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O remorso de Baltazar Serapião: uma escrita de ruptura

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

Sonia Maria Rodrigues

o remorso de baltazar serapião: uma escrita de ruptura

São Paulo

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Sonia Maria Rodrigues

o remorso de baltazar serapião: uma escrita de ruptura

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras da

Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientadora: Profª. Drª. Lílian Lopondo

São Paulo

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R696r Rodrigues, Sonia Maria

O remorso de baltazar serapião : uma escrita de ruptura /

Sonia Maria Rodrigues - São Paulo, 2013

191 f. : il., 30 cm

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade

Presbiteriana Mackenzie, 2013.

Referências bibliográficas : f. 169-172.

1. Figuras. 2. Ironia. 3. Trágico. I. Título

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Sonia Maria Rodrigues

o remorso de baltazar serapião: uma escrita de ruptura

Dissertação apresentada ao Curso de

Pós-graduação

em

Letras

da

Universidade

Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial

para a obtenção do título de Mestre em Letras.

Banca Examinadora:

Profª. Drª. Lílian Lopondo - Universidade Presbiteriana Mackenzie

Profª. Drª. Aurora Gedra Ruiz Alvarez - Universidade Presbiteriana

Mackenzie

Profª. Drª. Flávia Maria F. S. Corradin - Universidade do Estado de São

Paulo

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pela presença constante na minha vida, suprindo minhas forças e

me ajudando a seguir em frente.

À minha mãe, pelo carinho e compreensão, mas, sobretudo, pelas orações

que me deixam mais forte.

Ao Prof. Dr. José Gaston Hilgert, o mais humano dos coordenadores.

À Profª Drª Elisa Guimarães pelo exemplo de conduta e profissionalismo

e, acima de tudo, pela amizade e carinho em me ajudar.

À minha orientadora, Profª Lílian Lopondo, cuja capacidade e seriedade

tornaram possível esta pesquisa.

À Profª Drª Aurora Gedra Ruiz Alvarez e Flávia Maria F. S. Corradin

pelas excelentes ideias para o desenvolvimento da minha pesquisa.

A todos os queridos amigos, peças-chave em minha vida, pela força,

incentivo e ajuda. Em especial, à Carol, Clara, Lara, Miúcha, Mor,

Wellington e Zé, pela amizade, sempre tão presente, que me permitiu

compartilhar os altos e muitos baixos desta jornada.

Aos funcionários da Biblioteca Central do Mackenzie, em especial à

bibliotecária Ana Lúcia Gomes de Moraes, ao Ricardo, Charles e Jairo,

pela presteza no atendimento.

À Carolina Fernanda, da Secretaria de Pós-Graduação, pela competência,

agilidade e boa vontade em me atender.

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Dor de cotovelo (Caetano Veloso)

O ciúme dói nos cotovelos na raiz dos cabelos

gela a sola dos pés

Faz os músculos ficarem moles e o estômago vão e sem fome Dói da flor da pele ao pó do osso Rói do cóccix até o pescoço

Acende uma luz branca em seu umbigo

Você ama o inimigo e se torna inimigo do amor O ciúme dói do leito à margem

dói pra fora na paisagem arde ao sol do fim do dia

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RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo central analisar o processo de construção do

poético na narrativa do romance o remorso de baltazar serapião, de Valter Hugo Mãe,

tomando como referência principalmente os recursos linguísticos e extralinguísticos por ele empregados na obra. Para a análise do texto, será privilegiada a leitura de dois excertos do romance a partir do modelo defendido por Olivier Reboul, que elege o motivo central como um procedimento que serve de princípio organizador para o texto e se constitui na unidade viva do discurso. Assim, procuraremos comprovar que o motivo central do excerto 1 (Encontro-Apresentação, desencadeamento do conflito) será a ironia ambígua, enquanto do excerto 2 (Agressões Apaixonadas) será a hipérbole irônica. O objetivo é mostrar que o romancista criou modos de dizer que se afastam do uso comum, promovendo força e originalidade ao discurso, ao eleger as figuras como motivo central. Por fim, como resultado da pesquisa, mostraremos também os elementos da tragédia clássica e o entrelaçamento da principal figura do romance – a ironia, com o trágico e o humor negro.

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ABSTRACT

The purpose of this dissertation is to examine the construction process of the poetic effect in the narrative of the novel o remorso de baltazar serapião, written by Valter Hugo Mãe, taking the linguistic and extralinguistic resources used by the author as a reference. For the text analysis, the reading of two excerpts is selected and Olivier Reboul’s concept that considers the central motif a procedure that serves as the textual organization principle and the speech’s live unit constituent is applied. In this way, it may be shown that ambiguous irony is #1 excerpt’s central motif (Introduction-encounter, conflict’s unfolding) while ironic hyperbole is #2 excerpt’s central motif (Passionate agressions). The study has shown that through the selection of the figures as the central motif, the novelist created unusual ways of saying, bringing strength and originality to the speech. As a result of the study it is also shown the components of classical tragedy and the interweaving of the novel’s main figure – the irony with the tragic and the black humor.

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SUMÁRIO

Introdução “O prazer do texto” p. 9

Capítulo I Uma escrita poética p. 17

Capítulo II A paixão do ciúme p. 69

Capítulo III O trágico e os elementos da tragédia p. 115

Considerações Finais p. 156

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Introdução

“O prazer do texto1”

A escolha do romance o remorso de baltazar serapião (2011), de Valter Hugo

Mãe2, deveu-se ao impacto que a obra nos causou pela criatividade e experimentação da

sua escrita ao tratar do sentimento amoroso quando tomado pelo ciúme. Sabemos que escrever sobre manifestações literárias contemporâneas, refletir sobre os livros no mesmo momento em que estão sendo lançados, avaliar o discurso e o percurso de um autor cuja consagração pode acontecer ou simplesmente não acontecer significa um risco. Trabalhar sem aval da fortuna crítica pode gerar certa insegurança. Por outro lado, podemos ser pioneiros em acreditar em um escritor, ainda pouco conhecido e, portanto, não muito estudado, até o momento, sem falar da possibilidade de acompanharmos as novas linguagens que vêm sendo desenvolvidas na produção literária contemporânea. Enfim, como se faz e se refaz, como se renova essa matéria tão sedutora a literatura.

Sem esquecermos as referências aos já consagrados, lançaremos os olhos ao presente, aos consagráveis em potencial. Assim, apresentamos o escritor Valter Hugo Mãe, nome artístico de Valter Hugo Lemos.

Considerado uma das vozes mais representativas do romance contemporâneo português, o escritor Valter Hugo Mãe nasceu no dia 25 de setembro de 1971, em Angola. Filho de pais portugueses, aos três anos do nascimento, mudou-se com a família definitivamente para Portugal. Atualmente vive na Vila do Conde, cidade portuguesa no Distrito do Porto. Licenciou-se em Direito e cursou pós-graduação em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea na Universidade do Porto.

Valter Hugo Mãe venceu o prestigiado Prêmio Literário José Saramago em

2007, por unanimidade, com o romance o remorso de baltazar serapião. Durante a

entrega do prêmio, Valter Hugo Mãe teve a oportunidade de ouvir de José Saramago uma declaração que se tornaria famosa e constaria de qualquer apresentação do autor no mundo literário. Disse-lhe Saramago: “Este livro é um tsunami no sentido total: linguístico, semântico e sintáctico. Deu-me a sensação de estar a assistir a uma espécie

1 Referência e homenagem ao famoso livro de Roland Barthes, O prazer do texto, São Paulo: Martins Fontes.

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10 de parto da língua portuguesa. [...] Lembrou-me algumas ousadias a que me atrevi há vinte anos e que produziram escândalo. Temos outro escândalo, porque Valter Hugo Mãe louvou a expressão escrita da palavra, e abandonou a parafernália sinalética,

portanto, tudo o que é supérfluo.”3

O Prêmio Literário José Saramago, bastante prestigiado, distingue uma obra literária no domínio da ficção, romance ou novela, escrita em língua portuguesa, por

escritor com idade não superior a 35 anos4 cuja primeira edição tenha sido publicada em

qualquer país da lusofonia, excluindo as obras póstumas, bem como os autores que tenham já sido premiados em edições anteriores do Prêmio. Do júri de 2007, que

escolheu por unanimidade o remorso de baltazar serapião, participaram: Guilhermina

Gomes, Nelida Piñon, Ana Paula Tavares, Pilar del Río, Vasco Graça Moura.5

Antes da publicação de o remorso de baltazar serapião, Valter Hugo Mãe já

contava com uma consistente obra poética que incluía mais de dez livros, entre os

quais: silencioso corpo de fuga (Coimbra, A Mar Arte, 1996); o sol pôs-se calmo sem

me acordar (A Mar Arte, 1997); entorno a casa sobre a cabeça (Vila do Conde,

Silêncio da Gaveta Edições, 1999); egon schiele, auto-retrato de dupla

encarnação(Porto, Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, 1999), com

o qual recebeu o Prêmio Almeida Garret; estou escondido na cor amarga do fim da

tarde (Porto, Campo das Letras, 2000); três minutos antes de a maré encher (Vila Nova

de Famalicão, Quasi, 2000); a cobrição das filhas (Quasi, 2001), útero (Quasi, 2003); o

resto da minha alegria seguido de a remoção das almas (Porto, Cadernos do Campo Alegre, 2003).

As obras livro de maldições (Vila do Conde, Objecto Cardíaco, 2006);

pornografia erudita (Maia, Cosmorana, 2007); bruno (villanueva de la Serena, Littera Libros, 2007) foram publicadas concomitantemente com a produção em prosa.

No gênero romanesco, é autor dos romances o nosso reino (Lisboa, Temas e

Debates, 2004); o remorso de baltazar serapião (Matosinhos/Lisboa, Quid-Novi, 2006);

o apocalipse dos trabalhadores (Quid-Novi, 2008); a máquina de fazer espanhóis

(Alfaguara, 2010); O filho de mil homens (Alfaguara, 2011).

3 Informações a partir de: www.valterhugomae.com. Acesso em: 12 de junho de 2012.

4Valter Hugo Mãe contava 35 anos quando a obra foi publicada (2006). Ao receber o Prêmio Literário José Saramago estava com 36 anos.

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Escreveu alguns livros infantis e juvenis: a verdadeira historia dos pássaros, a

história do homem calado (Quid-Novi, 2009), as mais belas coisas do mundo e o rosto (Alfaguara, 2010).

Quatro livros foram publicados no Brasil, o remorso de baltazar serapião, em

2010 e o nosso reino, em 2012, pela Editora 34; a máquina de fazer espanhóis, em2011 e O filho de mil homens, em 2012, pela editora Cosac Naify.

O escritor participou da Flip – Festa Literária Internacional de Parati, em 2011.

Dois de seus livros publicados no Brasil, o remorso de baltazar serapião e a máquina

de fazer espanhóis fizeram parte da relação de melhores livros do ano de 2011, do Jornal O Globo..

A Editora Oficina Raquel, do Rio de Janeiro, publicou, em 2009, uma antologia Portugal,0, com poemas de Valter Hugo Mãe e prefácio de Monica Simas, intitulado Boca de Fronteira, Incandescências na Garganta de Valter Hugo Mãe.

Um dos aspectos fundamentais da criatividade, a que nos referimos no começo desta dissertação, é a forma do tratamento conferido à linguagem. Nossa investigação examinará como o autor imprime marcas no enunciado de modo a conferir ao texto uma feição poética.

Para isso, sobretudo no capítulo I, dedicar-nos-emos ao levantamento pormenorizado dos recursos estilísticos da obra. A intenção é preparar e sedimentar o caminho que norteia nossas análises e reflexões. Começaremos examinando a matéria sonora do discurso, que desempenha importante função expressiva, nas formas de aliterações e outros sons, como rimas, ecos, assonâncias, repetição de cognatos, de conjunções e de palavras. Veremos o empenho do plano da expressão para significar o conteúdo a exprimir, recursos mais reservados à poesia, mas que são caros à narrativa de Valter Hugo Mãe.

Vistas as figuras que dizem respeito aos significantes, passaremos a tratar daquelas que visam ao significado. Como estratégia para conseguir os efeitos que deseja imprimir ao texto, o escritor emprega a figuração da linguagem, na forma de metáfora,

metonímia, antítese, oximoro, hipérbole, sinestesia, polissíndeto, ambiguidade, ironia,

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12 O narrador opta, ao delegar voz às personagens, pela marcação não convencional. Assim, nos diálogos, não há dois pontos, aspas, travessão e fala no parágrafo subsequente. Os diálogos são colocados em um mesmo período, apenas destacados, por poucas vírgulas e pontos. Tal emprego recria a espontaneidade da linguagem conversacional, mas perturba a coesão do texto e exige do leitor muita concentração. A atenção tem de ser desdobrada, para suprir a falta de marcação dos turnos das falas e identificar a voz que narra. O recurso imprime um ritmo contínuo e acelerado ao que vem sendo narrado. Sem dúvida é uma forma também de significar o conteúdo.

Já no discurso indireto, o narrador ao reconstituir as falas das personagens, muitas vezes mistura os registros de modo que dificulta saber a quem atribuir a voz.

A preocupação do capítulo I é mostrar que ao criador de o remorso de baltazar

serapião não interessa apenas o dito, muito mais que a mensagem transparente, elabora ele o material opaco da linguagem. Esta não está só a serviço da transmissão de conteúdo, e sim como forma de enfatizar e potencializar o tema de que trata. Por isso, antes de proceder ao exame dos textos particulares, inventariamos e justificamos os recursos estilísticos, como meio de mostrar o modo singular de expressão do romancista português, que já na capa da sua obra, aponta a forma original e pouco ortodoxa com que operará a escrita: o seu nome e o título do livro vêm em minúsculas. E haverá, em todo o texto, a completa ausência de maiúsculas. Tal insubordinação às regras não é gratuita, conforme será mostrado no decorrer da pesquisa.

Outras marcas de ruptura na escrita do romance em análise serão vistas, uma delas, adiantamos, é como se opera a pontuação. Com efeito, são usados apenas o ponto final e a vírgula, com predominância da vírgula sobre o ponto final. Este é considerado um sinal de pontuação forte porque marca uma pausa mais contundente, e a vírgula um sinal de pontuação fraco porque, na maioria das vezes, aparece separando frases justapostas. Menos frequente, e mais importante, será destacado neste trabalho, o emprego do ponto funcionando como “operador sintático e semântico”. Conforme a frase a seguir, na qual a pausa abrupta destaca a aparição de Ermesinda: “juntei-me ao seu silêncio de longe. vi a minha ermesinda.” (MÃE, 2011, p. 145) Assim, os signos de pontuação são importantes porque além de fato gramatical, engendram o ritmo e intensificam o significado.

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13 normas de pontuação gramatical, que cumprem serem conhecidas e respeitadas. Mas, ao lado delas, há usos que as transgridem para emprestar um ritmo novo e ressaltar algum efeito de sentido, conforme citação acima do romance e muitas outras situações em que a criatividade não se intimida diante das regras da gramática. Os fenômenos rítmicos e prosódicos colaboram para conferir ao texto musicalidade.

Na pesquisa que empreendemos para mostrar a singularidade da escrita de Valter Hugo Mãe, recorremos a uma bibliografia em que estudiosos da língua se juntam a especialistas da área literária, não só por considerarmos a literatura um fato da linguagem mas também porque a obra em análise é muito peculiar na elaboração linguística.

Nossas referências bibliográficas contam com o amparo teórico,

fundamentalmente, dos seguintes escritores: José Luiz Fiorin, As astúcias da

enunciação (2008a), Introdução à Linguística I (2010), Introdução à Linguística II (

2010a) e Lições de Texto: Leitura e Redação; Nilce Santana Martins, Introdução à

Estilística (2008);Roman Jakobson, Linguística e Comunicação (2007); Norma Discini, O estilo nos textos (2004) e A Comunicação nos textos (2005); Heinrich Lausberg

(1967), Elementos de Retórica Literária, e Olivier Reboul, Introdução à retórica

(1998).

A intenção do trabalho é oferecer um estudo capaz de mostrar como a linguagem se articula para tratar de uma paixão, no caso, o ciúme. Para isso, vamos examiná-lo a

partir do Dictionnaire de Passions Littéraire (2005, p. 123/152), cujo verbete “jalousie”

é assinado por Jacques Fontanille, semioticista francês.

Buscamos também a palavra do primeiro a sistematizar um estudo sobre as especificidades passionais. Com efeito, já na Antiguidade, Aristóteles dedicou o

conteúdo do segundo livro da Retórica (s/data) inteiramente às paixões. São elas:

cólera, calma, temor, segurança, inveja, impudência, amor, ódio, vergonha, emulação, compaixão, favor, indignação e desprezo. Embora a paixão aqui retratada não esteja configurada nas elencadas pelo Estagirita, procuramos no livro do filósofo embasamento para melhor identificar uma paixão e entender como, mesmo sem levar

em conta as especificidades de gênero, a Retórica é capaz de descobrir o que é

adequado para persuadir, por meio da relação existente entre ethos, pathos e logos. O filósofo explica que “obtém-se a persuasão nos ouvintes, quando o discurso os leva a sentir uma paixão, [...] é mesmo este o único fim a que visam os esforços”. (s.d. p. 33).

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principal coube a Peter Szondi, em seu Ensaio sobre o Trágico (2004). O filósofo

húngaro reflete sobre a dialética do ciúme e da dúvida, com base na tragédia de Shakespeare, Otelo. Nesse estudo, por ele desenvolvido em seu ensaio, nos basearemos para focalizar o comportamento de Baltazar quando atinge o trágico e o cômico, bem como quando o ciúme se apossa do nosso protagonista e ele fica obcecado por uma prova do adultério de sua esposa:

minha puta, se te apanho um só sinal, um só sinal que me garanta que o avias, abro-te meio a meio” (MÃE, 2011, p. 96-97).

A esta dúvida a respeito da fidelidade do objeto do ciúme, que nasce do medo de sua infidelidade, Szondi (2004) chama dialética da dúvida. Na verdade faz parte da lógica do sujeito ciumento, segundo o pensador, não procurar a prova da fidelidade, mas a da infidelidade.

Há dois momentos-chave na trajetória existencial do protagonista: a descoberta do ciúme e as agressões brutais moral e física que ele impinge à esposa. Diante disso, examinaremos os referidos momentos, que representam o auge de intensidade máxima do conflito e, consequentemente, de toda a história. Apresentaremos um estudo específico do texto a partir de dois excertos. Ao primeiro, denominamos “encontro-apresentação” e ao segundo, “as agressões apaixonadas”.

O primeiro excerto será estudado como o marco principal da narrativa, onde fica configurado um antes e um depois, como resultado da apresentação de Ermesinda a Dom Afonso. Antes, o narrador era um jovem romântico e apaixonado, predominavam os valores eufóricos: felicidade, esperança, vida. Depois, o narrador se apresenta como ciumento e agressivo. Com a referida transformação, os valores mudam para disfóricos: infelicidade, pessimismo e morte. A exploração desses valores possibilitará a abordagem de certas particularidades do campo de comunicação no qual o texto literário está inserido, referimo-nos aos contratos fiduciário e veridictório e, também às funções da linguagem. A investigação procurará responder à questão: Qual o empenho de emoção do narrador para levar o leitor a crer na sua verdade enunciada?

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15 apresentação de Ermesinda a Dom Afonso. Enquanto a hipérbole e a ironia são estruturadores das agressões violentas à Ermesinda, no excerto 2.

Consideraremos, porém, as figuras dispostas e comentadas no capítulo 1 num plano hierárquico. Haverá aquela a organizar o texto, como motivo central, mas outras figuras não serão excluídas, por exemplo, as que amplificam a figura principal ou como intensificadoras do significado, ou mesmo quando evocam o prazer ao se relacionarem

com a matéria sonora, propiciando o delectare. Muitas vezes as figuras são uma fruição

a mais, uma licença estilística para facilitar a aceitação do argumento.

O segundo capítulo trata do abalo sofrido por Baltazar e tem por consequência “as agressões apaixonadas” em Ermesinda. Ou seja, o protagonista acreditava que sua relação com a esposa estava assegurada com o casamento. Segurança própria que os contratos veridictório e fiduciário trazem aos contratantes em uma relação. Mas ocorre o fato imprevisto no dia seguinte ao casamento que leva Baltazar a declarar: “naquele tempo o meu martírio começou” (p. 45).

À súbita descoberta do caráter trágico da existência, Baltazar chama “martírio”.

Por considerar este aspecto componente decisivo do romance, o capítulo III tratará da

tragicidade e da tragédia na narrativa. Sem abandonar a característica própria da nossa investigação, ao tratar desses componentes, destacaremos a ironia hiperbólica como organizadora do discurso trágico e uma detida análise dela.

Ao examinar a cosmovisão trágica da obra, vislumbramos nela elementos da tragédia clássica como a hybris, a hamartia, o coro, a peripécia, o reconhecimento, o pathos, a catástrofe e a catarse. A partir do conceito de cada elemento mostraremos de que maneira cada um pode se relacionar com o romance. Aristóteles mais uma vez

ilumina a reflexão. Desta vez com sua Poética (2005).

Por fim, encerraremos a dissertação com as considerações finais sobre o remorso dentro da visão de mundo de Valter Hugo Mãe. A ideia é depreender o modo específico com que o sentimento fica caracterizado na obra. Um remorso que não redime o sujeito.

Dentro de um modo de dizer que tanto pode atingir um alto grau de elaboração e de requinte como também reproduzir a oralidade, destacamos, para finalizar esta introdução a quase cantiga de amor com que Baltazar pede Ermesinda em casamento.

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16 do seu ser. e lho disse assim, depender de mim será só digna sua pessoa, posta sobre meus braços como anjo que o céu me empresta, e deus terá sobre nós um gosto de ver e ouvir que inventará beleza a partir de nós para retribuir aos outros. casai comigo formosa, tanto quanto meus olhos algum dia poderiam ver.” (MÃE, 2011, p.39, grifos nossos)

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Capítulo I

Uma escrita poética

Não é por acaso que, quando me perguntam qual é o romance português que eu considero o mais brilhante de todos os tempos, eu digo

que é o “Grande Sertão − Veredas.

Eu acho que o Guimarães Rosa fez foi libertar de uma forma absoluta o português.

Valter Hugo Mãe

As palavras têm canto e plumagem. João Guimarães Rosa

Desde a primeira leitura de o remorso de baltazar serapião, consideramos a

linguagem a grande protagonista da história. Mais tarde, ao saber do principal prêmio a que fez jus e, principalmente, de como foi saudado por José Saramago, tivemos a certeza de que estávamos muito bem respaldados. O escritor Nobel de literatura não era dado a tão efusiva admiração.

o remorso de baltazar serapião foi publicado em Portugal, pela editora

QuidNovi, em 2006.A reedição do romance no Brasil ocorreu no final de 2010, pela

Editora 34. Os principais jornais do país, em 20 de janeiro de 2011, a Folha de São

Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, deram destaque ao lançamento e em suas

resenhas literárias elogiaram a obra. Ressaltamos a resenha do jornal O Globo, no

suplemento literário Prosa e Verso, por ter sido feita por um profissional da área

literária, professor Luís Maffei, docente de literatura portuguesa, da Universidade Federal Fluminense, do Rio de Janeiro. Para Maffei, o romance é “Obra para muitas e profícuas leituras, ‘o remorso de baltazar serapião’ indica que poder e amor ainda têm contas a acertar entre si e conosco, leitores da sempre contemporânea língua portuguesa”.

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18 ignorância e falta de esperança. Além das relações de poder inteiramente medievais entre as personagens do núcleo central, el-rei Dom Dinis figura como personagem.

Para tratar de uma época medieval, o autor não só criou personagens, mas também uma linguagem especial para seus seres de papel. Isto é, não houve reprodução da linguagem daquele tempo, mas sim a manipulação da língua, o que existe em potencial nela para ser o código de comunicação entre as personagens.

O escritor, em várias entrevistas concedidas à mídia, foi incansável em responder à pergunta mais recorrente de como se deu o trabalho com a linguagem na obra. Importante e esclarecedora a declaração de Valter Hugo Mãe a seguir:

Enquanto escritor, interessa-me a criação, não exatamente a reprodução simples das coisas, assim nunca me interessaria a utilização da linguagem medieval por si só, pelo que isso seria apenas um trabalho técnico. Interessou-me a manipulação da língua portuguesa para descobrir até onde seria capaz de a levar como se fosse um elástico e a pudesse obrigar a um certo limite.6

E, na verdade, há que se ter “olhos pirilampos à fraca luz da vela” (MÃE, 2011, p. 14), para adentrar o mundo criado pelo enunciador que “leva-nos a uma vida mais intensa, mobilizando desejos múltiplos, criando novas percepções, produzindo experiências diversas” (FIORIN, 2008b, p. 53). Trata-se de um enunciado com enunciação fundada na função estética da linguagem. Importam a essa enunciação as experiências com o conteúdo e com a expressão, sendo que a última passa a ocupar um papel de relevância na composição discursiva. Ainda de acordo com Fiorin’:

Fruir um texto literário é perceber essas recriações do conteúdo na expressão e não só compreender os significados. Quem escreve um texto literário não quer apenas dizer o mundo, mas recriá-lo nas palavras, de forma que, nele, importa não só o que se diz, mas também o modo como se diz. (FIORIN, 2008, p. 45-46)

A linguagem em função estética transfere a realidade conhecida para um outro plano axiológico, submetendo-a a uma nova unidade, que se ordena de modo diferenciado, de maneira a criar uma realidade outra, autônoma e capaz de levar o homem à reflexão e ao autoconhecimento.

Uma das características marcantes do discurso de Valter Hugo Mãe é a ressignificação do conteúdo discursivo no plano da expressão. Ele inventa para sugerir

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19 e, na passagem do plano de conteúdo ao plano de expressão, isto é, na textualização, reinventa o sentido na materialidade textual para sugerir mundos.

Como explica Bakhtin (1993, p. 33), “a vida não se encontra só fora da arte, mas também nela, no seu interior, em toda plenitude do seu peso axiológico: social, político, cognitivo ou outro que seja”, porque “é com valores que a atividade artística se relaciona diretamente, é sobre eles que está orientada a intenção estética de nosso espírito” (Idem, p. 50).

A estranheza das construções do discurso de o remorso de baltazar serapião

fere a percepção do leitor, fazendo-o refletir sobre o significado delas, levando-o a enxergar além do dito, além do sentido veiculado livremente pelo plano da expressão. Em Valter Hugo Mãe, é preciso reler o texto muitas vezes, para que a aproximação com o dito e com o modo de dizer se torne possível, o que faz com que o leitor seja um participante do processo criador.

Sendo assim, com respaldo nos teóricos citados, um dos objetivos de nossa

pesquisa acerca da escrita poética na narrativa de o remorso de baltazar serapião é o de

investigar como o enunciador explora a originalidade da expressão linguística fazendo com que ela seja capaz de recuperar todo o seu poder, dentro de um enunciado peculiar

cuja marca se encontra na ordem da ruptura.

Já dissemos anteriormente que Valter Hugo Mãe se serve da grafia de uma forma pouco ortodoxa; com efeito, o uso ininterrupto de minúsculas não é um fetiche literário, antes convém a uma igualdade no tratamento dos vocábulos. Uma maiúscula é já uma forma de salientar um termo face a outro, assim, remete-se ao leitor a intensificação daqueles vocábulos que ele considera mais impositivos e passíveis de maior significação. Além disso, também o significante adquire potencialidades a nível estético, pois o texto surge-nos mais uniforme pela ausência das maiúsculas, que sempre conferem um aspecto fluido à mancha gráfica, transferindo ao leitor a responsabilidade

de marcar o ritmo narrativo conforme lhe aprouver. O escritor afirma7:

As minúsculas criam uma aceleração na leitura que me interessa. Tudo nos meus textos pretende uma precipitação do leitor, como se lhe retirasse os freios, e a escrita em minúsculas, abdicando também do maior número de sinalética possível, produz esse efeito. Além disso, sem dúvida que me parece ainda oferecer uma limpeza visual de que gosto muito. Ao que sei, no início, a primeira reação é um choque. As pessoas ficam aflitas, não sabem onde parar, não percebem onde a

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20 frase acabou. Mas o leitor menos preguiçoso habitua-se ao fim de quatro páginas e consegue deslizar. Consegue seguir naquela leitura com menos travões com alguma destreza. Fico contente quando percebem que este tipo de pontuação os leva mais rápido ao fim da história.

Assim, para Valter Hugo Mãe, “numa obra literária, as palavras têm todas a mesma importância. [...] Há uma opção democrática absoluta. Não há nenhuma palavra

com a cabeça ao alto”.8

Destacamos ainda a ausência de sinalética a demarcar o discurso direto e indireto, bem como a ausência dos pontos de interrogação ou exclamação. Esta escrita, desimpedida das convencionalidades das normas ortográficas, adquire características da linguagem oralizante, que exigem ao leitor empenho, acuidade e competência na interpretação.

No romance, além da supressão de quaisquer outros sinais gráficos, com exceção das vinte e três letras do alfabeto (não há k, w ou y), o ponto e a vírgula, também não há algarismos, estrangeirismos, dois-pontos, aspas, pontos de exclamação, ponto de interrogação. Ressaltamos que, excluindo o uso sistemático das minúsculas, os outros aspectos também estão presentes no estilo de José Saramago, sendo responsáveis, por exemplo, pelos longos diálogos sem travessão, com as falas das personagens em um mesmo parágrafo separadas apenas por vírgulas, que marcam as páginas do escritor. Nos dois casos, o de Saramago e o de Valter Hugo Mãe, diminuem-se os recursos de que se dispõe para, daí, experimentar a linguagem encenando uma situação de precariedade linguística própria dos momentos históricos iniciais da língua portuguesa, em que de fato diversos sinais gráficos ainda não haviam se constituído.

Baltazar Serapião, o protagonista-narrador do romance, durante toda a narrativa, mantém o movimento pendular entre polaridades. Ele ama e odeia, mistura violência e doçura. A linguagem é tensa o tempo inteiro; talvez, para alcançar tal efeito, o autor tenha optado por uma construção sintática pouco convencional, que não se atém ao sujeito-verbo-predicado. Com efeito, no texto, predominam as inversões, os diálogos são usados sem as suas características próprias, dois pontos, travessão ou aspas, enfim,

sem a indicação de turnos da fala. A forma elíptica da frase aparece reiteradamente

rompendo a sintaxe, como também a elipse semântica, ao suprimir-se palavra de importância decisiva. Em relação à semântica – “cus” – e outras escatologias se veem

(22)

21 lado a lado com formas pudicas de referência a “partes da natureza”, para designar os órgãos sexuais. O trabalho com a expressividade supera questões gramaticais. O autor faz habitualmente transgressões que provocam logo de início certo estranhamento que, mais tarde, se transforma em fruição.

Passaremos a seguir ao levantamento dos recursos que ajudam a conferir poeticidade à obra. Destacaremos o perfil estilístico de Valter Hugo Mãe dentro da obra do escritor que se distingue como o trabalho mais radical de experimentação com a língua. Necessário esclarecer que consideramos estilo a forma pessoal de expressão de certo autor, em certa obra de certa época. Elegemos o conceito da teórica Norma Discini (2009), que nos acompanha na pesquisa:

[...] estilo é efeito de sentido e, portanto, uma construção do discurso. Acreditamos que esse efeito emerge de uma norma, determinada por recorrências de procedimentos na construção do sentido, desde os níveis mais profundos até os mais superficiais do percurso gerativo do sentido. (DISCINI, 2009, 36-37)

Esclarecemos, também, que ao nos referir à escrita de Valter Hugo Mãe de

poética, destacamos a força com que a linguagem é elaborada, próxima à metáfora empregada por Guimarães Rosa, epígrafe do presente trabalho: “as palavras têm canto e

plumagem”9. O poético visto não de maneira redutora a um gênero literário, mas a uma

relação da linguagem com a dimensão artística.

Para abordar a ars poética de Valter Hugo Mãe, no romance em análise,

dividimos em tópicos os recursos linguísticos encontrados. No primeiro nível, trataremos da fonética, a seguir o morfológico e, por último o sintático.

1.1 Aliterações e outros sons

Saussure, em seu Curso de Linguística Geral (2006), revela que o signo

linguístico é arbitrário, isto é, não há nenhuma correspondência entre o significante e o significado, vale dizer que os sons e a articulação da palavra têm expressividade zero. Quando existe alguma correspondência, há a “motivação sonora”, uma das propriedades da linguagem poética de que iremos tratar aqui.

(23)

22 Os fonemas, além de permitir a oposição entre duas palavras, (mala/mapa) a função distintiva, desempenham uma função expressiva que se deve a particularidades da sua articulação e às suas qualidades de timbre, duração, intensidade. Eles constituem um complexo sonoro de extraordinária importância na função emotiva e poética. Os sons da língua podem provocar-nos uma sensação de agrado ou de desagrado e ainda sugerir ideias e impressões. Esses valores expressivos de natureza sonora são observáveis nas palavras e enunciados, justamente a matéria-prima com que trabalham os artistas. Por isso, eles são os que melhor apreendem o potencial de expressividade dos sons e que deles extraem um uso refinado.

No seu empenho pela motivação, os poetas acumulam em seus versos os fonemas mais próprios a expressar a ideia a exprimir. É um dos recursos para que a mensagem valha por si mesma, não apenas pelo seu valor referencial, conforme Jakobson (2007).

A musicalidade é um elemento identificador do estilo de Valter Hugo Mãe, o que dá um caráter diferencial à sua prosa. Entre os muitos recursos poéticos do romance (vocabulário, repetições, jogos de sonoridade), ressaltamos a aliteração que consiste, segundo Nilce Sant’Anna Martins, numa “repetição insistente dos mesmos sons consonantais, podendo ser eles iniciais, ou integrantes da sílaba tônica, ou distribuídos mais irregularmente em vocábulos próximos”. (2008, p. 59)

Tal repetição chama a atenção para a sua correspondência com o que exprime ou realça determinadas palavras, intensifica o ritmo, conferindo-lhe expressiva harmonia

imitativa, como é o caso dos exemplos que se seguem.10

(24)

23 [...] a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde só diabo e gente a arder tinham destino, a voz das mulheres, perigosa e burra, estava abaixo de mugido e atitude da nossa vaca, a sarga, como lhe chamávamos. (MÃE, 2011, p. 11. Grifos nossos).

Os exemplos acima tratam das consoantes constritivas que, por possuírem caráter contínuo, sugerem sons de certa duração, as labiodentais [f], [v], imitam sopros que têm valor expressivo em vocábulos como voz.

À disposição do artista, existem, na língua, consoantes que possuem traço explosivo, que se prestam, assim, a reproduzir ruídos duros, secos, de batidas, pancadas, passos pesados. São as consoantes oclusivas. Salientamos que as surdas [p], [t], [k] dão uma impressão mais forte, mais violenta, do que as sonoras [b], [d], [g]. Nos trechos a seguir é explorado o valor do som oclusivo surdo, enfatizando a relação entre significante e sentido das palavras.

fomos por pé pprio embora, povo atrás olhando e gritando, são animais, àquela, de tão bela, haviam de a estropiar até parecer gado sem raça precisa, meio cabra, meio cadela. (MÃE, 2011, p. 147 Grifos nossos)11

entrássemos ali, morreríamos de espada golpada em nosso pescoço, dias a fio não morreríamos para provar limpeza de maleitas pegadas, e tão longe me impunham os pés, fechado de trabalho que nem vacas me davam para mugir. (p. 87. Grifos nossos)

a sarga está perto daqui, e o dagoberto pôs-se num pulo perto da porta e ouvimo-lo a fazer ruídos para que, se a vaca estivesse real do lado de lá, nos sentisse. ( p. 177. Grifos nossos)

A repetição de sons no final das palavras é designada por nomes diversos: homeoteleuto (final igual), rima, eco, sem que seja bem precisa a distinção entre os termos. Basear-nos-emos na nomenclatura adotada pela professora Nilce Sant’Anna Martins (2008), que esclarece que o homeoteleuto é o aparecimento de uma terminação igual em palavras próximas, sem obedecer a um esquema regular, ocorrendo ocasionalmente numa frase ou verso. O efeito estilístico que oferece é realçar a correlação entre as palavras em que se dá, podendo também contribuir para a harmonia imitativa. Seguem alguns exemplos.

(25)

24

o aldegundes, fraco, um repolho de gente quase a querer ser homem, era descarnado e enfezado de altura e largura, que haveria de poder ele quando a sarga estava mais assustada e escutava menos as suas palavras. (p. 14. Grifos nossos)

tudo era silêncio em redor das suas ordens, nada diferia do que a vida devia ser. por isso nada fiz que me pusesse às avessas dessa paz, senão puxar as rédeas da minha mulher. (p. 54. Grifos nossos)

O segundo fragmento traz, além da terminação igual, -esse em “pusesse”, “às avessas” e “dessa”, comentada, a aliteração do [d], que confere valorização ao significado. As antíteses “tudo”, “nada”, “nada” destacam o raro momento de paz de Baltazar. Com o silêncio de Dom Afonso, Ermesinda era só dele, marido, o pronome possessivo em“minha mulher” marca a posse.

Há muitos casos de palavras derivadas do mesmo radical em uma mesma frase,

ou mais ou menos próximas. A recorrência dos cognatos12 no romance pode sugerir a

repetição de ideia, além de dar cadência à narrativa. Alguns exemplos na obra analisada.

o dagoberto estava tão mirrado, na verdade, que entre as árvores podia parecer um ramo descarnado de folhas, desfolhado de flores ou fruto. (p. 182. Grifos nossos)

a dona catarina estava de mal com as pinturas do aldegundes, mandou juntá-las todas para vista pormenorizada, não fossem sinalar alteração, deturpação, pioramento que os piorasse a eles, dona catarina e dom afonso. (p. 162. Grifos nossos)

Martins (2008) chama esse recurso de anominação. Valter Hugo Mãe aproveita

ludicamente a anonimaçãoem três momentos muito especiais: no primeiro, ao descrever

a atitude do bom Teodolindo, que demonstra sua grande amizade por Baltazar quando a mãe do protagonista morre. Teodolindo o socorre ao pedir aos vizinhos roupas para enterrar a mãe do amigo:

(26)

25 e ele acudiu-me de abraços, aflito por minha aflição, correndo como eu à casa de outros para problema meu. (p. 79. Grifos nossos)

O segundo momento ocorre na cativante prece de Baltazar, longe de Ermesina e angustiado por acreditar que a amada o trai com dom Afonso:

deus meu, leva-me daqui para casa, que braços da minha mulher se abraçam de homem que não sou eu. (p. 136. Grifos nossos)

Aparece, ainda, quando o narrador associa Ermesinda à luz, à pureza.

dirigir-me a palavra e, enfim iluminar-me como iluminava a escuridão e envergonhava todas as sombras. (p. 36. Grifos nossos)

Em algumas ocasiões, o autor alitera palavras próximas que constituem uma rima sutil, quase equívoca (de palavras iguais)

as coisas padeciam e pareciam implorar que nos fôssemos (p. 155. Grifos nossos)

a cada deslize, reposta no respeito (p. 17. Grifos nossos)

A seguir trechos cujos jogos sonoros são explorados para realçar palavras, reforçar o liame entre os termos ou contribuir para criar expressividade e harmonia no texto.

de pé seguido de pé, a mulher queimada nunca nos haveria de alcançar. (p. 127. Grifos nossos)

precisados de quebras de enganamento que nos desenganasse

a vida (p. 154. Grifos nossos)

A maior característica de Valter Hugo Mãe no romance é seu trabalho com a linguagem. Tal trabalho, sempre atento e esmerado, tem como principal inimigo o lugar-comum. Em vez de o narrador dizer “eu sofri muito”, diz:

eu sofri para mim tão sozinho. (p. 186)

(27)

26 era mulher velha ematreira, enfiada em casa, sozinha de maridos, postos em terra cedo de mais. (p. 74. Grifos nossos)

Para dizer que Ermesinda era discreta:

dizia-me a minha bela e calada esposa, olhos não abertos dos pés, delicadeza à minha mesa e na minha cama, como coisa brancaque me impressionava. (p. 46. Grifos nossos)

quantas vezes eu a ia ver de propósito a descer rua abaixo sem olhar para os lados, já os homens coçados dela, a ganirem alfabetos porcos para a encostarem de sexo às paredes e ao chão. mas ela descia e subia trajecto abaixo e acima sem abrir os olhos dos pés, calada sem nada, à espera de sobreviver virgem a uma beleza que se tornava famosa (p. 22. Grifos nossos).

É assim que Valter Hugo Mãe evita fórmulas feitas e procura sempre inovar. Isso se traduz em frases nas quais informações simples são transmitidas num nível diferencial de linguagem e com expressões originais. No exemplo a seguir, no auge da paixão, Baltazar associa “puta” com “pura” e “segura”, o que expõe a confusão de sentimentos opostos e conflitantes que se passam em sua cabeça.

puta, [...] satisfeita com ser refeição de um velho tão feio [...] seguia sem ver senão os pés, como eu a sabia de sempre na rua, discreta e segura como recatada mulher, pura. (p. 64. Grifos nossos)

Notamos que os vocábulos apresentam sons comuns. Entre puta/pura/segura/rua temos a coincidência de consoantes (rima consonântica) e alternância da consoante r/t. Além da oposição de sentido, há identidade de sons, resultando num efeito ampliado que valoriza o oxímoro. O trecho acima expõe o principal conflito de Baltazar diante de sua esposa, voltaremos a ele no próximo capítulo.

Os sons sibilantes podem ser imitados pelas alveolares [s ] e [z ], para contribuir e criar expressividade como a seguir.

a sarga calou-se de sossego e sonos especada na noite.( p. 15. Grifos nossos)

deixei-me consigo como se nada me revoltasse nas suas opções. (p. 143. Grifos nossos)

(28)

27 Observamos que tudo significa, como no trecho a seguir, em que Baltazar e Aldegundes veem pela primeira vez a causadora da maldição que os atormenta, e que os levará à morte. A narrativa corre com sons escolhidos de forma a significar o susto que os irmãos tomaram quando estão frente a frente com a bruxa Gertrudes, mais conhecida

pela antonomásia13, mulher queimada. Os sons oclusivos dentais surdos [t], por vezes,

combinados com a homorgânica sonora [d], podem sugerir o susto e tremor das duas personagens, Baltazar e o irmão, Aldegundes.

e nosso espanto foi, sala dentro de el-rei imponente, vista à luz do dia com tapume de túnica a toldar-lhe toda a pele, estava ela, a mulher queimada, gertrudes, autora da nossa pena, (p. 137. Grifos nossos)

A interrupção brusca da frase depois do verbo de ligação, a elipse do predicado e a inversão (“sala dentro de el-rei imponente”) são recursos que sugerem o susto dos irmãos, uma maneira de o significante motivar o significado.

Na sequência, há falta de pontuação e repetição da conjunção e, marcas visíveis do discurso oral:

e eu recuei e amedrontei o aldegundes que recuou e percebeu e nada dissemos. (p. 137. Grifos nossos)

Notamos a significativa relação entre som e sentido no emprego do fonema [g] transmitindo ou sugerindo o engasgo, “garganta engasgada por meio da repetição do som, em mais um dos casos do fenômeno conhecido por aliteração.

não lhe pareciaser real que alguém se tivesse de sexo para lá daquela porta, que mesmo em modos meigos um dia haveria em que se soltaria um gemido revelador, um soluço de garganta engasgada, (p. 47. Grifos nossos)

As aliterações podem ocorrer também para destacar o fato narrado, caso do exemplo abaixo, com a repetição dos fonemas [t] e [d], a antecipação do desfecho da narrativa ganha destaque, vislumbrada pela repetição da palavra “nada” em “tardava nada” e “não existisse nada”.

(29)

28

tardava nada [...] estaríamos destinados a desaparecer dali e de

todos os lugares, [...] para onde não existisse nada. (p. 158. Grifos nossos)

Já no trecho a seguir, a aliteração do fonema [m] sugere o sentimento que toma conta do narrador antes de se encontrar com Dom Afonso, medo, que o faz tremer:

e medo, medo aterrador fosse ele rachar-me ao meio,

apoderar-se do meu desvalor e mandar que me terminassem. (p. 63.

Grifos nossos)

Ficaram assim demonstradas algumas das possibilidades estéticas dos fonemas, tão bem exploradas pelos poetas e muito caras ao escritor analisado.

Vimos os recursos que conferem ao texto ritmo e musicalidade nas mais variadas formas: rimas, ecos, aliterações, emprego de consoantes homográficas (pronunciadas na mesma área de articulação), repetições de palavras e ainda duplas de palavras formadas com mesmo radical.

1.2 Figuras de linguagem

Sabemos que as figuras de linguagem são estratégias que o escritor pode aplicar no texto para conseguir um efeito expressivo determinado. Elas constituem um desvio linguístico para que a palavra assuma, assim, um novo aspecto. Entre as mais recorrentes no romance, destacamos: metáfora, metonímia, antítese, oximoro, hipérbole, silepse, personificação, animalização, polissíndeto, ironia.

1.2.1 Metáfora

É o emprego de um significante com um significado secundário ou a aproximação de dois ou mais significantes, estando, nos dois casos, os significados associados por semelhança, contiguidade, inclusão. Ela é um desvio em relação à linguagem comum, transferência ou mudança de sentido. (MARTINS, 2008)

dias calados se fizeram, muito mais porque dom afonso, assustado com escândalo que lhe aumentasse, abdicara das visitas, a desoras14 de dona catarina, por parte da minha ermesinda. (p. 54. Grifos nossos)

(30)

29 Ao atribuir o adjetivo “calados” aos dias, o narrador lhe confere grande expressividade, pois desloca uma palavra, normalmente, empregada para pessoas, para um ser inanimado. Os referidos “dias calados” são muito importantes para Baltazar, porque representam os dias em que Ermesinda não frequenta a casa de dom Afonso. Os encontros entre Ermesinda e Dom Afonso transformam Baltazar em um homem extremamente ciumento e violento com a esposa. Para o protagonista, Dom

Afonso “levou de casa a ermesinda para as suas manhãs muito cedo em conversas sem

tradução” (p. 63. Grifos nossos). Uma maneira metafórica de exprimir a sua falta de entendimento com o que ocorria nos encontros.

O adjetivo “calado”15 também marca a transformação da formosa personagem.

Após o casamento, pouco a pouco, emudecia16:

dizia-me a minha bela e calada mulher”. (p. 46. Grifos nossos).

dá-me uma palavra só, uma palavra que te comprometa comigo e com a educação que te devo dar. e só te quero dar amor, ermesinda. e ela nada, calada de mudez.(p. 189. Grifos nossos).

havia de lho entortar e arrancar se lhe descobrisse uma prova, puta, calada de segredos fundos. (p. 64. Grifos nossos).

e a ermesinda nada disse, calada a sair para encontrar dom afonso, como sempre. (p. 96. Grifos nossos).

O segundo exemplo traz o verbo “sarar” em “sarar ao menos os olhos de nossas pessoas e paisagem”. Este emprego revela uma grande expressividade poética porque os irmãos Serapião vinham de intenso sofrimento. Partiram para o palácio de el-rei Dom Dinis com a esperança de conseguir mudar a condição miserável em que a família vivia, por meio do reconhecimento público da arte de Aldegundes. Estavam certos de que retornariam glorificados. Mas voltaram em condição ainda pior, porque vieram amaldiçoados. Os irmãos ficaram afastados da família durante longo tempo. Fragilizados e tristes, precisavam “sarar os olhos de nossas pessoas e paisagem”, ou seja, rever a família, as pessoas queridas e o lugar onde moravam para se sentirem mais

15 Ser calada corresponde ao que se espera da mulher. A fala do pai de Baltazar, endossada por ele, é clara: “uma mulher é ser de pouca fala, como se quer, parideira e calada, explicava o meu pai, ajeitada nos atributos, procriadora, cuidadosa com as crianças e calada para não estragar os filhos com os seus erros, também para não espalhar pela vizinhança a alma secreta da família, que há coisas do decoro da casa que se devem confinar aos nossos. (p. 17, grifos nossos)

(31)

30 fortes.

se continuámos, foi por sentimento de tristeza que nos dava necessidade de pôr pé em casa a sarar ao menos os olhos de nossas pessoas e paisagem. (p. 142. Grifos nossos)

Ainda em relação à metáfora, há o emprego da figura com intensa significação

na história. O tratamento oferecido à Ermesinda, a “bela e calada mulher” (p. 46.

Grifos nossos) de Baltazar, está configurado no que chamamos a luz de Ermesinda. Passaremos a mostrá-lo.

Muitas vezes, ao se referir à Ermesinda, o narrador seleciona palavras ou expressões que remetem à luz. Ao todo, são oito fragmentos do romance, que indicamos a seguir. Observamos que é necessário citar os trechos inteiros porque a linguagem elíptica e a falta de pontuação, muitas vezes, dificultam o entendimento.

No primeiro, Baltazar segue a futura noiva e percebe que o pai de Ermesinda a geria. Ela só saía quando autorizada por ele. Aparecem algumas das características de Ermesinda: obediência, discrição. E a luz, a significar a pureza de Emesinda: como “essa coisa branca que me impressionava”, “luzia no sol”, “muito clara”.

naquela tarde desci à terra, fugido dos animais por um breve tempo, apontei-me ao trajecto de ermesinda entre casa e fonte, saía pela porta lateral e encostava-se às paredes como essa coisa branca que me impressionava, e dava as boas-tardes ao pai que a geria com os olhos rua abaixo, ele ali, agarrado ao percurso com distância, a cargo do ferreiro da terra a amolar e a limar pesados instrumentos, e ela seguia assim permitida, a fazer discretamente o que lhe era pedido, voltava lavada na fonte do rosto, mãos e braços e luzia no sol assim molhada, como folha verde muito clara, dada de orvalho pela manhã. (p. 35. Grifos nossos)

O segundo fragmento traz Baltazar descrevendo a amada como “uma rapariga feliz” e também “muito rosada como as flores”. Volta a referência à claridade: “uma coisa branca” O adjetivo “feliz” é importante de ser ressaltado, porque será transitória a felicidade.

era uma rapariga feliz, mostrava, muito rosada como as flores e, quando passava nas ruas a buscar coisas que os pais mandavam, era muito parecida com uma coisa branca que impressionasse a escuridão das casas e das outras pessoas.

(32)

31 Os valores que caracterizam a rapariga são apresentados no terceiro fragmento.

Baltazar sonha em falar com ela ou que estapudesse até dirigir-lhe palavra”; mostra

insegurança, tão própria dos apaixonados: “que teriam contado à pobre rapariga sobre

mim” e, sempre, a a recorrente metáfora da luz: “iluminar-me como iluminava a

escuridão e envergonhava todas as sombras”.

e eu suspirava, como tanto queria que ela soubesse ser eu o candidato, ter-lhe-iam dito os seus pais, perguntava, que teriam contado à pobre rapariga sobre mim, se teriam, nada que eu visse, estava como recatada de sempre sem querer que se notasse ir prometida, e entre a discrição do mando dos seus pais não acusava mais vida que lhe fosse própria, foi como fiquei desiludido com a esperança de lhe ter dado sinal suficiente para que se amigasse de mim com o olhar e, quem sabe, num dia não vigiada, pudesse até dirigir-me palavra, dirigir-me palavra e, enfim, iluminar-me como iluminava a escuridão e

envergonhava todas as sombras. (p. 36. Grifos nossos)

O quarto excerto corresponde ao pedido da mão de Ermesinda, a narrativa poeticamente elaborada lembra a vassalagem amorosa. Baltazar, finalmente, lhe diz que mesmo “sem condição ou honraria” que o levassem até ela, o que ele faria seria deixar

emergir o seu sentimento amorosohá tanto fulgurado para o interior de mim e intenso

para sair à brancura do seu ser” (p. 39. Grifos nossos).

era grande, e cada vez maior, o intuito de me exceder e lhe dirigir palavra, mas como seria perigoso fazê-lo, arriscar a desonra de desobedecer aos intentos dos meus futuros sogros e procurar a rapariga antes que me fosse devidamente concedida, por isso, esperei pela voz dela que veio no momento em que fui levado a sua casa a pedir-lhe a mão. sem condição nem honrarias que me levassem ali refinado ou melhorado, o que faria senão deixar que o meu amor se notasse, há tanto fulgurado para o interior de mim e intenso para sair à brancura do seu ser. (p. 39. Grifos nossos)

Os quatro excertos acima referem-se à situação do casal antes do casamento. Depois do enlace, o protagonista é assaltado por desconfianças de adultério e a vida dos dois jovens se transforma, mas, mesmo com as agressões à esposa, a metáfora da luz não se apaga. Baltazar sempre verá um brilho em Ermesinda que a distingue de todas as pessoas.

O trecho abaixo, o quinto, corresponde à resposta de Ermesinda quando Baltazar a interroga a respeito dos encontros dela com Dom Afonso:

(33)

32 não acontecia mais nada, dizia-me a minha bela e calada mulher, olhos não abertos dos pés, delicadeza à minha mesa e na minha cama, como coisa branca que me impressionava; (p. 46. Grifos nossos)

O narrador mesmo sofrendo com o ciúme reafirma os valores da esposa: discreta (“olhos não abertos dos pés”), delicada (“delicadeza à minha mesa e na minha cama”), “calada” e iluminada, “coisa branca que me impressionava”.

Seguem os comentários dos vizinhos quando percebem que Baltazar desfigurou quem era linda. Mesmo assim, para ele, Ermesinda mantém o brilho, agora, interno, no sétimo trecho:

fomos por pé próprio embora, povo atrás olhando e gritando, são animais, àquela, de tão bela, haviam de a estropiar até parecer gado sem raça precisa, meio cabra, meio cadela ou monstro até. também era o que diziam da minha ermesinda. fomos esperá-la à porta de dom afonso, escondidos em arbustos e tufos de ervas grandes, pus-lhe braço em cima para lhe mostrar que era minha, levei-a para casa como a guardar uma preciosidade e ela brilhou por dentro. (p. 147. Grifos nossos)

Por fim, a oitava metáfora da luz. Trata do gesto de Ermesinda em oferecer solidariedade e esperança ao marido em um momento difícil. Ele procurara uma bruxa para desfazer a maldição e não obteve sucesso. Ela acena que nova procura deve ser feita, porque nem tudo estava perdido e lhe transmite esperança.

e ela sorriu de ternura, tinha coisas preparadas na mesa e afirmou, amanhã melhor sorte teremos, amanhã, muito me iluminou o seu rosto esperançado, sorriso que me ofereceu, já tão limpo de ter sido mulher de outro, comemos com pressa e, com alma ou sem alma, fui feliz uns instantes, pus-lhe mão no joelho e disse-lhe, és o amor da minha vida, a única mulher que eu amo. (p. 160, Grifos nossos)

Os exemplos vistos acima tiveram por objetivo mostrar o tratamento especial e peculiar dado à Ermesinda pelo narrador. Sua apresentação é lírica, tomada por puro enlevo romântico. As qualidades da personagem são reafirmadas e a distinguem, sugerem em muitos momentos a concepção feminina da cantiga de amor e a vassalagem amorosa.

1.2.2 Metonímia

(34)

33 eles já lá tinham a brunilde a fazer-lhes serviços de interior, como nos contava ao descer aos legumes e ao leite17. (p. 17. Grifos nossos)

eu retirava-me [...] para regressar às vacas18, ao leite, às leveduras e

ao tempo do queijo. [Equivale a cuidar do gado, da horta.] (p. 28-29. Grifos nossos)

se a dona catarina me der licença, eu vou aos pratos para o almoço (p. 72. Grifos nossos).

quando a brunilde nos disse das águas, tão absurdamente antes do tempo devido, tanto se parecia a morrer de dor que lhe dava (p. 168, Grifos nossos)

A metonímia por sua natureza concisa tem uma força expressiva nas frases. Nos três primeiros trechos, se o escritor tivesse dito “como nos contava ao descer para as plantações de cenouras, batatas e aos gados”, ficaria o fato, mas a linguagem em nada o sublinharia, o mesmo raciocínio para os pratos, em vez de preparar o almoço.

No último trecho, outro exemplo de metonímia, as “águas” representam a bolsa que contém o líquido amniótico, que protege o bebê dentro do útero de Brunilde.

1.2.3 Antítese

Para Fiorin19, o fundamento lexical da antítese é a antonímia. Com efeito,

Saussure (2006) diz que na língua só há diferenças. Isso quer dizer que só se compreende o sentido quando se apreende uma oposição, que, normalmente, fica implícita. A figura serve para mostrar as sutilezas da análise da realidade, em que se acotovelam incongruências e oposições.

Verificamos, na narrativa analisada, que a antítese ultrapassa as dimensões das palavras, dos sintagmas e dos períodos.

a) Palavras: “pais envergonhados de velhice e o aldegundes

acordado de juventude. (p. 34. Grifos nossos)

b) Sintagmas: “furioso sem respostas, adormecido cada vez

menos e acordado cada vez mais. (p. 47. Grifos nossos)

17 Vocábulos usados nas acepções de plantação, horta, gados. 18 Vocábulos usados nas acepções de gado, de horta.

(35)

34 c) Orações:“tão igual que nada a tivesse mudado, nada me

parecia o mesmo.” (p.59. Grifos nossos)

Parece-nos estar no domínio da figura ora estudada, o masculino, representado por Dom Afonso, Baltazar, seu pai, Afonso, em oposição ao feminino, representado por Ermesinda, a mãe de Baltazar, que não é nomeada, Dona Catarina, Brunildes. As relações homem/mulher estão fundadas na oposição superioridade e inferioridade; arrogância e sujeição.

Envolve também a figura citada a composição de algumas personagens, caso de Baltazar e Ermezinda. Ambos podem ser comparados a dois focos: um, o sol brilhante e o outro, o sombrio. Trevas vs Luz parece distinguir o casal.

Passa-se da antítese à sua variante, o oxímoro, quando se consideram as características das personagens Ermesinda e Teresa Diaba.

Ermesinda Teresa

Antíteses

X

Oxímoro

Ermesinda

Bela/feia

Puta/pura

No gráfico acima, procuramos demonstrar de que maneira o texto trabalha as antíteses entre Ermesinda e Teresa Diaba resultando na fusão dos opostos em Ermesinda. O oxímoro consigna a fusão dos opostos, tem a finalidade de “apreender as

aporias, os paradoxos, as incoerências de uma dada realidade”20. Ao provocar um

estranhamento, torna o sentido mais profundo, mais intenso. Normalmente, esta figura é

20

Fiorin, José Luiz. A graça do contraste. In Revista Língua Portuguesa. São Paulo, março de 2012.

“Pura” “bela” “virgem”

“clareza” “brancura” “luz”

“anjo”

sublime

“Puta”

“feia” “estropiada” “torta” “animal”

(36)

35 construída estabelecendo uma relação entre duas qualidades conflitantes, para expressar a complexidade da realidade.

Já tivemos ocasião de comentar que o narrador apresenta Ermesinda liricamente,

elaé etérea, a moça “de lá”, com valores que a dignificam. Já Teresa Diaba tem uma

apresentação escatológica, vulgar, moça “de cá”, da terra.

Quando na apresentação de Ermesinda a Dom Afonso, os contrários se aproximam. Como se o sagrado e o profano pudessem conviver na mulher amada. Esta nova perspectiva em que vê Ermesinda desestabiliza o apaixonado protagonista que até o final da narrativa vai carregar a certeza da dúvida.

São norteadores do sentimento amoroso de Baltazar por Ermesinda a antítese e o oximoro. Uma relação em que convivem os contrários: a agressão revela o carinho; o ódio revela o amor; as ofensas morais e xingamentos convivem com a declaração apaixonada.

1.2.4 Hipérbole

A hipérbole (do grego hyperbolé, que significa "ação de lançar por cima ou além"; depois, "ação de ultrapassar ou passar por cima"; daí, "excesso", "amplificação crescente") é o tropo em que há um aumento da intensidade semântica. É a expressão

intencionalmente exagerada com o intuito de realçar uma ideia21.

nem manjerona suficiente haveria em todas as terras para untar tanta ferida aberta que te fizesse. (p. 146. Grifos nossos)

fosse a ermesinda meter-se debaixo de dom afonso e que faria eu corno, apaixonado, morto de loucura por ela. (p. 45. Grifos nossos)

a mulher queimada [...] tinha domínios desnaturais a permitirem-lhe capacidades de mais proveito que a força de mil homens, (p. 114. Grifos nossos)

Ainda citando Fiorin22, o uso da hipérbole no discurso amplia a intensidade do

sentido dado a uma realidade. Ao dizer de maneira mais forte alguma coisa, chama-se a atenção para aquilo que está sendo exposto. Quando se afirma, por exemplo, que a

21 Material pesquisado em http:www.controversia.com.br/index.php?act=textos&=10456, assinado por José Luiz Fiorin, acesso em 13.06.2012.

22 Material pesquisado em http:www.controversia.com.br/index.php?act=textos&=10456, assinado por

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36 mulher queimada tem a força de mil homens, o que se pretende é destacar o grau de poder dessa pessoa. Da mesma forma, a intensidade do amor de Baltazar por Ermesinda é revelada na expressão “morto de loucura por ela” (p. 45). É o tropo em que se diz mais para significar menos, mas, por isso mesmo, enfatiza-se o que está sendo expresso.

Verificamos que a hipérbole é erigida em princípio de composição do texto em ocasiões especiais do romance. Quando o pai mata a mãe:

o meu pai rebentou braço dentro o ventre da minha mãe e arrancou mão própria o que alguém ali deixara, e gritou, serás amaldiçoado para sempre, depois estalou-o no chão e pôs-lhe pé nu em cima, sentindo-lhe carnes e sangues esguicharem de morte tão esmagada, e, como se gritava e mais se fazia confusão, mais se apagava a minha mãe, rápida e vazia a fechar olhos e corpo todo, não mais era ali o caminho para a sua alma, não mais a ela acederíamos por aquele infeliz animal que, morto, seria só deitado à terra para que desaparecesse. (p. 75. Grifos nossos)

Quando Baltazar se imagina traído e planeja vingança contra Ermesinda, ele hiperboliza seu incorfomismo no discurso:

nessa altura, a minha ermesinda comida dia a dia pelo nosso senhor, entre dilemas me via eu. partir-lhe tronco, deixá-la a rastejar, inútil, e depois largá-la no centro das casas a vê-la solteira, esquecida a esmolar-se para nacos de pão seco. partir-lhe pescoço e matá-la de mais nada, isso sim, cornadura enterrada de vez por todas (p. 94. Grifos nossos )

se te apanho um só sinal, um só sinal que me garanta que o avias, abro-te meio a meio, e enterro-te meio a meio tão longe de parte a parte que seguirás incompleta para o inferno para eternamente agoniares de desencontro, (p. 96. Grifos nossos)

Considerando-se corno, o narrador premedita matar o suposto rival:

dom afonso morto, como ficaríamos entregues à sorte pouco risonha de contar com dona catarina, burra de tanta coisa, estúpida de acordar, parva de comer, feia de parecer, chata de aturar, má de vestir, disparatada de falar, inebriante de aliviar as tripas, impossível arriscar tanto, dom afonso, entre tudo, havia de ficar vivo, (p. 94. Grifos nossos)

Referências

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