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A questão da representação política na primeira república.

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Academic year: 2017

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DOSSIÊ

Cristina Buarque de H ollanda

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APRESENTAÇÃO

A narrativa usual a respeito da Primeira Re-pública brasileira funda-se na idéia de ausência. Trata-se de um tempo que ocupa o lugar do equívo-co na memória do país. Não obstante o desaequívo-cordo sobre os futuros possíveis para a Nação, entre a pri-meira geração de homens públicos da República havia notável convergência no diagnóstico da cena política observada: experimentava-se no Brasil a antítese da República; o avesso da ordem anuncia-da pela propagananuncia-da republicana. Se a historiografia abriga raros consensos, a falência deste ensaio da República – ou a profunda inadequação a seus prin-cípios de fundação – tende a ser um deles.

In con táveis episódios de tormen to social e instabilidade política marcaram, de fato, os primei-ros an os da Repú blica. As ten sões em torn o da recon figu ração dos poderes implicaram du ras e

instáveis negociações entre as oligarquias locais e os governos estaduais e federal. Embora o federa-lismo da Carta de 1891 estivesse perfeitamente afi-nado com a demanda e o modo de vida federalistas da sociedade recém ingressa na República (Souza, 1969), a defin ição de n ovos padrões e person a-gens de sustentação política não constituiu tarefa trivial. À diferença da relativa unidade imperial em torno da figura do Rei, a República trazia as marcas da dispersão política e da desordem soci-al. Desta indeterminação original resultou a grave instabilidade das origens republicanas no país.

Foi o arranjo institucional de Campos Sales que instituiu rotina política na República (Lessa, 1 9 9 9 ) e r e t i r o u -a d a ó r b i t a d a a b s o l u t a imprevisibilidade. Para o político pau lista, u m “parlamento com substância liberal, formado a partir de escolhas individuais dos cidadãos e seg-men tado segu n do as clássicas divisões político-partidárias” (p.6) seria in compatível com os pro-pósitos de con solidação do regime repu blican o. Os parâmetros formais da Constituição eram, afi-nal, incapazes de organizar o cotidiano real da vida pú blica. A prin cipal motivação política de

Cam-A QUESTÃO DCam-A REPRESENTCam-AÇÃO POLÍTICCam-A NCam-A

PRIMEIRA REPÚBLICA

* Dou tora em Ciên cia Política p elo IUPERJ. Professora d o Dep artam en to d e Ciên cia Política d a UFRJ, colaborad ora d o Program a d e Pós-Grad u ação em Ciên cia Política d a Un iversid ad e Fed eral Flu m in en se.

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pos Sales foi, portanto, a de opor um princípio de vertebração social a este ambiente desordenado. As in stitu ições do liberalismo político con stitu í-am, nesta perspectiva, um obstáculo ao andamen-to desejável da vida pública.

O modelo de represen tação política qu e estruturou a cena republicana original baseou-se, portanto, num fundamento claramente anti-libe-ral, avesso ao sistema partidário e aos demais ins-trumentos da democracia representativa liberal. Nesta matriz política, o objeto da representação eram as unidades federativas, e não o indivíduo ou o povo. Segu n do Ren ato Lessa, o sistema de Cam p os Sales teria reed itad o a p rescrição mandeviliana dos vícios privados e virtu des pú -b l i c a s p a r a a fo r m u l a ç ã o o l i gá r q u i c a d o particularismo estadual e da unidade nacional (Lessa, 1999, p.6). O aju ste eleitoral baseado n os estados resu ltaria n a con stitu ição de u m corpo nacional único e ordenado. Este seria o camin h o da conversão do particular em universal.

O protagon ismo dos estados n ão era, con -tudo, auto-suficiente. As oligarquias locais foram elemen tos cen trais n a con figu ração da simbiose política qu e perdu rou , a despeito de importan tes con tratempos, por toda a Primeira Repú blica. A praxe política inventada por Campos Sales visava contornar a excessiva carga contenciosa dos gover-nos da primeira década repu blican a. No seu mo-delo político, o presidente da República concedia apoio irrestrito aos estados em troca da garan tia, p or p a r t e d os gov e r n a d or e s , d e b a n c a d a s legislativas afin adas com su as diretrizes. A ação política dos presidentes de estado fundava-se, por sua vez, num modelo de reciprocidade com as oli-garqu ias. Os coron éis, importan tes operadores deste modelo político, zelavam pela fidelidade das eleições ao resultado esperado pelos governos es-tadual e federal. Em troca disto, faziam-se verda-deiros soberanos locais.

Esta delicada arquitetura de person agen s políticos fundava-se na adu lteração de cada u ma das etapas do processo de con stitu ição de pode-res – isto é, alistamen to, votação, con tagem dos votos e verificação final dos diplomas, entregue ao

próprio Poder Legislativo na figura das comissões de verificação de poderes do Congresso. Cada plei-to oferecia ao país um espetáculo de comédia elei-toral, conforme expressão da época. Os mandatos de depu tados, sen adores e govern adores de esta-do eram sabidamente produto de arranjos políti-cos informais.

O sacrifício dos prin cípios elemen tares da represen tação liberal era, portan to, o cu sto da previsibilidade na política. A condição da relativa estabilidade instituída por Campos Sales era a garan tia da frau de n os processos formais de produ -ção da política. A despeito do n ovo equ ilíbrio de poderes, a República não provocara, portanto, em matéria eleitoral, rompimento substantivo com as rotin as do Império. Os ritu ais da represen tação política perm an eciam in scritos n u m u n iverso ficcional fundado no divórcio entre normas e prá-ticas da política.

É fu n damen tal n otar, con tu do, qu e, a des-peito do in equ ívoco predomín io político do mo-delo Campos Sales durante a Primeira República, a reflexão sobre representação política não se res-trin giu a seu s limites. Liberais, positivistas e rea-listas represen tam três importan tes matrizes da crítica aos camin h os reais da política. A compre-en são sobre o tema da represcompre-en tação n a Primeira República não pode passar ao largo de um olh ar mais detido sobre essas tradições do pensamento político brasileiro. O objetivo deste artigo é justa-mente o de investigar as reflexões liberal, positivista e realista sobre representação política – caracteri-zadas, a despeito das distâncias importantes entre si, pela recusa do modelo de alternância de pode-res. Dito de outro modo, trata-se de enxergar o tema da representação política na Primeira República pela marca das presenças, e não pela imagem habi-tual da ausência.

LIBERAIS, POSITIVISTAS, REALISTAS E A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

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estados e oligarqu ias, embora devida a motivos diversos, con vergia no reconh ecimen to do povo como inspiração necessária da representação polí-tica. Seja como operadores e/ ou meros receptores da política, os m en in the street, conforme expres-são de Azevedo Amaral, eram descritos como eixo fundamental da política. As importantes distânci-as entre os modos de interpretar a realidade social não tinham nenhuma relação, portanto, com o aceite ou a recu sa dos su jeitos ordin ários como objeto da ação política, mas com as diferen tes con cep-ções sobre o que fazer de uma realidade social pro-fundamente fragmentada e dispersa.

An tes, con tu do, de avan çar n o tratamen to das diferenças normativas, vale ainda reforçar os pontos de afinidade entre as três principais matri-zes de reflexão sobre o problema da representação política na Primeira República. Havia um acordo largo em torno da existência de uma política frágil e incipiente como conseqüência necessária da de-ficiência sociológica crônica observada. Nesta pers-p e c t i v a , o a m b i e n t e pers-p o v o a d o pers-p o r á t o m o s desorden ados n ão era tido como favorável à con solidação do in teresse público, por defin ição, in -teiro e in divisível. Os críticos de Campos Sales não lidavam, portanto, com o problema da repsentação política em abstrato, mas em alusão à re-alidade con creta n a qu al se in screvia. Era o tema da amorfia popular que moldava, enfim, o olh ar dos políticos para o desafio da representação.

Além desta importan te afin idade n o diag-nóstico da realidade social, a especulação sobre as causas deste cenário também aproximava os insa-tisfeitos com a rotina política original da Repúbli-ca. Em linhas gerais, acordava-se que a sociologia fragmentada tinha origem extrínseca aos indivídu-os qu e padeciam da dispersão. Vítimas de u ma ord em p olítica p rofu n d am en te exclu d en te e autárquica, as massas não eram tidas como sujeito de seu próprio in fortún io. Mesmo en tre os libe-rais, qu e con cebem patamares mín imos de ação do govern o, o rompimen to com essa situ ação in -desejável não era esperado dos cidadãos comuns, mas dos h omen s pú blicos e do Estado.

Em fragmento de discurso pronunciado por

Irineu Mach ado no Senado, esta perspectiva é en u n ciada de modo claro: “Todos os povos são feitos da mesma massa, é necessário que mãos va-lorosas venham plasmar o organismo de uma Na-ção, tiran do-a dos caos da su a origem.” (An ais Sen ado, 1921, p.558) Lon ge de legar aos h omen s desorden ados a respon sabilidade por su a desor-dem, o sen ador iden tifica n os u sos in oportu n os da política o foco da grave dissipação social.

Diante do déficit educacional do povo, os su-jeitos ilustrados pelo privilégio da cultura teriam uma missão social a desempenhar. A falha em atender a esta designação marcaria a trajetória equívoca de de-putados e senadores apartados do ideal republica-no. Nesta perspectiva, os principais operadores do Estado eram tidos como perpetuadores das condi-ções de desventura das massas, inaptas a redefinir, por si sós, os seus caminhos. No mesmo discurso, o senador contrasta a impotência do povo deseducado com a potência dos homens ilustrados:

O povo brasileiro é u m povo qu e ain da n ão está edu cado, con scien temen te de seu s deveres, e, n este caso, àqu eles dos mais cu ltos e felizes a qu em Deu s con cedeu a fortu n a de poder desen -volver a su a in teligên cia e a su a cu ltu ra, a esses cabe o sagrado dever de coração de pôr a su a alma ao serviço dos mais desven tu rados n esse profu so amor, n este sen timen to de bon dade, de altru ísmo qu e é u ma forma da perfeição h u ma-n a, do dever patriótico (Ama-n ais Sema-n ado, 1921, p.562).

Deste diagnóstico das capacidades diferen-ciadas Irineu Machado deriva grave acusação aos colegas de legislatura:

Vós outros não tendes a coragem, vós outros, que ten des dian te de vós a força qu e a n atu reza vos deu , m u ltiplicadas pelo vigor da in teligên cia, pela fortu n a, pelas aspirações da glória, em vez de serdes os servidores da Nação, sois os seu s traidores, deixan do-a m ergu lh ada n essa vida in fecta de h u milh ações, de servilismo e de su b-serviên cia. Não foi essa a promessa exarada n o tribu n al da con sciên cia pu blica, ju rada n o altar da religião repu blican a, qu e os apóstolos da de-mocracia fizeram. Não! Não foi essa, eles men ti-ram (1921, p.562).

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da vida política. Se o povo não estava inteiramen-te isen to de respon sabilidades sobre seu destin o, sem dúvida ocupava um papel coadjuvante dian-te da potência de metamorfose social identificada n o Estado.

As distintas reações normativas ao diagnós-tico de uma massa amorfa e impotente diante das causas de seu infortúnio convergem num duplo e n ecessário fu n damen to político do govern o, o de criação e unidade do povo. Esta inscrição comum tem importante afin idade com a dotação política do soberano de Hobbes, dotado da faculdade de in ven ção do su jeito represen tado (Jau me, 1986). Na teoria h obbesian a, os h omen s padecem dos males da desordem quando dispersos numa multi-dão destituída de forma, qu e precede o próprio conceito de povo. Na fábula política daquele au-tor, o medo da morte violenta só é suprimido quan-do, através do uso da razão, os indivíduos consti-tuem-se num pacto e submetem-se coletivamente a um poder de enormes proporções (Hobbes, 1989). A conversão da dissipação em unidade é o princi-pal movimento da passagem fundamental do caos originário à civilização. Há de se n otar, con tu do, nesta formulação hobbesiana, um importante pa-radoxo: os homens dispersos que instituem o pac-to não constituem o objepac-to da represen tação n a nova ordem. Estes in divídu os são rein ven tados pelo soberano e esta é a condição da sua existência como um coletivo ordenado. A ação representati-va é dotada, portanto, de uma vocação criatirepresentati-va, voltada sobretudo para a unificação das células isoladas n a idéia comu m de povo. A possibilida-de da orpossibilida-dem política, preocu pação fu n damen tal de Hobbes, reside, portan to, n a su pressão das partes e n a con stitu ição de u m todo in distin to.

Longe de confinada à tradição política au-toritária, como poderia sugerir a analogia com a teoria h obbesiana, a suposição de uma natureza criativa do representante esteve claramente presente na teoria política de dois importantes símbolos do liberalismo brasileiro na Primeira República: Rui Barbosa e Assis Brasil. Para ambos, as rotinas for-mais da política não configuravam mero procedi-men to, mas a possibilidade de o Estado con du zir

um valioso experimento de pedagogia política. As semelhanças entre as matrizes interpretativas des-tacadas detém-se, portanto, no plano dos diagnós-ticos e n ão avan çam n as formu lações positivas sobre como a sociedade e a política devem ser. As normas abrigam as diferenças, embora igualmente in scritas n a su posição comu m da política como lugar de criação.

Rui Barbosa e Assis Brasil: origens do libera-lismo republicano

Legado à história como o principal ícone da tradição liberal no Brasil, Rui Barbosa também acu-mulou o estigma de um intelectual divorciado da realidade do país. Em sintonia com a reflexão libe-ral de gestação estrangeira, Rui Barbosa passaria ao largo das idiossincrasias nacionais.

Dos discursos pronunciados na Campanha Civilista, de 1909, e na campanha pelo governo da Bahia, de 1919, depreende-se, contudo, uma clara preocu pação do político com as particu laridades de nossa formação social. À diferença do clássico discurso liberal, que define a ação estatal em pata-mares mín imos, Ru i Barbosa evoca o Estado e os homens públicos como importantes personagens da vida política. O despreparo cívico do povo é tido como resultado da negligência dos governos. Segundo ele,

Se os n ossos h omen s pú blicos amassem o seu con tacto, e lh e cu ltivassem a compan h ia [refe-rên cia ao povo], (...) a n ossa n acion alidade teria desen volvido os costu mes do govern o represen -tativo, o povo n ão se retrairia, como se retrai, ao trato dos h omens de Estado, e as agitações políti-cas, tão ordin árias e essen ciais n as democracias, n ão dariam en sejo, aqu i, aos mau s govern os e seu s sequ azes, de as crimin arem como obra de conspiradores, ou manejo de revolucionários (Bar-bosa, 1967, p.51).

A idéia do povo como objeto de uma classe política vilanizada perpassa seus discursos de cam-panha na Bahia, nos moldes do fragmento a seguir:

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an do-lh es a edu cação e a cu ltu ra. Bem fora daí, porém, a política, em cu jas mãos caiu o sertão baian o, é a qu e tem por objeto estimu lar, n o h o-m eo-m , os in stin tos su baltern os, asselvajá-lo e an imalizá-lo (p.98).

Nesta perspectiva, a política é tida como in stru men to passível de bon s e mau s u sos. Na cena política observada, não restariam dúvidas quanto à impertinência das ações dos h omens de Estado. Os sertanejos, personagens a que se dirige a campanha política de Rui Barbosa, estariam con-denados a uma “vida estagnada e coagulada” (Bar-bosa, 1967, p.36), a uma existência marcada pelo imperativo da sobrevivência e aprisionada pelas exigências materiais imediatas, fato incompatível com as deman das da vida pú blica. A cau sa deste infortúnio era claramente política.

Para Rui Barbosa, a distinção fundamental entre sertanejos e litorâneos era apenas devida ao acaso, relativa ao abismo en tre seu s respectivos ambientes de socialização. Os processos de grave espoliação que se abateram sobre a população do sertão ter-lhe-iam extinto todo vigor cívico. O acento na idéia de uma “raça inteligente, de grande vitali-dade”, investida de um “brônzeo heroísmo”, loca-lizava a responsabilidade pelos desacertos políti-cos nos algozes do povo desfrutado. Eram as clas-ses políticas locais, extremamente oportunistas, os sujeitos por excelência da degradação do sertane-jo. O fato da profu n da desagregação cívica tin h a, portanto, uma genealogia social muito evidente.

Nesta perspectiva, o povo, a despeito de sua existência desordenada e amorfa, não constituía um obstáculo ao aprimoramento da vida pública. O Estado, os homens públicos e o próprio ritual elei-toral acumulavam a possibilidade de superação deste grave problema da dispersão. A correção dos meios de constituição dos poderes, por si só, não seria capaz de conduzir essa transformação. A expectati-va de metamorfose cívica, embora não anulasse a ação política do povo, não se limitava à expectativa de um espontaneísmo qualificado dos homens co-muns, isto é, de um espontaneísmo incrementado pela correção dos procedimentos eleitorais.

Se o voto era tido por Ru i Barbosa como direito inalienável dos indivíduos, sua teoria

polí-tica não prescindia de um movimento que se pro-jetasse de cima para baixo, moldando a cena dissi-pada con forme a ín dole u n itarista do in teresse público. Nesta perspectiva, o povo era tido, simul-taneamente, como sujeito e objeto da criação polí-tica. Isto é, a condição de sua identidade ativa se-ria justamente a intervenção modeladora do Esta-do ou Esta-dos personagens da vida pública, destinada à garantia da lisura dos processos eleitorais e tam-bém a uma certa pedagogia cívica. Não fosse a in-terferência de um ator externo, a massa desagregada segu iria en tregu e às con dições de reprodu ção de seu infortúnio. Não haveria propósito em crer que, deixados a si mesmos, como estavam desde sem-pre, os h omen s comu n s iriam organ izar-se por si sós e, deste modo, con figu rar, à su a imagem e se-melhança, uma Nação ilustrada pela boa política. Todo mimetismo da política com a sociedade esta-va fadado à reprodução do atraso. A perspectiesta-va mais verossímil, se abolida u ma ação in cisiva e renovadora por parte do Estado, era, portanto, a de perpetuação do desalento. Considerada a grave apatia política do povo, a cen a política n ão pode-ria configurar-se como espelh o da realidade soci-al, típica metáfora liberal. Se não h avia um povo claramente constituído, não havia a possibilidade de a represen tação política simplesmen te repro-duzir uma cena social já existente.

A possibilidade de rompimen to com esta inércia degenerativa estaria localizada, portanto e sobretu do, n o campo estatal. Ao imprimir movi-mento a um universo estagnado, o Estado poderia ativar um círculo virtuoso, em substituição ao cír-culo vicioso perpetuador das condições do atraso. No discurso liberal em evidência, os recursos for-mais da política são in vestidos de n otável força transformadora ou, ao menos, originadora da trans-formação.

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cos modificarem e moldarem a ín dole do povo conforme o imperativo da vida cívica. O lu gar da política é definido em franca sin tonia com a pre-missa progressiva e cumulativa da pedagogia. Tal como o aprendizado do andar, quando “a criança hesita, cai e por vezes quebra até o narizinho” (As-sis Brasil, 1934), o exercício político implica tenta-tivas e erros sucessivos até o alcance de uma situ-ação mais estável e dificilmente suscetível à que-da. Embora Assis Brasil não identifique, como Rui Barbosa, u m a n atu reza h eróica n o brasileiro, tampouco deriva qualquer sorte de fatalismo polí-tico da observação da realidade social.

Para Assis Brasil, portanto, a experimenta-ção é a condiexperimenta-ção do aperfeiçoamento; o acerto po-lítico é o corolário dos desacertos. Ain da qu e o mau governo seja o destino inexorável dos homens que empreendem o voto desqualificado, é a expo-sição a este infortúnio que abriga a possibilidade de conversão moral dos eleitores e seus governos. Essa perspectiva de uma pedagogia eleitoral desti-nada ao melh oramento da vida pública está clara no seguinte fragmento de discurso:

A n ação também se corrige, tem também as su as neuroses, os seus momentos, suas hesitações, seus

em portem ents, mas é preciso deixar que ela viva,

segu n do deva viver. O caso da n ação é o mesmo de cada u m de n ós: (...) n a águ a é qu e se apren de a nadar. É no exercício da função que o indivíduo adqu ire idon eidade para essa mesma fu n ção. É, pois, preciso qu e a n ação ten h a liberdade, n ão como qu erem os n efelibatas e son h adores, para fazer os seu s govern os de an jos. Qu ero qu e a n a-ção ten h a liberdade para fazer os seu s mau s go-vern os, porqu e é pelo preço de fazer os mau s negócios e de dar os maus passos que os h omens e os povos aprendem a dar bons e a ser dignos de sua liberdade. A representação ver-dadeira é uma n ecessidade; n ão para fazer bom govern o, mas para torn ar o povo apto a fazer u m bom govern o (Assis Brasil, 1933).

Para o político gaú ch o, a qu alidade do go-verno evoluirá, portanto, na medida da prática elei-toral, desde qu e garan tidas as con dições corretas para sua execução. Assim como em Rui Barbosa, e de um modo ainda mais contundente, os procedi-men tos e o con teú do da política são percebidos por Assis Brasil como u m con tín u o. Nesta pers-pectiva, não há rompimento entre a forma e a

subs-tância da política. Isto é, a garantia da forma incide de modo determinante na produção da substância política e vice-versa. Embora não destituído de ten-sões, o laço estreito entre forma e conteúdo ilustra a crença do liberalismo brasileiro na potência cria-tiva da política, e não meramente na sua capacida-de capacida-de reprodu zir, como u ma imagem especu lar, u ma realidade já con stitu ída. Isto é, o u n iverso formal é tido, nesta tradição de pensamento, como instrumento para a metamorfose dos usos e h ábi-tos políticos.

À semelh an ça da formu lação política de Hobbes, portanto, a percepção do liberalismo re-publicano original era a de que o povo não pré-existia ao momento da representação. À diferença, contudo, do extremo hobbesiano de supressão dos direitos políticos, o sufrágio universal era tido como uma realidade da qual não era possível retroceder. Sendo um dos imperativos da vida moderna, res-tava aos políticos a edu cação deste meio. Nesta versão mitigada do princípio h obbesiano de re-presen tação, a qu alificação política dos cidadãos teria u m du plo fu n damen to: a ação do represen -tante instituído e o próprio processo de constitui-ção de poderes.

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O positivismo e a representação política como substância

Se a premissa do Estado como móvel es-sencial da vida pública constitui marco importan-te do pensamento liberal n as origen s da Repú bli-ca, foi no castilhismo que este fundamento alcan-çou expressão máxima. Nesta filosofia política, baseada no positivismo de Augusto Comte, o prin-cípio de impotência do povo é levado ao limite. A constituição estadual do Rio Grande do Sul, de 14 de ju lh o de 1891, su bordin a toda ação legislativa ao corpo executivo, num claro rompimento com o fundamento liberal da Carta Constitucional do país. Para Assis Brasil, u m dos críticos mais con tu n -den tes do castilh ismo, n o estado gaú ch o “a Lei Fundamental confere exclusivamente ao déspota a facu ldade de fazer as leis, de as regu lamen tar e a p l i c a r, p o n d o -l h e a p e n a s n a m a n d í b u l a pantagruélica uns freios irrisórios de manteiga, que ele traga e digere” (Assis Brasil, 1925). Nesta or-dem política, o soberan o goza, portan to, de larga concessão de poderes.

A precedência da ciência sobre outros crité-rios de organização da vida social é a principal marca desta matriz de entendimento da represen-tação política. Longe da fortuna incerta das opini-ões, que configuram a política no paradigma libe-ral clássico, a cena pública apurada pelo saber ci-entífico não estaria fadada aos caprichos da forma, mas animada pela atribuição de substância opor-tuna, que institui estabilidade e permanência na política.

Nesta perspectiva, o en ten dimen to da re-presentação política está menos referido à minúcia dos mecanismos eleitorais do que ao princípio do bem público, que não está disponível às consciên-cias ordin árias e depen de de u m exercício criati-vo, e n ão mimético, da represen tação por u ma minoria esclarecida. Técnica, ciência, competên-cia e saber constituem, enfim, o campo semântico da idéia de representação no marco positivista.

Embora prescinda do conceito de democra-cia – ou faça a ele concessões meramente formais – , a represen tação positivista identifica n o povo a

motivação primordial da ação política. Sem refe-rên cia aos h omen s comu n s, a moral e a ciên cia constituem meios desprovidos de finalidade, cor-pos carentes de alma. A técnica e o imperativo de pu reza dos espíritos, temas positivistas por exce-lência, não se justificam por si mesmos, mas pela con vicção de qu e con du zem a sociedade ao bem comu m e, portan to, de qu e a represen tam. Se o argu men to do saber con du z à defin ição de u ma minoria privilegiada pelo conhecimento, não defi-ne uma maioria indigna de representação. A von-tade do povo, in acessível a si próprio, é in terpre-tada pelo governante, dotado da faculdade e da oportunidade do conhecimento. À semelhança do Gran de Legislador rou sseau n ian o, o ch efe políti-co é u ma figu ra excepcion al capaz de políti-con h ecer a con sciên cia ocu lta qu e é de todos e de cada u m, sem ser da maioria ou da minoria dos homens. Os sujeitos ordinários e desconhecedores de sua pró-pria vontade são descritos, nesta perspectiva, como objeto – e n ão su jeito – da represen tação.

Para Borges de Medeiros, principal opera-dor do castilh ismo, todos os h omen s produ zem desejo na medida em que experimentam a neces-sidade, mas pou cos são capazes de refletir ade-quadamente sobre esta condição comum e ascen-der à produ ção de saber. Sen do o desejo u ma pu lsão elemen tar, própria de u ma “organ ização cerebral ainda rudimentar” (Medeiros, 1933, p.47), a experiência da opinião, que implica pensamento e conh ecimento analítico, ocupa lugar superior e acessível a poucos.

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amorfo, desprovido de identidade e incapaz, portan-to, de exprimir uma opinião acabada.

Na política desprovida de ciên cia e con sa-grada pelo u so ordin ário reside, en fim, a dissipa-ção, o estorvo das facções, a domin ân cia das par-tes em detrimento do todo. As rotinas eleitorais da Primeira República, marcadas pela fraude, eram tidas como sin al da decadên cia e imperativo da mudança. O espetáculo periódico dos pleitos elei-torais revelaria o avesso do mu ndo desejado, a profusão dos interesses particu laristas em lugar de ações inspiradas pelo bem comum.

A crítica contun dente à rotina política da República assentava-se, portanto, numa visão so-bre a representação política radicalmente alheia aos parâmetros da carta de 1891. O rigoroso centralismo castilhista buscava contornar o equívoco da habi-litação política direta do povo, deslocando o h o-mem ordinário de sujeito para objeto da política. À diferença da perspectiva liberal, que concebia o povo como au tor e ator da política, o positivismo brasileiro não previa uma duplicidade de papéis para o in divídu os comu n s. A ação do Estado, de-votada ao bem público, deveria ser incontrastável, ú n ica h ipótese compatível com a expectativa de verdade da representação.

O realismo e a representação política como farsa

Embora constitutivo da visão sobre represen-tação política de liberais e positivistas, o desencan-to com a República foi expresso de modo mais con-tundente por autores realistas como Oliveira Viana e Alberto Torres, dedicados à crítica do desajuste entre norma e prática política. Para eles, o realismo sociológico é condição elementar da arquitetura política; o mundo fenomênico é a única inspiração possível para a política. Nos termos de Alberto Tor-res, “o senso nacional não pode ser idêntico para todos os povos. O nosso país precisa, de uma vez por todas, formar um espírito e uma diretriz práti-ca, que o conduza” (Torres, 1938, p.46). O encanto com “paradigmas forasteiros” seria um grave mal de nossa constituição política.

Nesta perspectiva, o reconhecimento da pró-pria alma libertaria o povo das angústias que não eram as suas, mas que colonizavam sua identidade política. Não cabia a n ós a agon ia dos povos desordenados pela ruína de instituições seculares e pelos descaminhos do liberalismo. Era outra a natureza de nossos problemas, ainda obscuros e carentes de investigação. Neste ambiente, grave pre-juízo causava a “influência mental da França”, que nos fazia repetir, “por símbolos da nossa psicose” (p.76-77), um repertório alheio de preocupações.

Imbuído nesta mesma leitura, Oliveira Viana lamenta: “nenhum dos nossos constitucionalistas havia procurado cunhar as leis em metal brasileiro, dentro dos moldes das nossas conveniências naci-onais” (Viana, 1930, p.22). Do abismo entre reali-dade e legalireali-dade resultava a impossibilireali-dade de uma organização política “viva e orgânica, feita de músculos, nervos e sangue.” (p.17) Nossa existên-cia soexistên-cial, sem ossatura e sustentação, alicerçada em rudimentar “patriotismo tribal”, não guardava semelhança com as virtudes cívicas de além-mar. Era preciso moldar a política de acordo com as ca-racterísticas particulares de nosso ambiente social.

Nesta perspectiva, a sociologia era tida como poderoso determinante da política. A abstração das normas, na visão realista, não era um instrumento favorável à alteração da realidade. Para Oliveira Viana, haveria grave equívoco em conceber a “for-ça lógica do raciocínio e da dialética como agentes determinantes da conduta de multidões” (p.129). Todo intuito normativo era estéril quando alh eio ao contexto específico que pretende modificar.

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ordem. Faltava u m Estado forte qu e orden asse os vícios particu laristas e operasse como “poderoso modificador sociológico” (p.48).

Além da crítica ao federalismo da Carta de 1891, Oliveira Viana critica, na República, os tem-pos cu rtos dos man datos políticos e as eleições dos poderes Execu tivo e Legislativo. Aí estariam as origen s da in stabilidade e dos mau s u sos da política (Viana, 1930, p.27). O desejo de organiza-ção da vida pú blica, bem como a gestaorganiza-ção de u m “gran de ideal coletivo” (p.314), de qu e ain da n ão dispúnh amos, são formulados em outras bases:

Esse alto sentimento e essa clara e perfeita consciên cia só serão realizados pela ação len ta e con -t i n u a d o Es -t a d o – u m Es -t a d o s o b e r a n o , in con trastável, cen tralizado, u n itário, capaz de impor-se a todo o país pelo prestigio fascin an te de u ma gran de missão n acion al (p.315).

Alberto Torres foi o precursor, entre os rea-listas, desta alu são ao Estado como fio con du tor da política. Para ele, a principal carência nacional era de “um governo consciente e forte, seguro dos seu s fin s, don o da su a von tade, en érgico e sem con traste”. Em oposição à excen tricidade liberal, Torres concebia o ch amado Poder Coordenador como protagonista da harmonia social. A peculia-ridade deste poder era seu caráter vitalício. Sua permanência constituiria valioso contraponto à nociva instabilidade da ordem republicana, flutu-ante ao sabor do desvio faccioso da política. Trata-va-se de opor o perman en te ao tran sitório, com vistas à estabilidade e unidade da vida pública.

O problema central do revisionismo realista era, portanto, o de instituir “um quarto poder, tal como o antigo poder moderador, que, sendo judici-ário, também tenha o direito de iniciativa.” (Viana, 1930, p.48) A determinação de um centro de forças que submetesse todas as células do governo consti-tuía o contraponto necessário de uma “sociedade sem fixidez, sem ossatura de classes” (p.92).

Diante do fato incontornável de nosso atra-so atra-sociológico, o exercício forte da política con fi-gurava-se como imperativo social. Para Oliveira Vian n a: “os povos de fraco sen timen to coletivo, isto é, aqueles em que a consciência do grupo

na-cion al é ru dimen tar ou n u la, n ão podem elevar-se, por si mesmos, ao cu lto do Estado e da su a autoridade.” (Viana, 1930, p.100) Desta incapaci-dade de superação espontânea o autor deriva forte associação entre princípio de Estado e realismo:

O Brasil precisa realizar desde já u ma alta polí-tica de caráter profu n damen te orgân ico e n acio-n al. Esta política, porém, só pode ser feita por iniciativa do Estado. Ora, o Estado, pela maneira por que está organizado na Constituição vigente, n ão pode eficazmen te realizá-la. Logo, tu do de-pen de de u ma reforma con stitu cion al qu e orga-n ize o Estado orga-n u m seorga-n tido qu e o capacite para este fim su perior e n ecessário (p.13).

Diante de uma sociologia extremamente frá-gil e, ao mesmo tempo, poderosa para defin ir os rumos da política, o Estado concebido por Olivei-ra Vian a é descrito por su a capacidade de sobre-por-se ao fato da profu n da desagregação social. Con tra a potên cia de desordem implicada n as massas, deve-se opor uma força incontrastável. À diferen ça do liberalismo de Ru i Barbosa e Assis Brasil, a condução da vida pública, na perspectiva realista, é claramente incompatível com concessões à expressão política das massas. A habilitação po-lítica de indivíduos inábeis configura o próprio avesso do prin cípio de represen tação, qu e su põe a figura metonímica da parte pelo todo. As massas desqualificadas não estão em condições de, efeti-vamen te, projetar-se n a vida pú blica e in dicar os bon s camin h os. O ceticismo realista com relação às possibilidades de a política con figu rar o mu n -do social n ão é formu la-do in distin tamen te, mas em relação aos usos observáveis da política.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora a formulação realista seja expres-são limite da premissa de inabilidade política do povo, o suposto basilar do Estado como agente de modelação da sociologia teve notável permanência n os diversos en ten dimen tos sobre represen tação política n a Primeira Repú blica. Mesmo o pen sa-mento liberal das primeiras décadas republicanas afasta-se do princípio da representação como pro-cesso destitu ído de con teú do fin alístico e afeito unicamente à expressão de vontades pré-constitu-ídas. A versão liberal brasileira imprimiu unidade e substância ao problema representativo. A habili-tação cívica do povo não dispensou a ação política marcadamente estatal.

A figura de um soberano resoluto, capaz de imprimir direção à vida pública, não esteve confin ada, portaconfin to, aos marcos do positivismo. Seconfin -do cria-dor e criatura da política, o povo era -dota-do de uma identidade híbrida, moldada em simbiose com a política sediada n o Estado. A ação política d os h om en s com u n s n ão era absolu tizad a e tampouco suprimível da cena pública.

O Código Eleitoral de 1932, marco jurídico de encerramento da Primeira República no que diz respeito ao tema da representação, expressou cla-ramente a preocupação liberal com a garantia de bases con sisten tes para a ação do govern o. Seu principal autor foi Assis Brasil. Neste texto políti-co, a formulação de um modelo eleitoral h íbrido, baseado nos prin cípios proporcional e majoritá-rio, buscou combinar a representação das minori-as com garan timinori-as à con figu ração de u ma sólida maioria parlamentar, compatível com as necessi-dades de govern o. Isto é, os segmen tos men ores do eleitorado eram admitidos na arena congressual na medida em que não produzissem impedimen-tos para o livre cu rso da política. Os fragmen impedimen-tos eram habilitados, portanto, sob a condição de não comprometerem a unidade da política.

Além desta arquitetura eleitoral, outras no-vidades também merecem ser notadas no primeiro código eleitoral brasileiro. A garantia do voto se-creto – u m avan ço com relação ao voto

simples-men te coberto –, a exten são do direito de voto às mulheres e, sobretudo, a invenção da justiça elei-toral – que retirou do Legislativo o julgamento da matéria legislativa – foram marcas inequívocas de alargamento do princípio representativo na dire-ção do liberalismo democrático. A preocupadire-ção em garantir condições reais para a ação substantiva de governo – sem o obstáculo excessivo das minorias e da crítica – associou se, portan to, com con teú -dos clássicos do liberalismo, afina-dos com a pers-pectiva da represen tação como espelh o de u ma cen a política já con stitu ída. O en cerramen to formal da qu estão represen tativa n a Primeira Repú -blica não escapou, portanto, ao hibridismo liberal da época, que enxergava o povo, simultaneamen-te, como su jeito e objeto da política.

A con versão em lei desta cu riosa formu la-ção política baseou -se n u m paradoxo origin al: o fato do avanço liberal ter-se inscrito no preâmbulo de um regime político autoritário. Embora não es-capassem ao campo liberal, os temas da unidade e da criação na política foram apenas possíveis, por-tanto, pelo fato de estarem inscritos numa ordem que já se anunciava autoritária.

(Recebido para pu blicação em jan eiro de 2008) (Aceito em março de 2008)

REFERÊNCIAS

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CRH

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. 2008

RESUMOS,

ABSTRA

TCS, RÉSUMÉS

A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

Cristina Buarque de Hollanda

O artigo trata o tema da representa-ção política na Primeira República brasi-leira (1889-1930) a partir de três impor-tantes matrizes de reflexão sobre a ques-tão: o liberalismo, o positivismo e o re-alismo. Busca-se rejeitar a narrativa usu-al das primeiras décadas republicanas, baseada unicamente no diagnóstico de corrupção política, e iluminar outras faces importantes do cenário político da época. A despeito das diferenças signifi-cativas entre os modelos interpretativos em evidência, que constituem o cerne do artigo, eles convergem na expectati-va de protagonismo do Estado na tarefa de unificação e criação do povo.

PALAVRAS-CHAVE: Primeira República,

repre-sentação política, liberalismo, positi-vismo, realismo.

THE QUESTION OF POLITICAL REPRESENTATION IN THE FIRST

BRAZILIAN REPUBLIC

Cristina Buarque de Hollanda

The paper treats the theme of political representation in the First Brazilian Republic (1889-1930) starting from three important reflection matrixes on the subject: the liberalism, the positivism and the realism. One aims to reject the usual narrative of the first republican decades, based only on the diagnosis of political corruption, and to illuminate other important faces of the political scenery at the time. A despeito das diferenças significativas entre os modelos interpretativos em evidência, que consti-tuem o cerne do artigo, eles convergem na expectativa de protagonismo do Estado na tarefa de unificação e criação do povo. In spite of significant differences among the interpretative models in evidence, that constitute the core of this paper, they con-verge in the expectation of protagonism of the State in the creation of the people and unification task.

KEYWORDS: First Republic, political

repre-sentation, liberalism, positivism, realism.

LA REPRÉSENTATION POLITIQUE PENDANT LA PREMIÈRE RÉPUBLIQUE

BRÉSILIENNE

Cristina Buarque de Hollanda

Cet article aborde le thème de la représentation politique, au cours de la Première République brésilienne (1889-1930), à partir de trois perspectives im-portantes de réflexion : le libéralisme, le positivisme et le réalisme. On essaie de ne pas prendre en considération la narrative habituelle des premières décennies républicaines, basée uniquement sur le diagnostic de la corruption politique, et de montrer d’autres aspects importants du scénario politique de l’époque. En dépit des différences significatives entre les modèles interprétatifs mis en évidence, qui constituent le noyau de cet article, il existe une convergence qui va dans le sens d’une attente, celle de voir l’État devenir le protagoniste de l’unification et de la formation du peuple.

Referências

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