A D E S M I T I Z A Ç Â O NA O B R A D E A . R I M B A U D
Adalbvtfo Lulo VICENTE*
E n c o n t r a m o s com freqüência, na o b r a poética
de A. Rimbaud ( 1 8 5 4 - 1 8 9 1 ) , e l e m e n t o s míticos. Po
rém, p o r t r a t a r - s e de uma o b r a poética e não n a r
r a t i v a , t a i s e l e m e n t o s a p a r e c e m d i s p e r s o s , m a n i
f e s t a n d o - s e na presença de p e r s o n a g e n s mitológ_i
c a s , na utilização de símbolos o u no tema da b u s
ca d a perfeição e da h a r m o n i a p e r d i d a s .
Se, p o r um l a d o , a o b r a de Rimbaud q u a s e
sempre c o n t r i b u i p a r a a r e t o m a d a do p e n s a m e n t o
mítico, p o r o u t r o , rompe com o t r a t a m e n t o l i t e
rário t r a d i c i o n a l que l h e é d a d o , p r o v o c a n d o a
"desmitização", como e x e m p l i f i c a r e m o s através
do s o n e t o "Vénus Anadyomène". De q u a l q u e r f o r m a ,
convém l e m b r a r q u e t a n t o " m i t i f i c a n d o " q u a n t o
"desmitifiçando", a o b r a de Rimbaud c o l o c a - s e no
p l a n o da r u p t u r a e d a r e v o l t a , q u e r em relação
ã s o c i e d a d e b u r g u e s a de s e u t e m p o , q u e r em r e l a
* A l u n o d o P r o g r a m a de Pós-Graduação e P r o f e s s o r
do D e p a r t a m e n t o de L e t r a s M o d e r n a s da F a c u l d a
ção às convenções literárias.
Num a r t i g o p u b l i c a d o p e l a r e v i s t a da U n i v e r
s i d a d e de B r u x e l a s , Marc E i g e l d i n g e r , ao t r a t a r
do m i t o num d o s poemas em p r o s a de Rimbaud
("Aube", incluído nas ILtumincULonA ) , a s s i m se
e x p r e s s a a r e s p e i t o da presença de e l e m e n t o s mí.
t i c o s na o b r a d e s t e a u t o r :
"A o b r a r i m b a l d i a n a c o l o c a - s e de m a n e i r a
p e r m a n e n t e , d o s Ptiemieii [/e\ò às llluminaX<.oni ,
sob o s i g n o do f o g o s o l a r ; e l a é g o v e r n a d a p e l a
presença s o b e r a n a d e s t e a s t r o , p e l a v o n t a d e de
r e i n t e g r a r o homem o u , ao menos, o p o e t a , no
'seu e s t a d o p r i m i t i v o de f i l h o do s o l ' , como c o n
dição da existência p r o j e t a d a na o r d e m do m i
t o . " ( 4 , p. 141)
D e s t a f o r m a , vários poemas de Rimbaud podem
s e r l i d o s "como uma experiência graças à q u a l o
p o e t a c o n s e g u e , p e l o menos p o r i n s t a n t e s , u l t r a
p a s s a r o s l i m i t e s do h a b i t u a l e da m o r t e , do e s
paço e do t e m p o , p a r a a c e d e r à dimensão mítica,
à ordem do a b s o l u t o e do d i v i n o . " ( 5 , p. 53)
É n a t u r a l que num p o e t a p a r a quem "La v r a i e
v i e e s t a b s e n t e " e que r e c u s a e n q u a d r a r - s e nos
m o l d e s da s o c i e d a d e b u r g u e s a da segunda m e t a d e
do século X I X , o tema da b u s c a do a b s o l u t o a p a r e
r i a s .
O p r i m e i r o poema a f a z e r referência explí
c i t a ao m i t o e n c o n t r a - s e na c a r t a de 24 de m a i o de 1 8 7 0 , endereçada a T h e o d o r e de B a n v i l l e . T r a
t a - s e do poema "Credo i n unam", que aparecerá
nas publicações p o s t e r i o r e s com o título " S o l e i l e t C h a i r " . Ao e n v i a r o poema a B a n v i l l e , Rimbaud
p r e t e n d i a fazê-lo p u b l i c a r na r e v i s t a PÜAUCLÒAV Contmponaln e t o r n a r - s e a s s i m um p o e t a p a r n a s i a n o . N e s t e poema, o eu-lírico, i n v o c a n d o a l g u
mas f i g u r a s mitológicas g r e g a s , e n t r e e l a s Vê n u s , l a m e n t a a p e r d a da " u n i d a d e p r i m i t i v a " , pa
r a um mundo em que "os mistérios estão m o r t o s " e
onde "nossa pálida razão nos e s c o n d e o i n f i n i . t o " . A influência p a r n a s i a n a n e s t e poema pode
ser n o t a d a através da " a l e g r i a de um n e o - p a g a n i s
mo t o d o de f o r m a s e c o r e s , é o êxtase d i a n t e de d e u s e s e t e r n a m e n t e j o v e n s e de d e u s e s s u n t u o s a
m e n t e b e l a s e n u a s " . ( 1 , p . 90)
M i r c e a E l i a d e , em Aòpectò du Mythe., a f i r m a
que "os m i t o s g r e g o s clássicos r e p r e s e n t a m um t r i u n f o da o b r a literária s o b r e a crença religió
s a " e que "nós conhecemos o m i t o em e s t a d o de do
c u m e n t o artístico e literário e não e n q u a n t o f o n t e , ou expressão, de uma experiência r e l i g i o s a
Romantismo, a s s i s t i m o s a um esforço de r e t o m a d a do p e n s a m e n t o mítico, numa t e n t a t i v a de r e i n t e
g r a r o homem no mundo do s a g r a d o , q u e r r e v i t a L i
zando m i t o s a n t i g o s , q u e r a d o t a n d o versões des_ p r e z a d a s p e l o mundo clássico o u v o l t a n d o - s e p a r a
os m i t o s p o p u l a r e s . E s t a nova r e t o m a d a do pensai
m e n t o mítico dá-se como f o r m a de r u p t u r a , de r e jeição ã s o c i e d a d e i n d u s t r i a l onde o "Deus do
O t i l " como d i z i a B a u d e l a i r e , nos a f a s t a da harmo
n i a p r i m i t i v a . Ao mesmo t e m p o , o novo t r a t a m e n t o dado ao m i t o a p a r t i r do R o m a n t i s m o , o r i e n t a - s e
c o n t r a o " h o r i z o n t e de e x p e c t a t i v a s " do l e i t o r a c o s t u m a d o ã l i t e r a t u r a clássica, p r o v o c a n d o o
e f e i t o de n o v i d a d e , mesmo q u a n d o se t r a t a de v e
l h o s m i t o s já c o n h e c i d o s .
Vemos a s s i m que a o b r a de Rimbaud p a r t i c i p a d e s t e esforço de "remitização", no s e n t i d o de
b u s c a de um mundo p e r f e i t o e harmônico. P o r ou
t r o l a d o , em poemas como "Vénus Anadyomène", o p o e t a p r o c u r a r o m p e r de m a n e i r a a b s o l u t a o t r a t a
m e n t o t r a d i c i o n a l do m i t o e com o c o n c e i t o clá_s
s i c o de b e l e z a . T a l poema chama atenção p o r q u e , através da deformação da r e a l i d a d e p e l o e x a g e r o
de r e a l i s m o , rompe com n o s s a s e x p e c t a t i v a s de
O título, "Vénus Anadyomène", r e f e r e - s e ao
m i t o de n a s c i m e n t o da d e u s a e s i g n i f i c a Vénus
s a i n d o d a s águas. T r a t a - s e de um s o n e t o d e s c r i , t i v o , e o título e v o c a a b e l e z a harmônica do qua
d r o de B o t i c e l l i "O n a s c i m e n t o de Vénus", que
também a r e p r e s e n t a s a i n d o d a s águas do m a r . Po rém a Vénus de Rimbaud emerge de uma v e l h a ba
n h e i r a v e r d e de z i n c o , emerge de uma m a n e i r a l e n t a e a p a r v a l h a d a , s e u s c a b e l o s são s e b o s o s , s e u
c o l o é c i n z a e g o r d o , s u a s o m o p l a t a s são l a r g a s ,
seu d o r s o c u r t o , p e r c e b e m - s e p l a c a s de g o r d u r a sob a p e l e , n o t a m - s e s o b r e s e u c o r p o s i n g u l a r i .
dades que é p r e c i s o v e r com l u p a , t o d o s e u c o r p o
se m o v i m e n t a e e l a e s t e n d e s u a s a n c a s l a r g a s , e x i b i n d o uma úlcera no ânus. E p a r a d a r um t o m
de i r o n i a ã descrição d e s s e s e r " h o r r i v e l m e n t e
b e l o " , Rimbaud c o l o c a s o b r e s e u s r i n s a i n s e r i , ção l a t i n a " C l a r a V e n u s " , a i l u s t r e Vénus.
Se, como e s c r e v e u V. C h k l o v s k i em s e u en
s a i o "A a r t e como p r o c e d i m e n t o " , "a imagem poéti. c a é um d o s m e i o s de c r i a r uma impressão máxi.
ma", o e x a g e r o d e f o r m a n t e , a i n t e n s i d a d e do
f e i o , vão c o n t r a a norma artística p r e d o m i n a n t e , s o b r e t u d o no período clássico, p r o v o c a n d o o l e i
t o r p a r a que a c r e s c e n t e ao s e u " h o r i z o n t e de
n i c a ; ao mesmo tempo q u e b r a n d o a r e g r a clássica
da diferenciação d o s níveis, segundo a q u a l "as
s u n t o s mitológicos" d e v e r i a m s e r t r a t a d o s num ní
v e l e l e v a d o e c o m e d i d o e que "o c o t i d i a n o e o
r e a l só p o d e r i a m t e r s e u l u g a r na l i t e r a t u r a no
campo de uma espécie estilística b a i x a ou média,
i s t o é, só de f o r m a g r o t e s c a m e n t e cômica" ( 2 ,
p. 486) .
É i n t e r e s s a n t e n o t a r como o tema de Vénus
a q u i , não se e n q u a d r a de f o r m a c o n v e n i e n t e numa
composição r e l a t i v a m e n t e e s t r e i t a e de tradição
clássica como o s o n e t o . Essa tensão e n t r e a r i _
g i d e z f o r m a l do s o n e t o em oposição ao s e u conteú
do, pode s e r n o t a d a sempre que Rimbaud u t i l i z a
e s s a composição poética, como se pode c o n s t a t a r
em "Ma Bohèrae", " O r a i s o n d u s o i r " , e t c . E n t r e t a n
t o , Rimbaud, na e s t e i r a de B a u d e l a i r e e d o s p a r
n a s i a n o s rompe com as b a r r e i r a s rígidas do sone
t o , i n s t r u m e n t o poético u t i l i z a d o p o r "inúmera
v e i s gerações i d i o t a s " segundo o próprio Rim
b a u d . Ao d e s l o c a r o hemistíquio do v e r s o a l e x a n
d r i n o , c o l o c a n d o p a u s a s em posições p o u c o
u s u a i s , ao e m p r e g a r o " e n j a m b e m e n t " , Rimbaud
c r i a um c o n f l i t o e n t r e m e t r o e s i n t a x e , v i o l a n
do a tendência ao p a r a l e l i s m o fono-semântico do
t a s , como "Vénus/anus", opondo um vocabulário
e r u d i t o e neológico a f o r m a s de l i n g u a g e m c o l o
q u i a l (a repetição da p a l a v r a " p u i s " , p o r exem
p i o ) e a t e r m o s c o n s i d e r a d o s de "mau g o s t o " , es
t e s o n e t o pode s e r e n c a r a d o como uma t e n t a t i v a
de r u p t u r a com a tradição também ao nível f o r
m a l .
A deformação g r o t e s c a através de i m a g e n s ex
p l o s i v a s que i n s i s t e m nas t r i v i a l i d a d e s e n a s de
f o r m i d a d e s , a p a r e c e m também em poemas como "Les
A s s i s " , " A c c r o u p i s s e m e n t " - , e t c . Em q u a s e t o d o s
e l e s a deformação p a r e c e r e c a i r s o b r e p e r s o n a
g e n s m a r c a d a s p e l o r e s p e i t o às l e i s e às c o n v e n
ções. A s s i m , em "Les A s s i s " , Rimbaud a t a c a a mes
q u i n h e z do b u r o c r a t a ; em " A c c r o u p i s s e m e n t " , um
r e p r e s e n t a n t e da i g r e j a e em Vénus Anadyomène",
o c o n c e i t o clássico de b e l e z a .
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