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Capítulo 4: O Fantasma da Teoria

1. Tradição e Teoria

Paglia não irá, como visto, criticar as teorias feministas por serem consideradas ruins ou por não ajudar no desenvolvimento e na produção do saber, mas por não terem conquistado politicamente o seu objetivo. Essa citação, que pode parecer inocente,

198 esconde uma variação muito mais ardilosa. Paglia, teórica da literatura, no início dos anos de 1990, irá se colocar como alguém do pós-feminismo, mas não em um sentido de superação das teorias feministas, mas por pensar que aquelas teorias não representavam sua articulação teórica, mesmo que ela trabalhasse com temas comuns às teorias feministas anteriores a ela. A posição dela de “pós” não é porque naquele período histórico a desigualdade – entendida em um sentido amplo – entre homens e mulheres estivesse superada, mas porque ela não aceitava os métodos empregados pelas feministas nesse embate ideológico.

Não quero discutir a posição de Paglia a respeito do pós-feminismo, que considero extremamente duvidosa483, mas apontar a curiosa relação que se estabelece entre ela e as feministas anteriores a ela. O que interessa, aqui, é a linhagem que essa teórica irá querer estabelecer em seus trabalhos, isto é, em qual tradição teórica ela percebe que seus trabalhos estão inseridos e em qual ela gostaria que eles fossem identificados. Isso, claro, tem a ver com uma disputa por uma tradição, e esta se constitui por uma espécie de tradução das teorias às quais se quer filiar. Ademais, como dito no capítulo anterior, Žižek afirma que é na disputa pelas tradições em que está inserido o mais garrido embate ideológico contemporâneo.

Mas, como friso no parágrafo anterior, é importante pensar nesse processo duplo de tradução/tradição, pois, de certa forma, a tradição é constituída através de uma certa leitura de determinadas teorias. Essa leitura perpassa por certas escolhas decididas e identificadas como positivas e/ou negativas de outras teorias. Como em toda produção sobre a teoria – e este trabalho não escapa disso – são destacados alguns pontos e não outros, criando uma significação geral, constituindo, assim, uma espécie de tradução. Aqui, penso em tradução me apoiando no texto de Spivak, The politics of translation [As politicas da tradução].

Spivak identifica484 que em um processo de tradução é necessária a criação de vários pontos de relações entre o texto original e o texto traduzido, ou texto original e sua sombra, como ela nomeia. Ela afirma que um texto produz relações entre lógica e retórica, entre gramática e retórica e pontua que essas relações, doravante, são também

483 Terry Eagleton, em Why Marx Was Right, irá afirmar, entre outras coisas, que o marxismo não acabou

porque enquanto existir capitalismo existirá sua crítica. O exemplo que ele dá a essa questão é justamente o feminismo: existirá feminismo enquanto existir a desigualdade entre homens e mulheres e só poderá haver um pós-feminismo quando essa desigualdade for superada.

484 Spivak centra seu texto nos problemas de tradução, principalmente, em textos de mulheres indianas

para o inglês. Aqui, tomo emprestado alguns pressupostos gerais que ela afirma sobre a tradução em um sentido amplo, e não em particular dos textos que ela discute.

199 “relações entre a lógica social, razoabilidade social, e a desorganização da figuração na prática social”485, bem como essa retórica irá apontar para “a possibilidade de aleatoriedade, a contingência como tal, disseminação, o desmoronar da linguagem, a possibilidade de que as coisas podem não ser sempre semioticamente organizadas”486.

Quero chamar atenção para o fato de que, em uma tradução, as relações em jogo não são simplesmente relações de linguagem – retórica, gramática e lógica –, mas também de outros tipos de relação que perpassarão pelas relações sociais, razoabilidade e das figurações das práticas sociais e que, diante de um texto traduzido, há uma erupção de impossibilidades e dificuldades entre o texto original e sua sombra. Dessa forma, no processo de filiação teórica o que está em jogo não são somente as proposições teóricas em si, mas todo um jogo de relações traduzidas de representações daquela teoria, isto é, a filiação teórica muitas vezes é realizada também por uma construção social daquela teoria. Por construção social de uma teoria entendo os aspectos extrateóricos que emanam de uma determinada teoria, inclusive as suas inspirações e aspirações ideológicas e suas construções dentro de campos em disputa de poder.

Nesse sentido, é importante ressaltar que esses aspectos extrateóricos perpassam por aquilo que discutimos no início do capítulo: as posições ideológicas e contraideológicas das teorias, isto é, as escolhas de filiação teórica, não se dão apenas pelos aspectos estritamente teórico-metodológicos, mas também nas relações sociais e ideológicas que uma determinada teoria estabelece entre teorias e entre a teoria e a sociedade.

Porém, há algo que Spivak irá denominar de “silêncio retórico”487 que nem sempre os tradutores estão atentos. Não é mais aquilo que é dito, mas aquilo que intencionalmente não é colocado nos textos originais e que, nem sempre, os tradutores estão atentos. Essas posições extraliterárias são, muitas vezes, esses silêncios retóricos que, na tradução da teoria são, novamente, silenciados, mas que, doravante, se tornam ainda mais presentes.

Essa filiação, claro, se dá em um sentido muito mais borgiano do que teleológico: é muito mais Kafka e seus precursores do que a expectativa de que a teoria

485 SPIVAK. The Politics of Translation, p. 209. [relationship between social logic, social reasonableness,

and the disruptiveness of figuration in social practice]

486 SPIVAK. The Politics of Translation, p. 209. [the possibility of randomness, of contingency as such,

dissemination, the falling apart of language, the possibility that things might not always be semiotically organized]

200 estaria evoluindo para ser cada vez melhor, uma utopia teórica. Uma teoria do presente é que vai buscar seus antecessores, ressignificando o passado da teoria ao invés de ser uma filiação em um processo narrativo passado-presente-futuro, em que o futuro sempre guardaria algo ainda melhor que esse passado-presente. É nesse sentido borgiano que a tradução das teorias se torna ainda mais preponderante: a tradução desse passado dentro de um presente, com os silêncios retóricos e as posições ideológicas e contraideológicas.

Através dessas traduções teóricas se fortalece um sentido de tradição. Não uma tradição imanente da teoria, mas aquilo que Eric Hobsbawm e Terence Ranger irão denominar de tradição inventada:

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. (...) O passado histórico no qual a nova tradição é inserida não precisa ser remoto, perdido nas brumas do tempo. (...) Contudo, na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições “inventadas” caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória. É o contraste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social que torna a “invenção da tradição” um assunto tão interessante para os estudiosos da história contemporânea. (...) O objetivo e a característica das “tradições”, inclusive das inventadas, é a invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição. 488

E, ademais, afirmam os autores: “consideramos que a invenção de tradições é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição.”489

Nas definições de tradição inventada de Hobsbawm e Ranger um termo aparece eminentemente: repetição. É através de repetições de um passado – não necessariamente remoto – que se formaria esse tipo de tradição. É interessante notar que o movimento aqui é, também, mais borgiano do que teleológico: o passado é estabelecido através dessas repetições, em um movimento inverso daquela tradição não inventada ou mesmo dos costumes. Essa repetição, contudo, aponta um certo grau de invariabilidade, fixando certos tipos de práticas.

Nosso objeto, contudo, não se relaciona com certas práticas de uma determinada

488 HOBSBAWM & RANGER. Introdução: A invenção das Tradições, p. 9-10. 489 HOBSBAWM & RANGER. Introdução: A invenção das Tradições, p. 13.

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