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Teoria da literatura e teoria da cinema: a crise e o fantasma

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

Pedro Henrique Trindade Kalil Auad

Teoria da Literatura e Teoria do Cinema: A Crise e o Fantasma

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Pedro Henrique Trindade Kalil Auad

Teoria da Literatura e Teoria do Cinema: A Crise e o Fantasma

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada.

Área de concentração: Teoria da Literatura e Literatura Comparada

Linha de Pesquisa: Literatura, outras Artes e Mídias (LAM)

Orientadora: Profª. Dra. Leda Maria Martins

Belo Horizonte

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Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG

Auad, Pedro Henrique Trindade Kalil.

A888t Teoria da literatura e teoria do cinema [manuscrito] : a crise e o fantasma / Pedro Henrique Trindade Kalil Auad. – 2014.

252 f., enc.: il.

Orientadora: Leda Maria Martins.

Área de concentração: Teoria da Literatura e Literatura Comparada. Linha de pesquisa: Literatura, Outras Artes e Mídias.

Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras.

Bibliografia: f. 234-248.

1. Literatura – História e critica – Teses. 2. Cinema e literatura – Teses. 3. Teoria feminista – Teses. I. Martins, Leda Maria. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras. III. Título.

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5 Para Leda Martins,

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6 AGRADECIMENTOS

Agradeço à professora Leda Maria Martins que, além de ter me orientado de forma excepcional neste trabalho, me acompanha há mais de dez anos em minha trajetória acadêmica. Sem o apoio e o suporte dela, desde os meus tempos de graduação, tenho certeza que não seria capaz de ter produzido este trabalho. Obrigado pelas cobranças, pelo rigor, pelo estímulo, pelas conversas, pelas ideias, pelo suporte, pelas inquietações, por acreditar em mim. Que fique registrada minha profunda admiração, respeito e carinho.

Agradeço aos professores, coordenadores e funcionários do Pós-Lit por proporcionarem todas as condições para a boa realização deste trabalho.

Agradeço a New York University por ter me recebido durante o estágio sanduíche, especialmente à Professora Avital Ronell por me supervisionar e pelas importantes

contribuições a esta tese, e à Lindsay O’Connor que esteve sempre disposta a ajudar em

todo o processo do estágio.

Agradeço à CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – pela bolsa concedida para a realização deste trabalho e pela bolsa sanduíche (PDSE) que me proporcionou o estágio nos Estados Unidos.

Agradeço ao professor Marcelino Rodrigues da Silva por todo o apoio e confiança durante o meu doutorado.

Agradeço aos professores Eneida Maria de Souza, Sandra Regina Goulart Almeida e César Geraldo Guimarães por todos os apontamentos realizados durante o exame de qualificação que enriqueceram muito este trabalho.

Agradeço à minha esposa Carolina Macedo pelo incentivo e paciência, pelos cafés e conversas e, principalmente, por dividir tão intimamente a vida comigo. Este trabalho seria imensamente mais pobre sem sua companhia.

Agradeço à minha mãe Cristina, que é sempre a primeira a acreditar em mim. Os caminhos (e descaminhos) do estudo da literatura e do estudo do cinema foram abertos por ela, eu apenas os segui.

Agradeço ao meu pai Cláudio, por todo o suporte ao longo desses últimos anos. Ao meu irmão Thiago (in memoriam) e à minha avó Azely (in memoriam).

À minha família mais recente: Dorinha, Márcio, Guilherme e Erika.

Agradeço à Viviane Maroca e ao Lucas Morais pela correção desta tese.

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Albuquerque, Simone Carvalho, Nelson Freire, Maíra Nassif, Lucas Morais, Leonardo Beltrão, Claudia Wermelinger, Marina Lacerda, Maria Fernanda Moreira, Cíntia Vieira, Julia Mesquita, Leandro Moura, Mirian Silveira, Miguel Ávila. Acredito que tem um pedacinho de cada um de vocês nessas mais de duzentas páginas.

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8 “The memory came faint and cold of the story I might have told, a story in the likeness of my life, I mean without the courage to end or the strength to go on”.

Samuel Beckett,

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9 RESUMO

Esta tese tem como objeto de estudo a Teoria da Literatura e a Teoria do Cinema. O objetivo principal é investigar o senso comum construído a respeito dessas teorias e desmistificar certos preceitos que são reafirmados na contemporaneidade, principalmente em torno do discurso sobre a crise das teorias. São analisados três grandes blocos teóricos: o Formalismo Russo e as Teorias da Montagem Soviéticas; Roland Barthes e a revista francesa Cahiers du Cinema; as teorias feministas, tanto do cinema, quanto da literatura. No primeiro bloco é jogada luz sobre a peleja entre os discursos teóricos que se querem como científicos e aqueles outros discursos que se pretendem mais culturalistas. No segundo, discute-se a figura do autor e o seu oposto complementar, o leitor, e o embate entre esses dois lugares que se torna mais tensionado na França durante o pós-guerra. No terceiro bloco, a problemática a respeito do cânone, da história literária e da história cinematográfica, é questionada sob o viés de uma teoria feminista que coloca em jogo a representação e as ideologias. Por fim, é analisada também a questão das ideologias dentro das teorias e a sua tradição inventada, para, daí, se questionar os discursos sobre a suposta crise contemporânea. Postulamos que a teoria não terminou –mesmo com todo o discurso sobre o “fim” da teoria ou o momento pós -teórico –, mas se transformou e, tal como um fantasma, volta ao revir.

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10 ABSTRACT

This Ph.D. dissertation has as its object of study the Theory of Literature and the Film Theory. The main objective is to investigate common sense built on these theories and demystify certain precepts that are reaffirmed in contemporary times, especially around the discourse about the theories’ crisis. Three major theoretical blocks are analyzed: Russian Formalism and Soviet Montage Theories; Roland Barthes and the French magazine Cahiers du Cinema; feminist theories, both of film and of literature. The first block is about the struggle between the theoretical discourses that wants itself as scientific and those other discourses that are intended more culturalist. Then, we discuss the figure of the author and its complementary opposite, the reader, and the clash between these two places becomes more strained in France during the postwar period. In the third block, the problem regarding the canon of literary history and film history is questioned under the bias of a feminist theory that puts at stake the representation and the ideologies. Finally, we also analyzed ideological problems of theories and their invented tradition, to thereafter questioning the contemporary discourses on the alleged crisis. In a sense, the theory did not end - even with all the discourse about the "end" of the theory or about the post-theoretical moment - but turned into something different and, as a ghost, back to revise.

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11 RESUMEN

Esta tesis circunscribe su objeto de estudio en la Teoría de la Literatura y la Teoría del Cine. El objetivo principal es investigar el sentido comum que ha sido construído al respecto de dichas teorías y desmitificar determinados preceptos reafirmados en la contemporaneidad, principalmente en torno al discurso sobre la crisis de las teorias. Analisamos tres grandes blocos teóricos: el Formalismo Ruso e las Teorías del Montaje Soviético; Roland Barthes y la revista francesa Cahiers du Cinema; las teorías feministas, del cine y de la literatura. El primer bloco aclara la disputa entre los discursos teóricos cuya orientación es más científica y aquellos discursos que se pretenden culturalistas. El según bloco discute la figura del autor y su opuesto complementar, el lector, y el embate entre esos dos lugares que ha sido más conflictivo en Francia durante la postguerra. El tercer bloco cuestiona la problemática al respecto del canon de la historia literaria y de la historia de la cinematografía desde la perpectiva de la teoría feministas que viene a razonar la representación y las ideologías. Por último, se analiza también la cuestión de las ideologías dentro de la teoría y su tradición inventada a fin de inquirir los discursos de la supuesta crisis contemporánea. Postulamos que la teoría no ha terminado – a pesar de todo el discurso sobre el “fin” de la teoría o el momento post-teórico -, sino más bien que la teoría ha sido transformada y, igual que un fantasma, retorna una vez más.

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12 LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Po zakonu [1926], dirigido por Kuleshov e roteirizado pelo diretor e por

Chklovsky. Atriz: Aleksandra Khokhlova.

Figura 2 - Camponesas que representariam, também, Lenin, em Three Songs About

Lenin [1934], de Dziga Vertov.

Figura 3 - Mr. West olha com admiração o Teatro Bolshoi enquanto se convence de que

a União Soviética é melhor que os Estados Unidos, em The Extraordinary Adventures of Mr. West in the Land of the Bolsheviks [1924], de Lev Kuleshov.

Figura 4 - Orson Welles, em Confidential Report [1955], filme que, segundo André Bazin, apesar de ter mais traços autorais, não é melhor do que Cidadão Kane.

Figura 5 - The Wind [1928] filme realizado nos Estados Unidos pelo sueco Victor Sjöström, com Lilian Gish como protagonista.

Figura 6 – The Dinner Party, de Judy Chicago.

Figura 7 – Do Women have to be naked to get into the Met. Museum?, 1985 – Guerrilla

Girls.

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Sumário

Introdução ... 14

Crise ... 25

Teoria no Terceiro Mundo ... 31

Capítulo 1: O Formalismo Russo e as Teorias da Montagem Soviéticas: Ciência e Cultura ... 38

1. OPOIAZ e Círculo Linguístico de Moscou ... 45

1.1. A influência positivista ... 54

1.2. A influência da linguística ... 57

2. Duas definições de cinema: montagem e movimento ... 65

3. Conexões entre o Formalismo Russo e a Teoria da Montagem Soviética ... 72

4. O Fim do Formalismo Russo ... 79

5. Revisando os Próprios Conceitos ... 86

6. A Leitura Estruturalista e o Ressurgimento da Ciência Literária ... 88

7. Saindo do Laboratório ... 95

Capítulo 2: Cahiers du cinema e Roland Barthes: Autor/Leitor ... 100

1. Politique des Auteurs: os debates na Cahiers Du Cinéma ... 105

2. Roland Barthes: percurso da morte do autor ... 119

3. Barthes em relação à Cahiers du Cinema ... 128

3.1. A fina distinção entre Barthes e a Cahiers du Cinema ... 132

4. Outras mortes ... 136

Capítulo 3: Teorias Feministas: Cânone e História, Ideologia e Representação ... 142

1. A História (da literatura) sob uma nova perspectiva ... 146

2. Teoria do cinema feminista ... 158

3. Duas Vozes: Me and My Shadow, de Jane Tompkins e o conflito entre uma voz pessoal e uma voz acadêmica ... 169

4. Uma questão, também, ideológica ... 173

5. Articulando a teoria feminista ... 180

Capítulo 4: O Fantasma da Teoria ... 187

1. Tradição e Teoria ... 197

2. A Crise Atual ... 208

2.1. “Quantos Somos?” ... 217

3. Fantasma da Teoria ... 221

Conclusão ... 227

Bibliografia ... 235

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Introdução

Jurei mentiras e sigo sozinho / Assumo os pecados. / Os ventos do norte não movem moinhos./ E o que me resta é só um gemido. / Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos / Meu Sangue Latino.

João Ricardo e Paulinho Mendonça (Secos & Molhados)

Sangue Latino

aqui te faço os relatos simples

dessas embarcações perdidas no eco do tempo cujos nomes e proveito de mercadorias ainda hoje transitam de solidão em solidão

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O que dirão do mundo hoje os pesquisadores do futuro? O que, diante dos discursos elétricos, dos espaços fluidos, das redes, dos autores-redes, eles elegerão como representativo? O que, das pilhas de papeis e do mar de bytes, será resgatado para dizer o que se viveu no início do século XXI? Quais serão as escolhas? Serão as grandes histórias ou as pequenas histórias? Quais músicas cantarão essa nossa época? E filmes? Quais os documentos que revelarão nossas paixões? Quais imagens falarão dos nossos costumes? Como será a batalha ideológica da nossa época, quando olhada pelo retrovisor? E as relações entre nações, quando é possível pensar que, para os pesquisadores do futuro, a ideia de nação pode ser somente uma ideia do passado? O que o futuro reterá de hoje? Como se classificará o nosso presente quando este for passado em algum lugar do futuro?

Será que alguém recontará a história de 2002, de 2006, de 2013, como Hans

Ulrich Gumbrecht contou a história de 1926, “vivendo no limite do tempo”? Esse título

tão sugestivo, como se o tempo tivesse um limite, como se não fosse ele mesmo o sentido do limite que escapa, da duração não mensurável, como se não fosse a contagem do tempo, a sua delimitação, não mais do que uma convenção e uma formula para cuidar de colheitas e saber os horário dos trens. O limite como paradoxo? O tempo se expande infinitamente como a física afirma sobre o espaço, e que pode também se expandir ou retrair em nossos sentidos. É possível viver no limite do tempo, é possível o tempo ter um limite? Mesmo que tempo aqui seja entendido não como temporalidade, mas somente como momento histórico, como o início do Memórias de um Sargento de

Milícias, de Manuel Antônio de Almeida: “Era no tempo do rei”1? O que deverá

permanecer nesse/desse tempo? E quando, como Slavoj Žižek, afirmam que se vive no fim dos tempos? É possível ter um fim do tempo se o próprio limite dele é um

paradoxo?

Como fazer um biografema do nosso mundo contemporâneo? Puxar uma linha revelará muitas possibilidades, e tantas outras possibilidades serão deixadas de lado. Tentar desvendar todas as linhas parece uma tarefa lunática, porque é impossível isso em um mundo em que, por minuto, são disponibilizados mais de 200 horas de vídeos na internet, por exemplo. É impossível acompanhar tudo o que acontece, tudo o que se registra, todos os que falam em todos os cantos do mundo. Tudo e todos, hoje, discursam, tudo e todos são partes e realizadores da história do presente. Não no sentido

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que Hannah Arendt chamava a atenção, em Sobre a Revolução, de que todo mundo quer

“fazer história” ou “entrar pra história”, como se a salvação do presente fosse a

imortalidade de papel, mas no sentido quase utópico, como naquele momento de esperança beckettiana: “toda a humanidade agora se resume a nós, vamos fazer da

melhor maneira possível”. É possível? Como fazemos hoje é a melhor maneira

possível? E os outros possíveis da história? E os outros possíveis do presente?

Porque o mundo é complexo e intransigente. É complexo porque, entre outros motivos, não é possível ver mais as coisas como se fossem isoladas. Ou é? É possível isolar uma parte no laboratório e dissecar parte do mundo sem perceber a relação do laboratório com resto do mundo, nem que essa relação seja ainda a da soleira, a do batente? E o mundo é intransigente porque é esse o que temos hoje, que, como correnteza, expande e carrega a história e os homens. Mas, no futuro, ele será só memória de estátuas que morrem? Ou será recapitulado como na exposição

Experimental Jet Set, que retoma obras de um ano específico, 1993, para ler, de hoje,

aquele momento histórico? Nossos objetos serão guardados? Serão os lixos eletrônicos

ou serão os, cada vez mais crescentes, “objetos de design”? “Um objeto está morto quando o olhar vivo que se colocava sobre ele desapareceu. E quando nós desaparecermos, nossos objetos irão para lá onde enviamos os objetos dos negros, para

o museu”, diziam Chris Marker e Alain Resnais, no filme Les statues meurent aussi de 1953, sobre uma exposição de Arte Negra daquela época na França.

O que contará o nosso museu quando hoje mesmo é possível ter um museu de si mesmo, ao menos virtualmente, como no The Museum of Me, programado pela Intel, no qual, através de seus arquivos digitais, é possível simular salas de exposição que contam/recontam a sua vida; você como curador de si mesmo. Essa palavra com dois sentidos, como também aquele capaz de curar a dor. Curar a dor de si mesmo: é essa a esperança de hoje? Com tantos remédios psicotrópicos para aliviar a angústia, a tristeza, a insônia ou para regular a felicidade. Estamos mesmo esperando mais da tecnologia do que de uns dos outros, como sugere Sherry Turkle em Alone Together? As palavras que

abrem o seu livro são: “a tecnologia se propõe como a arquiteta de nossas intimidades”2. Curadoria da nossa própria vida – e só da nossa – é a proposta da tecnologia que cada vez se torna mais imperativa e mais imprescindível em nossas vidas?

2 TURKLE. Alone Together, p. 1. [technology proposes itself as the architect of our intimacies] (tradução

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Mas e se essa tecnologia também ajudar a reunir pessoas, organizando movimentos como o que aconteceu no mundo árabe a partir de 2010? Adam Curtis, entretanto, nos lembra, em All Watched Over By Machines of Loving Grace, que o lugar vazio do poder não pode ser deixado vazio de ideias, sob pena de que velhas fórmulas se repitam de maneira ainda mais desastrosa. Ou se a união pela tecnologia é para organizar um movimento como o Occupy Wall Street, em que pessoas foram para o coração financeiro do mundo para ocupar o Zuccotti Park e protestar contra a desigualdade social cada vez maior nos Estados Unidos? Ou a tecnologia, também, por outro lado, não serviu para criar grupos ativistas como o Anonymous ou contribuiu para que segredos de Estados possam ter chegado às mãos dos cidadãos comuns, como fez o WikiLeaks? É possível que a tecnologia faça com que nos isolemos, mas também nos unamos; é possível que ela nos torne curador de nós mesmos, mas é possível também que uma legião de anônimos ocupem virtualmente espaços outrora outorgados apenas a uma distinta classe política. Ou o mundo hoje é uma reverberação dos anos de 1990 e seu reclaim the streets, quando vemos as grandes marchas de maio e junho de 2013 no Brasil?

É possível, pois, pensar que a tecnologia está retroalimentando duas instâncias distintas ou até mesmo paradoxais? União e solidão? Ou uma é inerente à outra, como quando só percebemos que estamos sozinhos porque sabemos quando estamos em grupo, ou é o que chamam de solidão da multidão? O caráter blasé da massa, como classificado por George Simmel, ou o velho e seu cachorro do filme neorrealista italiano

Umberto D., ou os Sounds of Silence de Simon e Garfunkel? Esse duplo sentido das

tecnologias recentes não seria só mais um retrato de nossas vidas desde a modernidade ou seria uma nostalgia retroalimentada permanentemente? Teríamos nostalgia de uma época que teríamos, ao menos, menos nostalgia? Ou o problema é justamente que

estamos numa nova época, numa nova cultura que pode ser chamada de “estática”,

como sugere3, também, Adam Curtis?

Mas esta tese não é uma espécie de futurologia do presente. As perguntas que evoco acima são perguntas que relembram, de certa forma, nosso presente. Emaranhado pelos fluxos temporais – futuro do presente, retomando uma memória do presente –, o passado também retorna e essas torrentes que emanam do presente recebem os visitantes

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do passado. Esse passado que, de certa forma, continua moldando nosso presente e que moldará também o futuro.

No filme Robocop, de Paul Verhoeven, quando o policial Murphy é baleado e transformado em uma espécie de ciborgue – o Robocop –, uma memória artificial é implantada. Essa memória objetiva que ele não se lembre do passado, de sua família e de como ele se tornou esse meio-humano, meio-robô. Mas a memória de Murphy volta e, no final, quando perguntam o seu nome, ele não diz o nome já popular – Robocop –, mas o seu antigo/verdadeiro nome: Murphy. A força policial que iria guiar o futuro é iluminada pela memória do antigo policial, tudo isso centrado no presente daquela Detroit violenta e corrompida. A lição que parece ficar é: só se salva o presente se se salva não só o futuro, mas também o passado.

Nosso presente, contudo, é de difícil assimilação. Como questionado acima, o que ficará do hoje se ainda hoje não sabemos o que não devemos abandonar ou, em outras palavras: o que é o inegociável do nosso presente? Talvez um dos textos mais importantes de hoje, que reflete sobre a lógica do que é contemporâneo, seja de Giorgio Agamben: O que é o contemporâneo?. Neste, o filósofo italiano irá afirmar:

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e

um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época,

que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.4

Nesse sentido, seguindo os rastros de Agamben, poder-se-ia afirmar que esta é uma tese que tratará dos fenômenos contemporâneos, mas não no sentido de que irá tratar somente de assuntos do presente, mas por ter, justamente, esse descolamento – ou falta de aderência – com o presente. O assunto geral desta tese são a Teoria da Literatura e a Teoria do Cinema. Os assuntos do presente da teoria, pois, serão analisados por uma ótica anacrônica. Em outras palavras, o pacto com o presente aqui é assumido justamente por sua dissociação a ele5.

4 AGAMBEN. O que é o contemporâneo?, p. 59. [grifos do autor]

5 Ou, ainda, como afirma Carlo Ginzburg: “não falarei da atualidade. Às vezes é preciso se subtrair ao

rumor, o rumor incessante das noticias que nos chegam de toda parte. Para compreender o presente, devemos aprender a olhá-lo de esguelha. Ou então, recorrendo a uma metáfora diferente: devemos

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Mas do que esta tese trata? Uma pergunta que se inscreve no presente poderia ser a resposta mais fácil: o que pode a teoria hoje? Entretanto, essa pergunta estaria ancorada nesse hoje da pergunta, nesse hoje que se parece muito mais com um presente do que com algo contemporâneo. Sendo assim, torna-se necessária uma mudança de foco: não é o que a teoria pode hoje, mas o que a teoria, em sua história, principalmente a partir do século XX, pode nos dizer de hoje.

Para isso, é inevitável que se olhe para trás, para essa teoria do passado que nos chega aqui no presente e que, doravante, irá fazer parte do que ajuda a projetar um futuro: só se poderá colher perguntas do hoje e do amanhã se formos contemporâneos, no sentido que Agamben oferece. Nesse sentido, olhar para o passado da teoria, tanto do cinema quanto da literatura, se oferece como o processo mais substancial para entendermos a teoria contemporânea.

Mas, aqui, enfrentamos um problema. Muito do olhar lançado para o passado da teoria se constrói a partir de uma história construída da teoria, isto é, temos que enfrentar uma história da teoria que começou a se formar nos últimos cinquenta ou sessenta anos. Temos ao menos duas grandes narrativas construídas das teorias: uma escrita por um ou poucos autores – uma espécie de tradução – e aquelas que dão voz à teoria por meio de antologias dos textos mais importantes – uma espécie de arquivo. Do primeiro grupo, pode-se destacar Theory of Literature de Austin Warren e René Wellek (1949); Teoria da Literatura (1967) de Vitor Manuel de Aguiar e Silva; Literary

Theory: An Introduction (1983) de Terry Eagleton; Literary Theory: A Very Short

Introduction (1997) de Jonathan Culler; Literary Theory: A Practical Introduction

(1999) de Michael Ryan; Theory of Literature (2012) de Paul H. Fry; da teoria da literatura e Film and Theory: An Anthology (2000) de Robert Stam e Film Theory and

Criticism: Introductory Readings (2004) de Leo Braudy e Marshall Cohen, da teoria do

cinema. Do segundo grupo há, por exemplo, da teoria da literatura, The Norton

Anthology of Theory & Criticism (2001), organizado por Vincent B. Leitch e Teoria da

Literatura em Suas Fontes (2002), organizado por Luiz Costa Lima e, da teoria do

cinema, A experiência do Cinema (1983), organizado por Ismail Xavier ou o Teoria

Contemporânea do Cinema (2005), organizado por Fernão Pessoa Ramos.

Essas obras são, sem dúvida, de grande valia para os estudos literários e para os estudos cinematográficos, principalmente se tomados como referência, e não como

imanência, afinal, elas são mesmo, principalmente as da segunda categoria, obras de

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cristalização de certas interpretações e certas seleções de textos que poderiam entrar nessa espécie de cânone teórico6. O problema disso é que, em alguns casos, se tornam seletos certos pontos de vista, desenvolvendo, assim, uma criação de repetição de argumentos e a construção de um senso comum da teoria.

Ligar o senso comum à teoria foi algo pensado por Antoine Compagnon. No caso desse teórico belga, ele acredita que a teoria teria como dever, de certa forma, enfrentar a ideia de senso comum que as pessoas têm da literatura. Mas ele alerta que não é sua intenção criar o binarismo teoria e senso comum: “Trata-se de arrombar essas falsas janelas, essas contradições traiçoeiras, esses paradoxos fatais que dilaceram o estudo literário. Trata-se de resistir à alternativa autoritária entre a teoria e o senso comum, entre tudo ou nada, porque a verdade está sempre no entre-lugar”7. Ora, o que entra em jogo aqui é praticamente uma dialética entre um estudo especializado – a teoria

– e o discurso da sociedade – senso comum.

Esta tese, entretanto, não pretende revisar ou reinterpretar a obra de Compagnon. O que nos interessa aqui é que, se a teoria teria, de certa forma, uma obrigação de enfrentar o senso comum, não teria ela também, contemporaneamente, a necessidade de enfrentar o senso comum da própria teoria? Não é o caso aqui, tampouco, de prever um novo binarismo no lugar do que o próprio Compagnon refuta, mas de colocar a teoria diante da teoria ou, em outras palavras, pensar teoricamente contra a teoria senso comum ou, ainda, colocar o discurso especializado diante do discurso especializado que se automatizou. Como será visto, o senso comum da teoria entranha até mesmo naquele que afirma que a teoria deveria se afastar desse lugar, isto é, o próprio Compagnon faz uso de argumentos senso comum sobre algumas teorias – como é o caso de sua explanação sobre o Formalismo Russo.

O que guiará esta tese, portanto, será, a partir desse lugar contemporâneo, questionar lugares senso comum da teoria. Em outras palavras, a hipótese geral da tese

é que as narrativas construídas acabaram por cristalizar certos discursos da teoria

através da repetição de certos argumentos. Espera-se demonstrar que essas construções

históricas da teoria muitas vezes não dão atenção para as contradições internas que, de certa forma, interpelam o senso comum. Nesse sentido, esta tese espera evidenciar certos elementos menos considerados das teorias que tornaram certas leituras parciais.

6 Ou, ainda, como afirma Eneida Maria de Souza: “Na busca de explicações plausíveis para o presente, a

valorização de um passado sem brechas ou rasura complica e falseia a lembrança, com vistas a reter apenas o que a memória soube guardar de bom” (SOUZA, 2007a, p. 133).

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Este trabalho, obviamente, não espera lançar luzes sobre todas as teorias ou sobre todas as possibilidades de uma determinada teoria, mas pretende mostrar outras leituras

possíveis, não totalizantes, das teorias. Em suma, almejo encerrar certas repetições e

essencialismos que são, no máximo, leituras muitas vezes parciais e interessadas. Por outro lado, irei destacar certos pontos que são, sem duvida, uma escolha interessada de minha parte, isto é, alguns autores, alguns conceitos e algumas obras que auxiliarão minha argumentação. O que se espera, pois, não é totalizar, encerrar as discussões sobre as teorias aqui estudadas, mas sair do senso comum.

Por outro lado estamos atentos para o fato de que hoje há uma grande dificuldade em se construir a narrativa do presente da teoria. Este trabalho, como um trabalho contemporâneo – no sentido de Agamben –, só assim o será se conseguir estabelecer determinada ligação com o presente. Mas hoje a teoria está em crise, é o que afirmam alguns autores. Alguns outros não utilizarão a palavra crise, mas indicarão algo como depois da teoria ou pós-teoria. Acredita-se, pois, que esse resgate do contraditório das teorias ajuda a iluminar o próprio momento da, ao menos suposta, crise contemporânea. Em outras palavras, é possível escavar elementos da crise contemporânea no próprio fundamento das antigas teorias que já não despertam os nossos amores, para retomar as palavras da introdução do livro de Compagnon.

Avital Ronell faz uma observação curiosa ao problematizar nossos modelos teóricos mais influentes do século XX: “os axiomas científicos mais autorizados são, nos dois casos [ciência de Freud e ciência de Popper], coassinados por um insight

poético”8

. Tanto Freud quanto Popper foram estimulados a desenvolver suas teorias a partir de alguma propensão literária. Aqui, tomo as palavras do escritor português Gonçalo M. Tavares:

Observar pelo canto do olho é, em ciência, começar a elaborar a hipótese. O que é observado pelo centro do olho é o evidente, o óbvio, aquilo que é partilhado pela multidão.

Na ciência, como no mundo as invenções, observar pelo canto do olho é ver o pormenor diferente, aquele que é o começo de qualquer coisa de significativo.

Observar a realidade pelo canto do olho, isto é: pensar ligeiramente ao lado. A isto chama-se criatividade. Daqui saíram todas as teorias científicas importantes9.

8 RONEL. The Test Drive, p. 33. [the most authoritative scientific axioms are, in both cases, cosigned by

poetic insight]

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Para este trabalho foram escolhidos três momentos fundantes tanto da teoria da literatura quanto da teoria do cinema, que se tornaram paradigmas teóricos para boa parte do ocidente, para esse olhar pelo canto do olho: Formalismo Russo e Teoria da Montagem Soviética; Estruturalismo e Teoria do autor no cinema – esta visa as elaborações da revista Cahiers du Cinema –; e as teorias Feministas do cinema e da literatura, especialmente aquelas dos anos de 1970. Esses três momentos, como será visto, são momentos de insurgência teórica e que, de certa forma, ajudam a responder problemas contemporâneos das teorias ou mesmo de certa crise da teoria. Espera-se conseguir lançar novas luzes sobre essas tendências críticas ou, ao menos, complexificar

ainda mais as propostas teóricas desenvolvidas pelos teóricos desses “movimentos”,

afastando uma leitura que se tornou senso comum dessas teorias.

Cada um desses blocos teóricos será responsável por ajudar a pensar sobre problemas que se colocam para a nossa contemporaneidade. No primeiro deles – Formalismo Russo e Teoria da Montagem Soviética – refletirei sobre o binarismo incandescente atual, que insiste em distinguir ciências positivas (empíricas, exatas, etc.) e estudos da cultura (ciências humanas, filosofia, etc.). Nesta tese nomearei os polos desse binarismo simplesmente de ciência e cultura. Dessa forma, espera-se enfrentar tanto o senso comum atribuído à “função” dos estudos da cultura quanto a uma parte do senso comum que os opõe a estudos mais ou menos centrados no texto literário.

O segundo bloco se centrará nas questões de autor e autoria. Nos anos de 1950 e de 1960, na França, essa reflexão ganha força em polos antagônicos: por um lado, vai se desenhando a morte do autor pela teoria da literatura, por outro, vai surgindo a eminente figura do autor no cinema, principalmente através da politique des auteurs. O senso comum a ser enfrentado aqui é a ideia do autor no cinema, que foi se cristalizando sem se levar em conta as próprias contradições internas nessa formulação. Ainda, espera-se notar que a morte do autor, propagada por Roland Barthes, não é uma morte da autoria ou do escritor, mas a tentativa do fim derradeiro da aura artística.

O terceiro e último bloco a ser analisado será o da Teoria Feminista. Esse tópico é importante porque, sendo um dos principais influxos nos Estudos Culturais, essa

teoria é a primeira “grande teoria” que irá se afastar do ideal linguístico da teoria da

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23

teorias feministas, sem dúvida, são uma das principais vítimas do senso comum da teoria, que reduzem o alcance dessas teorias e são julgadas ferozmente, como veremos, por um viés ideologizado e não teórico.

No último capítulo da tese irei refletir sobre essas questões não mais isolando esses blocos. Refletirei sobre as formulações ideológicas dessas teorias, sobre as tradições inventadas da teoria – que farão muito mais sentido caso sejam chamadas de

contratradições inventadas –, sobre o próprio modelo da crise atual teórica e sobre a possibilidade de se teorizar contemporânea.

Raymond Williams, em entrevista a respeito do seu livro Cultura e Sociedade, irá falar sobre o dilema enfrentado na escolha de como abordar o problema que se propôs a estudar:

Eu me perguntava se deveria escrever uma crítica daquela ideologia de maneira completamente negativa, algo que considerei fazer em determinado momento, ou se o caminho correto seria tentar recuperar a complexidade real da tradição que havia sido confiscada, de modo que a apropriação pudesse ser apreciada pelo que ela era de fato10.

De certa forma, esse dilema também cercou esta tese. Por um lado, indicar os interesses de certas leituras senso comum11 e dos motivos ideológicos por trás delas parecia, também, uma possibilidade de trabalho. Mas isso resultaria em um trabalho menos propositivo em relação ao que pretendo realizar, pois indicar a complexidade e as contradições internas da própria teoria ajuda a formular não só uma crítica a certas leituras estreitas como também a deslocar a lupa há muito tempo estacionada em alguns aspectos da teoria. Mas, ao longo da tese, esses motivos ideológicos não serão deixados de lado, sendo discutidos em um sentido propositivo e não condenatório.

A citação de Raymond Williams, e também a questão da ideologia, pode fazer parecer que este trabalho é um trabalho marxista ou com um viés acentuadamente marxista – esse não é caso. Avital Ronell irá confessar, em Losers Sons, que, frequentemente, ela perpassa por muitas identificações que vão variando ao longo do

tempo: “Eu fui Derrida, eu fui Lacoue-Labarthe, Kofman, eu fui Pynchon e Rousseau, eu nunca não sou Nietzsche, eu fui Acker e Kleist, eu era Beckett quando me

10 WILLIAMS. A Política e as Letras, p. 88.

(24)

24

transformei em Bettina von Arnim e uma vez eu fui Aretha Franklin, mas isso é uma

outra faixa”12

.

De certa forma, pode-se dizer que meu processo de assimilação teórica ao longo dos anos se formaliza nesta tese. Apesar de ter o seu quinhão oriundo de Marx, ela também irá apresentar reflexões que advêm de teorias como as pós-estruturalistas, as estruturalistas, as formalistas, as feministas, a teoria queer, além de outras áreas do conhecimento como a filosofia, a sociologia e a antropologia. Um marxista mais clássico como Carlos Guilherme Mota, autor do fundamental Ideologia da Cultura

Brasileira (1933-1974), por exemplo, poderia me recriminar por misturar tão diferentes

abordagens em um mesmo trabalho13. Mas, aqui, pretendo aproveitar essas diferentes abordagens acreditando que a teoria deveria ser menos um campo de batalha14 e que toda abordagem oferece aspectos positivos. Enfim, trata-se de querer extrair o que há de melhor nas teorias, e não focar nos problemas que elas podem, eventualmente, possuir.

Por outro lado, este trabalho poderia ser inserido em um espectro da crítica

cultural, no sentido que Judith Butler dá a esse conceito: “expor os atos contingentes que criam a aparência de uma necessidade natural, tentativa que tem feito parte da

crítica cultural pelo menos desde Marx”15

. Porém, aqui, não digo apenas de uma

necessidade natural, mas daquilo que é tido como naturalizado pela história da teoria da

literatura e pela história da teoria do cinema.

Nesta tese a teoria da literatura e a teoria do cinema são utilizadas em

comparação, uma espécie de “teoria comparada” que poderia se assemelhar com a “literatura comparada”. Se esta disciplina enriqueceu muito os estudos da literatura, espera-se que minha proposta também possa ajudar a ampliar o alcance de ambas as teorias. Dito isso, é importante notar que a comparação entre essas duas teorias se dá muito mais em uma perspectiva metodológica do que teórica. De certa forma, o anacronismo dos estudos das teorias aqui proposto é subsidiado pela diacronia em que compararei as teorias. Em outras palavras, mesmo que, a partir do presente, se volte ao passado, quando me debruçar sobre os blocos de estudos aqui propostos estes apresentarão uma análise de teorias pertencentes a uma mesma época histórica.

12 RONELL. Losers Sons, p. xix. [I have been Derrida, I have been Lacoue-Labarthe, Kofman, I have

been Pynchon and Rousseau, I am never not Nietzsche, I have been Acker and Kleist, I was Beckett when I turned into Bettina von Arnim and once I was Aretha Franklin, but that’s another track]

13 Essa mistura teórica é algo que ele critica neste livro citado. Cf. MOTA. Ideologia da Cultura

Brasileira (1933-1974).

14 Essa espécie de “campo de batalha teórico” é um problema muito profundo que estabelece uma série de

questões que ultrapassam a própria teoria, como Pierre Bourdieu esclareceu em Homo Academicus.

(25)

25

Porém, antes de adentrar na própria discussão teórica, torna-se necessário um pequeno desvio para tratar justamente do que chamo aqui de crise e, também, para refletir um pouco sobre as proposições teóricas a partir do Terceiro Mundo.

Crise

A palavra crise, tantas vezes utilizada pela história, remete a diversos percursos do pensamento ocidental, mas também é bastante usual no vocabulário cotidiano. Nesse registro, ouvimos falar de crise dos mais diversos tipos: crise econômica, crise energética, crise ambiental, crise criativa, um time de futebol que passa por uma crise, crise de meia-idade, crise em um relacionamento entre duas pessoas, dois grupos, duas instituições, crise política e assim por diante. Há também momentos clássicos da filosofia e das ciências humanas em que se fala em crise. Por exemplo, Marx e Engels descreviam que o comunismo iria se tornar inevitável pelo caráter do capitalismo, que, em sua própria formulação, levaria sempre a crises econômicas, como a de 1929 ou a que ainda enfrentamos, iniciada em 2008. Uma crise que se aproxima mais do conceito utilizado por essa tese é, entretanto, uma pouco menos famosa: a crise da filosofia e das ciências tal como concebida por Edmund Husserl em 1936, em seu livro The Crises of

European Sciences and Transcendental Phenomenology. É importante lembrar que

Husserl já havia apresentado outra crise, quando introduzia a fenomenologia, em seu livro, Phenomenology and the Crisis of Philosophy, de 1911, em que defendia uma filosofia tão rigorosa quanto uma ciência.

A palavra crise vem do grego Krisis ( ίσ ), e nessa língua coexistiam ao menos dois sentidos. O menos utilizado deles é o sentido de julgamento, de uma opinião para distinguir o certo ou o errado, o justo do injusto. Nesse sentido, krisis se aproximaria de crítica, krinein, do grego e do critica, do latim. É nesse sentido que, por

exemplo, um “período crítico” poderia se aproximar de “um período em crise”. O outro significado é o de um momento de separação, de divisão, e “pode também significar

uma disputa ou peleja, uma divisão da unidade original”16. Esse sentido de crise seria um sentido pessimista, para Husserl, já que ele pressuporia diferentes grupos de ciências

16 BUCKLEY. Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [can also mean a

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26 lidando com diferentes “reinos da ‘realidade’ ou, até mesmo, engajados em uma querela pelos métodos e aproximações ao ‘mundo’”17

.

Essa crise, analisada por Husserl em 1936, se daria por causa da falência do

objetivo inicial da ciência: “prover um conhecimento do mundo universal e unificado”18

. Não é que, para o filósofo alemão, não deveria haver um divisão entre as ciências, mas “em ordem de ser realmente científico, há de se manter algum tipo de

unidade”19

. Mas não é só negativamente que se poderia pensar em crise. É possível

também perceber uma conotação otimista, caso a crise seja entendida “no sentido de que

uma decisão é a interrupção de uma possibilidade e promoção de outra”20. Husserl, entretanto, irá descrever uma crise como uma fissura, ou mesmo abismo, entre as ciências humanas e as ciências naturais. R. Philip Buckley, ao analisar os trabalhos do filósofo alemão, irá resumir essa problemática como “crise como separação”21.

Mas essa separação e a vontade de perseguir uma “verdade universal” implicam

uma série de problemas. Logo no início de The Crises of European Sciences and

Transcendental Phenomenology, Husserl coloca as questões que julga pertinentes e irá

começar o seu trabalho consciente do caráter controverso de seu estudo:

Eu espero que neste lugar, dedicado como é as ciências, o próprio título

dessas comunicações, “A Crise das ciências europeias e a psicologia” irá

incitar controvérsia. A crise da nossa ciência como tal: podemos falar seriamente disso? Não é essa conversa, ouvida tão constantemente nesses dias, um exagero? Afinal de contas, a crise de uma ciência indica que nada mais que o seu caráter científico genuíno, toda a maneira pela qual formula seu objetivo e desenvolveu uma metodologia para isso, se tornou questionável. Isso pode ser verdade na filosofia, que no nosso tempo ameaça sucumbir ao ceticismo, irracionalismo e ao misticismo. O mesmo pode ser dito da psicologia, na medida em que ela ainda realiza reivindicação filosófica mais do que meramente aguarda um lugar entre as ciências positivas. Mas como podemos falar diretamente e de maneira minimamente séria de uma crise nas ciências em geral – isto é, tanto das ciências positivas, incluindo a matemática pura e as ciências naturais, que nunca deixaram de ser admiradas como modelos de disciplinas científicas rigorosas e de grande sucesso? Para ter certeza, elas provaram ser mutáveis no estilo total de seus sistemas de construção teórica e metodologia. Só recentemente elas superaram, nesse sentido, uma paralisia arriscada, sob o título de física

17 BUCKLEY. Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [realm of ‘reality’ or

perhaps even engaged in a quarrel over methods and approaches to the ‘world’].

18 BUCKLEY. Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [to provide

universal, unified knowledge of the world].

19 BUCKLEY. Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [in order to be truly

scientific, must be maintained in some sort of unity].

20 BUCKLEY. Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [in the sense that a

decision is the cutting off of one possibility and the promoting of another].

21 BUCKLEY. Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 10. [crisis as

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27

clássica – risco, isto é, a suposta consumação clássica do estilo confirmado de séculos.22

A própria crise, para Husserl, significaria que o caráter científico, o objetivo e a metodologia das ciências e da filosofia se tornaram questionáveis. A psicologia aqui apareceria também como possível integrante do quadro crítico, já que ainda aguardaria

– e até hoje, por certos setores, ainda aguarda – um lugar entre as ciências ditas positivas.

A questão colocada por Husserl é se seria possível pensar em uma crise que fosse coincidente entre as áreas de conhecimento acima, isto é, as ciências positivas, sejam matemática pura ou ciências naturais, e a filosofia. O filósofo alemão entende que, ao longo do tempo, as ciências positivas se transformaram, construíram modelos teóricos e metodológicos, e evoluíram. Com o próprio desenvolvimento dessas teorias e com os avanços que conquistaram, seria possível falar de uma crise? Ela estaria ocorrendo somente nas ciências exatas, somente na filosofia ou em ambas?

A crítica de Husserl é ao caráter positivista que a ciência tomou em anos anteriores, principalmente a partir de meados do século XIX, sendo, portanto, uma critica antipositivista. Nesse sentido, ele afirma que o problema dessa abordagem científica, ao abandonar o lado filosófico da ciência, acabou por criar uma espécie de alienação das pessoas que dissociaram a ciência e a existência: “ciências de mentalidade

meramente factuais produzem pessoas de mentalidade meramente factuais”23

. Nessa perspectiva é que se inscreveria o problema que deriva da influencia positivista: a crise do espírito europeu.

O filósofo alemão irá questionar, pois, o que a ciência que emergiu do positivismo tem a ensinar para a humanidade sobre os assuntos da liberdade e da

22 HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 3

-4. [I expect that

at this place, dedicated as it is to the sciences, the very title of these lectures, “The Crisis of European Sciences and Psychology” will incite controversy. A crisis of our sciences as such: can we seriously speak of it? Is not this talk, heard so often these days an exaggeration? After all, the crisis of a science indicates nothing less than that its genuine scientific character, the whole manner in which it has set its task and developed a methodology for it, has become questionable. This may be true of philosophy, which in our time threatens to succumb to skepticism, irrationalism, and mysticism. The same may hold for psychology, insofar as it still makes philosophical claims rather than merely wanting a place among the positive sciences. But how could we speak straightforwardly and quite seriously of a crisis of the sciences in general – that is, also of the positive sciences, including pure mathematics and the exact natural sciences, which can never cease to admire as models of rigorous and highly successful scientific discipline? To be sure, they have proved to be changeable in the total style of their systematic theory

-building, and methodology. Only recently they overcame, in this respect, a threatening paralysis, under the title of classical physics – threatening, that is, as the supposed classical consummation of the confirmed style of centuries]

23 HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 6. [merely fact

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28

existência. Para Husserl, as ciências dos corpos – as exatas –, em sua época, nada mais falariam sobre a condição humana. O mesmo aconteceria com as ciências humanas, já que nelas teria desaparecido o horizonte da historicidade, e os acadêmicos, em busca da

exatidão, “cuidadosamente excluem todas as posições valorativas, todas as questões de

razão ou desrazão dos assuntos humanos e suas configurações culturais”24. Dessa forma, o filósofo alemão alerta, insistentemente, para o desenvolvimento de ciências que nada teriam a ver com a vida das pessoas ou com as questões da própria existência na terra e, ademais, ele acrescenta que as configurações culturais foram solapadas das práticas científicas25.

Ao tomar o objetivismo como princípio e os fatos como verdade inelutável, essa ideia de ciência seria um conceito-resíduo porque teria sido deixada de lado a razão que deveria guiar os avanços do conhecimento e da civilização. Existiria, pois, um contraste entre a ideia de ciência, de filosofia e da razão do Renascimento e do Século das Luzes e a ideia de ciência e de filosofia do início do século XX. A consequência dessa mudança, segundo Husserl, “foi uma mudança peculiar da maneira de pensar no todo. A filosofia se tornou um problema para ela mesma, a princípio, compreensivelmente, na forma da [o problema da] possibilidade de uma metafísica; e, prosseguindo com o que falamos anteriormente, isso coloca em questão implicitamente o significado e a

possibilidade de todo o problema da razão”26

.

A razão, pois, fora deixada de lado, até mesmo pela filosofia que, ao invés de perseguir a verdade, teria passado a se autoexaminar, a tentar justificar a sua própria existência. De certa forma, é o que aparentemente afirma Husserl, a crise não seria somente uma crise das ciências, mas também da filosofia: as ciências por um lado, ao se desligar da razão, isto é, da filosofia, e a filosofia, também, ao passar a querer se

autojustificar e deixar de buscar a verdade através da razão. Husserl afirma: “assim, a

crise da filosofia implica na crise de todas as ciências modernas como membros do universo filosófico: a princípio latente, e, então, a cada vez mais proeminente crise da própria humanidade europeia a respeito de sua vida cultural totalmente sem significado,

24 HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 6. [carefully

exclude all valuative positions, all questions of the reason or unreason of their human subject matter and its cultural configurations]

25 Husserl, claro, não viu nascer a obra de Lévi-Strauss – e a antropologia do pós-guerra - que irá

justamente colocar a cultura como centro da discussão.

26 HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 11. [was a

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29 sua total ‘Existenz’”27. O objetivo da filosofia para Husserl, em sua época, seria retomar

essa fé na possibilidade de um “conhecimento universal” que foi deixada de lado. Para tal empreitada, Husserl irá propor, como primeiro passo necessário, que se deva

refletir para trás, de uma maneira totalmente histórica e crítica, em ordem de prover, antes de todas as decisões, um auto-entendimento: devemos perguntar para trás o que era originalmente e o que sempre se buscou em filosofia, o que era continuamente buscado por todos os filósofos e filosofias que se comunicaram uma com as outras historicamente; mas isso tem que incluir uma consideração crítica do que, em respeito aos objetivos e métodos [da filosofia], é irrevogável, original e genuíno e o que, uma vez visto, apodicticamente conquista a vontade28.

Refletir para trás, sem perder o impulso do presente, ainda parece ser uma ideia constante na filosofia de Husserl. Aqui, é importante notar que sua afirmação se torna, de certa forma, reativa com as ideias de Agamben, apesar de que este não necessariamente diz sobre a busca pelas origens.

Husserl terá, então, construído a ideia de crise nas ciências – e também na filosofia – não só como uma crise como separação, mas também como uma crise de perda do sentido original, ou, em outras palavras, uma crise que advém de mudanças bruscas do conceito de ciência e de filosofia, fazendo com que não restassem mais do que rastros e reminiscências da origem. Enfim, crise não é somente separação, é

também a nostalgia por uma unidade perdida. É através dessa “unidade perdida” que se

inscreveria a crise do espírito europeu.

Mas essa crise da ciência e da filosofia, contudo, não está inscrita em uma sociedade isenta, isto é, ela não é isolada da sociedade. Noberto Bobbio faz um apontamento em relação ao texto de Husserl:

A posição tomada por Husserl diante dos problemas de nosso tempo – em uma das poucas vezes que se deixou induzir a interromper seu interminável solilóquio, na obra que fundamenta o renascimento atual, Crise das ciências

europeias - foi provocada exclusivamente por observações em torno da crise

presumida ou real das ciências modernas, como se na Alemanha, três anos

27 HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 12. [Thus the

crisis of philosophy implies the crisis of all modern sciences as members of the philosophical universe: at first a latent, then a more and more prominent crisis of European humanity itself in respect to the total meaningfulness of its cultural life, its total “Existenz”]

28 HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 18. [reflect back,

in a thorough historical and critical fashion, in order to provide, before all decisions, for a radical self

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30

depois do advento de Hitler, não tivessem havido outros sintomas de crise da humanidade que pudessem ofuscar a fronte serena de um filósofo alemão, e além do mais judeu.29

Longe de concordar com Bobbio, de que Husserl deveria ter estendido sua reflexão para além do problema colocado em seu livro, apenas gostaria de reter nessa citação uma questão importante: a crise que enunciava Husserl era apenas mais um dos

sintomas de outras várias crises que circundavam não só a Alemanha, como boa parte

do mundo.

Ora, se falamos em crise da teoria, não estaríamos, também, falando de outras crises que perpassam a nossa contemporaneidade? Crises sociais, crises ideológicas, crises formais, crises culturais, crises econômicas, crises tecnológicas, crises conceituais, crise da história, entre outras, são alguns dos exemplos que poderiam ser pensados na época de Husserl e também hoje. Mas é importante frisar que já há uma distância de oitenta anos desde a publicação das teses do filósofo alemão e a crise, hoje, se apresenta com outros índices, com outras facetas.

Aqui é importante reter algumas informações. A primeira é a noção de crise

como separação, isto é, de crise como um momento de julgamento ou de surgimento de

uma nova possibilidade. A segunda é, justamente, a ideia de que uma crise no conhecimento é um sintoma de uma sociedade da crise. A terceira e última é a crise como um momento de distinção entre as áreas do conhecimento, isto é, um conhecimento que não compartilha fronteiras se torna apenas um conhecimento-resíduo.

Este trabalho parte de teorias desenvolvidas na mesma época de Husserl. O Formalismo Russo, considerado a fundação da Teoria da Literatura, encena a crise da filosofia e das ciências humanas, sob o viés de Husserl, exemplarmente. Ao passo que o Formalismo tentava estabelecer um estudo específico da literatura – esse isolamento que seria sintoma da crise – existiria algo na teoria que escaparia a essa separação – solução da crise. O mesmo poderia ser dito do Estruturalismo. Esse problema será visto no primeiro capítulo desta tese.

O segundo capítulo, que trata da questão do autor e da autoria, pode ser visto como um momento de crise do pós-guerra, em que o sujeito, mais uma vez, é colocado em questão ou, em outras palavras, poder-se-ia dizer de um momento de julgamento do sujeito em que duas visões praticamente opostas coabitam o mesmo espaço.

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31

Os Estudos Culturais (aqui encarnados nas Teorias Feministas), por outro lado, apresentam um caminho contrário. Ao unir vários campos do conhecimento sob o mesmo guarda-chuva, os Estudos Culturais poderiam perder a objetividade científica. Esse é o principal ponto dos que acusam os Estudos Culturais de um esvaziamento teórico-metodológico, como será visto. Por outro lado, as Teorias Feministas apontam

para outra parte da “solução da crise” de Husserl. Ao analisarem a história da literatura ou a história do cinema, as teóricas observam que a disciplina histórica não é uma evolução imanente de certos costumes – algo que o filósofo alemão iria criticar. Além disso, Husserl iria denunciar fortemente o fato de que a ciência está cada vez mais afastada da realidade enquanto que as Teorias Feministas são uma daquelas que mais se fincam em alguma espécie de realidade concreta, sem a tentativa do afastamento usual entre teorias e existência.

Se seguirmos os passos de Husserl, poder-se-ia dizer que nem a teoria da literatura nem a teoria do cinema conseguiram solucionar a crise constatada na década de 1930, por um lado, mas que, por outro, se buscou essa solução. No nosso presente, contudo, se afirma uma crise. A que Husserl constatou ainda permanece como rastro – em outras palavras, a crise que o filósofo alemão percebia na Europa de seu tempo ainda é incandescente para os dias atuais.

Teoria no Terceiro Mundo

Luiz Costa Lima, em 1975, publica um texto com o nome sugestivo de Quem

tem medo da teoria?. O período de publicação do texto é o da incorporação do

estruturalismo dentro dos estudos literários do lado de cá ao sul do oceano. Nesse contexto, o teórico brasileiro afirma que:

Quando uma comunidade não tem a prática da discussão, o uso da linguagem crítica sempre lhe parece ameaçador. Sendo, ademais, o discurso teórico produto do desdobramento da reflexão crítica, é natural que, dentro daquela comunidade, o seu praticante encontre, dentro de si mesmo e a seu redor, dificuldades maiores de realização30.

Costa Lima ainda afirma que, no caso específico do Brasil, os grandes pensadores, antes, abrem frentes metodológicas ao invés de frentes teóricas. Ademais, retoma ele,

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32

entre nós, tal passagem [da metodologia à teoria], sempre revelou a marca da dependência cultural. Daí que as teorias, desde Sílvio Romero, quando se mostravam, transpareciam como glosas, resumos ou comentários, normalmente ortodoxos, de algo já estabelecido internacionalmente. Daí o vício, que até hoje nos acompanha, de apresentar fulano como o representante local de tal pensador ou corrente estrangeira. (...) Nunca nos passa pela cabeça que a teoria seja alguma coisa que continue a ser fecundado, muito menos, algo que esteja sendo aqui fecundado31.

O que nos falta, parece dizer o teórico, é uma mente teórica, que consiga

ultrapassar a metodologia, ou, ainda, perceber que aqui também se produz teoria.

O texto, claro, é endereçado a uma polêmica da época, em que se opunham aqueles prós ao estruturalismo e aqueles contra a importação de mais uma teoria, como demonstra Regina Lúcia de Faria32. Interessante notar, nesse contexto, que Costa Lima, ao mesmo tempo em que critica a importação via algum representante teórico de uma teoria estrangeira, ele mesmo a pratica, ao ser o “divulgador” do estruturalismo no Brasil.

Esse paradoxo da dependência cultural teórica pode ser percebido como um signo da produção teórica não só do Brasil, mas da América Latina. Uma pergunta tantas vezes exposta e tantas vezes discutida é: seria possível a teoria latino-americana? Seria possível uma teoria produzida fora dos grandes centros culturais e acadêmicos? Se sim, ela poderia ser chamada, por nós mesmos ou por eles, de teoria?

O uruguaio Hugo Achugar é um dos que irão refletir sobre a nossa produção teórica, justamente nesse sentido do paradoxo. Em Sobre o Balbucio Teórico

Latino-americano, o teórico uruguaio chama atenção para certas ideias de Walter Mignolo, que

indicava quatro projetos críticos para a superação da modernidade –“pós-moderno, pós-colonial, pós-oriental e pós-ocidental”33–, ou seja, uma concentração no “pós”, em que se resgatariam as histórias locais do continente, junto à notação de que as teorias

latino-americanas se perderiam no “mercado” global teórico, já que não falariam o idioma agregador de valor, o inglês. Sendo assim, Achugar pergunta:

Não será que o lugar do discurso (...) dos latino-americanos – letrados ou iletrados, de esquerda ou de direita, homens ou mulheres, mineiros ou acadêmicos –para os ouvidos do hemisfério norte é sempre o do “balbucio” e

o da incoerência ou inconsistência teórica? Não será que o “balbucio teórico

latino-americano” não é incoerência nem inconsistência? Não será que esse

31 LIMA. Quem tem medo da teoria?,p. 194-195.

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33

balbucio teórico é outro pensamento ou um pensamento outro? Não será que

balbuciar é um “discurso raro”, um “discurso orgulhosamente balbuciante”? Não será que eu tenha escolhido “balbuciar teoricamente” como um modo de

marcar e prestigiar meu discurso?34

Se se seguir uma comparação com os paradigmas teóricos do Primeiro Mundo35, o discurso latino-americano, do balbucio, poderia se formar teoricamente apenas em relação ao discurso do Primeiro Mundo, isto é, em um processo de competição entre uma e outra teoria?

Nesse sentido, poder-se-ia pensar a respeito de dois textos otimistas de Silviano Santiago diante dessa perspectiva: Apesar de Dependente, Universal e Eça de Queiroz,

Autor de Madame Bovary. Nesses textos, cada um à sua maneira, o teórico brasileiro

insiste que as teorias produzidas em países colonizados são, de certa forma, uma resposta ao colonizador e, mais importante, estariam mais completas, já que não só teriam o conteúdo original da teoria (ou do texto), mas também uma réplica. Por causa dessa lógica, por exemplo, O Primo Basílio de Eça de Queiros seria um livro “melhor”

e mais “completo” do que o de Flaubert. Falo de otimismo porque, para além dos seus

pares do Terceiro Mundo, Santiago poderia estar ainda balbuciando para o Ocidente colonizador. O teórico brasileiro não nega as teorias “colonizadoras”, pelo contrário, as absorve e as transforma, de certa forma, cordialmente ou de maneira “antropófaga”.

Porém, a história da teoria da literatura que retrata o dialogismo entre colonizadores e colonizados revela que, quando o Terceiro Mundo absorve e argumenta

contra o primeiro, a atenção dada por este àquele não passa de uma “breve resposta”, como revela o clássico “diálogo” entre Fredric Jameson e Aijaz Ahmad, em que o peso da palavra do “colonizador” irá sistematicamente desconsiderar os desconfortos

produzidos no “colonizado”. Na breve resposta que Jameson se dispõe a dar a Ahmad, ele transforma seu texto, tido como colonizador pelo indiano, em uma “dramatização” do cenário intelectual estadunidense e sobre a “alegoria literária” e o “papel político”36

dos intelectuais, quase como uma performance da bondade de certos intelectuais em

valorizar os “cultos fetichistas” daqueles que seriam uniformemente, não importando

em que lugar do globo estejam ou que história possuam, o outro. Caminhando pela história dos paradigmas teóricos desenvolvidos no ocidente é difícil perceber as urtigas

34 ACHUGAR. Sobre o “Balbucio Teórico Latino

-americano”, p. 35.

35 Utilizo a distinção entre primeiro mundo e terceiro mundo de forma provocadora, remetendo ao texto

de Jameson, Third-World Literature in the Era of Multinational Capitalism.

36 Esses são termos que Jameson utiliza no primeiro parágrafo de seu texto. Cf. Jameson. Uma Breve

Referências

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