UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS
HUMANAS
DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA
COMPARADA
Felipe Bier
Formação e realismo: forma e história em
Sagarana
Tese apresentada ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras.
Orientadora: Profª. Drª. Ana Paula Pacheco
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
B576f
Bier, Felipe
Formação e realismo: forma e história em Sagarana / Felipe Bier ; orientadora Ana Paula Pacheco. - São Paulo, 2016.
261 f.
Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. Área de concentração: Teoria Literária e Literatura Comparada.
Agradecimentos
Agradeço ao corpo docente do Departamento de Teoria Literária e
Literatura Comparada por providenciar um ambiente de pesquisa e ensino
favorável à formação de pensamento crítico sobre a literatura: esta
dedicação, presente em todos os professores com quem tive a felicidade
de conviver durante os últimos quatro anos, tornou possível o
amadurecimento de pontos essenciais desta pesquisa. Suas críticas,
comentários e elogios, nos vários ambientes de discussão ainda presentes
na universidade, ajudaram-me a reunir as forças necessárias para terminar
este trabalho.
Devo muito também aos funcionários da Universidade de São
Paulo, em especial àqueles com quem trabalhei mais de perto, no
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. É justo dizer
que, sem seu esforço, nenhum trabalho acadêmico seria possível.
Ele também seria inviável sem o auxílio financeiro da CAPES, sou
grato à instituição por isso.
A Ana Paula Pacheco, agradeço pela orientação zelosa e exigente,
e sobretudo pelo diálogo intelectual franco e comprometido que foi
estabelecido nesta quase meia década de trocas de ideias e impressões.
Sua dedicação serve como testemunho da importância do papel de
orientação em qualquer trabalho crítico.
ambiente do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da
mesma universidade.
Aos amigos e família, desnecessário gastar muita tinta falando de
sua importância. A amizade e carinho, nestes casos, não só desafiaram a
solidão do ofício acadêmico como me mostraram que o pensamento não
se faz para si mesmo, mas para os outros. Obrigado por aturar todas as
dificuldades e privações que a escolha pela lida intelectual implica.
A Carolina Serra Azul, um agradecimento especial pela inspiração
e inúmeras trocas sobre o mesmo objeto. Espero continuá-las ainda por
muito tempo.
Resumo
Abstract
This dissertation focuses on the historical formation of the work of João Guimarães Rosa. With the emphasis on his debut book, Sagarana, from 1946, this text works with the following hypothesis: beyond technical and literary experimentation, present throughout Rosa’s body of work, there is in Sagarana a commitment to a historical object, the sertão. This dissertation accompanies the characterization of the object, born from the social tensions of the Brazilian First Republic. By following this object in Rosa’s work, we assume his insertion in the post-1930’s tradition, in which the autonomy of the object-sertão comes to the forefront of literary representation. We thus arrive at our second hypothesis: this autonomy and its importance to literature from 1930 to 1964 find an explanation in the very dynamics that propelled the country towards industrialization. The new needs that arose with the emerging process of industrialization highlight the fate of poor populations of the sertão, on which they depend without reservations. The third hypothesis presenting itself in this work is therefore that the serious commitment to the object-sertão offers a challenge to the formation theories brought about the same period: the rosian form, as much as the social theories concerned with the formation of the country, would have benefited themselves from the same momentum granted by the integrative efforts of the industry. But the object-sertão would pose as an other to these theories’ utopian projections, which impregnated these dynamics with the hope that the industrial processes would bring about an effective sense of citizenship to the country. This dissertation demonstrates how Rosa’s attention to this very specific object – the revolutions on the sertão’s social matter -, when formalized, bursts through the formative utopia, thus revealing the point of impossibility of a bourgeois construction in Brazil.
Índice
Introdução
8
1. O sertão como objeto
27
1.1 A emergência do sertão
35
1.2 O sertão como excrescência ideológica
43
1.3 O sertão como objeto fantasmático
48
2. A volta do marido pródigo
57
3. Sarapalha
97
4. Conversa de bois
135
5. A hora e a vez de Augusto Matraga
176
6. Formação e realismo 227
Introdução
Em se tratando de Guimarães Rosa, um dos muitos lugares comum a respeito
do pensamento sobre sua obra é de que ele nasceu de uma encruzilhada. A imagem,
tão utilizada pelo autor, tornou-se conceito crítico por empréstimo – como que um
presente do escritor para aqueles que quisessem pensar sua obra. É justo dizer, por
este motivo mesmo, que este trabalho nasceu da encruzilhada de uma encruzilhada,
ou de uma encruzilhada em segunda potência. Isto porque, depois de mais de meio
século de pesquisas sobre o autor, desassociar a voz da crítica e a voz do próprio
Guimarães Rosa – ou se preferirmos, a voz da forma –, tornou-se uma tarefa com
desafios próprios. A encruzilhada que deu origem a algumas das questões deste
trabalho nasceu de uma desconfiança: a saber, algo ocorreu com a crítica brasileira
que alçou Rosa ao patamar de maior nome da literatura nacional do último século.
Este incidente gerou uma crítica apaixonada e até militante, que produziu trabalhos
importantes no campo da linguagem; pesquisa genética; esforços eruditos que
Floresceu também uma safra considerável de críticas filosóficas e, dentro
destas, as de cunho metafísico que, em larga medida, responsabilizaram-se por armar
a encruzilhada a que nos referimos. A resposta à presumida grandeza de Rosa passa
pela extração simples de conceitos das obras rosianas, algo como uma filosofia
inerente à obra. Esta operação básica, a tradução de ideias de um campo a outro, da
filosofia à literatura, arma um resultado inesperado, que é o oposto de uma crítica
conceitual. Trata-se no fundo de uma impossibilidade crítica que fala a mesma língua
de nossa primeira encruzilhada: a de um trabalho antifilosófico e anticrítico perante
uma forma particularmente intrigante. A estrutura deste motivo interpretativo é
simples: o labor crítico resume-se nestes casos à analogia de ideias vinculadas pelo
texto a conceitos da filosofia. O crítico em si não produz conceitos através da obra de
Rosa pois sua tarefa interpretativa é, como dissemos, a tradução de conteúdos
ficcionais em linguagem filosófica. Neste caso, a crítica coloca-se de lado nesta
relação entre conceitos e ficção, apenas assegurando o trânsito entre uma instância e
outra. Ao se falar de um trabalho anticonceitual presume-se que os dois níveis
interpretativos – filosófico e literário – são autossuficientes e apenas comunicam seus
conteúdos. Ou seja, não há nada que o crítico possa fazer senão intermediar uma
relação que a princípio se basta em si e necessita apenas do trabalho de decifração.
A primeira encruzilhada – esta leitura anticonceitual – se coloca como questão
a esta outra encruzilhada crítica: por que a literatura de Rosa exerce tal efeito sobre
sua interpretação? A necessidade, essencial para este trabalho, de encarar essa
encruzilhada forma-se como ângulo privilegiado deste trabalho: quebrar este efeito de
apaixonamento significaria asseverar um princípio que mediasse as instâncias
atuantes na forma rosiana de modo a colocá-las todas em relação e, ao mesmo tempo,
pista de Antonio Pasta Júnior, que, ao final da década de 1990 e depois, sugeriu que
uma relação anti-conceitual da crítica frente a Rosa ligava-se em nível mais profundo
à maneira como a forma rosiana se apresenta: a saber, haveria uma associação entre
forma e crítica que, em sua própria negação de um elemento mediador, revelaria um
traço mais profundo da forma brasileira e, em específico, o nexo desta com a história
de nossa modernização1. Em outras palavras, o fato de a forma de Rosa parecer saltar sobre a história teria atraído um tipo de crítica que mimetizava o mesmo movimento;
o esforço contra-corrente, portanto, deveria passar, primeiro, pela análise do que é a
história em Guimarães Rosa e, segundo, por que esta se apresenta como não-mediada.
Muito foi feito neste sentido: o maior feito de autores como Wille Bolle e
outros talvez tenha sido estabelecer o debate histórico como tão necessário quanto o
debate da linguagem rosiana, sobretudo se pensarmos que ainda hoje é aceitável a
opinião de que autores como Guimarães Rosa nada tem com a história, esta sendo
apenas um ‘porém’ sobre o qual o autor soube pular e erigir sua obra monumental e
universal. Após duas décadas de discussão e muita tinta gasta a respeito, é possível
afirmar entretanto que aquela primeira encruzilhada continua a fazer vacilar o
conceito de história em Rosa. Isto porque a mesma crítica que afirmou a
inevitabilidade da matéria brasileira no autor, fazendo-a conversar com a tradição
literária do país, com correntes políticas e eventos históricos, hesita ao firmar a
historicidade específica de sua forma: isto é, a pergunta ‘qual é a formação histórica
da obra de Guimarães Rosa’ encontra respostas em algumas hipóteses; mas
importante é notar que a análise detalhada destes escritos revela, ainda, resquícios da
mesma estrutura da antiga crítica rosiana; ou seja, via de regra, o conceito de história
1
coloca-se ao lado de alguns outros e recebe o mesmo tratamento dos demais, não
necessariamente servindo à mediação entre forma e sociedade.
Tomemos de exemplo o comentário de Roncari sobre a relação de Grande
sertão: veredas e o getulismo. Grosso modo, o crítico afirma a vacilação da forma e,
mais especificamente, de Riobaldo como herói, relaciona-se à falta de pai. Trata-se de
uma assunção que encontra algum lastro na obra: mas, desta constatação, o crítico
salta à afirmação de uma nostalgia do pai autoritário que toma a nação pela mão e lhe
indica os caminhos2. A dupla historicidade de Grande sertão, com um pé na primeira república e nos anos 1950, é explicada então pela nostalgia da autoridade: na primeira
república, faria eco aos teóricos conservadores que ressentiam a debacle do império;
nos anos 1950, à ruína (ainda que questionável) do getulismo.
O exemplo serve apenas para mostrar como não há, de fato, debate histórico
neste caso. Há ainda a correspondência de traços ficcionais com eventos históricos.
Mas não há nenhuma construção crítica que permita uma entrada na obra rosiana
através da presumida hipótese da ausência paterna senão a mera analogia entre
conteúdos. Noutras palavras: a história não emerge como palco de disputas no qual o
conservadorismo, por exemplo, pudesse exprimir-se como forma. Ele está lá quase
como dado a ser apreendido pelo crítico erudito, que sabe decifrar os rastros de sua
presença a despeito da forma. Isto é, o argumento mimetiza o funcionamento da
chave metafísico-filosófica: a forma existe e tem as características que se mostram à
crítica. Mas sua existência é concebida em camadas, algumas delas criticáveis (como
a possível simpatia autoritária de Rosa). Mas presume-se uma camada mais profunda
da obra – a forma – impenetrável aos comentários críticos pois é entidade autônoma e,
portanto, historicamente inabalável.
O questionamento ao porquê deste impasse foi o motor principal desta
pesquisa. Mais especificamente, uma desconfiança de que a forma de Rosa, e
sobretudo o poder que exercia sobre a crítica, estavam atados historicamente. Ou seja,
junto com Pasta Júnior, podemos dizer que o que a forma recalca e lhe dá a aparência
de impenetrabilidade é a chave histórica que procuramos. Uma pista para esta chave
histórica residiria precisamente na cisão operada pela crítica que, como sintoma,
indicaria o que se procura suprimir: a saber, a relação de Rosa com a tradição e a
matéria histórica da primeira metade do século passado.
A personagem principal desta trama crítico-histórica foi Antonio Candido:
desde suas notas iniciais sobre Sagarana até o consagrado ensaio “O homem dos
avessos”, o crítico insistiu na importância do autor para a tradição brasileira e insistiu
em conceitos – como o de reversibilidade – que dessem conta da fenomenologia da
obra de Rosa e de sua relação com a história de seu século. Para um entendimento da
questão, é necessário desviarmo-nos à própria noção de tradição para Candido, que
em sua composição contém um nexo fundamental entre história, forma e crítica. Para
Candido nunca restou dúvida quanto ao pertencimento de Rosa ao que o próprio
crítico cunhou como ‘tradição da literatura formada’; isto é, não haveria uma instância
da forma pertencente a esta tradição que fosse inacessível à crítica. Todos os
elementos que ligavam Rosa ao regionalismo, mais explícitos, e ao modernismo e
realismo dos anos 1930, arrisco dizer, eram evidentes ao crítico e diziam respeito a
movimentos mais amplos da tradição. Cumpria a esta relação crítica/literatura uma
postura diferente do puro desvendamento: tratava-se, antes de tudo, de uma função
quase civilizatória, na qual deslindar os laços de pertencimento e superação da
tradição apontavam – sob a forma de conceitos críticos – possíveis caminhos para o
Note-se o caso de “O homem dos avessos”: o texto é sabidamente a fonte de
muitas das vertentes críticas futuras, mas é largamente conhecido pela tese que
catapultou a crítica universalista de Rosa: o Sertão é o Mundo. O caminho para a
conclusão, no entanto, não é nada linear: Candido equilibra a análise do Grande
sertão entre diversas frentes, a principal delas sendo a comparação com Os sertões.
Para além disso, há uma noção do que é o sertão como objeto literário; um objeto que
se revela pouco a pouco, à medida que o crítico acompanha as entradas e saídas do
objeto no mito e na história. A oscilação, por fim, acaba sendo o efeito principal do
ensaio, garantindo a força da descoberta de Candido, verdadeiramente conceitual: a
noção de reversibilidade.
Fala-se do acesso ao estatuto de conceito por um motivo que talvez tenha sido
obscurecido pelas muitas possibilidades de leituras que o ensaio permitiu; a razão de
sua existência é todavia simples: o constante deslizamento entre mito e história não é
um movimento em falso para Candido – não se trata, por exemplo, da saída da
verdade histórica e entrada em seu falseamento. As entradas e saídas forjam um pano
de fundo que ganha consistência em cada um destes movimentos críticos: a saber, à
medida que o ensaio avança, não há dúvida sobre o objeto que sustenta e une em
coerência o pertencimento duplo ao mito e à história, que é a própria ideia de Sertão
(explicitamente capitalizado, por motivos que explicaremos adiante).
Vejamos as linhas finais do argumento, que melhor explicita a questão:
Note-se a noção de reversibilidade atuando aqui como conceito que cose o
objeto que, para Candido, deve ser o Sertão. O deslizamento se dá sobre o objeto e
forja portanto o motivo literário de Grande sertão, que é esta função formal
construída por Rosa que possibilita este vai e volta entre a história e mito. Noutras
palavras, a forma de Rosa está indubitavelmente vinculada à história, que é aqui
representada pela ideia de sertão, mas constitui-se como um pulso que oscila do chão
social à invenção literária.
Este pulso, não obstante, ainda é sustentado pelo verdadeiro objeto da obra,
ainda o Sertão. Para Candido, o fato de o objeto comportar a entrada no mito não o
desabona e, ainda mais importante, não obriga o crítico a uma dupla mirada sobre a
obra – uma histórica, outra meramente literária. Este é o ponto que afasta a crítica de
Candido da grande maioria das leituras posteriores. É o ponto que nos interessa aqui
neste tentativa de reerigir uma leitura conceitual de Rosa. Afirma o crítico, em nota
final:
O argumento causa desconforto ao leitor contemporâneo pois não é evidente o que
Candido pretende expressar com esta recondução do mito ao fato. Sabe-se que o
crítico não se refere a um objeto mimético – o sertão – pois a forma comportaria em si
mesma um extravasamento desta própria mimese, muito embora mantenha relações
íntimas com ela. Candido com efeito aposta num efeito do objeto sobre o leitor, e este
seria efetivamente o fato a que se atribui um trânsito final da obra. Neste ponto
torna-se clara a distinção entre torna-sertão como objeto histórico e o Sertão como conceito
propriamente candidiano: isto porque o sertão de Rosa não sugere um estancamento
em sua oscilação, mas o conceito de Candido sugere que esta oscilação – tornada
objeto crítico – guarda uma oscilação de outro nível. A saber, entre a matéria
brasileira, a fantasia, e um ponto de fuga: a recondução ao fato que, neste caso, diz
respeito ao efeito da forma sobre o leitor.
Este efeito explica a fusão entre Sertão e Mundo, pois trata-se da interação
entre a realidade brasileira e uma consequência utópico-civilizatória. Nesta fusão
mesma está a chave de leitura de Candido, que marca o seu pertencimento à tradição
de pensadores da Formação do Brasil: uma tradição que, dos anos 1930 a 1960,
sustentou a possibilidade de conhecimento da matéria brasileira alinhada às
expectativas da integração do país a uma ordem civilizatória. Trataremos mais deste
assunto no capítulo a seguir: o que importa agora é notar que o fusionamento do
objeto Sertão só se sustenta se mantida esta projeção utópica, que afirma a
possibilidade de extravasamento da mimese do sertão em direção à formação de um
efeito estético real, como expressão da matéria brasileira num dialeto
não-particularista. Em poucas palavras, seria possível dizer que a grande estima que
Candido reserva a Guimarães Rosa reside neste poder da tradução da mimese em uma
considerações finais, da afecção do sertão rosiano sobre o cotidiano e sobre noções
fundamentais à própria noção ampla de mitologia da civilização humana: luz e trevas,
destino etc. Neste sentido é perceptível a profundidade do vínculo temático do ensaio
sobre Rosa, originalmente publicado em 1957, com o espírito da Formação da
literatura brasileira, que veio a público dois anos depois.
Decerto é impossível hoje seguir o argumento de Candido e escorar este ideal
civilizatório, como sustentou em artigo Ana Paula Pacheco tratando dos problemas da
equação ‘o Sertão é o Mundo’3. Daí, talvez, o elemento que a própria forma rosiana elide e o traço que promove a aliança histórica feita entre crítica e a obra de Rosa à
luz nossa não-formação. Desta aliança, o nascimento da encruzilhada crítica a que nos
referimos. A saber, no momento em que se atesta a não-formação do país, vista de
qualquer ângulo que se queira (inclusive o de Candido), a identificação Sertão =
Mundo passa a soar como um ‘tampão’ explicativo; neste ponto, a vibração do
conceito de Candido perde força. As saídas para solucionar a claudicância da
armadura candidiana nas correntes críticas que se alimentaram de seus achados
passam todas, acredito, pela repressão do fusionamento entre forma e civilização
proposto por Candido. Isto é, de um lado tem-se a crítica que estanca a vibração da
forma rosiana ao reprimir seu vínculo com a história, mantendo somente a parte do
argumento que diz respeito à forma (como entidade autônoma) e sua relação com seus
efeitos humanistas, agora pensados não mais como formas civilizatórias, mas
simplesmente como pertencimento à cultura ocidental (sob as vestes da filosofia, da
tradição literária, religião etc.).
Do outro lado há a crítica histórica, que, não necessariamente negando os
vínculos de Rosa ao cânone (em muitos casos somente substitui a metafísica pela
3
filosofia política, a psicanálise etc.), ainda firma o pé sobre a relação entre as
particularidades do contexto brasileiro e a forma. Esta relação todavia apega-se a um
estranho legado do ensaio de Candido: a saber, se o extravasamento da mimese no
mito é um dado formal, e se este mito mostrou-se uma inverdade histórica, a forma
rosiana deve necessariamente ser considerada cindida. Isto é: há uma parte dela que
diz respeito à história – aos arranjos políticos, jagunços, coronelismo –, mas a
instância do mito atravessa todas estas camadas da forma de modo a evidenciar onde
a história falta e onde a invenção literária predomina como um salto sobre o vazio
histórico. Assim, como afirmamos acima, passa-se a considerar que há duas
alternativas na análise histórica de Rosa: por um lado, pode-se supor que o núcleo
duro da invenção literária é inacessível historicamente e diz respeito ao gênio de
Guimarães Rosa. Em outra opção, comportada dentro desta matriz crítica, pode-se
presumir que esta negatividade do mito é também um dado da mimese: neste caso,
uma mimese da interrupção, ou da não-formação do país que reclama por sua vez a
invenção literária como salto sobre a história.
Em vista dos problemas com o conceito de história nestas interpretações, os
apontamentos de Pacheco, que atingem os problemas da imediaticidade da equação
Sertão = Mundo, parecem versar sobre a necessidade de uma interpretação que atinja
também a identidade que funda esta equação. Esta crítica, ao mesmo tempo em que
rejeita os espólios humanistas do texto de Candido, testa os limites de sua relação com
a história: ou seja, a pergunta que é feita à forma torna-se ‘se não é possível
sustentá-la sobre uma força humanista genérica na mesma medida em que não se pode admitir
o mito dentro de uma utopia civilizatória, do que se trata afinal?’.
Ainda que de maneira não inteiramente consciente, este teste da história – ou o
falar do limite histórico da mimese do sertão, bem como do entendimento do mito
dentro desta mesma mimese. Esta visada antiutópica contra Candido acaba por clamar
por uma história da não-formação do Brasil em sua relação com a civilização.
Consequentemente, ao chamar a atenção para a classe de dependentes pobres do
sertão – objetos principais da mitificação – como aspecto da mimese que não
comporta o trânsito à invenção, Pacheco acaba investindo sobre a necessidade de uma
reinterpretação do sertão como objeto em face da ideia de civilização. A revisitação
do próprio fusionamento proposto por Candido pode revelar algo que, para o crítico,
parecia ser uma consequência do próprio tratamento do sertão como objeto, mas que
as décadas seguintes trataram de enterrar: a saber, a consciência de que o sertão não
era um objeto simples e que, em sua própria ebulição social, cosia-se uma relação
com a civilização. O teste histórico passa a figurar, portanto, não só como um teste à
mimese de Rosa, mas um teste também a esta relação.
A diferença está nesta afirmação: se por um lado muitos críticos tomaram a
não-formação como dado, quase como expressão de uma inadequação natural do
Brasil aos padrões civilizatórios, a asserção de uma história da não-formação oferece
uma mudança de perspectiva sobre a obra de Rosa. Dentro desta nova perspectiva, é
possível que o fusionamento pretendido por Candido seja em verdade o maior achado
de seu texto: a assunção de uma proposta simples, que é a de que a mimese do sertão
guarda uma relação conturbada com a ideia de civilização.
Esta crítica necessária ao ensaio de Candido nos lhe obriga um retorno; um
recuo à própria posição de Candido como crítico é peça fundamental para o
enquadramento das questões desta pesquisa e para a reafirmação de uma leitura
conceitual e histórica de Guimarães Rosa. Isto porque um questionamento às
algum motivo. Como já propusemos, seu funcionamento advém de sua força
conceitual, a que neste momento devemos atribuir uma força histórica. A saber, o
trânsito da mimese à utopia deve ser subsidiado por um empuxo histórico que dá
dinâmica ao conceito e apoia o vaivém da reversibilidade. A coisa se dá, no ensaio de
Candido, como se a mimese do sertão permitisse o deslizamento na utopia: como se a
apreensão do sertão como objeto literário estivesse ligada ao mesmo movimento
histórico que sustenta a própria possibilidade de uma utopia formativa.
Este é, para esta tese, o momento em que se sai da encruzilhada crítica que
assistimos se armar nas décadas que seguem o ensaio de Candido: um posicionamento
interpretativo que viu o fracasso histórico da utopia candidiana, mas ainda assim
manteve intacto o esqueleto de seu argumento, sem questionar de onde vinha sua real
força. Desejo propor como hipótese, portanto, o seguinte movimento: o
reconhecimento de que a utopia formativa não pode ser usada como artifício crítico;
mas que esta reclama uma interpretação a contrapelo. Isto é: a compreensão de onde
vem este empuxo utópico pode, a um só tempo, mostrar aspectos da mimese rosiana,
percebida por Candido, e também revelar onde a tese candidiana falha: a saber, em
sua proposta civilizatória. Com efeito, desejo manter a ideia básica de Candido – de
que há uma relação entre a mimese do sertão e a civilização – mas que esta se dá em
negativo, de tal modo que o deslizamento da mimese no mito não permita um
caminho à civilização, mas a seu contrário, ao seu dorso negativo.
Existe, no “Homem dos avessos”, e mais ainda em “Jagunços mineiros de
Cláudio a Guimarães Rosa”, a clara consciência do crítico de que o sertão não era um
‘achado’ da literatura: a saber, um objeto que sempre esteve lá, presente em nossa
matéria social, à espera de representação. Candido mostra a luta e as dificuldades da
a uma raiz euclidiana, no “Homem dos avessos”, o crítico também revela uma linha
de consistência nos experimentos de Rosa ligada a uma tradição específica. O
reconhecimento de uma tradição aponta para problemas especificamente literários – o
posicionamento do narrador ante o objeto, por exemplo, parecia crucial a Candido.
Mas ao se falar em tradição, sobretudo com Candido, fala-se também do estatuto
social de um objeto literário. Isto é, remete-se inevitavelmente a uma matéria social
que, de Euclides da Cunha a Guimarães Rosa, tornou-se inevitável à literatura que se
preocupava em dar forma a um assunto brasileiro. Vemos aqui novamente a ligação
com os desejos formativos, e neste ponto podemos arriscar a hipótese – a ser
trabalhada na tese – de que a força do “Homem dos avessos” advém da consciência de
que o sertão era um objeto instável – tanto literariamente quanto socialmente. Mais do
que isto – e aqui vê-se a raiz da utopia candidiana –, ao destino do sertão vinculava-se
uma expectativa mais ampla sobre a estabilização do objeto.
Trocando em miúdos, subjaz na armadura crítica de Candido a ideia de que a
formalização rosiana do objeto significa sua superação, aqui talvez entendida em
termos de uma dialética histórica. A estabilidade do conceito de Candido é garantida
por estes dois polos que se conectam em seu esquema interpretativo: a mimese de um
objeto ‘selvagem’ e sua resolução formal apontam para uma possível resolução
histórica do problema do sertão. Esta resolução, aparentemente, é o que catapultaria a
possibilidade da utopia ‘à brasileira’: a saber, um processo de integração que não
recalcasse o sertão, mas que o absorvesse na chave de um processo civilizatório
heterônomo. A constituição de uma civilização heterônoma é o tutano da utopia de
Candido, e este é o ponto que mais merece atenção nesta reinterpretação de nossa
Com efeito, propõe-se que Candido estava certo quanto à importância do
objeto sertão e que, portanto, o empuxo histórico que o leva à sua conceituação é real.
Também se supõe que Candido acerta ao considerar que Rosa dá um fecho a esta
tradição, o que indica alguma estabilização do sertão como matéria social. Todavia,
no momento em que rejeitamos a solução candidiana (ou formativa), esta leitura a
contrapelo reincide sobre a própria mimese rosiana. A coisa se dá nos seguintes
termos: o comprometimento com a mimese histórica do sertão envolve uma
ambiguidade que não escapou a Candido; trata-se de uma ambiguidade quanto aos
processos de integração do país sob a indústria que de fato liga-se às projeções
formativas, mas que ao mesmo tempo as trai. Dito de modo simples, a estabilização
do sertão como matéria social diz respeito à integração do país, mas não da maneira
como Candido a imaginou. Neste sentido, o aspecto surpreendente da forma rosiana é
a habitação dentro e fora da integração civilizatória do país: dentro, pois a ebulição do
sertão concerna às décadas de rápida industrialização; fora, porque o sertão forma-se
como objeto ao ser rasgado por este processo de integração. O que a mimese mostra,
portanto, não é tanto a integração em si, mas seu avesso: o ponto de corte em que
nenhuma utopia pode se formar e onde o mito se mostra como as marcas, sobre a
forma, da matéria social em revolução.
Com isso afirmamos com Candido que os traços fundamentais da obra de
Rosa advêm deste único gesto: a apreensão do sertão enquanto parte do processo de
integração do país. Contra Candido, porém, afirma-se que o outro que habita a forma
rosiana não reside numa projeção utópica, mas na mimese em si e nas consequências
que ela lega à forma: o outro, neste caso, seria o próprio corte na noção de civilização.
O aspecto diabólico desta forma, diz Candido, surge “como acicate permanente,
demoníaca, no entanto, não se apresenta aqui como quis o crítico: o ponto em que o
real encontra a invenção, esta última entendida como sugestão de uma integração
civilizatória para além da civilização, como queria a utopia formativa. O diabo
revolvendo a forma não sugere nenhuma propulsão utópica porque é ela mesma o
dorso da civilização; um ponto que se liga a ela, mas vista da perspectiva de seu corte.
Esta pesquisa propõe portanto este esforço metacrítico não porque ele seja, de
fato, nosso objeto. Mas porque a proposta de uma interpretação histórica e conceitual
da obra de Rosa contra a noção de civilização nos leva a crer que os impasses da
crítica se impõem quase como sintoma. Neste caso, a manutenção do trânsito
proposto por Candido, da forma rosiana à civilização, parece ter restado no corpo da
crítica do autor como objeto escondido; às vezes como pulo ao universal; às vezes
como ressentimento pela não-formação. Do ângulo que se olhe, é necessário reafirmar
este objeto recalcado para que, enfim, se dê um passo para além da utopia formativa.
***
Em face do que se discutiu até aqui, é importante dizer algumas palavras
sobre as intenções desta tese. Cumpre notar que o objetivo deste trabalho nunca foi o
de escrutinar uma obra específica de Guimarães Rosa, mas o de propor uma mudança
de perspectiva interpretativa sobre sua narrativa como um todo: a saber, uma leitura
conceitual e histórica de sua forma. A proposta, é claro, é ambiciosa demais para
caber numa tese. Inicialmente, a intenção era abarcar três de suas obras – Sagarana,
Grande sertão: veredas, Primeiras estórias – com o intuito de mostrar um empuxo
único, porém mutante, nesta apreensão do sertão como objeto. O projeto mostrou-se
impossibilidade adveio da própria necessidade de mergulhar mais fundo numa
interpretação histórica que abarcasse o sertão nesta chave exposta acima – pertencente
aos processos de integração industrial do país, mas como um fantasma destes
mesmos. Importante dizer que muitos dos esforços desta pesquisa concentram-se na
face literária deste problema: a saber, como adequar os achados sobre a matéria social
a uma teoria do romance/realismo que não operasse verdadeiros desrespeitos à
configuração da obra de Rosa. Havia, de minha parte, uma insistência em sustentar
este ponto: a ficção de Rosa deve encontrar expressão teórica nesta tradição do
pensamento sobre o romance burguês. A relutância – muito acertada, diga-se – de
minha orientadora em aceitar esta proposição forçou-me à crítica das próprias teorias
do realismo, que aparece no capítulo final desta tese. Este movimento aproximou-me
também da crítica de Candido, sobretudo da Formação da literatura brasileira, onde
percebi inquietações vizinhas às deste texto. Com efeito, alinho-me a Candido quando
se trata da necessidade de revisão destas teorias frente à literatura brasileira; mais do
que isto, acredito haver no texto de Candido a suposição de que conceitos devem ser
criados e lapidados neste confronto com obras que desafiam a produção teórica
europeia sobre o realismo. Penso não se tratar de uma aposta no ‘exotismo’ de nossa
literatura, mas da necessidade de se aprofundarem as pesquisas sobre a relação entre
capitalismo e forma literária.
Por último, gostaria de tratar da escolha de Sagarana como objeto principal de
estudo. Pesou na escolha o surpreendente fato de o livro ter recebido atenção crítica
esparsa se comparado ao Grande sertão. Ainda mais escassas foram as tentativas de
interpretação da obra como um todo: as novelas, em muitos casos, foram analisadas
em função de um eixo temático, ou simplesmente serviram de apoio para leituras de
de novelas como “A hora e a vez de Augusto Matraga”, talvez o texto mais estudado
do livro. O desenrolar das análises das novelas do livro mostrará a tentativa de
unificar as leituras das novelas em torno de um interesse: o de demonstrar a gênese
daquilo que consideramos as linhas fortes da forma rosiana; isto é, as leituras estão
submetidas à ideia de que estas linhas apreendem um objeto social específico, que é o
sertão.
Como em muitos escritos de Rosa, não é muito fácil determinar o período
histórico em que as estórias se passam; felizmente – e graças a esforços de críticos
como Luiz Roncari e Nildo Benedetti – é possível identificar referências que as
localizam, em sua maioria, no período da primeira república. Este dado é importante,
por motivos que ficarão claros no capítulo seguinte: podemos adiantar, no entanto,
que é nas décadas que compreendem este ciclo político-econômico que o sertão
começa a emergir com força como objeto ao pensamento político, sociológico e,
claro, à literatura. A proximidade da escrita de Sagarana ao período em questão4 interessa por motivos óbvios. Mas é importante delinear que, desde o início, a forma
de Rosa constitui-se numa dupla temporalidade (que, em Grande sertão: veredas
seria explorada com grande efeito): a saber, os anos pré e pós getulismo. Considera-se
que o interesse de Rosa pela primeira república não seja fortuito: o enquadramento
das narrativas neste período guia grande parte das temáticas trabalhadas pelo autor, do
jaguncismo ao coronelismo. Mas o arranjo final desta forma, em nossa opinião, só
pode ter lugar no ciclo que sucede a primeira república: este é o momento em que o
sertão se desembrenha de uma acirrada disputa civilizatório-ideológica e emerge
como objeto autônomo.
4
Esta emersão enquanto autonomia do objeto constitui, a um só tempo, o maior
achado e maior dilema crítico que esta perspectiva interpretativa oferece. Isto porque
a emersão não necessariamente significa uma superação do sertão, mas sua contínua
compressão social sob os novos arranjos industriais. Esta compressão é percebida, nas
narrativas, como forças que colocam-se para além do conteúdo imediato das novelas,
mostrando-se sobretudo no vacilante posicionamento dos narradores e na força de
totalização a que as narrativas acedem através destas estratégias narrativas. A
autonomia do objeto sertão mostra-se portanto como a possibilidade de vislumbrar os
nexos do sertão da primeira república a processos de totalização, ligados às dinâmicas
capitalistas das décadas seguintes. De modo mais simples, poder-se-ia dizer que a
maior prova da dupla temporalidade da obra de Rosa reside em uma de suas
características principais: a de fazer o mundo da primeira república esparramar-se
para além de suas fronteiras históricas. Esperamos mostrar que este efeito de distorção
– ou a famosa tópica do mito – nasce da perspectiva adotada pela forma: um
compromisso profundo com o sertão como objeto, colocado por sua vez sob a esteira
de integração do país via industrialização. O sertão serve portanto como objeto e
agente deste processo; funciona como suporte a ele, mas por ele é, ao mesmo tempo,
destruído. Daí sua ambiguidade como objeto: como lâmina e corte; autônomo e
subjugado.
Neste sentido, procurar-se-á construir uma análise que é fiel aos textos
escolhidos, mas que se esforça em expandir suas leituras para além de Sagarana e em
direção a este entendimento mais amplo da forma de Rosa. Esta expansão, no entanto,
não almeja sugerir que os textos de Sagarana somente podem ser compreendidos
criticamente à luz de outros textos ‘maiores’, como Grande sertão. Em verdade,
compreensível se as linhas de força que atuam na obra forem reconhecidas em seu
caráter diverso, destoante e por vezes até truncado. Reconhecer na forma rosiana o
espaço aberto a estas quebras, recuos; sulcos e vazios de sentido é um importante
passo crítico, pois demonstra os difíceis caminhos da forma em seu comprometimento
com o objeto sertão, suas ambiguidades e dilemas; e Sagarana, em toda sua
diversidade de estratégias narrativas, temas e resultados, mostra-se mais uma vez um
objeto privilegiado para este projeto.
Ao final do trajeto, esperamos que o leitor tenha clareza de uma unidade
possível da obra sob esta perspectiva, a despeito da escolha que fizemos das novelas
cujo tratamento oferece melhores entradas à temática proposta. Resultado ainda mais
feliz será obtido se esta leitura inspirar a possibilidade de reinterpretação de pontos
importantes de uma obra que, não obstante o volume de atenção que recebeu, ainda
pode instigar uma produção conceitual importante para o pensamento da tradição
O sertão como objeto
Em 1979 vinha a público a comunicação escrita por Antonio Candido “O
papel do Brasil na nova narrativa” na ocasião do encontro que delineava as
características marcantes da ficção latino-americana. De maneira significativa, este
texto chegou até nós em sua versão definitiva, no livro A educação pela noite5, com a supressão da primeira parte do título. Chamado apenas de “A nova narrativa”, o papel
do Brasil pode ter sido elidido apenas por questão editorial – afinal, ao contrário do
encontro acadêmico para o qual o texto foi produzido, a coletânea de ensaios
direcionava-se majoritariamente ao público brasileiro. Mas não é difícil pensar em
outras razões para o ocorrido. É possível cogitar que, na ocasião da leitura da
comunicação, a dimensão comparativa entre as literaturas latino-americanas de língua
espanhola, com autores e traços característicos e em grande destaque na época,
exigisse o realce das particularidades do único representante de língua portuguesa no
continente. Curiosamente, no entanto, Candido aponta para as semelhanças com o
5
contexto hispano-falante apenas como limite de sua exposição: o aporte histórico,
menos do que evidenciar a história comum, caminha pelo trilho da diferença,
almejando com isto tornar claro o ponto de vista brasileiro enquanto suporte para a
comparação.
O destaque da contribuição do Brasil à nova narrativa é pois menos técnico e
tem a ver com um projeto mais ambicioso de representação da história literária. A
história das nossas letras, descrita por Candido, obedece ao conhecido ritmo de seu
empenho6 na apreensão de um objeto brasileiro. Isto é, a apreciação das obras toma a perspectiva do ponto de condensação de um sistema que lutou para a consolidação de
uma tradição. A análise do sentido desta história de ganhos e conquistas no terreno
formal é portanto o que interessa a Candido. Ressoando trabalhos mais importantes do
crítico, “A nova narrativa” abreviadamente posiciona o objeto de análise de sorte a
ressaltar o árduo processo de sedimentação formal brasileiro.
Entretanto as inserções críticas do ensaio em questão têm de enfrentar uma
instabilidade. Como se disse, o resultado imediato da leitura de “A nova narrativa” é
de que se fala de uma perspectiva brasileira na literatura. Mas com isso contrasta o
carregado efeito de dispersão ressaltado por Candido como traço principal da nova
literatura e que torna ‘o papel do Brasil’ um significante vacilante. Isto é, muito
6
embora o crítico demonstre conhecer a fundo a produção contemporânea à escrita da
comunicação, o texto culmina num sentimento de impossibilidade de agrupar tais
tendências em torno de uma linha de sentido que torne palpável uma tradição
brasileira. Como afirma o crítico em seu último parágrafo,
na literatura brasileira atual há uma circunstância que faz refletir: a ficção procurou de tantos modos sair das suas normas, assimilar outros recursos, fazer pactos com outras artes e meios, que nós acabamos considerando como obras ficcionalmente mais bem realizadas e satisfatórias algumas que foram elaboradas sem preocupação de inovar, sem vinco de escola, sem compromisso com a moda; inclusive uma que não é ficcional. Seria um acaso? Ou seria um aviso? Eu não saberia nem ousaria dizer. Apenas verifico uma coisa que é pelo menos intrigante e estimula a investigação crítica. (CANDIDO, 2006a, p.260).
A perda do fio da tradição talvez seja verdadeira, mas a timidez quanto a uma
hipótese deve ter seu componente retórico considerado. Isto porque a movimentação
do crítico em torno deste enigma – a tradição se constitui, mas depois se dispersa – se
mobiliza em torno da ideia de formação como perspectiva necessária para se
compreender o acúmulo formal brasileiro, mas ao mesmo tempo perspectiva
impossível, já que se fala de nossa tradição do ponto de vista de seu corte. Isto, claro,
encontra um lastro histórico específico, tornado evidente pelo próprio autor:
transformador que teve como eixo os movimentos estudantis de 1968 e desfechou num anticonvencionalismo que ainda hoje orienta a produção cultural, [...] a busca entre patética e desvairada de uma situação de catch-as-catch-can em atmosfera de terra de ninguém (Idem, p.252, primeiro e terceiros grifos meus).
O papel do Brasil na cultura pós-golpe, percebe-se, se caracteriza pela negação de um
padrão tradicional. Mais do que uma simples guinada estilística, o argumento de
Candido aponta para a desestruturação do suporte que, em primeiro lugar, tornava
possível o agrupamento da tradição em torno de alguns objetos.
Se, como diz Paulo Arantes sobre o trabalho de Candido, existe no conceito de
formação um entrelaçamento entre obra, ideal e nó social objetivo7, o período militar dispõe em novo arranjo tais elementos, minando a tessitura que os mantinha unidos
em sistema. Deve-se supor que o esforço deliberado do governo militar em desbaratar
as correntes cultural e politicamente críticas ao regime tenha cooperado para o
processo descrito por Candido. Mas mais importante é perceber que o golpe age em
tensões produtivas que se saturavam havia pelo menos trinta anos na démarche
político-econômica do país. Neste sentido, o período inaugurado pelo regime militar
fecha um ciclo de industrialização iniciado em 1930 e, com isto, se dissermos com
Arantes, faz vacilar o sentido da formação. A ideia, tão presente nos escritos
brasileiros pós-1930, parece perder força após o golpe, levantando a suspeita de que a
noção de formação fosse substancialmente animada pelo deslocamento do imaginário
sobre o país: de produtor agrícola, passa-se às perspectivas abertas pela
industrialização.
A falência de um traço tradicional gera um curioso efeito de realce de um
período da história brasileira, pois o caminho conceitual necessário para expor as
7
vicissitudes de uma literatura de difícil acumulação formal se choca, com um golpe,
com a constatação de que este processo de acumulação respondia a dinâmicas
históricas que podiam ser atacadas e, por fim, submetidas ao jugo de uma ordem em
que empenho e cultura caminhassem apartados. A morte da tradição leva consigo a
utopia de integração do país através da indústria; mas também promove um olhar
crítico aos processos sociais que permitiam a própria sustentação de tal utopia.
Este é o traço que distancia o conceito candidiano dos demais representantes
da tradição formativa do pensamento brasileiro. De modo geral, num espectro que
alcançava de Gilberto Freyre a Sérgio Buarque de Holanda, de Caio Prado Jr. a Celso
Furtado, todos utilizavam a ideia de formação como articulação entre um
conhecimento do Brasil real e uma projeção de superação de entraves políticos e
sociais, que possibilitaria a conciliação do que chamaremos de ‘uma consciência das
disparidades sociais e um desejo de integração do país’. É certo que o telos deste
processo variou entre um autor e outro: mas, não obstante a diferença de posições, o
importante é notar que, entre a apreensão do Brasil real e este telos político, se coloca
uma ideia de integração e movimento histórico que, no fundo, acaba conformando o
trabalho de cada um dos autores: ou seja, a visualização desta projeção de sentido
funciona como farol para o olhar sobre o passado e presente. O caso de Candido, no
entanto, é substancialmente diferente8.
Isto porque, entre objeto e ideal se interpõe a forma. Deste modo, a relação
entre história e sentido, pulsante nos outros autores, fica em Candido condicionada à
relação estabelecida pela própria objetividade da obra literária. A atenção aos
procedimentos nada usuais de nossa produção em sua relação com a história brasileira
8
gera já na Formação da literatura brasileira9 uma plataforma de análise que põe sobre a mesa o problema do realismo em contextos heterodoxos. Isto porque o
processo de aparição do objeto brasileiro, mostrou Candido, depende de um equilíbrio
frágil entre o empenho de uma elite no conhecimento do país e a aparição do objeto
brasileiro capaz de atravessar a voz de classe de onde surge a narrativa. Deste modo,
pode-se afirmar que a ambição do crítico na Formação é observar os momentos em
que a forma literária encampa os processos históricos reais do país através das
rachaduras presentes nas ideologias de nação.
A noção de empenho em Candido portanto carrega um sentido ambíguo: é por
um lado o impulso que inclina parte das elites dirigentes do país em direção ao
conhecimento sobre o Brasil e sua integração à tradição ocidental de pensamento e
artes. Mas por outro, o mesmo empenho acaba por constituir uma camada ideológica
que se interpõe entre a forma literária e conteúdos históricos. A ideia de formação em
Candido nasce assim com um duplo desígnio: por um lado, constitui-se como estudo
histórico que mira no caminhar da forma sobre o fio tensionado entre empenho e
objeto. Deste modo, compõe-se como uma história da literatura brasileira. Mas ao
mesmo tempo, ao pôr-se uma questão formal, joga-se luz precisamente sobre o objeto
heterônomo que escapa ao arranjo sociológico entre história e ideologia e dá a ver
uma forma em contato direto com conteúdos históricos desviantes – daí, por exemplo,
a insistente volta a obras como Memórias de um sargento de milícias.
A atenção à forma heterônoma, que escapa à ideologia, revela a importância
da noção de forma na teoria de Candido: a crença portanto na objetividade da obra
literária leva o crítico a cunhar algo como um duplo conceito de formação: um
positivo, no qual se veem os nexos sociológicos estabelecidos entre classe dominante,
9
ideologia e sociedade; e outro negativo. Esta acepção negativa de formação aposta na
estrutura da forma como o elemento de análise que expõe os processos sociais e
revela a crise ideológica. Deste lugar negativo, a própria forma e sua objetividade
tratam de refratar as ligações utópicas que lhes são sugeridas – em alguns casos pelo
próprio Candido, que não escapou de uma utopia formativa própria. O importante
neste caso é notar que o arranjo analítico que o crítico arma lega à noção de forma
esta negatividade, que chama ao proscênio da interpretação precisamente o nó social
objetivo que a escora.
Este traço da obra candidiana por si só mereceria uma análise cuidadosa e
independente. Mas no que tange ao nosso interesse imediato cumpre notar que o
movimento crítico do autor é o alçamento dos problemas literários à categoria de
objeto, que corresponde ao momento em que o nó social objetivo é formalizado: a
ideia de nação na Formação, de malandragem na “Dialética da malandragem”10, de acumulação em “De cortiço a cortiço”11 e enfim de sertão nos ensaios sobre os regionalistas e em Guimarães Rosa. Isto quer dizer que Candido não encontra por trás
do texto o dado que lhe informa: ele rastreia as condições estruturantes para que um
tal objeto seja formalizado. Seguindo a mesma lógica, é curioso interpelar a própria
rachadura ideológica que Candido mesmo experimenta quando do golpe militar: o
esquema do crítico arma-se em favor da pergunta sobre a objetividade da tradição que
se coagulou em torno de alguns problemas durante a primeira metade do século XX.
A pergunta que resta desta interpelação é: qual chão social Candido viu formar-se sob
a forma de um problema social e literário para depois ruir com o golpe?
10
O final da Formação aponta para uma resposta. Candido se interessa pelo
momento em que a forma assume as rédeas da tradição e confronta-se com este nó
social que a sustenta: o caso do escravismo é o que marca o fecho do livro e não é
fortuito que o foco recaia sobre Machado de Assis. Escrevendo do seio do colapso da
escravatura, a obra madura do autor traduz em forma os elementos que, ao mesmo
tempo em que pertencem à ideologia senhorial, mostram-se como a própria face de
sua crise. Este sentido de crise deve ser retido da análise de Candido, pois é ele que,
para o crítico, qualifica a própria ideia de heteronomia: uma vez que os preceitos
escravocratas se encontram em crise – uma vez que eles saem do enquadramento
seguro da ideologia senhorial – eles podem ser criticáveis.
A crítica à forma ideológica em crise, torna-se claro, é para Candido o próprio
elemento que alimenta a noção da dialética local versus universal (pergunta que o
autor repetidamente se faz ao longo do estudo), dado que esta só encontra espaço para
acontecer quando há um mínimo descolamento entre o pensamento empenhado das
elites e as formas sociais que o criou. No caso de Machado, um descolamento tão
pronunciado gerou o vazio ideológico que possibilitou que a forma literária pudesse
abarcar a própria ideologia e envolvê-la nos movimentos da produção escravista em
crise. Trocando em miúdos, as questões envolvendo a escravidão sempre estiveram
em pauta, mas é somente com a crise deste sistema produtivo que eles podem se
apresentar como problema formal. Deste modo, o que Machado descobriu e
transformou em forma literária não é um problema ético – a saber, a crueldade da
escravidão – mas a própria agonia de uma instituição e os volteios ideológicos
necessários para salvá-la de sua própria morte.
Isto é, de dentro de uma ideologia funcional uma ideia como a de arbítrio
descolamento entre ideologia e sua efetividade torna-se o vão de onde o elemento
crítico da literatura pode emergir. Não é à toa, portanto, que Candido fecha a
Formação com um elogio ao ensaio crítico de Machado sobre o instinto de
nacionalidade: trata-se do reconhecimento da inoperância da ideologia patriarcal na
apreensão de um objeto brasileiro, que se apresenta somente quando visto de uma
posição em que ela mesmo, a ideologia enquanto ideia de brasilidade, seja observada
de certa distância e confrontada com a própria realidade de que se nutre12. A visão da crise do sistema escravocrata é, num só golpe, o que permite a quebra do
enquadramento romântico da ideia de nação e também o elemento que possibilita o
florescimento de uma nova forma para além do romantismo: uma forma que se
alimenta precisamente deste elemento heterodoxo, situado entre a base da produção e
as ideias sobre o futuro do país.
A emergência do sertão
O porquê de estas questões necessitarem passar pela literatura é um assunto
complexo, mas é o que constitui o fundo do trabalho de Candido em Formação. O
que importa aqui notar é que o recorte de Candido importa não só do ponto de vista
sociológico, uma vez que mostra que o arranjo político das elites após a
Independência exigiram sua posição empenhada na construção de uma ideia de nação
que passava pela unidade em torno da mão de obra escrava. Uma vez que este quadro
colapsa, a própria noção de empenho é colocada em xeque. Mas Candido vê nesta
12
conjunção de fatores o empuxo necessário para uma reviravolta na tradição. A saber,
uma tradição que reconheça o objeto brasileiro enquanto tal, isto é, como um objeto
que habita o vão entre as ideologias das elites e a base social heterodoxa do país.
É neste ponto que se admite a importância da emergência do sertão como
objeto literário. Da mesma forma como o escravismo nem sempre foi considerado um
problema em si, também o interior do país, apesar de habitar desde sempre a literatura
brasileira, passou a ser considerado digno de representação por uma conjunção de
fatores. Com efeito, o destino dos homens pobres, dependentes e livres surge com
frequência em obras de importância. Mas o sertão se forma como objeto apenas na
passagem do século XIX ao XX. O contraste no tipo de tratamento dado à questão na
comparação de duas obras publicadas no ínterim de algumas décadas assume o papel
de exemplo útil a esta hipótese: em O sertanejo (1875)13 de José de Alencar e Os sertões (1902)14 de Euclides da Cunha o tratamento aos homens livres pobres assume feições e funções muito diferentes na composição dos textos. No primeiro, o destino
do sertanejo aparece como peça articulada não só ao enquadramento romântico, mas
sobretudo à funcionalidade da ideologia patriarcal. Não à toa o romance se estrutura
como rememorações de um antigo patriarca sobre a vida na fazenda do interior do
Ceará. Mais importante é no entanto a caracterização de Arnaldo, o vaqueiro-herói, de
modo a fazer de sua marginalização na produção um traço de mistério e altivez. Sua
altivez todavia tem todos seus feixes direcionados ao centro da ideologia patriarcal,
que, embora narrativamente claudicante, comanda a trama e portanto os destinos do
herói. Toda sua coragem e bravura direcionam-se à figura do patriarca, à defesa do
grupo familiar, ao cuidado à propriedade etc. São estes mesmos feixes que
13
ALENCAR, José de. O sertanejo: texto integral. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005. 14
configuram o clímax da trama: o vaqueiro abre mão do amor pela filha do fazendeiro
e recebe em troca seu nome de família. Ou seja, ele passa de uma posição de
dependente marginal a um dependente legal, se assim pudermos dizer.
Com esta mudança de estatuto legal algumas coisas vêm ao primeiro plano da
análise. Tangencialmente a narrativa toca no problema do usufruto da terra por parte
dos dependentes rurais – desfrutando de uma situação ambígua entre proprietários e
não-proprietários das terras que ocupam na propriedade senhorial – e abre precedente
para um elemento chave para a definição da discussão sobre o sertão, que será
comentada à frente. Por ora, cabe apenas notar que, como objeto, o sertão não está
presente em O sertanejo. Isto porque o drama de Arnaldo enquanto protagonista em
nenhum momento escapa da visada senhorial, dando a ver que a propriedade rural,
estruturada em torno do trabalho escravo e contando com homens pobres e livres
como trabalhadores marginais, tem a prerrogativa de ou absorver este último à casta
de dependentes oficiais, mantê-los em sua condição ambígua ou periférica, ou, mais
importante, relegá-los à completa escuridão ficcional que é a desvinculação dos laços
com a fazenda e sua consequente saída da órbita senhorial. Note-se portanto que,
neste caso, a possibilidade de representação literária é igualada à possibilidade de
encaixe dentro da lógica da fazenda e, portanto, da posse da terra. Tudo que escapa a
esta visada cai numa penumbra narrativa.
A hipótese que aqui se defende é que o objeto-sertão somente emergirá
quando este lado obscuro da dinâmica senhorial vier a proscênio. Isto é, quando o
dependente da fazenda interiorana escapar da órbita patriarcal tradicional para ocupar
esta quina ideológica em que ele deixa de se posicionar como referência ao poder do
fazendeiro, mas ainda exerce alguma função ligada à terra. Trata-se de um traço já
escapando das tentativas de enquadramento racionalista de Euclides da Cunha. O
sertão de Euclides, ao final, emerge quase como um objeto sem face e cuja existência
se promove à revelia de todas os nexos causais lançados pelo autor – clima, terra,
formação social. Ao longo do livro, vê-se a noção de sertão englobar todos os
parâmetros citados e impor-se – com aura até mística – como um estado de coisas que
revela uma classe antiguíssima de homens que percorre os interstícios do interior
brasileiro.
Vê-se aqui a principal diferença entre este sertanejo e o de Alencar. Ela define
o tratamento que se dará à ideia de sertão neste trabalho: com efeito, o sertão que
surge como objeto literário no século XX é tributário à obra de Euclides como o
objeto que traça uma linha entre civilização e arcaico de modo a fazer com que o
último, nos melhores resultados literários, salte aos olhos do leitor como um objeto
estranho, informe, inclassificável. Deste modo, da mesma maneira como ocorreu no
caso de Machado de Assis, é preciso que se considere a questão do arcaico menos
como um achado dos escritores regionalistas. Assim como as relações patriarcais
machadianas, este homem do sertão sempre esteve presente na história do interior
brasileiro. A sua transformação em objeto, no entanto, depende da conjunção de dois
fatores históricos de ampla ressonância, que têm lugar com a instituição da República
no Brasil: primeiro, a paulatina marginalização do destino dos homens pobres livres
da estrutura produtiva das fazendas periféricas à cultura do café, nas quais o poder
patriarcal é severamente minado. Segundo, uma complexificação significativa dos
arranjos das elites dirigentes na definição do curso político e econômico do país após
a abolição da escravatura. Ao se jogar luz sobre estas duas tendências será possível
perceber como, de certa forma, a ideia de arcaico é um subproduto deste duplo
de um modo de produção baseado na mão de obra escrava para outro dependente da
mão de obra livre.
A hipótese que Francisco de Oliveira em “A emergência do modo de produção
de mercadorias: uma interpretação teórica da economia da República Velha no
Brasil”15 lança sobre o processo de transição do trabalho escravo para o livre vai ao encontro do nascimento do sertão como problema em sentido amplo. Diz o autor,
grosso modo, que o fator econômico que comprimiu a escravidão até sua
impossibilidade encontra raízes nos próprios desdobramentos do capitalismo europeu,
onde a indústria, já inteiramente consolidada como sistema produtivo, via a proporção
de capital constante16 crescer, transferindo-a aos produtos da manufatura que compunham, aqui, parte dos elementos de subsistência à produção escravista17. Em termos menos técnicos, trata-se de afirmar que a proporção de valor, agregado às
mercadorias, entre máquinas e trabalhadores havia aumentado no centro do
capitalismo, de modo que cada produto de manufatura transferisse maior valor como
resultado do avivamento do ‘trabalho morto’ contido nas máquinas18. Como isto afeta a escravidão no Brasil?
Diz Oliveira, sobre a economia brasileira escravocrata, que “na composição
orgânica do capital da economia agroexportadora predomina um tipo de capital
constante que inclui o escravo, cuja subsistência, também capital constante, força para
baixo a taxa de lucro” (FAUSTO, 2006, p.443). Ou seja, sendo o escravo parte
15
Cf. O Brasil republicano, v.8: a estrutura de poder e economia (1889-1930). Fernando Henrique Cardoso… [et al.]; introdução geral de Sérgio Buarque de Holanda. 8ª ed. Rio de Janeiro, 2006, pp. 430-455.
16
A noção de capital constante, no Marx d’O Capital, liga-se à ideia de que, uma vez consolidado o mercado de mão-de-obra livre, é possível à produtividade um salto, uma vez que estes trabalhadores agora se submetem ao ritmo do maquinário industrial. Ver o capítulo 6 de MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
17
Cf. op. cit., p.443. 18