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Ou isto ou aquilo: implicações entre maternidade e militância para mulheres que militaram em oposição à ditadura militar no Brasil (1964-1985)

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JAÍZA POLLYANNA DIAS DA CRUZ

“Ou isto ou aquilo”: implicações entre maternidade e militância para mulheres que militaram em oposição à ditadura militar no Brasil (1964-1985)

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“Ou isto ou aquilo”: implicações entre maternidade e militância para mulheres que militaram em oposição à ditadura militar no Brasil (1964-1985)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito para obtenção do grau de Mestre em Psicologia.

Área de concentração: Psicologia Social

Orientadora: Profa. Dra. Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento

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150 C957i

2013 Cruz, Jaíza Pollyanna Dias da

“Ou isto ou aquilo” [manuscrito]: implicações entre maternidade e militância para mulheres que militaram em oposição à ditadura militar no Brasil (1964-1985) / Jaíza Pollyanna Dias da Cruz. - 2013.

195 f.

Orientadora: Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

Inclui bibliografia.

1. Psicologia – Teses. 2. Maternidade – Teses. 3.Brasil – História 1964-1985 – Teses. I. Gianordoli-Nascimento, Ingrid Faria.do. II. Universidade Federal de Minas Gerais.

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A Deus, da forma como o entendo e sinto, sendo essencial em minha vida, com Quem falo e falei durante todo esse percurso, e sem o Qual compreendo que as coisas não seriam como são.

A todas as mulheres militantes entrevistadas, por compartilharem comigo momentos de dores e alegrias, de luta e de resistência, por me permitirem sentir-me herdeira de toda esta história. Agradeço por me receberem em suas casas, por doarem horas de seus dias a fim de relatarem suas memórias. Por me ensinarem tanto e me fazerem sentir tão próxima delas e de tudo!

À minha querida orientadora Professora Dra. Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento. Faltarão palavras para descrever o que foi e tem sido esta caminhada e para expressar meu carinho e reconhecimento. Para mim, ter sido sua orientanda foi um encontro! Um aprendizado constante. Com você aprendi muito mais do que fazer uma dissertação, que é produto de nossa caminhada. Obrigada por ser um exemplo, por me receber tão afetuosamente, por compreender o momento de pausa que me foi necessário, por me olhar com olhos humanos e com a alteridade, aquela que você me ensinou, de olhar o outro a partir do olhar do outro! Obrigada por me possibilitar a participação nas diversas pesquisas coordenadas por você, por nos tratar e considerar como par, incentivando nossa produção coletiva. Agradeço pela parceria, pela compreensão, pelas orientações, aconselhamentos, por me permitir compartilhar tantas coisas!

Ao Professor Dr. Adriano Roberto Afonso do Nascimento que me ensinou já na pós-graduação, o que é a pós-graduação. Que fez aquecer ainda mais, em mim, a chama da docência, do envolvimento com as questões acadêmicas e que em sua forma objetiva e pontual de ser, me ensinou tanto, dizendo tão pouco, às vezes, no silêncio, na simplicidade de

ser. Você é um exemplo a ser seguido, um exemplo de

professor/pesquisador/coordenador/pessoa! Obrigada por abrir as portas do grupo de pesquisa “Memórias, Representações e Práticas Sociais”, e do grupo de estudos, onde tenho aprendido tanto; pelas parcerias nos trabalhos orientados.

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longe se fazer tão presente, nos textos, nas participações nos seminários, nas JIRS. Ao querido professor Lídio de Souza(in memoriam), por tantos ensinamentos deixados e compartilhados, pelo carinho com que sempre nos tratou e recebeu, e por me permitir compreender o que é solidariedade, não só pela contribuição teórica, mas por ser um ser humano solidário! Saudades, carinho e respeito eternos.

A todos os professores integrantes do Grupo de trabalho da ANPEPP “Memória, Identidade e Representações Sociais” que têm contribuído de maneira importante para o campo de pesquisa. Com vocês, a partir das pesquisas e material bibliográfico produzido, temos aprendido muito. Obrigada por participarem dos seminários propostos por nosso grupo de pesquisa e por nos tratarem de forma tão horizontal.

Ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMG, e aos professores deste PPG com os quais cursei disciplinas, conheci, compartilhei dúvidas e conhecimentos nesse processo. Pelas aulas tão produtivas e inquietantes. Com vocês aprendi a me posicionar, a argumentar, a ser docente.

Aos meus colegas da turma do mestrado, pela amizade, pelas trocas de conhecimento, pela construção de espaços coletivos na pós-graduação, a fim de discutirmos nosso PPG. Em especial, à Luana Carola, pela amizade, trocas e auxílio.

Agradeço às minhas amigas, e não apenas colegas de orientação, Flaviane Oliveira e Emilliane Mattos. A caminhada não teria sido tão alegre e leve sem a presença de vocês. Flaviane tenho que te agradecer de forma mais nominal, por sua amizade, solidariedade, cuidado e orientações que foram de suma importância para mim. Obrigada por me ouvir, por me acolher sempre.

Agradeço a todas/os as/os colegas do Grupo de Pesquisa “Memórias, Representações e Práticas Sociais”, em especial, Sara Angélica, Flávia Gotelip, Luciana Ribeiro. Especialmente à Thayna Santos, Janaína Campos e Priscila Praude: sem o auxílio de vocês na transcrição das entrevistas, a continuidade do meu trabalho não seria possível. Muito obrigada por tudo! Esse trabalho é nosso!

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Minha permanente gratidão aos meus pais, à minha irmã Bruna Cruz e ao meu marido Anderson Rocha, pelo apoio, confiança e incentivo, porque sonharam comigo, se alegraram com minhas alegrias e se entristeceram com minhas tristezas. Amo vocês, tão essenciais em minha vida! Divido com vocês esta conquista.

Não poderia deixar de registrar aqui meu agradecimento à minha analista Maria Emília Resende Costa e à Dra. Fernanda Moreira Monducci por me acompanharem e por cuidarem da minha saúde, me fazendo acreditar que os dias cinzentos poderiam voltar a ser coloridos!

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Ou se tem chuva e não se tem sol ou se tem sol e não se tem chuva! Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva! Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares. É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares! Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,

ou compro o doce e gasto o dinheiro. Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...

e vivo escolhendo o dia inteiro! Não sei se brinco, não sei se estudo,

se saio correndo ou fico tranquilo. Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo.

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Cruz, J. P. D. (2013).“Ou isto ou aquilo”: implicações entre maternidade e militância para mulheres que militaram em oposição à ditadura militar no Brasil (1964-1985).

Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

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women who campaigned in opposition to the military dictatorship in Brazil. Dissertation, Graduate Program in Psychology, Faculty of Philosophy and Human Sciences, Federal University of Minas Gerais, Belo Horizonte.

The history of a country or a people, can be written and told by different versions. There is this way of narrating or writing, a peculiarity that socially constructed through the spaces and micro and macro social relations: the hierarchy will be maintained or omitted, highlighting an official version, legitimated as truth. In Brazil, the period of the military dictatorship (1964-1985) also presents certain obscuritas regarding the experiences of different social groups in this context exception. Regarding this historical moment, beyond the political, economic and social transformations in gender relations should be seen as an important marker. Women who campaigned in opposition to the regime, to break with traditional patterns of marriage, parenthood and family constitution favored new models and social settings that contributed to the integration of women into a new social order, diluting the boundaries between public life and private. This paper aims to understand the experience of motherhood that women campaigned during the military dictatorship in Brazil. There were four interviews with women who have been pregnant and had conceived or termination of pregnancy during the period of militancy during the semi-underground, underground, prison, exile and post-release. For the organization and interpretation of data, we construct narratives of individual phenomenological perspective that aimed to capture the lived experience of these women in order to understand more generally the social construction of female identity, with primary focus on motherhood. The results showed that the model of maternity assumed by militants, although living in extreme situation and presenting ambiguities, moved between continuity and rupture in some points being approximated to the traditional model prevailing in society at the time, and modified by other conditions resulting from path of militancy, as well as models in which conjugal motherhood happened. Despite experiencing a context in which death was a prominent risk, motherhood contributed to the preservation of their lives, not stopping, however, that these women, though pregnant, suffer physical torture, sexual and psychological, as well as threats both relation to the maintenance of pregnancy, regarding the whereabouts of their children near him. After entering the militancy, these women broke with his family ties and social risks assumed by: getting pregnant unmarried; being arrested and tortured pregnant; undergo abortions; having their births during the arrest, hiding, exile and post-release without medical pre and post partum; apartadas be without their babies and breastfeed them under the threat of no longer being able to have them in my arms. Such situations limits required capabilities and overcoming resistance against adverse conditions, especially in the post-prison moment of rebuilding their lives and social ties, combining motherhood, marital, widowhood, career and survival in a little amalgam experienced by middle-class women that historical period, extending the range of design possibilities for women until the present day, linking the gender dimensions of the generation. Understanding these experiences within transformations also becomes a contribution to the field of study surrounding the psychosocial aspects of memory specifically in relation to the construction of a historical memory of this period, in order that the experience of these women in the context of dictatorship mark peculiar shape the trajectory of their lives; dimension little known / disclosed relationships with socially guarding the transformations experienced gender by women of the younger generations.

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AI - Ato Institucional AIs - Atos Institucionais

AI-5 - Ato Institucional número 5 ALN - Ação Libertadora Nacional AP- Ação Popular

CENIMAR - Centro de Informações da Marinha CIA -Central Intelligence Agency

DA – Diretório Acadêmico

DCE – Diretório Central dos Estudantes

DOI-CODI - Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa interna

DOPS - Departamento de Ordem Política e Social FAFI- Faculdade de Filosofia

FAFICH - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas FEBEM - Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor IPMs - Inquéritos Policiais Militares

JEC- Juventude Estudantil Católica JUC- Juventude Universitária Católica ME- Movimento Estudantil

MNR - Movimento Nacionalista Revolucionário OBAN - Operação Bandeirantes

OEA - Organização dos Estados Americanos ONU - Organização das Nações Unidas PCB- Partido Comunista Brasileiro

PCBR- Partido Comunista Brasileiro Revolucionário PC do B- Partido Comunista do Brasil

PE - Polícia do Exército

POLOP- Organização Revolucionária Marxista de Política Operária PUCMG - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

REDE – Rede Democrática RU - Restaurante Universitário

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UNE - União Nacional dos Estudantes USP – Universidade de São Paulo

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1 INTRODUÇÃO ...17

1.1 Ditadura Militar no Brasil: breve histórico ...20

1.2 Mulheres e Militância: ocupando novos lugares, vivendo na manutenção de outros...23

1.3 Maternidade e Militância: ou isto ou aquilo...28

1.4 Revivendo histórias e construindo memórias...32

2 OBJETIVOS ...37

2.1 Objetivo Geral ...37

2.2 Objetivos Específicos ...37

3 MÉTODO...38

3.1 O Contexto de Pesquisa...38

3.2 Sujeitos Participantes...41

3.3 Procedimentos de coleta de dados ...43

3.4 Instrumento de coleta de dados ...47

3.5 Procedimentos de análise dos dados...49

4 RESULTADOS ...53

MARIANA ...56

SÍLVIA ...70

SOFIA...88

SUELY ...106

5 DISCUSSÃO ...123

5.1 Nos meandros da memória: vozes feminina ecoam dos porões do silêncio...123

5.2 Socialização feminina: do idealizado a militância ...134

5.3 Maternidade e Militância: compreendendo tensões entre o individual e o coletivo ....149

5.3.1. Nascendo nos porões da ditadura: “gerando vida em um contexto de morte”....165

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS...181

7 REFERÊNCIAS ...183

APÊNDICES ...191

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1 INTRODUÇÃO

“Como é difícil acordar calado/Se na calada da noite eu me dano/Quero lançar um grito desumano/Que é uma maneira de ser escutado/Esse silêncio todo me atordoa/Atordoado eu permaneço atento/ Na arquibancada, prá a qualquer momento/Ver emergir o monstro da lagoa/ Pai! Afasta de mim esse cáli-ce...” (Cálice, Chico Buarque & Gilberto Gil).

A história de um país, ou de um povo, pode ser escrita e contada por diferentes versões. Há nesta forma de narrar ou escrever, uma peculiaridade construída socialmente que perpassa os espaços e relações micro e macrossociais: a hierarquia do que será mantido ou omitido, destacando uma versão oficial, legitimada como verdade. Isso pode ser visualizado na história das mulheres (Perrot, 2005; Goldenberg, 1997); na história da ciência (Santos, 1988); e não obstante, na história do Brasil (Carneiro, 1994) em que mulheres e escravos, são retratados quanto à sua subordinação aos demais, reflexo de que a construção da história está intimamente relacionada com a identidade social, carregada de elementos “históricos, culturais, religiosos e psicológicos” (Carneiro, 1994, p. 187).

Mulheres, Mães, Brasileiras, em um contexto específico na história do Brasil: o período da Ditadura Militar, entre os anos de 1964 a 1985 (Arquidiocese de São Paulo, 1985; Almeida & Weis, 1997), momento histórico relatado didaticamente a partir da sucessão de governantes militares no Brasil, não exprime o que as mulheres que militaram em oposição ao Regime Militar, vivenciaram. Observa-se, portanto, a omissão de alguns aspectos em detrimento de outros, considerados mais relevantes, ou que omitem uma versão da história que possivelmente poderia mudar a imagem deste tempo.

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um país igualitário, tendo a vida atravessada pelo impacto dessa luta, inclusive no que tange ao exercício da maternidade.

Maternidade e Militância aparecem nesta proposta de pesquisa, como temas centrais a partir dos quais discutiremos aspectos teóricos de gênero relacionados à gravidez e ao parto. Por meio da pesquisa de campo, entrevistamos mulheres que estiveram grávidas e conceberam ou tiveram interrupção da gravidez no período de militância.

Esta escolha se justifica pelo fato de que, como dito acima, a história oficial deste momento histórico, não contempla de forma contundente, as experiências das (os) militantes, e familiares, de presos, mortos e desaparecidos em detrimento do Regime Militar. Assim, acredita-se que privilegiando a dimensão da vivência destas pessoas, a partir de suas narrativas, pode-se compor e potencializar acervos históricos que contemplem e reconstruam esta outra versão da história, contada pelos que viveram, na outra face, os impactos deste período, justificando de forma política, a execução deste trabalho.

Alguns estudos como de Ferreira (1996), Gianordoli-Nascimento (2006), buscaram remontar a participação de mulheres na militância de oposição ao Regime, durante a Ditadura no Brasil. Entretanto, percebe-se ainda uma lacuna quanto à experiência das militantes em ser mãe no período da militância. Embora, haja relatos nesses estudos que toquem na questão da maternidade, não houve aprofundamento na discussão por não ter sido este o objetivo central destas pesquisas.

Neste sentido, cabe mencionar a inserção da pesquisadora no grupo de pesquisas/CNPQ: Memórias, Representações e Práticas Sociais do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, onde participa de pesquisas sobre o período da ditadura militar no Brasil, em que se destaca o trabalho de pesquisa intitulado “Identidade, Geração e Gênero durante os ‘Anos de Chumbo’: a memória de mulheres militantes sobre os impactos de sua militância na trajetória de seus familiares durante a ditadura militar” (CNPq - Edital nº. 20/2010). Tal pesquisa suscitou os temas propostos nesta investigação, a partir de elementos que constam nos depoimentos das entrevistadas e que necessitam serem explorados e aprofundados a partir de novas entrevistas e análises.

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Estas dimensões podem ser percebidas nas trajetórias diversificadas dessas mulheres, que após entrarem na militância, romperam com seus vínculos familiares e assumiram riscos sociais ao: engravidarem solteiras; serem presas grávidas; sofrerem abortos sob tortura; terem seus partos durante a prisão, clandestinidade e exílio sem assistência médica pré e pós-parto; e serem apartadas de seus bebês sem amamentá-los e sob a ameaça de não mais poderem tê-los nos braços.

Tais situações limites exigiram dessas mulheres capacidades de resistência e superação frente ao adverso, principalmente no período pós-prisão quando tiveram que reconstruir suas vidas e laços sociais, conjugando maternidade, carreira e sobrevivência em um amálgama pouco experienciado pelas mulheres de classe média daquele período histórico, ampliando a variedade de possibilidades de modelos para as mulheres até os dias de hoje, ligando as dimensões do gênero a da geração.

Buscamos, portanto, uma análise mais aprofundada, no nível psicossocial, de questões vinculadas às relações de gênero, geração, maternidade e identidade em sua interconexão com o campo político na história recente do nosso país. Esse nos parece ser o caso da militância política de mulheres durante o regime de ditadura militar no Brasil, quando jovens assumiram um papel inédito tanto no campo da política quanto no das relações de gênero, rompendo com os códigos de sua época, inclusive os familiares. Portanto, investigar a participação da mulher dentro desse contexto, dimensionando o lugar da maternidade e suas nuances nas trajetórias de militância, prisão-tortura e pós-prisão, pode oferecer importantes informações que colaborem para um entendimento mais geral da construção social da identidade feminina, a partir de suas dimensões – maternidade, casamento e trabalho (Carson, 1995) – que, nessa época, passa por intensas transformações.

Acredita-se ainda, que por meio deste estudo instaurou-se espaço para que as mulheres entrevistadas, representantes de um número maior de militantes, rememorem e elaborem por meio de suas narrativas esta experiência de vida, que em alguns casos, pode estar silenciada. Como salienta Pollak (1989), existe uma memória do medo, do esquecimento, que provoca certos bloqueios, portanto, por mais que queiram contar, existem experiências nos ‘porões da intimidade’, que não serão compartilhadas.

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em nossas práticas cotidianas, em relação, por exemplo, aos aspectos da identidade feminina, neste contexto.

1.1 Ditadura Militar no Brasil: breve histórico

Remontar o panorama da Ditadura Militar no Brasil não nos remete apenas para o ano de 1964, mas para um cenário que antecedia ao Golpe Militar. Conforme a descrição feita do período pela Arquidiocese de São Paulo (1985), o país passava por uma série de problemas sociais em suas estruturas básicas, como resultado, dentre outras coisas, da imposição de um Governo Militar, após a deposição do Presidente Getúlio Vargas em 1945 (Arquidiocese de São Paulo, 1985).

O cenário mundial refletia o caos da Segunda Guerra, e no Brasil, o Golpe de Estado pelas Forças Aramadas Militares que impugnaram os movimentos nacionalistas do país. Nesta dinâmica, o governo brasileiro tornou-se ainda mais “autoritário e antipopulista” (Arquidiocese de São Paulo, 1985, p. 56). Após a volta Getúlio ao poder no período de 1950 a 1954, Juscelino Kubistchek, Jânio Quadros e João Goulart, passaram pela presidência brasileira, até que novamente, ocorreu outro Golpe Militar.

O Governo de João Goulart foi marcado por intensas lutas em prol das chamadas “Reformas de Base”, sendo um período de constituição e fortalecimento de movimentos sociais, envolvendo trabalhadores, estudantes, camponeses, artistas que se engajavam pela mudança da situação nacional (Arquidiocese de São Paulo, 1985). A conjuntura econômica do país era crítica devido ao endividamento internacional, e as altas taxas internas, o que provocou um período de exceção e arrocho salarial. Porém, os movimentos reformistas se fortaleciam abarcando várias camadas da sociedade.

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De acordo com Almeida e Weis (1997), o período e 1964 a 1985, foi marcado por intensas lutas entre militares, e a oposição ao Regime, formada por professores, estudantes secundaristas e universitários, sindicalistas, operários, parte da Igreja Católica, entre outros. A maior porção, porém, das pessoas envolvidas na oposição, pertenciam à classe média brasileira, formada por universitários, intelectuais, artistas, que se engajaram no movimento contra o Governo autoritário e repressor que se instituíra no país.

O período da Ditadura Militar no Brasil ocorreu em meio a mudanças e transformações dos costumes, em que as fronteiras entre público e privado se modificavam, devido, principalmente, ao processo de modernização e industrialização do país (Matos, 1995; Biasoli-Alves, 2000). Nesse sentido, homens e mulheres estavam unidos nas lutas, principalmente os estudantes, que começaram a ter contato com as obras Marxistas (Almeida & Weis, 1997) além de outros aportes teóricos que modificaram as concepções tradicionais com as quais foram socializados. Assim, conforme pontua Biasoli-Alves (2000), na modernidade, há uma convergência entre “novo” e “velho”, “tradições” e movimentos de contestação da ordem instituída. Entretanto, estas manifestações foram posteriormente cerceadas do espaço público, por meio de Atos Institucionais que enrijeceram ainda mais o Regime.

Os Atos Institucionais (AIs), foram sendo instituídos ao longo dos primeiros quatro anos. Inicialmente do “AI ao AI-5” como divide Almeida e Weis (1997), passou-se por ciclos de abertura e fechamento do espaço para os movimentos políticos e liberdades quanto ao espaço público e a vida individual. Formaram-se e fortaleceram-se nesse período, partidos políticos de esquerda, o movimento estudantil, através da União Nacional dos Estudantes (UNE), além de outras associações, que iam às ruas questionar a ordem estabelecida autoritariamente. Reuniam-se em assembléias, panfletavam, demonstrando a discordância com o Regime Militar (Almeida & Weis, 1997). Para estes autores, este foi um momento de ambiguidade entre fronteiras do proibido e o permitido, entre o público e privado. Antes da proclamação do Ato Institucional de número 5 (AI-5), havia ainda um clima de esperança, muito fortalecido pelos ideais socialistas revolucionários, que envolvia parte dos manifestantes, nessa altura, considerados como comunistas e perturbadores da ordem pública.

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considerada pelos censuradores como ofensivas ao Regime Militar; aconteceu a suspensão dos direitos políticos, além da violência extrema contra quem resistia (Arquidiocese de São Paulo, 1985; Almeida & Weis, 1997). Os “anos de chumbo” no Brasil foram marcados por certas contradições (Ferreira, 1996; Almeida & Weis 1997); o país tornou-se extremamente autoritário, aconteceram inúmeras prisões de militantes opositores ao Regime Militar, as Forças Armadas além da prisão, torturavam e provocavam o desaparecimento de centenas de pessoas, que ainda hoje, continuam com o status de desaparecidas políticas. A imagem do país diante do mundo, porém, se contrastava entre crescimento econômico e denúncias sobre a violência extrema. Literalmente o Brasil era o país do “carro-zero” e “pau-de-arara” (Almeida & Weis,1997).

O aprofundamento do autoritarismo coincidiu com, e foi amparado por, um surto de expansão da economia – o festejado ‘milagre econômico’ – .... A combinação entre o autoritarismo e crescimento econômico deixou a oposição da classe média ao mesmo tempo sob o chicote e o afago (Almeida & Weis, 1997, pp. 332-333).

Neste período os partidos políticos de esquerda tiveram que agir clandestinamente dando surgimento as resistências armadas, com a participação de diversas e diversos estudantes, embora o número de mulheres nas guerrilhas e ações armadas fosse reduzido (Ridente, 1990; Ferreira, 1996). Nesse momento, o espaço privado tornou-se o ponto de encontro e luta dos vários movimentos. Com o aumento da repressão e invasão do espaço particular, além da proibição dos manifestos nos espaço públicos, brasileiros e brasileiras participantes desses movimentos/partidos, foram presos e passaram por períodos de tortura a fim de prestarem informações diversas sobre os movimentos. Algumas pessoas não resistiram à grande violência física e psicológica com que foram tratados. Ressalta-se que os familiares, bem como outras pessoas que não participavam ativamente da oposição foram atacadas pela repressão, por apresentarem mínima suspeita aos militares (Arquidiocese de São Paulo, 1985). O ideal de Segurança Nacional foi amplamente difundido (Gianordoli-Nascimento, 2012). Aquelas e aqueles que lutaram contra o regime, passaram a ser chamadas de “terroristas” procuradas (os) pela Polícia do Exército, Marinha e Aeronáutica, pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) onde muitos prestaram depoimentos e foram violentamente torturados (Arquidiocese de São Paulo, 1985; Almeida & Weis, 1997). Mortos, desaparecidos políticos, exilados em outros países. Pessoas que lutaram e perderam sua vida na luta contra a opressão.

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outros países durante anos, começaram a retornar. Esse processo ocorreu paulatinamente, e sentimentos como medo e estranhamento eram comuns a quem retornava (Abreu, 2009). Surgiram também os Comitês de Anistia, que ainda hoje lutam pelo perdão e reparação dos danos causados pelo Regime Militar aos presos políticos, fortalecendo o movimento de denúncia acerca das crueldades, mortes e desaparecimento de outras e outros militantes. Perdão e reparação são necessários, não apagam, porém, as marcas provocadas por esse tempo de luta, morte e resistência.

1.2 Mulheres e Militância: ocupando novos lugares, vivendo na manutenção de outros

Marcadas pela participação na militância em oposição ao Regime Militar; marcadas pela condição de gênero; marcadas por rupturas e tradições nos padrões culturais.

Segundo Ferreira (1996), as mulheres, também estiveram presentes nas lutas estudantis, partidárias e inclusive na luta armada no período da Ditadura Militar, rompendo assim, com a ideia socialmente construída de que mulheres deveriam habitar apenas o espaço privado do lar (Badinter, 1985; Ferreira, 1996; Goldenberg 1997).

Como citado na introdução deste estudo, existe uma invisibilidade quanto às mulheres na história, do país, da ciência, enfim. Na militância política no período da Ditadura, isto não foi tão diferente. Como descreve Goldenberg (1997), os lugares ocupados pelas mulheres eram os movimentos estudantis, os partidos políticos. Algumas delas participaram inclusive da coordenação de partidos, mesmo que em um período de ausência do líder que poderia estar na clandestinidade ou no movimento armado (Ridenti, 1990; Ferreira, 1996). Mesmo ocupando e participando do espaço político, público, extrapolando a barreira do privado, as mulheres militantes, permanecem historicamente em segundo plano, ou na invisibilidade,

Utilizo a idéia de invisibilidade com o pressuposto de que as mulheres ocuparam uma posição percebida como secundária ou inferior no interior das organizações sendo “escondidas” com o rótulo de “mulher de”, “companheira de” ou “filha de”.... A história da esquerda brasileira foi, e é até hoje, escrita em torno das trajetórias destes “grandes homens” (Goldenberg, 1997, p. 352).

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mulheres exerciam poder, mesmo que “por trás dos panos”, pois o que viviam no micro espaço parece ser um reflexo do que acontecia no macrossocial. Conforme aponta Biasoli-Alves (2000), com o advento da modernidade, aconteceram rupturas inclusive em relação a ocupação do espaço público e privado, porém, há continuidades de tradições, ações e ideologias. Participar desses espaços por meio do ingresso na universidade, ou por influência de um homem, parece ter sido neste momento de transformação, o recurso possível. Conforme Goldenberg (1997), aos homens ainda cabia o mundo da política e das decisões, já que nos contextos em que eram necessárias deliberações “As mulheres aparecem como meras coadjuvantes” (p. 352).

O período de 1960/1970 em diante, foi balizado por algumas transformações nos costumes, quanto a socialização dessas(es) jovens que na época tinham entre 14 e 24 anos (Gianordoli-Nascimento, 2006), socializados a partir de uma tradição dois pais, que apresentavam como princípios (mesmo que em transformação) a educação as filhas em casa e a preparação destas para o casamento, sendo um pensamento típico dos “anos dourados” (Bassanezi, 2004).

Casamento, maternidade e trabalho; de acordo com Carson (1995), esses são três elementos organizadores da identidade de gênero das mulheres. Para o autor, bem como para Rocha-Coutinhho (1994), Saffioti (2004), Vaitsman (1994) gênero é uma construção social acerca do feminino e masculino. Há, porém certas diferenciações sobre essa categoria, que para Scott (1992), se configura como categoria de análise histórica, devendo estar relacionada ao contexto em que é discutida. Para Saffioti (2004), há uma diferenciação entre gênero e patriarcado, pois essas construções sociais do masculino e feminino não são neutras, assim o patriarcado seria a dominação, exploração e opressão das mulheres, a partir de um modelo de organização em que o homem é hierarquicamente superior, e por essa condição têm privilégios e acessos diferenciados.

Para Rocha-Coutinho (1994), a compreensão da categoria gênero deve levar em conta os aspectos relacionais envolvidos na dinâmica entre masculino e feminino, na qual existe um jogo de poderes, porquanto “o poder é relacional” (p.18). Assim, Rocha-Coutinho (1994) ressalta que mesmo havendo uma desigualdade nessa relação, “em seu lugar de subordinação na sociedade, as mulheres sempre articularam ... formas de subsistir e resistir a esse poder socialmente reconhecido dos homens na sociedade” (p. 19).

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social da mulher; bem como de contestar o poder vigente perpetrado pelo Regime Militar. Segundo Ferreira (1996) a participação de mulheres na militância política naquele período, configurava-se em uma contravenção em relação a dois pontos específicos: “... as militantes estavam desempenhando um papel duplamente transgressor: enquanto agentes políticos (insurgindo-se contra o regime) e enquanto gênero (rompendo com o padrão vigente)” (p.152).

A partir de alguns relatos de militantes (Arquidiocese de São Paulo 1985; Ferreira 1996) foi possível compreender que as prisões, as torturas físicas e psicológicas, atingiam homens e mulheres, mas havia peculiaridades devido à condição feminina: ficar nua diante de outros homens; manter relações sexuais forçadas com os militares; “.... os torturadores fizeram da sexualidade feminina objeto especial de sua tara” (Arquidiocese de São Paulo, 1985, p. 46).

Elas estão sempre nas mãos de agentes do sexo masculino e sofrem todos os vexames sob o olhar de alguém que lhes é diferente. Acontecia, por exemplo, [de] menstruarem inesperadamente durante uma seção de tortura” (Ferreira 1996, p. 155).

A militância feminina foi também questionada e criticada inclusive por outras mulheres que não aderiram a este tipo de luta, e mantinham a tradição, reconhecendo “seu” lugar de mãe, esposa e dona-de-casa, apoiando e legitimando o Regime Militar, criando inclusive movimentos como as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” (Ridenti, 1990, p. 3).

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Alguns movimentos de contestação aconteceram ao longo do século XX, oscilando entre modificações e permanência de valores e tradições. Nos “Anos Loucos”, final de 1920, início dos anos 30, artistas e intelectuais brasileiros, criticavam o casamento e lançavam questionamentos em relação ao divórcio, tendo ênfase nesse momento o anarquismo e as ideias de “uniões livres” ou “amor livre” (Del Priore, 2006, p. 259). Nos “Anos Dourados”, década de 50, no Brasil, há uma (re)valorização do casamento e da maternidade. A mulher era considerada como a “rainha do lar”, e sua felicidade estava condicionada a um “bom casamento” e à maternidade. Os estudos eram direcionados à educação dos comportamentos (Bassanezi, 2004). Certamente havia “moças” que não aceitavam tais princípios e se rebelavam em relação a eles, e consequentemente em relação à família.

A vontade e a coragem de transgredir iam de fumar, ler coisas proibidas, explorar a sensualidade de roupas e penteados, investir no futuro profissional, discordar dos pais, a contestar secreta ou abertamente a moral sexual, chegando a abrir mão da virgindade – e por vezes do casamento – para viver prazeres eróticos muito além dos limites permitidos .... De qualquer forma, seus questionamentos e contestações colocaram em perigo as normas de comportamento e contribuíam para a ampliação dos limites estabelecidos para o feminino (Bassanezi, 2004, p. 622).

Até mesmo a transgressão colocava limites, pois ainda rompendo com certos valores, o não cumprimento do que era esperado socialmente de uma mulher, causava repúdio e exclusão.

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Ridenti (1990) ressalta que no exílio, em outros países, as mulheres começaram a problematizar as questões de gênero no tocante à situação social, identificando o machismo nas instituições partidárias e sociais. Algumas mulheres exiladas em Paris, na França, começaram a ter contato com o movimento feminista francês, articulando assim as vivências no Brasil (Abreu, 2009). Esse momento é de grande mudança ideológica na concepção dessas mulheres, contestando inclusive o capitalismo, a posição de classe e raça, que para Rocha-Coutinho (1994) está atrelada à questão de gênero. Estas mulheres participaram de alguns grupos feministas franceses até se reunirem e formarem o “Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris” (Abreu, 2009). De acordo com Abreu (1997) o grupo, tinha como pressuposto discutir teoricamente as vivências de participação na militância, bem como outros assuntos relacionados à condição feminina. Começaram a criar, posteriormente ligações com os movimentos feministas no Brasil, que datam da década de 1970, promovendo uma rede de denúncias quanto à Ditadura Militar, “enfatizando a situação das presas políticas, a condição da mulher no Brasil ...” (Abreu, 2009, p. 76).

Sistematizar e trazer à tona a história dessas mulheres nos permite compreender a construção da identidade feminina por meio das vivências, marcadas por mudanças e continuidades. No entanto, se mudanças podem ser vistas no cenário público/político em relação à ação feminina, no que tange aos aspectos referentes ao privado, pouco temos investigado, e uma dessas dimensões é o exercício da maternidade em meio à militância.

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1.3 Maternidade e Militância: ou isto ou aquilo

A identidade feminina como cita Carneiro (1994), é um processo histórico e cultural; bem como o processo da maternidade e embora envolvam processos biológicos, são frutos da construção de imagens da mulher.

Os sentimentos em relação às crianças, à gravidez e ao cuidado materno, foram também produzidos socialmente (Badinter, 1985; Scavone, 2004). No século XVII, por exemplo, a infância tinha um valor negativo, e as crianças eram consideradas como seres malignos. Havia neste momento a influência do pensamento de Santo Agostinho cuja concepção era de que as crianças simbolizavam o pecado e teriam uma maldade intrínseca. Estas noções guiavam o comportamento dos pais em relação aos filhos, considerados como um “fardo”, culminando em práticas de infanticídio e abandono, principalmente nas famílias mais pobres (Badinter, 1985).

As condições de higiene, e o cuidado precário com as crianças, geraram grande número de mortes no século XVIII, o que fortaleceu o distanciamento das mães em relação aos filhos, pelo medo de perdê-los (Badinter, 1985; Matos, 1995). Questiona-se então se esse medo não estaria relacionado ao amor, em relação ao bebê. Badinter (1985) ressalta que não há dúvidas sobre a existência de um sentimento entre pais e filhos, entretanto, não havia uma valorização “social e moral” deste amor “... em todos os tempos, houve mães amantes .... o amor materno não é uma criação ... do século XVIII ou do século XIX. Isso, porém, não prova de modo algum que tenha sido uma atitude universal” (p. 86). Amar incondicionalmente o filho, desejá-lo, cuidar com dedicação exclusiva do bebê, não era, e não é, um sentimento compartilhado por todas as mulheres.

Com o advento da modernidade, da industrialização e o desenvolvimento do capitalismo, ocorreu uma mudança em relação ao papel social da mulher, que passou a viver no espaço doméstico exercendo exclusivamente as funções de mãe e esposa, uma vez que o trabalho com máquinas e nas fábricas não competia a elas (Rocha-Coutinho 1994). Surge assim a família nos moldes nucleares, na qual cabe ao homem o sustento e manutenção do lar, e da mulher o cuidado com a casa e os filhos. Isso modifica também a ocupação dos espaços público e privado. Rocha-Coutinho (1994) afirma que o imperativo para o lar passa ser o amor ao marido e aos filhos, o que condiciona à mulher ao cuidado e domínio do outro.

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conseqüentemente aos filhos, assim como no domínio da sociedade. Sobre a mulher colocou-se a responsabilidade da educação dos filhos, que colocou-segundo Rocha-Coutinho (1994) foram considerados o futuro da nação. Assim, o sentimento em relação à infância se transformou. O discurso de diferenciação biológica sustentou a noção de que mulheres e crianças são frágeis, logo, o lar seria o lugar de proteção.

O mito da infância encontra assim um paralelo no mito da feminilidade, isto é, tanto as mulheres como as crianças foram consideradas frágeis, delicadas, assexuadas, e portanto, não só mais puras que os homens, como também seres que necessitam de sua proteção (Rocha-Coutinho, 1994, p. 30).

O discurso científico em várias esferas, médica, higienista, jurídica, contribuiu para a definição do espaço secundário da mulher, que saíram progressivamente de cena no espaço público, pois ser “mãe” e “esposa” passou a ser característica socialmente valorizada. Se antes as mulheres entregavam os filhos para serem amamentados por amas-de-leite, pois o ato de amamentar não era bem visto na alta sociedade, não sendo valorizado, agora caberia a ela a maternagem. Se outrora eram educados por tutores e posteriormente enviados para internatos, passaram a ser educados pelas mães, que tiveram maior acesso a escolarização não apenas para se profissionalizarem, mas principalmente para o cuidado da prole e da família (Badinter 1985; Rocha-Coutinho, 1994; Matos, 1995).

O instinto, ou amor materno tornou-se então constitutivo da natureza feminina, sendo amplamente valorizado na sociedade moderna. As mulheres que não se encaixavam em tal perfil eram consideradas relapsas, “mães más”. Compreende-se assim, que o amor materno é um mito construído socialmente (Badinter, 1985).

Esse sentimento pode existir ou não existir; ser e desaparecer. Mostra-se forte ou frágil. Preferir um filho ou entregar-se a todos. Tudo depende da mãe, de sua história e da História. Não, não há uma lei universal nessa matéria, que escapa ao determinismo natural. O amor materno não é inerente às mulheres. É “adicional” (p. 366).

A total entrega da mulher aos filhos provocou conflitos para ela e os homens, que são tolhidos do exercício da paternidade (Badinter, 1985; Trindade, 1998), uma vez que com a vida fora do âmbito doméstico, para cumprir sua função de produtor, tem um tempo reduzido para o contato e cuidado dos filhos. As concepções naturalizadas de que os homens não teriam habilidades suficientes para cuidar sustentavam essas concepções. Assim, maternidade e paternidade são também construções sociais (Trindade, 1998).

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em detrimento da paternidade, continua sendo enaltecida a partir da relação mãe-bebê, excluindo o pai desta relação. Estas concepções, fortemente sustentadas pela ciência, que contribuiu para práticas de exclusão (Camino & Ismael, 2004; Trindade, 1998), e fortaleceu por meio destes discursos, determinadas ações e modos de relacionamento com os filhos, sendo a mulher a principal responsável pelo o que seria da criança.

As concepções de que a mulher só seria completa ao ser mãe, tão valorizada e idealizada no século XX, e no Brasil, por exemplo, estando em voga nos “Anos Dourados” (Bassanezi, 2004), ainda estão presentes na compreensão da identidade feminina atual, embora os movimentos feministas e estudos de gênero tenham colocado em questão a naturalização desses lugares.

No período da Ditadura Militar no Brasil, houve por parte do pensamento da esquerda uma reavaliação de ideais e algumas tentativas de rompimentos com o que era considerado comportamento burguês. Nesse contexto foi possível rever, ainda que não fosse o objetivo, algumas questões e lugares de gênero em relação: ao casamento; a constituição da família, além da entrada das mulheres em espaços construídos socialmente para homens; entretanto, pouco se rompeu em relação à maternidade. Em um momento de revolução dos códigos morais e políticos, ser mãe ainda incutia responsabilidades e culpa, caso esse papel não fosse cumprido como esperado socialmente.

Ser mulher e ser militante exigia das mulheres algumas escolhas que impunham renúncias dolorosas e com altos custos sociais quanto à relação com seus grupos de pertenças já que sua identidade social se construiu por meio do amálgama formado pelo pleno exercício da mulher-mãe. Implicações essas que não se colocavam para os homens, visto que suas identidades não se construíram socialmente relacionadas ao exercício da paternidade (Gianordoli-Nascimento, 2006).

Ter que escolher entre a militância e o exercício da maternidade, sinaliza que a mulher que militava estava no lugar impróprio, pois o lugar da mãe era no seio da família, e não nas ruas, seu lugar deveria ser o recôndito privado. Ser militante era sinônimo de ser transgressora, manchando assim a identidade da mulher: mãe-esposa (Ridenti, 1990).

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[...] Seu bebê nasceu em maio de 1969, em um parto clandestino dificílimo. Após o nascimento, já era claro para o casal que eles teriam que sair do país e entrar no exílio. Silvia foi convencida pelo namorado que seria mais seguro deixar o bebê com os pais dele, no Brasil, até que estivessem instalados no estrangeiro, quando, então, providenciariam o seu reencontro. Muito a contragosto, concordou .... Com a vida sem perspectiva, completamente sem amparo e pensando recorrentemente em suicídio, ela buscou ajuda psiquiátrica. Silvia nunca mais teve a filha ao seu lado e poucas vezes recebeu sua visita. Somente aos seis anos a menina descobriu que era sua filha e mesmo nas vezes em que quis morar com a mãe, foi impedida pelos avós paternos. Há alguns anos, Silvia descobriu que ela havia sido registrada como filha dos avós, contrariando a certidão de nascimento que havia recebido quando nasceu (Gianordoli-Nascimento, 2006, pp.73-74).

Ser mulher, e ser militante, implicava em alguns tipos de escolhas: “ou isto ou aquilo”. Esta escolha ainda parece estar posta na atualidade, já que como pontua Biasoli-Alves (2000), há tradições e comportamentos que se mantêm. Com a crescente entrada das mulheres no mercado de trabalho a escolha entre “ou isto ou aquilo” volta a se fazer questão, pois conforme Rocha-Coutinho (2009), a maternidade ainda aparece como algo que completaria a mulher.

Assim, ocupar altos postos de trabalho, ter uma carreira, e dar continuidade a ela, embora contente a algumas, não preenche outras. Acredita-se que esta não é apenas uma escolha da mulher, entre ser mãe, ou ser militante, ser mãe ou dar continuidade à carreira, mas a expressão da força que o mito do amor materno e do ideal de ser mulher, mãe, esposa e trabalhadora, tem na constituição da identidade feminina (Carson, 1995). Rocha-Coutinho (2009) alerta ainda que as mulheres que não se dedicam exclusivamente à maternidade, abrindo mão da carreira, mesmo que por um período, sentem-se culpadas, já que a responsabilidade em relação à maternidade ainda impera sobre a mulher.

As militantes do período da Ditadura foram também questionadas em relação à maternidade, já que a sociedade, marcada pelo patriarcalismo, mantinha concepções tradicionais sobre “ser mãe”. Ferreira (1996) traz relatos de mulheres mães e que vivenciaram nos momentos de clandestinidade, prisão e tortura, a ameaça de ter a maternidade afetada:“Terrorista não pode ter filho; quem tem filho agora agüente” (Hercília, citada por Ferreira, 1996, p. 154) . O fato de ser mãe, ou de estarem grávidas, não impediu que fossem torturadas e humilhadas, pois pela dupla transgressão de ser mulher e militante (Goldenberg, 1995; Colling, 1997), sofriam, com requintes de crueldade, violências físicas e psicológicas.

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(Arquidiocese de São Paulo, 1985, p. 50). Mulheres que carregam marcas que ainda hoje afetam sua identidade em relação ao “ser mãe”:

... é estuprada nas instalações da PE [Polícia do Exército] no Rio. Com isso, é duplamente torturada, pois, ao saber que está grávida, não suporta a idéia de ter a criança .... o fato não se consuma .... acaba perdendo a criança. Por outro lado, diz que“o resultado daquela violência foi eu jamais ter tido coragem de ter filhos, mesmo adorando crianças(Joana, citada por Ferreira, 1996, p. 153).

A vivência da maternidade neste período ou na atualidade estabelece contraditoriamente uma decisão para a mulher, por sua condição: ou será isto, ou aquilo.

1.4 Revivendo histórias e construindo memórias

O desconhecimento das diversas versões que compõem a ampla história de uma sociedade subtrai a possibilidade de compreender melhor os processos sociais nos quais os sujeitos e grupos se envolvem no presente, diminuindo a capacidade de escolha e de autodeterminação. Ferreira (1996) explica que, através dessa perspectiva, a amnésia social, insistentemente atribuída aos brasileiros ou ao Brasil, assume outra posição, o esquecimento (e também o desconhecimento, já que não podemos nos lembrar daquilo que não conhecemos) que é socialmente organizado através de um processo seletivo, controlado principalmente por esferas de poder tais como a do Estado, a das elites e a dos meios de comunicação que são espaços privilegiados de criação de memória social.

Neste sentido, o silogismo “quem controla o presente controla o passado” (Ferreira (1996, p.71), e vice-versa, revela a interação contínua entre presente e passado, demonstrando a força que o controle sobre seus conteúdos representa. A disputa pelo poder, ou seja, pela posse e interpretação da memória, está calcada no meio do conflito, do jogo de interesses e de valores culturais, sociais e políticos do momento presente e, justamente por estar imbricada nas práticas de vida social, freqüentemente é imperceptível ao senso comum.

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as memórias estabelecidas, estas organizadoras da ordem social. Portanto, a memória nacional foi construída com a finalidade de ser dita, propagandeada e imposta à população, sendo elaborada a partir do estabelecimento de um tempo progressivo, linear e finalista, um tempo, portanto, que é desconstruído por lembranças que são descontínuas de indivíduos e grupos, cujos interesses não coincidem necessariamente com os interesses do poder vigente (Pollak, 1989).

Corroborando o pensamento de Pollak (1989), D’Allesio (1998) diz que a uniformização da memória feita pelo poder tem, dentre outras, a função de construir e manter a identidade nacional.

... o significado da criação desse tipo de ‘comunidade de destino’ revela-se à medida que a nação torna-se a referência grupal fundamental de pessoas que vivem num mesmo território, sob a mesma organização social. No entanto, a fragmentação provocada pela emergência de memórias paralelas, desorganiza esse referencial maior criando novas identidades e questionando a estabilidade do poder estabelecido (D’Allesio, 1998, p. 277).

Nessa condição, podemos perceber que nos depoimentos de ex-presas políticas (Ferreira, 1996; Colling, 1997; Carvalho, 1998; Gianordoli-Nascimento, 2012) a relação entre memória e ideologia apresenta-se estreita e complexa. No caso dessas mulheres, elas são duplamente atingidas pelo fenômeno, sofrendo tanto os efeitos da hegemonia oficial como os da hegemonia de gênero. Portanto, a construção de sua memória individual e de grupo enfrenta, além da repressão de seu discurso político (como os dos companheiros de militância), a repressão de seu discurso, de um modo geral, em função da sua posição na hierarquia de gênero (Ferreira, 1996; Colling, 1997). Nesse sentido, trazer foco sobre as memórias desses grupos femininos pode levar a um resgate do papel que desempenharam, contribuindo para um novo modelo de gênero.

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Conforme ressalta Sá (2007) o termo memória social, é um conceito abrangente que inclui diferentes tipos de memória, como por exemplo, as pessoais, comuns, históricas, entre outras, sendo a abordagem psicossocial da memória, um exercício de um grupo de psicólogos sociais em reunir perspectivas sociológicas e psicológicas, sem, contudo, dividi-las, buscando compreendê-las de forma integrada, a fim de propor uma análise “pisco-social” da memória (Sá, 2007, 2009).

Nesse sentido, os diferentes tipos de memória devem ser compreendidos em sua construção, atualização e modificação, entendendo a dinâmica de como as pessoas se lembram e do que se lembram; visualizando assim a relação entre passado, realidade e cultura, tendo em vista que a partir da priorização cultural e social de alguns fatos é que as pessoas poderão se lembrar ou esquecer-se de determinados acontecimentos (Sá, 2007, 2009).

Dentre os diversos tipos de memórias citados por Sá (2007), destacaremos três: as pessoais, as comuns e a histórica. As memórias pessoais são aquelas relacionadas às experiências de vida da pessoa em determinado contexto e apesar de serem particulares, não são individuais, por serem por meio da linguagem, construídas socialmente. Já as memórias comuns, são aquelas relacionadas às experiências vivenciadas no mesmo período e contexto, que guardam entre si, semelhanças. A memória histórica por sua vez, é construída a partir de memórias documentais e orais, sendo uma memória da história (Sá, 2009).

Conforme Perrot (2005) nas narrativas históricas há uma omissão da presença das mulheres, o que não significa dizer que elas não estiveram presentes em importantes espaços públicos e lutas sociais. Neste trabalho, vamos salientar a importante participação das mulheres no contexto de militância política durante o regime militar no Brasil período de significativas mudanças sociais e nas relações de gênero.

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mulheres no mundo da militância política, por meio do qual puderam elaborar críticas e questionar os valores vigentes.

Os anos de 1964 e os que se seguiram foram de suma importância na história não apenas da geração de mulheres que nele viveram, mas para as posteriores, já que conforme situa Vaitsman (1994), o contexto de militância no qual essas mulheres estavam envolvidas foi um dos primeiros movimentos de rupturas dos modelos vigentes até aquele momento. Um período de transição nas esferas, políticas, econômicas, sociais, e das relações de gênero, já que homens e mulheres passaram a transitar em espaços comuns, e atuar em conjunto. “.... no âmbito das relações de gênero, expressou-se a constituição das mulheres como sujeitos, indivíduos, desafiando os discursos patriarcais” (Vaitsman, 1994, p. 70). Marca-se, entretanto que essas mudanças se deram principalmente em relação aos modelos de vida urbana da classe média brasileira.

Sarti (2004) considera que o movimento feminista que se fortalecia na Europa e América do Norte, teve solo fértil para se implantar paulatinamente no Brasil durante este período, uma vez que o clima era de inconformismo com normas e valores estabelecidos socialmente, que passaram a ser contestados pelas mulheres. Embora as militantes tenham tido um importante papel na transformação desses valores, sendo consideradas como “transgressoras” não apenas por enfrentar o regime militar, mas por ser a antítese das mulheres dos “Anos Dourados”, ou seja, do modelo feminino esperado (Goldenberg, 1997; Vaitsman 1994; Sarti, 2004), naquela conjuntura específica não existia uma consciência ou convicção feminista que balizassem as ações em torno do lugar social das mulheres.

Sem dúvida, a inserção das militantes em um contexto político, a entrada na universidade, a maior circulação no espaço público além do contato com leituras feministas, influenciaram a formação crítica e o posicionamento das militantes em relação ao modelo burguês de vida, contudo, não se percebe a existência de uma consciência de que ao agir diferente do modelo esperado estivessem modificando as relações de gênero, e a condição feminina, não apenas de sua geração, mas das gerações seguintes.

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2 OBJETIVOS

2.1 Objetivo Geral

Compreender a experiência da maternidade para mulheres que conjugaram militância política e maternidade durante o período da Ditadura Militar no Brasil.

2.2 Objetivos Específicos

 Conhecer e analisar os reflexos da experiência da maternidade para a compreensão do lugar social da mulher militante no período.

 Conhecer e analisar a experiência da gravidez/maternidade e seus impactos nas relações sociais: familiares, companheiros afetivos, companheiros de militância e regime repressivo.

 Verificar e analisar a partir dos relatos, as possíveis continuidades e transformações nas concepções/práticas sobre maternidade de mulheres que, em alguma medida, romperam com o lugar social tradicional da mulher- mãe.

 Contribuir para a compreensão da construção social da dinâmica identitária de mulheres-mães inseridas no universo político do período.

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3 MÉTODO

3.1 O Contexto de Pesquisa

Esta pesquisa deriva e complementa um conjunto mais amplo de pesquisas que investigam as dimensões sociais da memória e da identidade social, relacionados ao período da Ditadura militar no Brasil, desenvolvidas no âmbito do grupo de pesquisa “Memórias, Representações e Práticas Sociais” (CNPq/Dep. Psicologia UFMG). A partir da inserção nestas pesquisas, surgiu o interesse em desenvolver este trabalho que objetiva a compreensão da vivência da maternidade para mulheres que militaram no período da Ditadura Militar no Brasil. Neste sentido, trata-se de pesquisa qualitativa de natureza exploratória, por sua pretensão em ampliar, a partir do relato de sujeitos, o foco de entendimento sobre temas como maternidade e militância feminina, em um contexto específico.

Ressalta-se que o trabalho de Gianordoli-Nascimento (2006) é base para o desenvolvimento das pesquisas acima mencionadas e do presente estudo. Por meio desses trabalhos captamos a necessidade de exploração do tema “maternidade e militância”, também mencionado em outros estudos sobre a temática da militância feminina, como por exemplo, os trabalhos de Colling (1997) e Ferreira (1996). Procuramos expandir a discussão em torno deste tópico, articulando-o especificamente a questões teóricas relacionadas à construção da identidade de gênero feminina (Carson, 1995) e da construção da memória social (Sá, 2007, 2009; Pollak, 1989, 1992; Nora, 1993; Motta, 2004; Perrot, 2005; Gondar, 2000) do período, a partir do relato dessas mulheres.

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Realmente precisava mergulhar neste mundo desconhecido por mim, que por meio do ensino da história na vida escolar, havia aprendido que no Brasil ocorreu um período em que presidentes militares governaram o país, denominado “Regime ou Revolução Militar”. E isso era tudo que sabia!

Entretanto, neste novo momento na vida acadêmica, ao participar de um grupo de pesquisa sobre um período histórico do país e me deparar com o cotidiano vivido durante o período da Ditadura Militar, me encontrei com o desconhecido e desejei saber mais, e ouvir daquelas que viveram aquele e naquele tempo, uma versão que não somente eu desconhecia. Nesse sentido, enquanto psicóloga, identifiquei nesse encontro uma dimensão antropológica que me foi explicitado por Romanelli (1998) “.... o entrevistado é um mediador entre o antropólogo e o desconhecido que ele procura decifrar” (p. 126).

A busca era por algo mais do que a história política do país. Relacionava-se às minhas inquietações iniciais de pesquisadora, em entender questões de gênero no tocante à ocupação de mulheres em espaços destinados sócio-historicamente para homens. Situava-se, entre outras questões, em como mulheres naquele contexto sócio-político, se constituíram militantes e mães em meio às atividades de militância. Tentar compreender o desconhecido não é tarefa fácil, mas parece estar no cerne da vida de um/a pesquisador/a!

Era uma estrangeira em terra desconhecida! Porém, “Essa exterioridade configurava-se como pressuposto de ordem metodológica fundamental para a manutenção do exercício do constante estranhamento.... deixando de lado.... prenoções [sic] .... valores .... posicionando-se de modo interrogativo diante da alteridade” (Romanelli, 1998, p. 121). A aproximação era necessária, mas o estranhamento não poderia faltar, pois nosso objetivo não era o esgotamento do assunto, mas a captação da vivência daquela experiência pelos sujeitos. Tratava-se de uma relação entre sujeitos.

Assim, foi necessário e fundamental entrar em um “túnel do tempo” e reportar-me aqueles tempos por meio de leituras de artigos e livros sobre o período, documentários e filmes que retratavam a trajetória de militantes e falavam sobre o país naquela conjuntura. Para tanto, vi inúmeras fotografias e pinturas de militantes mortos pela repressão, além das práticas e instrumentos de torturas. Tive acesso online a algumas revistas e jornais da época, escutei canções entoadas no período; li e reli depoimentos de militantes e militares, além das participações em eventos acadêmicos e sociais que discutiam a temática e me colocavam ao lado daqueles que partilhavam suas experiências.

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entrevistadas, aspectos que a literatura já me apontava devido inclusive ao fator geracional (Gianordoli-Nascimento, et al. 2012), referente à distância etária que me afasta por mais de 30 anos. Nunca vivenciei uma ditadura, não sou da “geração de 68”, nem tão pouco nasci durante o regime militar.

Ferreira (1996), Colling (1997) e Gianordoli-Nascimento (2006) relatam também em seus estudos, sobre a necessidade que sentiram de se aproximarem do contexto no qual as entrevistadas, isto é, as mulheres militantes, vivenciaram. Esta justaposição aparece como fator importante para que no contato com os sujeitos de pesquisa, este outro interpelado convidado a abrir as ‘caixinhas de si’, pudesse sentir que ali havia outro com quem era possível compartilhar. Por isso, concordamos que “a pesquisa é uma relação de troca e não um processo de apropriação do outro” (Romanelli, 1998, p. 127) e para o estabelecimento de partilhas, aproximar-se dos códigos culturais da época, comungar nomes, ter noção de lugares, ruas, acontecimentos políticos importantes, foi essencial neste contexto de pesquisa.

Triviños (2008) ressalta que o conhecimento do contexto do fenômeno investigado também é importante para a construção do roteiro de entrevistas, o que de fato contribuiu para estabelecer e complementar nosso instrumento de coleta de dados. Trindade, Menandro e Gianordoli-Nascimento (2007) dizem que “conhecer o universo mais amplo da experiência do sujeito possibilita as condições necessárias para que o sujeito participante se sinta compreendido ao mesmo tempo em que favorece a formulação de um conjunto de itens, como roteiro possível de uma entrevista” (p. 81).

Conforme aponta Minayo (2010), a pesquisa qualitativa propicia acesso ao universo simbólico, relacional, em que os sujeitos se articulam e constroem a realidade social. Sendo assim, compreendemos que a pesquisa de campo, começou antes da entrada em campo, propriamente, permitindo o descobrimento de elementos do universo estudado. Foi possível ainda, para mim, enquanto pesquisadora, e jovem-adulta de outra geração, construir uma memória de um tempo, que não possuía. De acordo com Sá (2007) a construção da memória histórica de um período, ocorre também por meio de material documental, além dos relatos orais e do compartilhamento de memórias pessoais e comuns. Assim, por meio do acesso a documentos, arquivos de depoimentos orais, documentários, filmes, entre outros materiais, foi possível certa familiarização com o contexto, tendo conhecido inúmeras expressões utilizadas por militantes; siglas de organizações políticas e departamentos policiais.

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pareciam vivas para mim; o que me possibilitou perceber/ter o sentimento de que também sou herdeira daquele tempo, compreendendo após estudos e reflexões atuais, que aquelas vivências têm total relação com o ser mulher/mãe/trabalhadora atual. Neste universo de pesquisa passado e o presente formam um amálgama, me permitindo perceber que os fatos “antigos” são atualizados, e que ontem não está descolado do hoje.

Fazer essa conexão foi importante para a compreensão de que investigar tal tema contribui, não somente para o entendimento do contexto histórico-social e das questões de gênero neste período, mas para o entendimento mais amplo de questões sociais atuais. Por isso, fazer esse retrospecto foi de suma importância para o entendimento de que este tema nos convoca não apenas por ser desconhecido ou acobertado, mas por ter gerado impactos e mudanças em nossa sociedade, sendo parte da realidade que vivemos.

3.2 Sujeitos Participantes

A amostra deste estudo foi composta por quatro (04) entrevistas realizadas com mulheres que participaram de organizações políticas clandestinas e militaram politicamente em oposição ao regime ditatorial durante o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985), e que nesta época, engravidaram, conceberam ou tiveram a gravidez interrompida, tendo elas, na atualidade, a média de 65 anos. As mulheres da amostra tiveram inserções políticas diversificadas, sendo que a idade de entrada na militância variou entre 15 e 20 anos. Todas passaram por experiência de clandestinidade, prisão e tortura, quando tinham entre 23 e 27 anos. Elas viveram períodos de clandestinidade antes e após as prisões, grávida ou com filhos pequenos. Seus partos foram realizados de forma clandestina em hospitais, ou durante a prisão, clandestinidade e o exílio. Viveram as perdas de seus bebês ou pelo afastamento obrigatório, ou pela morte prematura. Lutaram bravamente para que seus filhos se salvassem da morte, da exclusão ou da solidão. Mulheres que romperam com a ordem imposta ao seu gênero por viverem a maternidade descolada do matrimônio tradicional e apartadas de seus companheiros afetivos, não por escolha pessoal, mas por perseguições e desaparecimentos.

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entrevista se origina do banco de dados das pesquisas desenvolvidas pelo grupo de pesquisa do CNPq “Memória, representações e práticas sociais”, que integram as temáticas relacionadas à trajetória de militância de ex- militantes e de familiares de ex-presos políticos, mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar no Brasil. Este banco atualmente é composto por um número total de 23 entrevistas realizadas nos estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Pernambuco e Distrito Federal. Sendo que cinco (05) destas entrevistas, são consideradas “mistas”, por serem de mulheres que iniciaram suas militâncias no período ditatorial brasileiro nos estado do Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo e que também são/foram companheiras, filhas e irmãs de ex-presos (as) mortos ou desaparecidos políticos, e em seus relatos, fazem menção copiosa da militância de seus familiares e de suas próprias experiências como familiar de um desaparecido político. Assim, nos diferentes recortes de estudo, são identificadas ora como entrevistas de mulheres militantes, ora como de familiares de militantes.

Do montante de 23 entrevistas que conformam o banco de dados, selecionamos uma (01) de “mulher militante” que em sua trajetória relata aspectos relevantes sobre as experiências de militância e maternidade. A seleção desta entrevista específica deu-se após intensa leitura e identificação da presença abundante de elementos acerca do tema investigado neste trabalho. Embora outras também contemplassem tais aspectos, selecionamos aquela que no conjunto das entrevistas obtidas para esse trabalho trouxesse um aspecto diferencial, que neste caso é a maternidade no exílio. A partir do procedimento utilizado por Biasoli-Alves (2000) de utilização de entrevistas que compõem banco de dados de pesquisas anteriormente realizadas relacionadas à temática estudada, incorporamos o relato arquivado em nosso corpus de pesquisa, na íntegra.

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3.3 Procedimentos de coleta de dados

Este estudo contém entrevistas realizadas especificamente para a presente pesquisa e entrevista selecionada em um banco de dados. Apesar de termos feito o uso de apenas uma das entrevistas realizadas entre 2002 e 2012, estas outras entrevistas que compõem o banco de dados foram nosso ponto de partida e nos serviram de fonte para o desenvolvimento tanto do roteiro de entrevista como para os procedimentos de construção de unidades de significados para as narrativas. Ressalta-se que no banco de dados acessado existem outras entrevistas que tendo sido lidas e estudadas nos deram subsídios técnicos e teóricos para a realização da coleta. Foi de fundamental importância o contato com esses relatos para a preparação e ‘ambientação’ com o cenário e as experiências do período, além de ter sido um importante recurso didático para a aprendizagem técnica de condução e manejo de entrevistas como fonte de coleta de dados de pesquisa. Dessa forma, o corpus que compõe o banco de dados, contém vasto material que permite diferentes análises temáticas, assim como citado na experiência de Biasoli-Alves (2000), no uso de materiais armazenados em banco de dados.

Todos os detalhamentos em relação aos procedimentos de coletas de dados foram padronizados e se relacionam as entrevistas como um todo, já que foi seguido o mesmo procedimento metodológico. Para conseguirmos essa sintonia entre os dois momentos, os procedimentos de coleta de dados de Gianordoli-Nascimento (2012), foram profundamente estudados e seguidos como modelo metodológico, a fim de condensarmos aqui as experiências de coleta em períodos de tempo diferentes.

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participação foi encarada por elas como um aspecto positivo que colaborou para o consentimento em realizarmos este estudo. Todas concordaram em contribuir com sua participação considerando o tema a ser investigado algo ainda pouco explorado diante das inúmeras entrevistas e depoimentos que a maior parte delas, outrora fizeram.

Após estes contatos, e nos dias dos encontros propriamente ditos, criou-se um clima agradável de confiança e empatia, que facilitou nossa entrada em campo e criou as condições para que de fato a entrevista fosse um encontro entre pesquisador e pesquisado. Ainda que para Romanelli (1998), a empatia (criada anteriormente) não seja elemento essencial para uma pesquisa de qualidade, tendo em vista que a entrevista é um processo que ocorre entre sujeitos, “cujas posições sociais são construídas no momento e no decorrer da entrevista” (Romanelli, 1998, p. 129), para nós, o contato anterior ao momento da entrevista foi de suma importância, sendo a nosso ver o início dessa construção de um processo entre sujeitos. Aspecto salientado no processo de entrevista realizado por Gianordoli-Nascimento et al (2012) no período da realização da entrevista que compõem o banco de dados original.

O local de realização de todas as entrevistas foi definido pelas próprias mulheres, que escolheram como espaço, suas residências, tendo nos recebido em dia e horários definidos conforme a disponibilidade de cada uma. Algumas das mulheres entrevistadas tinham agendas com muitos compromissos marcados, porém, no dia de realização das entrevistas, seguindo a recomendação de horário proposto por elas, desmarcaram espontaneamente seus compromissos para dar continuidade ao relato que estavam nos prestando. Outras duas estiveram exiladas por longos anos em outros países, e nosso contato se deu próximo a chegada delas no Brasil. Assim, algumas guardavam o sotaque estrangeiro, o que não dificultou nosso entendimento, por ser apenas uma marca, em detrimento de expressões de reconstrução de vida e da identidade em um contexto que deixaram a contragosto. Outra entrevistada estava passando por recuperação de seu estado de saúde devido ao tratamento de um câncer, além de um forte resfriado, por isso, tomamos cuidados éticos e técnicos para que a entrevista fosse realizada até o ponto em que ela conseguisse ficar confortavelmente conosco. Esta foi a entrevista de menor duração em relação às outras, tendo seu conteúdo igual valor as das demais, sendo um relato de extrema importância na análise e construção deste estudo. Todas as entrevistadas foram informadas que a entrevista poderia ser interrompida a qualquer momento que desejassem, embora nenhuma tenha sido interrompida.

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formato digital MP3. Posteriormente foram transcritas e analisadas, preservando o sigilo das entrevistadas, conforme acordado no termo assinado pela entrevistadora e entrevistadas. Este material ficará armazenado no banco de dados do grupo de pesquisa “Memória, representações, e práticas sociais” sediado na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (FAFICH/UFMG), conforme informado as entrevistadas, e serão utilizadas somente para fins de pesquisa, mantendo o anonimato dos sujeitos.

Ressalta-se que o cuidado em relação ao sigilo e não divulgação dos nomes reais faz parte de nosso recorte metodológico, que busca a experiência do vivido, tratando de dimensões não apenas concernentes à vida pública, mas da dimensão pessoal e íntima, com conteúdos talvez nunca antes abordados e por isso, extrapolam a necessidade de divulgação.

As entrevistas tiveram duração de três a sete horas, sendo que a entrevista coletada em 2004 teve duração de doze horas. Todas foram realizadas em um só dia de encontro, tendo sido acordado, que caso fosse preciso, outros encontros aconteceriam. Conforme Triviños (2008), não há um limite de tempo pré-estabelecido para a realização das entrevistas semiestruturadas, sendo este um critério flexível a depender do objetivo da pesquisa, do assunto a ser tratado e da disponibilidade do informante. A realização de mais de um encontro também é usual, “não só com o intuito de obter o máximo de informações, mas também para avaliar as variações das respostas....” (Triviños, 2008, p.146).

Referências

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