar a medida de privação que a sociedade lhe impõe, em prol de seus ideais culturais, e concluiu-se então que, se estas exigências fossem abolidas ou bem atenuadas, isto significaria um

retorno à possibilidade de felicidade” (FREUD, 2011, p. 32).

Ou seja, a vida em sociedade traz, no seu próprio bojo, sofrimento ao indivíduo, na medida em que o obriga a renunciar a seus instintos: “ é impossível não ver em que medida a civilização é construída sobre a renúncia instintual.”. Afinal, o homem é naturalmente agressivo: ”o ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor”.

6 FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguim Classics Companhia das Letras,

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Ou, colocado de outra maneira, no livro, o homem é o lobo do homem.

Ora, se a própria convivência com outros homens é uma ameaça à felicidade individual, por que então vivemos em sociedade? Freud explica isso através da busca pela segurança: “O homem civilizado trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança”. Ou seja, a liberdade da vida solitária é teórica, ela acabou sendo inexeqüível diante das ameaças e provações que o homem experimentou ao longo de sua história.

“A liberdade individual não é um bem cultural. Ela era maior antes de qualquer civilização, mas geralmente era sem valor, porque o indivíduo mal tinha condição de defendê-la. Graças à evolução cultural ela experimenta restrições e a justiça pede que ninguém escape a elas” (FREUD, 2011, p.41).

Assim, na busca de segurança, o homem foi aumentando o tamanho do seu grupo de convivência. Dos pequenos grupos pré-históricos até a tribo, vilas e, finalmente cidades, o homem foi se conformando à vida em sociedade. Não sem custos, pois, como vimos, “essa ‘frustração cultural’ [...] é a causa da hostilidade que todas as culturas têm de combater”.

Um dos comportamentos que pode atenuar esse sofrimento é o que Freud chama narcisismo das pequenas diferenças. Através desse mecanismo, os

membros de uma comunidade podem aumentar sua coesão quando se vêem diferentes de outros. Em outras palavras, o grupo de referência mais próximo fica mais suportável quando se reconhece como diferente de outros grupos. Os exemplos desse comportamento são vários: a agressividade contra estrangeiros, o estabelecimento de “inimigos oficiais” da pátria, a repulsa às minorias. Diante da ameaça externa, a agressividade entre os membros da comunidade é reduzida e o cotidiano de convivência pode predominar.

A resultante do processo civilizatório, portanto, é a convivência cotidiana de grupos de pessoas, ao custo da vigilância permanente sobre a agressividade instintiva natural do homem. 7

7 Em alguns casos, esse conflito entre o EU e os outros pode exacerbar e chegar à sua forma

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De qualquer modo, cada um tem que descobrir a sua maneira particular de ser feliz:

“... ele [o homem] sempre defenderá sua exigência de liberdade individual contra a vontade do grupo. Boa parte da peleja da humanidade se concentra em torno da tarefa de achar um equilíbrio adequado isto é, que traga felicidade, entre as exigências individuais e aquelas do grupo, culturais , ...” (FREUD, p. 41).

Nesse ponto, pode-se começar a tentar ligar o conceito do público/privado à questão da alteridade, apresentada por Sennet: “Normalmente, nada nos é mais seguro do que o sentimento de nós mesmos, do nosso Eu... Mas ao menos para fora o Eu parece manter limites claros e precisos”. Em outras palavras, a separação entre o Eu e o outro parece fundamental para fugir da neurose: “Contra o temido

mundo externo o indivíduo só pode se defender por algum tipo de distanciamento...”. Essas frases encontram eco no raciocínio de Sennet a respeito da manutenção da identidade: é preciso estabelecer limites claros para que a convivência com o outro não seja invasiva e, por outro lado, é preciso desenvolver um papel público para garantir uma civilidade mínima onde ela é necessária.

Dessa forma, pode-se dizer que a visão psicanalítica e a sociológica sobre a alteridade não estão em contradição, mas se complementam.

Assim, ao longo da história, as cidades ocidentais foram construindo um equilíbrio entre a vida pública e a vida privada. Esse equilíbrio garantia que o homem, em contato com outras pessoas em sua faina diária, estivesse sempre exercitando sua cidadania. As diversas formas do espaço público, o mercado, a praça, as ruas, permitiam que ele convivesse cotidianamente com outras pessoas, mesmo de origens e posses distintas das suas.

- o uso de substâncias;

- a negação dos instintos;

- deslocamentos da libido, a sublimação; - vida da fantasia;

- a fuga, como o eremita;

- buscar o amor como centro da vida; - o gozo da beleza – a fruição estética;

- a religião. “pela veemente fixação de um infantilismo psíquico e inserção num delírio de

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Os signos externos dessa alteridade eram a garantia de que, mesmo sem uma convivência íntima, os diferentes se reconhecessem e cada um assumisse, na vida pública, o seu papel, que lhe permitia justamente exercitar essa diferença, participando da “vida ativa” que caracteriza a res-publica.

A identidade dos habitantes das cidades ocidentais foi, assim, sendo construída, paradoxalmente, através da convivência entre os diferentes. A partir do momento em que a própria escala da cidade aumenta, com a migração em direção aos centros administrativos e econômicos no século XVIII, a convivência entre os “estranhos” também aumenta e o senso de identidade natural baseado na vizinhança e no conhecimento mútuo que havia nas vilas e pequenas cidades é substituído pela dúvida: “quem somos nós?” e “quem é o estranho?”. Para Sennet, nesse momento, há uma reconstrução da sociabilidade, baseada em dois princípios: os códigos de respeitabilidade, como, por exemplo, as roupas, que refletem exatamente as origens e as profissões de cada um, e os papéis públicos.

“O comportamento “público” é antes de tudo, uma questão de

agir a certa distância do eu, de sua história imediata, de suas circunstâncias e de suas necessidades; em segundo lugar, essa ação implica a experiência de diversidade” (SENNET, 1988, p. 115).

Em outras palavras, o contato com o diferente permitiu a constituição da própria identidade do homem urbano ao longo dos séculos até meados do século XIX. Ou ainda, eu preciso do outro para me conhecer.

Olivier Mongin8 analisa a questão da importância dos espaços públicos sob uma ótica ligeiramente diversa, mas bastante complementar.

O livro A condição urbana foi escrito quase trinta anos depois de O declínio do homem público. Apesar de não citá-lo nenhuma vez ao longo do texto, pode-se ver nele uma possibilidade de detalhar a doença do homem contemporâneo esboçada por Sennet. A citação abaixo, por exemplo, exprime o mesmo tipo de raciocínio sobre a polaridade privado-público:

8 Antropólogo e filósofo francês escreveu, em 2005, o livro A condição urbana. Sua importância reside

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“Do mesmo modo que a forma da cidade corresponde à colocação em tensão de termos opostos (o centro e a periferia, o dentro e o fora, o interior e o exterior), a inscrição em um espaço público exige encontrar um ritmo, o melhor ritmo concebível entre o privado e o público, entre o interior e o exterior, entre a interioridade e a exterioridade” (MONGIN, 2009, p. 61).

Segundo Mongin, a cidade remete a três tipos de experiência urbana. A primeira experiência é física: a experimentação da cidade pelo transeunte. Assim, a descoberta da cidade se dá “passo a passo”. O sair de casa implica um desejo de exteriorização, que se exprime por uma libertação, uma saída de si, uma saída de casa.

Nesse ajuntamento de diferentes, que é a cidade, o contraste entre o estar só e o estar em grupo é que dá a noção da identidade: “Quando não há ninguém, é preciso ser vários; quando há muita gente, é preciso estar só”.

Talvez essa frase ajude a explicar o espírito do flâneur, o personagem símbolo da idéia de viver anonimamente a experiência da multidão, que foi encarnado por Baudelaire. Um de seus poemas que simboliza essa experiência é o À une passante. Nele, o poeta encontra uma moça em meio à confusão da rua. Ela é linda e faz o seu coração renascer... apenas para perdê-la em seguida. A perplexidade pela perda se expressa condoída:

“Un éclair … puis la nuit! – Fugitive beauté Dont le regard m´a fait soudainement renaître, Ne te verrai-je plus que dans l´éternité?”9

A segunda dimensão da experiência urbana é a do espaço público. É no espaço público que os “corpos se expõem e onde se pode inventar uma vida política pelo viés da deliberação, das liberdades e da reivindicação igualitária”.

“O indivíduo, o homem do espaço privado e da interioridade,

tenta assim se exteriorizar numa vida pública. Homem da vita activa, o urbano se expõe para fora, fora de sua casa, ele se abre ao espaço

9 BAUDELAIRE, Charles. Les Fleures du Mal. Paris: Editions Feminines Françaises, sem data de

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público e à experiência da pluralidade humana” (MONGIN, 2009, p. 61).

Mas, atenção, sair de seu interior, não oferece a garantia de se beneficiar da felicidade pública. O espaço público é incerto, e o sujeito que ali se arrisca é indeciso: é por isso que ele se esconde por trás das máscaras”.

Mais uma vez, pode-se notar a convergência do raciocínio de Mongin e Sennet, a respeito da importância das máscaras e dos papéis públicos. Explica-se, assim, como o uso do papel em público ajuda na constituição da polis grega e na cidade ocidental: “o espaço onde eu apareço aos outros como os outros aparecem a mim”.

O terceiro aspecto da experiência é a dimensão do objeto. O fato de a cidade também ser um objeto que se observa, confere ao observador o poder de escolher o ângulo de análise, a velocidade de observação, a decisão do trajeto, ou do próprio envolvimento com o objeto.

As três dimensões juntas compõem a totalidade da experiência urbana, cujo caráter multidimensional não está baseado numa oposição entre o público e o privado, mas numa complementação.

É possível incluir nesse ponto da discussão um contraponto empírico à análise sociológica, através das idéias de Jane Jacobs a respeito do teatro público 10. Uma delas diz respeito à separação entre o público e o privado. A fruição da vida nos espaços públicos depende, paradoxalmente, do conceito de separação entre o público e o privado. Assim como Sennet, Jacobs atribui grande importância à separação entre a persona pública e a persona privada: “[a vida social nas calçadas] reúne pessoas que não se conhecem socialmente de maneira íntima, privada, e muitas vezes nem se interessam em se conhecer dessa maneira.”

Ou seja, mesmo uma ardorosa defensora da diversidade e do convívio social entre pessoas diferentes no espaço público, parte do pressuposto de que esse convívio tem suas regras e seus limites:

“... as cidades estão cheias de pessoas com quem certo grau e contato é proveitoso e agradável, do seu, do meu ou do ponto de vista

10 Jornalista e ativista, Jacobs escreveu em 1961 o livro Morte e vida das grandes cidades, que teve

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de qualquer indivíduo. Mas você não vai querer que elas fiquem no

seu pé. E elas também não vão querer que você fique no pé delas”

(JACOBS, 2009, pgs. 59-60).

Assim, é o papel publico o instrumento que garante a possibilidade da criação de um espírito de vizinhança:

“A soma desses contatos públicos casuais no âmbito local...

resulta na compreensão da identidade pública das pessoas, uma rede de respeito e confiança mútuos e um apoio eventual na dificuldade pessoal ou da vizinhança. A inexistência dessa confiança é um desastre para a rua. Seu cultivo não poder ser institucionalizado. E, acima de tudo, ela implica não comprometimento pessoal” (JACOBS,

2009, p.60).

Parece, portanto, que o equilíbrio entre público e privado pode ser visto como elemento fundamental no exercício da urbanidade. O que se verá a seguir é como esse equilíbrio foi rompido.

1.2. A cidade contemporânea: o narcisismo, desequilíbrio entre a vida pública e a vida privada

O equilíbrio entre o público e o privado foi rompido na metrópole contemporânea. Em que momento isso aconteceu?

Segundo Sennet, a transformação começou a ocorrer no século XIX, em função de dois fatores que contribuíram para mudar esse equilíbrio: a expansão do capitalismo e o advento do secularismo.

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lojas e cafés. Esse espaço burguês ocupou os centros de onde, gradualmente, foram sendo afastados os extratos sociais mais baixos.

O segundo fator, o secularismo, contribuiu para que o ponto de vista individual prosperasse, em detrimento do ponto de vista coletivo. Na medida em que a Igreja e as tradições religiosas deixaram de mediar a relação do indivíduo com o mundo, ele foi obrigado a atribuir sentido ao que o cercava. Ora, no momento em que cada indivíduo parte de uma busca individual do sentido, todos os acontecimentos e eventos passam a ter importância, e, na medida em que tudo é importante, o peso atribuído a cada evento pessoal passa a alimentar o ponto de vista individual. “Nada é o bastante para que eu sinta”.

Nessa cadeia de eventos, o crescimento do individualismo passa a ser dominante nas relações de troca e, com o tempo, o EU passou a ser o ponto de vista preponderante.

A manifestação pública desse individualismo assume um caráter de contenção e autodefesa. É o desejo, segundo Sennet, de se “misturar” na multidão, ou seja, o de chamar menos a atenção em público. Assim, a paramentação extravagante das roupas dá lugar à qualidade, mas também aos detalhes, jóias, relógios, gravatas, ornamentos, destinados a deixar claro o extrato de origem de cada um, mas dentro de códigos de não se mostrar demasiadamente. É nessa época que Sennet, aliás, situa o código vitoriano de ensinar às crianças as regras de não demonstrar sentimentos em público. Segundo ele, o motivo é evitar que elas pudessem, quando adultos, serem “interpretados” ou desvendados pelos outros.

Assim, nas ruas do centro das duas grandes cidades europeias, Paris e Londres, o silêncio é ordem, “porque o silencio é a ausência de interação social”. Claro que as classes sociais continuam convivendo entre si, mas nos lugares certos. Em Paris, a burguesia adota os bulevares e o refúgio dos cafés contra o barulho externo e a intromissão.

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No século XX, portanto, chegamos ao que Sennet chama de “o fim da cultura pública”. O mito continua presente nas palavras e expressões: “calor humano é bom” e o “mau” é a frieza, alienação e impessoalidade. Entretanto, a questão é que o filtro do narcisismo torna menos importante a procura pelos interesses comuns que a busca da identidade comum. Na prática, isso significa que as pessoas vão buscar rapidamente encontrar e conviver com aquelas pessoas com quem podem compartilhar seus sentimentos, sem ter que passar pelas etapas de construir um repertório de assuntos comuns.

Dessa maneira, a civilidade é a “atividade que protege as pessoas umas das outras e ainda assim permite que elas tirem proveito da companhia umas das outras” e a incivilidade é justamente o oposto: “sobrecarregar os outros com o eu de alguém”. (SENNET, 1988, p. 324). Portanto, se usar “máscara é a essência da civilidade”, o homem incivilizado contemporâneo deixou de usar sua máscara para poder se mostrar inteiro aos iguais.

A questão é que as máscaras precisam ser criadas por tentativa e erro. E esse conceito de brincar, de jogar com o papel público e ir construindo sua própria personalidade, o “playacting” tem a ver com o crescimento pessoal e principalmente com o estabelecimento de uma persona pública preparada para o jogo urbano. Ora, o oposto da capacidade de jogar com a vida social é o próprio narcisismo. Não é para menos que Sennet define a classe média, a mais afetada pela indefinição do seu papel, como “sem rosto” e "sem regras”.

Quanto mais estreito o escopo da experiência social, mais destrutiva se tornará a experiência do sentimento fraterno, pois em algum momento haverá forçosamente, a decisão sobre a rejeição ou não a novos membros. A consequência é o fim dos intrusos e dos diferentes dos grupos, com o estreitamento ainda maior dos horizontes desse grupo original.

Zygmunt Bauman, o filósofo polonês de A modernidade líquida, ecoa esse pensamento: “... quanto mais eficazes a tendência à homogeneidade e o esforço para eliminar a diferença, tanto mais difícil sentir-se à vontade em presença de estranhos, tanto mais ameaçadora a diferença e tanto mais intensa a ansiedade que ela gera.” 11

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Mongin traça um percurso um pouco diferente, não de dentro para fora, mas de fora para dentro, e, essencialmente, chega ao mesmo diagnóstico: a ameaça à “experiência urbana”, descrita no item anterior.

Para ele, a configuração da cidade contemporânea apresenta uma inversão das hierarquias que fundamentavam a experiência urbana:

 Prevalência das relações periferia sobre as relações periferia-centro;

 Prevalência dos fluxos sobre os lugares;  Prevalência do privado sobre o público.

Se na cidade pré-industrial, o “espaço urbano instituía limites em relação a um ambiente, a um fora, e favorecia uma mistura, uma roçadela, uma heterogeneidade social, até mesmo uma conflitualidade [sic]”, a nova configuração urbana quebra as bases pelas quais estranhos podem se encontrar no mesmo espaço.

Que estranhos deixem de se encontrar nas ruas pode parecer exagerado, mas tem a ver com determinados extratos sociais que se separam do resto da cidade nas moradias (nos condomínios murados), no lazer (em clubes fechados), nas compras (nos shopping centers), e no trabalho (nos “centros empresariais”).

A configuração dos espaços antitéticos da urbanidade é um tema que ganhou destaque no trabalho de vários autores que descrevem a segregação. Vejamos essas definições:

Não lugares

Marc Augé, em seu livro Não Lugares, trata de espaços de passagem – aeroportos, estações, que deixam de oferecer a possibilidade de algum tipo de relacionamento com o lugar e desestimulam o relacionamento entre as pessoas. “Um não lugar é um espaço destituído das expressões simbólicas de identidade, relações e história”. 12

12AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo:

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Um artigo de John Kasarda13, que difundiu o do conceito da cidade em torno do aeroporto, endereça diretamente a questão dos aeroportos como não-lugares. Em defesa dos aeroportos, ele enumera as recentes iniciativas dos designers de aeroportos para torná-los mais “habitáveis”, entre as quais dotá-los de sentido para os passageiros nomes que evocam pessoas importantes, comidas locais, paisagismo e urbanização em torno do aeroporto. Pode-se dizer que o artigo confirma o que Augé apontou: os aeroportos podem até vir a desenvolver uma identidade, mas o mero fato de estarem buscando uma confirma a idéia de que mesmo os melhores aeroportos do mundo ainda não a possuem.

Espaços de fluxos

Um espaço de fluxo, termo usado por Mongin, é definido pelo transporte e não pela permanência. Ele afirma que “o espaço dos fluxos não é, portanto, sem lugar, mas esses lugares permanecem não-lugares no sentido de que eles são aleatórios, provisórios”.

Espaços de consumo

Bauman se debruça sobre os espaços de consumo – salas de concertos, pontos turísticos, áreas de esportes, shopping centers e cafés. Segundo ele, esses espaços encorajam a ação e não a interação. Neles, ”a tarefa é o consumo e o consumo é um passatempo absolutamente e exclusivamente individual. [...] O templo do consumo pode estar na cidade. mas não faz parte dela; não é o mundo comum temporariamente transformado, mas um “mundo completamente outro”” (BAUMAN, 2000, pgs. 114 e 115).

Os grandes lugares de compra, ao contrário das lojas integradas às ruas da cidade oferecem o que nenhuma realidade externa pode dar: o equilíbrio quase perfeito entre liberdade e segurança.

“as multidões que enchem os corredores dos shopping centers

se aproximam tanto quanto é concebível do ideal imaginário de

“comunidade” que não conhece a diferença... Por essa razão, essa

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comunidade não envolve negociações, nem esforço pela empatia,

compreensão e concessões” (BAUMAN, 2000, p. 117).

Espaços êmicos e fágicos

No conceito desenvolvido por Levi-Strauss e resgatado por Zygmunt Bauman, são explicadas as duas estratégias que a humanidade desenvolveu para se defender da alteridade:

A Antropoêmica – que vomita, cospe, deporta o outro. Um exemplo produzido por essa estratégia é o grande espaço vazio parisiense de La Defense, que permite a passagem de pessoas mas sem oferecer nenhum atrativo ou equipamento para que parem.

A Antropofágica que ingere, devora, e ao fazê-lo, suspende a alteridade. Os

shopping centers são expressão típica dessa categoria, ao criar ambientes de auto-suficiência e artificialidade.

Lugares vazios

A ausência de significado também é o ponto de vista para a análise de Jerzy Kociatkiewiz e Monika Kostera, que individuaram o conceito de Lugares Vazios 14. Lugares vazios são lugares a que não se atribui significado. Não precisam ser delimitados fisicamente por cercas ou barreiras. São as áreas sob viadutos, os pátios abandonados de antigas construções, os descampados à beira das grandes avenidas, os desvãos da cidade. “Não são lugares proibidos, mas espaços vazios, inacessíveis porque invisíveis.”

A cidade genérica

O termo, cunhado pelo arquiteto Rem Koolhas, evoca a falta de singularidade de cada cidade e procura definir uma dinâmica que diz respeito ao esvaziamento do espaço público. Segundo ele, a serenidade da cidade genérica se dá justamente pela evacuação do domínio público, e pela repetição ao infinito de sua estrutura fractal: uma lâmpada de cabeceira que ilumina a tela do computador.

14The Anthropology of Empty Space.Qualitative Sociology, 1999, pgs. 43 a 48, apud Zygmunt

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“O que afirma a Cidade Genérica não é o domínio público com

suas exigências excessivas [...] mas o residual [...]. A rua morreu. Essa descoberta coincide com tentativas frenéticas de ressuscitá-la... A pedestrização – em princípio a ser preservada – não faz mais que canalizar as torrentes de pedestres condenados a destruir com seus

pés o que eles supostamente deveriam reverenciar.”15

Nesse contexto, aparecem dois novos termos, cunhados, à mesma maneira provocadora, para representar os espaços da cidade genérica: junk space e fuck context. O primeiro se refere aos espaços obtidos pela soma de três fatores de continuidade: o ar condicionado, a escada rolante e a transparência, característicos do espaço público pouco civil dos shopping centers e o segundo uma tentativa de definir o território resultante da ausência de conceitos e do caos relativo ao urbano contínuo; “um território de visão confusa, de expectativas limitadas, de integridade reduzida”.

O tom deliberadamente provocador de Koolhaas talvez não deva ser tomado como o decreto de morte da cidade, mas como uma apologia pela lucidez. “A Cidade Genérica representa a morte definitiva do planejamento”.16

Afinal, segundo ele, o caráter trash do urbano generalizado é resultado de uma falta de política: “é o agregado das decisões não tomadas, das questões que não foram enfrentadas, das escolhas que não foram feitas, das prioridades indefinidas, das contradições perpetuadas, dos comprometimentos aplaudidos e da corrupção tolerada”.

Todos esses termos e conceitos descrevem a experiência urbana resultante de uma realidade da cidade sem fim, do mundo do urbano contínuo. Ora, estamos diante de um quadro que vai, provavelmente, potencializar essa situação. Se a cultura de cidades tem sua raiz na Europa, o aumento do espraiamento urbano e do número das megacidades está acontecendo principalmente em países menos desenvolvidos. Segundo o The State of the World´s Cities, 2001, são mais de 370 cidades com mais

15 e 16 Rem Koolhas et.al, Mutations. Bordeaux: Arc em Rêve Centre d´Architecture, 2000 p. 725,

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de um milhão de habitantes, das quais a maior parte já está em países menos desenvolvidos.

Está-se falando da possibilidade do fim de um estilo de vida, da própria urbanidade. Será esse o fim da experiência urbana tal como a sociedade ocidental a conhece? Afinal, como diz Mongin: “Quando a tensão entre o privado e o público, entre um fora e um dentro é impossível, a cidade morre inevitavelmente”.

E se parece exagerado falar na morte das cidades, contemplemos a possibilidade de um fim:

“Elas [as cidades] não sucumbem com grande espalhafato; elas não morrem somente quando sua população as abandona. Talvez elas possam morrer assim: quando todo mundo sofre, quando os transportes são tão penosos que os trabalhadores preferem desistir dos empregos de que têm necessidade; quando ninguém consegue

água ou ar puro, quando ninguém pode ir passear” (MONGIN, 2000, p. 17).

1.3. A recuperação da experiência urbana

Recapitulando o que foi visto até agora, primeiramente buscou-se entender a importância do espaço público na história da cidade ocidental. Constatou-se que a própria constituição da identidade urbana foi influenciada pelo espaço público, na medida em que ele era o principal palco em que os homens experimentavam e desenvolviam seu papel a ser desempenhado na lida com os outros, sua persona

pública.

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Do ponto de vista de morfologia urbana, talvez como consequência das transformações estruturais, o que se viu é que a cidade contemporânea sofreu transformações profundas ao longo do século XX que levaram um desequilíbrio entre os elementos estruturantes de sua unidade. São eles: o predomínio dos fluxos sobre os lugares, do privado sobre o público na constituição da cidade e ainda o fim do papel catalisador do centro como ponto de convergência simbólica, econômica e política das cidades.

A isso, acrescenta-se também a nova ordem econômica mundial, da globalização dos meios de produção e da desconcentração de mercados. A sociedade em rede e o livre fluxo dos capitais tornam ainda mais fluida a relação com o espaço físico, que chega a ser quase irrelevante para a produção e o fluxo de mercadorias, serviços financeiros, lazer e até para o encontro entre as pessoas, potencializado ou substituído pelas redes sociais, que ainda se constituem em um fenômeno novo diante da temporalidade da história das cidades.

Está-se falando, portanto, de uma crise, uma situação de ruptura com um passado que talvez nunca volte e da necessidade de um novo paradigma de análise para a nova metrópole global, espraiada, cuja urbanização invadiu o campo, sem necessariamente criar cidade.

Assim, há vozes que se manifestam pela aceitação do fim da utopia e do planejamento, como Koolhaas, por exemplo, que parece estar nos exortando a deixar o saudosismo de lado e nos ocuparmos de construir a cidade possível. Afinal, enquanto se discute a cidade, ela vai sendo construída, justamente pelas forças que atuam no vácuo da omissão pública, da incapacidade de lidar com a informalidade e até da pressão demográfica por moradia, transformada em “demanda” pela indústria da construção civil.

A questão é que o fim de uma utopia pressupõe a aceitação da continuidade do movimento atual, a ação pragmática de um fazer cotidiano multifacetado, que pode levar a crise a um novo patamar.

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A última parte desse capítulo vai tentar mostrar as direções possíveis numa tentativa de recuperar, não os pressupostos de outra época, talvez idealizada, mas as premissas para uma situação urbana que resgate a plenitude da experiência urbana. Essas três premissas, tais como descritas por Olivier Mongin serão a espinha dorsal desse raciocínio e serão cotejadas às idéias de outros autores, como François Ascher17, que listou os “novos princípios do urbanismo”, com algumas direções bastante convergentes, mas sob o ponto de vista do gestor urbano e não do sociólogo.

A pergunta, colocada de outra forma, evoca o lugar do encontro e o político: “os lugares formatados pela “reterritorialização” em curso podem permitir um habitar e favorecer a instituição de práticas democráticas dentro dos espaços urbanizados?” 18

São três as condições para que se recupere a experiência urbana. Vejamos quais são essas condições e suas implicações:

Redescobrir o sentido do lugar

O ponto de partida para essa proposta é a constatação do predomínio dos fluxos sobre os lugares. Essa situação, originada por um desequilíbrio entre as escalas do local, do estatal e do supranacional, na raiz da fragmentação da metrópole contemporânea, gera duas dimensões de problemas a serem enfrentados: o imaginário do não lugar e a vida virtual.

A questão é que a realidade física das metrópoles e a vida virtual não são capazes de fornecer as exigências “corporais, cênicas, estéticas e políticas” de que o homem precisa para viver sua vida em sociedade.

O trecho seguinte, de Françoise Choay exemplifica o valor da experiência física:

“Se admitimos que a relação corporal com um espaço

representa um valor antropológico fundamental, daí resultam duas conseqüências. Em primeiro lugar, o espaço orgânico local não pode ter um substituto: ele não é substituível pelo espaço operativo do território: esses dois tipos de ordenação são complementares. Em

17ASCHER, François. Os novos princípios do urbanismo. São Paulo: Romano Guerra, 2010.

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segundo lugar, o espaço em escala humana e a dupla atividade dos que o fabricam e dos que o habitam constituem nosso patrimônio

mais precioso” (Françoise Choay em Patrimoine urbain et cyber espace apud MONGIN, 2000, p. 238).

Vê-se que a defesa do espaço orgânico local não é um valor em si, mas relativo à própria experiência da vida humana. Assim, a defesa de um novo ordenamento urbano, ou a busca pela escala local não deriva de uma idéia de forma urbana abstrata ou do saudosismo pelo tipo-ideal de cidade, mas da própria necessidade da recomposição do ambiente que torna possível a expressão humana em seus vários planos.19

Mongin adverte que é essencial “não se bater por qualquer lugar”. Ou seja, é preciso hierarquizar os lugares e dar prioridade a aqueles que podem ser mais importantes na reconstituição da sociedade.

Em relação à vida virtual, é preciso lembrar que a internet não existia enquanto tal, na época em que Sennet escreveu O declínio do homem público. Além disso, as redes sociais ainda eram apenas incipientes no ano de 2005, quando foi publicado o livro A condição urbana. Apesar disso, o fenômeno da sociedade em rede já havia sido descrito por Manuel Castells, em A sociedade em rede, de 1997 e explorado por David Harvey, em Condição pós-moderna, de 1989.

Para esses autores, os efeitos da globalização e do aumento da velocidade da informação já haviam se feito notar, na disposição das empresas ao redor do mundo, na substituição das fábricas nos centros urbanos pelo interior e por países de mão de obra mais barata, na própria hierarquia da rede de cidades, baseada na sua posição diante da nova ordem mundial.

Manuel Castells20explica as características da cidade virtual: em primeiro lugar, as redes, como forma espacial; em segundo lugar, os nós e conexões como

19 Tome-se o caso exemplar de ligação com o lugar. Durante uma aula em 2012, no Mackenzie, o

professor convidado Carlos Marques contou um diálogo que teve em Merida, na Espanha, com um de seus habitantes. Indagado sobre a pequena área que as casas da cidade tinham, um habitante

respondeu: “Não se preocupe. Nossa sala de estar é na rua”.

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expressão física dessa forma e, por fim, o fato de as elites locais já terem adotado um comportamento “nômade”, ou, em outras palavras indiferente aos lugares.

O avanço ainda maior da conectividade, portanto, é apenas mais um passo em direção a um maior isolamento, através da comunicação online, das compras online, de serviços online, do lazer online. E, diante dessa mudança impressionante na sociedade de informação, pode-se perguntar se o espaço público de nossos tempos não estaria migrando para a própria rede, que substituiria de vez o espaço físico.

David Harvey21 dedica um espaço grande ao espaço público. Segundo ele, o espaço público na cidade pós-moderna é o espaço do turismo, da mistura de estilos arquitetônicos, da gentrificação, da busca de referências de significado em outras culturas. Essa mistura tem mais a ver com a Disneylândia do que com a pólis, na medida em que recria uma cidade do imaginário coletivo, mas que não existe. Some-se a isso a busca pelo dinheiro dos grandes eventos esportivos e artísticos e temos uma situação em que o espaço público está em pleno processo de ressignificação.

Assim, a valorização do espaço público, mesmo como símbolo dessa nova cidade, gentrificada, excludente e sem história, talvez ainda seja o que resta de garantia de que ao menos os encontros físicos continuarão a fazer sentido.

Cabe aqui a lembrança de um dos “novos princípios do urbanismo”, de Ascher: o de promover uma qualidade urbana nova. Nele, está contida a idéia do que ele chama de “urbanismo multisensorial”, que preconiza a elaboração não somente do visível, mas do sonoro, do tátil, do olfativo, em busca de uma qualidade do espaço público que seja “equivalente à dos espaços privados”.

Em um texto recente, o filósofo e professor de ética e filosofia política da USP, Renato Janine Ribeiro22 exemplifica essa necessidade de convívio físico. Segundo ele, desde a antiguidade, a humanidade apresenta exemplos da desconfiança quanto à representação do ausente, desconfiança essa que desaparece diante da presença física: “Há no convívio físico riquezas únicas”. E quanto à experiência, ele diz que “O

21 HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1993.

22

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essencial da vida é experimentar. Não há palavra que resuma melhor a capacidade criativa do ser humano. Ora, experiência exige diversidade”.

A isso, pode-se juntar outra exortação à vida no mundo físico: “Ora, o perigo está em tomar o virtual pelo próprio real. ‘É ali que eu vivo’. De modo nenhum! Não é lá dentro! Você vive de acordo com isso, mas você não vive dentro disso” (Jean -Toussaint Desanti apud Mongin, p. 241).23

Assim, à guisa de conclusão, citemos mais uma vez Mongin: “Contra a desrealização ligada às novas tecnologias do virtual, o corpo precisa reconquistar uma relação mínima com um ambiente, com o real, com seu real, com seu sítio”.

Reestabelecer uma cultura urbana de limites

A proposta é o estabelecimento de uma cultura de limites, mesmo diante de uma cidade que perdeu os seus. Essa mentalidade se traduziria na prática no conceito de vizinhança, de proximidade, de ligação com a escala pequena.

O corpo existe enquanto corpo, ele não pode se furtar a uma relação como o real, com um mundo; ele não pode viver em um real que se parece com “qualquer coisa”, em um lugar que é “qualquer lugar”, um “lugar qualquer”. “Não se habita um lugar qualquer, mas um mundo onde, de imediato, dentro e fora, privado e público, interior e exterior, estão em ressonância”.24

Como se vê, o conceito é muito abrangente, e engloba a discussão do caminhar pela cidade, da dificuldade gerada pelas distâncias grandes demais ou as barreiras formadas pelas vias de transporte intransponíveis. Está-se falando, entre outras coisas, da própria relação entre o homem e o automóvel e da forma que a cidade assumiu para acomodar o desequilíbrio evidente de forças. Há vários autores que descrevem o fenômeno das cidades que se espraiam indefinidamente e que Bernardo Secchi chama de Cidade Difusa. Dois deles detalham, especificamente, as tipologias urbanas criadas a partir, não de um centro histórico de trocas, mas do planejamento do transporte:

23 A propósito da experiência física do espaço público, Alessandra Orofino, fundadora do movimento

Meu Rio, declarou em palestra que o maior prazer de estar nas manifestações de junho de 2013 foi a

“sensação de estar andando à pé no meio da avenida Rio Branco”. TED X Cidades Sustentáveis

20/09/2013: http://new.livestream.com/tedx/events/2412295

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Edge-Cities

O estudo de Joel Garreau25 sobre a urbanização ao redor das grandes metrópoles americanas desvela a estrutura de um modelo de desenvolvimento imobiliário recente nos Estados Unidos e que parece estar prosperando em lugares como India, China ou Dubai.

Nesses locais, a possibilidade de aumento da densidade é menor do que na grade das ruas da cidade tradicional, além da escala das construções ter sido planejada para o uso intensivo do automóvel. Segundo o autor, o encaminhamento da questão das edge-cities parece ser um dos grandes desafios dentre os projetos de urbanização do século XXI.

Aerotrópolis

O termo foi cunhado na década de 1930 pelo artista Nicholas De Santis ao evocar uma cidade do futuro construída em torno de um arranha-céu, com um aeroporto no topo26. Em 2011, John Kasarda e Greg Lindsay 27retomaram a idéia, para qualificar as aglomerações produzidas ao redor dos aeroportos. Trata-se de depósitos, centros logísticos, escritórios, centros de compra, que, no entender dos autores, serão a base dos centros urbanos do futuro. O conceito tem a ver com a noção da globalização, através da qual a proximidade geográfica deixa de ser fundamental para o estabelecimento da atividade econômica, uma vez que o acesso ao hub de transportes é, esse sim, fundamental para o acesso ao mercado global.

O livro não é crítico em relação ao resultado da urbanização resultante, até pelo contrário, mas expõe com clareza uma configuração de não-cidade: falta de

25 Garreau, Joel.Edge City: Life on the New Frontier, 1991. p. 7. Para caracterizar e quantificar esse

tipo de urbanização, são destacadas cinco características:

 Ter mais de cinco milhões de pés quadrados de área de escritórios (465.000 m²) disponíveis;

 Ter no mínimo 600 mil pés quadrados (56.000 m²) de área de comércio disponível;  Ter mais empregos que moradores;

 Ser percebido como um lugar pela população;

 Não ter tido nenhuma característica de cidade 30 anos atrás.

26Popular Science apud FAAP, Revista Gerente de Cidade, número 65, 1º trimestre de 2013.

27KASARDA, John e LINDSAY, Greg. Aerotrópole - o Modo Como Viveremos No Futuro. São Paulo:

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ligação com o sítio, falta de laços simbólicos e ausência de centro e dependência da comutação em automóveis.

Outra vertente dessa mesma análise é a questão da escala. Se nas grandes megalópoles, a escala vertiginosa talvez só possa ser enfrentada através do plano local, dos bairros, talvez nas cidades médias ainda exista a possibilidade de uma resistência à perda de identidade.

Na cidade difusa, a possibilidade de reatamento dos laços com o local recai, por um lado, sobre áreas menores, vizinhanças, pontos que ainda estabeleçam uma ponte com uma memória coletiva. Por outro lado, existe também outra possibilidade, de “conceber os lugares em função das novas práticas sociais”, um dos princípios do novo urbanismo de Ascher, que preconiza uma combinação de diferentes dimensões sociais e funcionais e hiperespaços, uma definição difícil de ser visualizada, mas que vai, segundo o autor, na direção da redefinição das fronteiras e das modalidades do próprio urbanismo.

O trabalho de Jane Jacobs traz uma contribuição para a questão da escala. Segundo ela, bairros não são cidades pequenas. Morar nas cidades é justamente a respeito disso, do ser humano poder encontrar numa aglomeração maior gente que tem os mesmos interesses que ele, mesmo que não morem perto. Dessa maneira, pode-se dizer que segmentos de pessoas com interesses comuns se sobrepõem aos segmentos de proximidade geográfica. “Essa é de fato a vantagem das cidades”28.

O combate à segregação também faz parte dessa proposta envolvente. Se a luta dos lugares pode ter substituído a luta de classes, a luta pelos lugares envolve o fenômeno da apropriação por alguma classe, ou, seja a própria privatização dos espaços. Como restituir a unidade dos pólos separados espacialmente por cercas, condomínios, gated communities e espaços vazios? Segundo Jacques Lévy29, através

28 O planejamento físico de bairros eficientes deve almejar as seguintes metas (JACOBS, 2009,

p.141):

 Fomentar ruas vivas e atraentes;

 Fazer com que o tecido dessas ruas forme uma malha o mais contínua possível;  Fazer com que parques, praças e edifícios públicos integrem esse tecido de ruas;  Enfatizar a identidade funcional de áreas suficientemente extensas para funcionar

como distritos.

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de um “conjunto político, coerente e legítimo”, que é o objeto dessa última proposta, que será vista a seguir.

Recuperar o sentido político

A última proposição na direção da retomada da idéia do ideal urbano é uma reflexão sobre a representação política local. A possibilidade da experiência política exige uma representação territorial que faça sentido. Diante da cidade que não tem fim, cujo território abrange várias entidades de representação políticas, o desafio está em inventar lugares que permitam reencontrar o sentido dos limites.

“a despeito de um urbano generalizado que não cria uma

civilização comum, a experiência urbana permanece nossa no sentido de que ela tem como papel favorecer e ativar a vita activa, ou seja,

tornar possível uma “libertação” que passa simultaneamente por um

lugarejo, por um espaço de habitação, mas também por uma mobilidade que entrelaça o individual e o coletivo” (MONGIN, 2009 p. 315).

Aparentemente, a busca por essas condições se tornaria uma missão para o século XXI, em que, não só se está propondo um novo paradigma para a cidade construída, mas também que a sociedade instalada nela busque coletivamente um propósito político e a própria ressignificação do espaço comum.

Parece muito, e o próprio Mongin relativiza: “nós não estamos mais fisicamente sempre ‘no meio da cidade’ sonhada, a cidade do caminhante e do

flâneur, mas mentalmente devemos mais do que nunca estar”.

Assim, a missão passa a ser possível, na medida em que propõe esse projeto coletivo como ponto de partida e que abarque a escala do planejamento local, a busca pelo significado dos lugares existentes e uma representação política que dê conta de uma comunidade com algum tipo comum de laço geográfico ou imagético.

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ponto de partida de Mongin é a ressignificação do espaço comum, a proposição de Ascher se dá na aceitação da fragmentação social e na multiterritorialidade dos grupos de interesse.

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