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Direito e violência.

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Ex-psiquiatra de hospitais, é professor de psicopatologia e de psicanálise na Universidade de Paris 7. Analista-m eAnalista-m bro do AFPRF, do qual foi presidente. Clinica em Paris.

Tradução: Helena Soledade Floresta de Miranda

DIREITO E VIOLÊNCIA

*

Ala in Va n ie r

*Conferência proferida no Espace Psychanalytique ( Paris) em janeiro de

2003. O autor cedeu o original sem a indicação das páginas das passa-gens entre aspas. Só contam os com a referência bibliográfica. Ainda as-sim , optam os por m anter as aspas.

1 Conform e Freud ( 1933) . Esta troca de cartas entre Albert Einstein e

Sigm und Freud se deve à iniciativa da Com issão Internacional do Com itê Perm anente de Letras e Artes da Sociedade das Nações e foi publicada em 1933 com o título “ Por que a guerra?” . O título “ Direito e violência” , proposto inicialm ente, foi recusado por Freud.

RESUMO:Partindo da correspondência entre Freud e Einstein

so-bre a guerra e seus porquês, o autor faz um percurso que rem onta à lei da selva e m ostra com o a origem e a m anutenção do direito estão intrinsecam ente ligadas à violência. Para tanto, utilizam -se basicam ente textos de Freud, Lacan e Walter Benjam in, na tentativa de distinguir variados tipos de violência – desde raízes gregas até as últim as grandes guerras.

Palavras - c have : Psicanálise, lei, violência.

ABSTRACT: Law and violence. Based on the correspondence

be-tw een Freud and Einstein on the w ar and its w hys, in his w ork the au th or dates back to th e law of th e ju n gle an d sh ow s h ow th e origin and m aintenance of the law are closely connected to vio-len ce. To prove th at h e u ses basically texts of Freu d, Lacan an d Walter Benjam in that try to distinguish the different kinds of vio-lence from its Greek roots to the last great w ars.

Ke y w o rds : Psychoanalysis, law, violence.

FREUD E BENJAMIN

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O term o Gewalt em alem ão significa violência, força, m as tam bém autorida-de, poder, e significa tanto poder judiciário (richterliche Gewalt) com o poder pa-terno (elterliche Gewalt) . Pode ainda designar um atributo das instituições sociais,

geistliche Gewalt, o poder espiritual da Igreja e Staatgewalt, o poder do Estado.2 “ Inicialm ente, num a pequena horda hum ana, era a força m uscular m aior que decidia a quem algum a coisa devia pertencer ou quem veria sua vontade execu-tada”, escreve Freud. Assim , na origem , a lei se im põe pela força, a força física. Esta força é m ovida por um a vontade que se aplica ao outro, tanto no que concerne a um objeto, quanto ao outro enquanto o próprio objeto. O poder tecnicam ente vem do desenvolvim ento e do deslocam ento da força corporal. Só m uito m ais tarde é que a paz social pôde se organizar “pela superação da violência por m eio da transferência de poder para um a unidade m aior”. Esta unidade é a da com uni-dade enquanto com uniuni-dade de interesses que se instaura num grupo hum ano. Nesse m ovim ento, em um dado m om ento, o grupo dom inante substitui o ato de m atar pelo de escravizar. O corpo do outro pode servir aos interesses econôm icos de quem im põe sua lei. Desta m aneira, o vencedor “abre m ão de um a parte de sua própria segurança” pois o vencido, vivo, constitui um a am eaça. A estabilidade legal e a tranqüilidade que ela produz só podem ser obtidas com a substituição da relação entre vencedor e vencido pela relação entre senhor e escravo. “O direito da com unidade se torna, então, a expressão das relações desiguais de poder que existem em seu seio, as leis serão feitas pelos que dom inam e para os que dom i-nam .” Logo, a paz contém a guerra com o seu fundam ento e nada m ais é que a expressão de um a violência coletiva im posta pelos vencedores aos vencidos, a expressão de um a violência de poder.

Sobre esta base cria-se um a com unidade organizada fundam entalm ente pela coação e cuja coesão está garantida por fenôm enos de identificação, percebidos com o sentim entos. Esta violência que desapossou o vencido e que assegura a base da tranqüilidade social obriga o vencedor, para sua própria segurança, a repor em circulação um pouco do que ganhou para m anter vivos os corpos dos escravos, seu capital, a fim de estes possam aum entar ainda m ais a quantidade de bens que o vencedor possui. De certo m odo, esta paz social é um a guerra que repete incansavelm ente a pilhagem original por m eio da violência que se abate sobre o vencido. Com efeito, este últim o não cessa de ser despojado daquilo que lhe cabe e do que produz. Alienação do trabalho e m ais-valia, segundo Marx, que Lacan propõe ler com o m ais-de-gozar ( VANIER, 2001) . Este gozo original, esta violência, circula de form a canalizada e regrada nos vínculos sociais, e torna-se a função do direito. Cada um pode, então, ter esperança de recuperar um dia um pouco daquilo de que foi espoliado.

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Nessas poucas páginas, Freud constrói um m ito que de certa m aneira é o prolongam ento de Totem e tabu. A leitura da história m ostra um enredam ento e um a dialética entre dois pólos que estão em tensão. A tendência à união (Einigung) já se m anifesta no assassinato e depois no banquete totêm ico dos irm ãos após a m orte do Urvater, o pai prim itivo da horda. Essa tendência a constituir unida-des cada vez m aiores, ou a unificar elem entos m últiplos agregando-os, a que Freud dá o nom e de Eros, entra em conflito com um pólo de destrutividade a ela oposto. Mas nenhum a das duas m oções jam ais sobrepuja totalm ente a outra. A violência é originária e a união triunfa: “A violência é dobrada, quebra-da pela união.” Mas é essa violência que funquebra-da o poder de possuir o que é do outro, ou até m esm o o próprio outro e sua força de trabalho; a violência dá origem ao direito. A união não faz a violência desaparecer, o que faz é deslocá-la. De fato, nesse m om ento, “não é m ais a violência de um indivíduo que se im põe m as sim a da com unidade”; a violência garante o direito.

Essa estabilidade está sem pre am eaçada, pois, sendo assim , a paz é a conti-nuação de um a violência que se exprim e de outra m aneira, e as leis feitas para os dom inadores e pelos dom inadores “concederão poucos direitos aos subjuga-dos”. De outra parte, nesse jogo constante entre Eros e pulsão de m orte, aparece um certo paradoxo. É preciso “conceder que a guerra não seria um m eio inadequa-do para instaurar a paz ‘eterna’ tão desejada, pois ela pode criar essas grandes unidades em cujo interior um poder central forte torna novas guerras im possí-veis”. Porém , a essa perspectiva opõe-se algo com o um princípio de lim itação, de entropia. A unidade absoluta não é realizável. De fato, quanto m aior a agre-gação das unidades, m ais frágil será, por falta de coesão das partes unidas pela violência.

Aquilo que a violência funda, com o tendência a constituir unidades cada vez m aiores, tem para Freud um lim ite, certam ente inspirado pelo exem plo do im pério dos Habsburgo, lim ite que, para ele, é a própria fragilidade da união das partes à m edida que o núm ero das partes fica m aior. Este m odelo se aplica à situação do m om ento em que acontece a troca de cartas com Einstein, a Liga das Nações podendo ser concebida com o o poder central regulador e protetor da paz, desde que tivesse o poder necessário para tanto. Para m anter a coesão com unitária são necessários dois fatores: um sistem a de identificações entre os m em bros ( FREUD, 1921) e a im posição da violência. Com algum as décadas de distân cia, a situ ação con tem porân ea, por exem plo, o qu e h oje ch am am os

globalização ou mundialização e os efeitos de segregação que produz, será que não nos obrigaria a reconsiderar a questão de outra m aneira?

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apoio da violência.” Freud se recusa a identificar tanto a violência quanto o m al à pulsão de m orte e o bem e a paz à pulsão de vida, a Eros. O entrelaçam ento entre eles é fundam ental ou m esm o inextricável, pois a pulsão am orosa, por exem plo, tem tam bém necessidade da pulsão de dom ínio. O surgim ento tardio dessas duas pulsões na história da psicanálise provém da dificuldade que existe para isolá-las um a da outra. E talvez tam bém da necessidade de um m om ento na história que perm ita pensá-las, de um a especificidade atual que, além ou a partir do m ito proposto por Freud, possa apresentar sua ocorrência m ais com m ais clareza.

A violência bruta original e a violência necessária de hoje serão da m esm a natureza? O direito um a vez fundado levanta a questão da legitim idade da violência, quer dizer, da relação não m ais entre violência e direito, m as sim entre violência e justiça. Assim , a violência apontada por Freud, do subm isso em relação ao dom inador (Herrschenden) será, por exem plo, legítim a em relação à violência que seria justificada pela vontade de conquista ou de subjugar um grupo vizinho?

Walter Benjam in tenta distinguir vários status de violência (Gewalt) e as dis-tinções que introduz podem nos ser úteis ( BENJAMIN, 1920 [ 2000] ) . Ele reto-m a inicialreto-m ente a oposição entre direito natural e direito positivo, a distinção clássica entre fins e m eios, etc. Mas, dentro desta perspectiva, interessa-se pela questão da violência, particularm ente pela distinção entre um a violência legíti-m a e outra não legítilegíti-m a. Contudo, esta é ulegíti-m a distinção problelegíti-m ática. Benjalegíti-m in evoca o estatuto da greve. A greve, seria ela um a violência já que consiste num a suspensão da atividade? Levado ao extrem o, a greve geral, dentro de um a pers-pectiva revolucionária, poderia ser considerada um a não-violência? Com o pen-sar sua legitim idade? Sem desenvolver os com entários enriquecedores de Walter Benjam in que nos levariam por outros cam inhos, detenham o-nos nesta distin-ção das violências, de um lado a violência que funda o direito e de outro, aquela que o m antém .

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estatuto do ser vivo fundado sobre a ciência. Realm ente, Foucault colocava esta inflexão no aparecim ento dos prim eiros grandes program as de higiene das populações. Assim , o Estado vela sobre os hom ens enquanto população, “sua política é, em vista disso, necessariam ente um a biopolítica”.

Para os autores dos séculos XVII e XVIII, polícia não significava necessaria-m ente unecessaria-m a instituição e sinecessaria-m unecessaria-m a técnica de governo própria do Estado. A polí-cia com o instituição do Estado m oderno já foi levantada por Benjam in. Para ele, o caráter de autoridade da polícia é ignóbil. Sua ignom ínia consiste na ausência de separação entre duas violências, a que funda o direito e a que deve m antê-lo. De fato, a polícia intervém em casos em que a situação jurídica não está clara. Ela não m antém , portanto, sim plesm ente o direito que está escrito, ela se torna, por sua própria ação, fundadora do direito. De resto, ele frisa que o espírito policial causa m enos estragos quando, na m onarquia absoluta, “a polícia repre-senta a violência do soberano” que reúne os poderes legislativo e executivo. Esta união, em nom e de um a instância transcendente que vai além do soberano, m as que o fundam enta, tam bém gera confusão, recobrindo direito e ação e suturando qualquer ausência de sentido.

A latência da violência perm ite a instituição jurídica. Benjam in tom a o exem -plo dos m odos de elim inação dos conflitos sem violência. Esses existem , diz, não nas relações hom em a hom em m as quando as relações são objeto de um a m ediação. Para ele, o diálogo é a técnica de um acordo civil, o sim bólico possui u m a verten te pacificadora, por assim dizer. E para ele, a exclu são de toda a violência na esfera privada pode-se ler na im punidade da m entira. Esta área é a do “ en ten dim en to próprio da lin gu agem ” . E qu an do o direito legifera n a esfera privada, enfraquece. Assim , quando proíbe a m entira, lim ita o em prego de m eios não violentos. Essas disposições jurídicas produzem , ao contrário, efeitos violentos, quer dizer, neste caso, o direito perde confiança em sua pró-pria violência. Essas observações são absolutam ente atuais: legiferando sobre esse ponto esvazia-se um a certa dim ensão da palavra na sua relação com a verdade. Esta m entira que Lacan designa com o realm ente sim bólica, quer dizer com o o sim bólico incluído no real, aquilo que se deve ouvir sobre o pano de fundo da proton pseudos histérica, ressaltada por Freud, essa prim eira m entira que é recalcam ento ( LACAN, Le Séminaire Livre XXIV, inédito) .

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próprio favor contra a vida pura e sim ples, que exige o sacrifício. Diferente-m ente desta últiDiferente-m a, a violência divina é violência pura, exercida eDiferente-m favor do vivente contra a vida, ela aceita o sacrifício. O hom em não deve ser confundido com a sim ples vida que está nele. Benjam in pensa que o dogm a que afirm a o caráter sagrado da vida deve ser recente. Para ele, trata-se do “últim o desvario da tradição ocidental debilitada, buscando no cosm ologicam ente im penetrável o sagrado que ela perdera” . Com efeito, “ o que aqui está qualificado com o sagrado é aquilo que o antigo pensam ento m ítico designava com o portador da culpabilidade: o sim ples fato de viver”. Pois em todos os pontos, Deus se opõe ao m ito. O m ito é um entrave e, se seu reinado foi posto abaixo, então é porque o que vai surgir com o novo não está longe.3 É preciso, portanto, recusar toda violência m ítica com o violência fundadora do direito, quer se cham e violência discricionária ou violência m antenedora do direito, quer dizer, violência adm i-nistrada, a serviço da precedente.

Benjam in term ina com essa fórm ula: “A violência divina, que é insígnia e sinal, m as nunca m eio de execução sagrada, pode ser cham ada de soberana.” No com entário que faz sobre esse texto, Derrida liga a violência m ítica com o referida à cultura grega e a violência divina, ao judaísm o. Derrida interpreta essa oposição de Benjam in com o um a oposição da história ao m ito.

“Para esquem atizar, haveria duas violências, dois Gewalten concorrentes: de um lado, a decisão ( justa, histórica, política, etc.) , a justiça que fica além do direito e do Estado, m as sem conhecim ento decidível;4 do ou tro, h averia con h ecim en to decidível e certeza num dom ínio que perm anece estruturalm ente aquele do indecidível, do direito

m ítico e do Estado. De um lado a decisão sem certeza decidível, do outro, a certeza do indecidível, m as sem decisão” ( DERRIDA, 1994) .

Lacan tam bém faz distinção entre as tradições grega e judaica e, m ais preci-sam ente, entre o Deus dos filósofos e o Deus do m onoteísm o. O Deus dos filósofos é o Outro da estrutura original, aquele que é um . É o Deus do m ito. O Deus do m onoteísm o não é um , não diz que é o único Deus. Os outros deuses não são negados, apenas estão em outro lugar que não é o dele. Ele é apenas o Deus que fala e que diz: “Eu sou o que sou.” Introduz a dim ensão da revelação, “da palavra com o portadora de verdade” e a distinção fundam ental entre verdade e saber, pois “no outro lugar o lugar da verdade encontra-se ocupado ( ...) pelos m itos” ( LACAN, 1968/ 1969) . Esta enunciação faz furo, que não desaparece.

3 Vam os aproxim ar essas proposições de Benjam in daquilo que propõe Giorgio Agam ben em

Hom o sacer ( 1997) .

4 Term o técnico da lógica segundo um enunciado de Gödel que se refere a algo que não pode

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Essa violência divina, segundo Benjam in, é insígnia, sinal, m arca, escritura, escritura do nom e deste deus cujo nom e se escreve m as não se pronuncia e portanto não se pode saber. É um hiato no saber, ilustra a parte que fica de fora do direito não retom ada pelo elo social, pelo discurso; é esse resto originário que hoje se pode localizar e que parece poder retornar com o instante, com o corte absoluto. O texto de Benjam in sobre a crítica da violência data de 1920 e encontra eco em escritos m ais recentes que prolongam e rem anejam suas pro-posições.

Em sua resposta a Einstein, Freud desenvolve certo núm ero de observações sobre a pulsão de m orte, sublinhando que não se deve assim ilá-la nem ao m al nem m esm o à guerra. Lacan ressalta que a guerra é um a das form as do com ér-cio entre os hom ens e está profundam ente enraizada na estrutura da troca, da qual é um a das m odalidades. O próprio trajeto da pulsão, assim com o o estatu-to do objeestatu-to na troca, pressupõe certa volatilização e destruição desse objeestatu-to, nem que seja pelo fato de sua inadequação básica em função de seu caráter fundam entalm ente perdido. Segundo os registros im aginário, sim bólico e real são possíveis três m odos de leitura ou três projeções da pulsão de m orte. Num a prim eira abordagem , Lacan enfatiza a tensão sentida pelo sujeito, pelo infans, diante de sua im agem no espelho. Diante dessa im agem , pela qual é am ado m as que, ao m esm o tem po, lhe é estranha, e na qual ele se aliena, o sujeito se encontra num a situação sem saída que Lacan refere à situação dual que pode se exprim ir por “ou bem ... ou bem ...” . A relação estrita com essa im agem , sem m ediação, é m ortal, com o bem m ostra o m ito de Narciso. É a palavra que, distinguindo as respectivas posições, retira o sujeito desse im passe.

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assassinato da coisa, retom ou Lacan, a dim ensão eternizante e m ortal do signi-ficante está em jogo e se encontra no princípio do autom atism o de repetição.

Significante que tam bém é aquilo a que se reduz o sujeito, um nom e próprio sobre um a pedra tum ular. Aquilo que Freud cham ou de pulsão de m orte se abriga, pois, sob m uitas bandeiras. Ela tam bém é dependente, em suas m anifestações, dos elem entos históricos e dos rem anejam entos que afetam a subjetividade. Assim , a em ergência da ciência m oderna teve seus efeitos. Lacan pôde dizer que a pulsão de m orte tinha se refugiado na física m oderna e eu já pude reaproxim ar esta fórm ula daquela de Winnicott que pensava que a adolescência, com o problem a ligado à questão da violência, vinha precisam ente da guerra fria, que não perm i-tia m ais regulam entar e ocultar o problem a da adolescência, com o acontecia outrora num a guerra de gerações em que se enviavam os adolescentes para defen-der a pátria. A im possibilidade das guerras por conta do podefen-der de destruição dado pelas arm as que a ciência fornece de fato m udou o panoram a. Nessa perspectiva, Lacan sublinhou as “conseqüências do rem anejam ento dos grupos sociais pela ciência e especialmente da universalização que ela introduz” (LACAN, 1967 [2001]). Mercados com uns aos quais Lacan fez alusão na época, globalização, a m undiali-zação de hoje, terão inevitavelm ente sobre o plano real um correlato no aum en-to das segregações. Algum sujeien-to m oderno, este sujeien-to sem qualidades, sua sim ilaridade biológica, o aparelham ento de seu corpo pelos produtos da técni-ca, da prótese ao autom óvel, anula, desnudando a artificialidade, a velha ordem sustentada por um a figura divina em que o sujeito, se bem que infantilizado segundo Freud, encontrava seu lugar e sua unidade.

Lacan sublinhava que esse problem a poderia ser lido em term os de um a problem ática do gozo, gozo que só poderia ser situado com o gozo do Outro. Mas, acrescentava, “isso na m edida que dele estiverm os separados” ( LACAN, 1974) . Ora, nosso m odo de gozo m oderno situa-se apenas no m ais-de-gozar, pequeno a,e não do grande Outro que o organizava e o enquadrava. Assim , a segregação se funda sobre um fracasso da separação.

Em sua carta a Einstein, Freud ressalta com o a coesão de um grupo — ele tom a o exem plo dos bolcheviques — só se dá m ediante a exclusão de um outro que polariza todo o ódio. Ele propõe sua própria utopia, filha daquela das Luzes: um a vida pulsional subm etida à ditadura da razão. Mas não tem ilusões.

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Para com entar esta observação de Freud parece-m e útil um a outra passagem por Walter Benjam in. Não se tratará de desenvolver o elo particular que Benja-m in tece entre a teologia e o Benja-m arxisBenja-m o. Talvez seja preciso siBenja-m plesBenja-m ente indi-car que seu m essianism o é um m essianism o paradoxal já que ao m esm o tem po vários elem entos nos textos de Benjam in m ostram tratar-se de um m essianism o ligado a um Deus ausente, e que é na dim ensão histórica que a hum anidade pode ser seu próprio m essias. Mas a história é sem pre a história dos vencedores; anula a história dos vencidos e, por conseguinte, “não há nenhum docum ento de cultura que tam bém não seja um docum ento de barbárie”.

Com o Benjam in concebe a m odernidade?5 Podem os partir de suas conside-rações sobre o efeito da técnica m oderna sobre a obra de arte. Observa o fato de que as ferram entas técnicas m odernas perm item sua reprodutibilidade. “Este processo tem o valor de sintom a; sua significação ultrapassa o cam po da arte.

Poder- se- ia dizer, de maneira geral, que a técnica de reprodução afasta o objeto reproduzido do campo da tradição.”A obra de arte m oderna, porquanto reprodutível, perde sua aura. Esta perda da aura significa um em pobrecim ento do sentido da obra de arte, um a perda de fascinação em virtude da unicidade. Esta perda da aura pode ser lida de duas m aneiras: com o sintom a de decadência, de um a parte, e neste caso, a saída pode ser restaurar a tradição.

Mas esse m om ento histórico é tam bém o lugar possível de um a redenção. Na verdade, esses m om entos de inflexão da história são m om entos em que se m arca um elo particular com o tem po. Assim , Benjam in diz que, por ocasião da revolução de julho, os insurretos atiraram nos relógios de Paris. Há um a di-m ensão do tedi-m po atual, do di-m odi-m ento presente, do agora (Jetztzeit) , um m om en-to em que en-toda a história do hom em pode se recapitular, e em particular, a história não acontecida, recalcada ou foracluída — aqui é necessário precisar — dos vencidos. Esses m om entos, raros, são os que na história possibilitam um a redenção. O m undo m oderno, segundo Benjam in, acabou com seus deuses e suas encarnações, o que o colocou num a situação desesperada. O m undo está à espera de liberação (Erlösung) , e isto se torna possível porque esse tem po de ruptura é tam bém um tem po de parada. A aura é ao m esm o tem po um a aparên-cia enganosa, um encantam ento, e a m arca do lugar da obra de arte com sua dim ensão ligada ao culto. O religioso aparece com o aquilo que é: um poder que aliena. Mas o declínio da aura tam bém é um a denúncia do “conjunto da história da hum anidade com o um a única tentativa utópica visando reatar-se com a origem . Acabar com a aura é, portanto, afirm ar a parada, a suspensão de toda ilusão, em particular a da origem ” ( TACKELS, 1996) .

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Depois de haver situado esquem aticam ente a perspectiva, é o texto de Ben-jam in sobre a teoria do fascism o alem ão que eu gostaria de relacionar com a abordagem de Freud sobre a guerra m oderna ( BENJAMIN,1930 [ 2000] ) . A po-sição de Benjam in sobre a técnica, neste texto, cham a a atenção. Longe de condená-la, ele questiona seu lugar. “Toda guerra futura será tam bém um a re-volta da técnica contra a condição servil em que é m antida.” Nesse texto o autor põe no m esm o patam ar tanto os m ísticos da guerra quanto os pacifistas. Trata-se do com entário de um livro de Ernst Jünger intitulado Krieg und Krieger

(Guerra e guerreiro) que ele classifica na categoriados m ísticos da guerra. Talvez tenham os um a excessiva tendência, não de todo injusta, a salientar a catástrofe sem nom e que foi a Segunda Guerra Mundial e a desconhecer a função da prim eira de um a série que foi a Prim eira Guerra Mundial.

Este livro de Jünger é um a declaração nostálgica que faz um apelo ao reata-m ento coreata-m o estatuto antigo das guerras que vierareata-m antes da últireata-m a, e, ereata-m particular, com o valor do heroísm o. Defendem um a ideologia da guerra total-m ente ultrapassada à vista do que acabou de acontecer. “Jatotal-m ais ousatotal-m dizer que batalha de m aterial na qual alguns dentre eles vêem a m ais alta revelação da existência, desqualificam os pobres em blem as do heroísm o”, fórm ula que encontra eco nos propósitos de Freud. Freqüentem ente se tem feito desses tex-tos de Benjam in, deste entre outros, um a antecipação na qual se poderia ler o pressentim ento daquilo que viria a acontecer: sua insistência, aqui, sobre a utilização do gás nos com bates de trincheira. A guerra m udou de estatuto por-que se tornou um a batalha de m aterial. Os atapor-ques com gás dão à guerra nova feição “que abolirá definitivam ente as categorias guerreiras em prol de catego-rias esportivas.” De fato, o que vai prevalecer não é m ais a dim ensão m ilitar m as um a lógica de recordes, em particular a do núm ero de m ortos. Desde então, a distinção clássica entre civis e com batentes fica abolida e Benjam in observa que o direito internacional perdeu aí sua base principal. Ele critica os oficiais e pensadores alem ães de procurar dom inar o presente sem ter com pre-endido o passado. Eles lam entam o fim dos com bates hom em a hom em , tropa a tropa, que perm itiam a expressão do heroísm o e davam à guerra um a dim ensão de culto, ou até m esm o de arte. Ora, a técnica m odificou o corpo do hom em não apenas dando a ele prolongam entos técnicos e inscrevendo-o nessa dim en-são, m as tam bém no terreno m ilitar em sua relação com a m orte. A guerra perdeu sua aura, o heroísm o não pode m ais singularizar aquele que é apenas corpo, carne, contabilizável nas estatísticas do núm ero de m ortos.

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alem ães que a perderam e ganhar ou perder um a guerra tem um duplo sentido. Com certeza, significa sair da guerra m as é tam bém algum a coisa, escreve, que cava um vazio e afeta a realidade. “A guerra fica nas m ãos do vencedor, escapa ao vencido”; o que significa que “o vencedor dela se apropria, faz dela um bem , o vencido perde sua posse, deve viver sem ela.” Acrescenta que seria necessário que o vencido quisesse “se representar nem que fosse por um instante aquilo que havia perdido, em vez de agarrar-se a ele convulsivam ente”. Para a Alem a-nha, toda a dim ensão da relação à questão tão crucial da natureza ficou pertur-bada por esta guerra de um tipo novo. E era isto a que deveria ter sido capaz de agar rar-se.

“Digam os em toda a sua am argura: frente a um a paisagem entregue à m obilização

total, o sentim ento alem ão da natureza tom ou um im pulso inesperado. Os gênios da paz que aí estavam voluptuosam ente instalados tinham sido evacuados e até onde o olhar poderia ir por detrás das trincheiras, todo o terreno em volta oferecia a própria face do idealism o alem ão, cada pino de granada era um problem a, cada

em aranhado de aram e farpado, um a antinom ia, cada ponta de ferro, um a defini-ção, cada explosão um a posição de princípio, e o céu era, durante o dia, o interior cósm ico do capacete de aço, de noite, a lei m oral acim a de você. A técnica, com as linhas de fogo e as redes de trincheiras, quis reproduzir os traços heróicos do

idealism o alem ão. Havia-se extraviado. Pois os traços que acreditava heróicos eram de fato hipocráticos, eram os traços da m orte. Penetrada em profundidade por sua própria abjeção, a técnica m odelou o rosto apocalíptico da natureza, reduziu-a ao silêncio quando era ela precisam ente a força que teria podido fazer aceder a

natu-reza à linguagem . A guerra, esta guerra m etafísica e abstrata reclam ada pelo novo nacionalism o, nada m ais é que um a tentativa de fazer da técnica a chave m ística que perm ite resolver im ediatam en te o m istério de u m a n atu reza com preen dida n o m odo idealista, em vez de u tilizar e esclarecer o m istério pelo desvio de u m a

organização hum ana.”

Esta guerra que não é m ais a guerra eterna dos novos nacionalistas nem a últim a dos pacifistas, m as, concluiu Benjam in,

“a única, a terrível e últim a chance que nós tem os de corrigir a incapacidade dos povos de pôr ordem em suas relações m útuas, em conform idade com a relação que instauram , por m eio da técnica, com a natureza. Se essa correção falhar, m ilhões de

corpos hum anos serão certam ente picados e devorados pelo gás e pelo aço.”

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liberar. É preciso recusar à guerra sua m agia, se não o retorno da aura, conjuga-do com a técnica, produzirá o fascism o. Nesta perspectiva, o chefe, o dirigente, o Führer n ão será aqu ele soberan o em qu em se “ u n iam os plen os poderes legislativos e executivos”, este Um , de direito divino, inscrito sim bolicam ente, m as sim um qualquer, sem elhante e reprodutível, provido de um a aura ela tam bém reprodutível, aleatória, que as técnicas da com unicação criarão.

“Quanto tem po ainda precisam os esperar até que os outros tam bém se tor-nem pacifistas?”, escreve Freud a Einstein. Em sum a, “tudo aquilo que prom ove o desenvolvim ento cultural trabalha ao m esm o tem po contra a guerra”. Mas esta conclusão passa por cim a de algum as aporias que ela ressalta. Assim , aqui-lo que segue no sentido da cultura, o intelecto dom inando a vida pulsional e a interiorização da tendência à agressão cria um a aversão pela guerra que é ape-nas intelectual e que segundo ele não está isenta de perigo. Paradoxalm ente, este m ovim ento, prejudicial à função sexual, pode levar à extinção da espécie hum ana, o que seria um a figura inédita da pulsão de m orte. O retorno da violência bélica estará à altura da renúncia exigida? Freud propõe tam bém educar um a cam ada superior de hom ens inacessíveis à intim idação e lutando pela verdade. Reintroduz então um a distinção, segundo ele, coerente com a divisão da hum anidade entre líderes e sujeitos dependentes. Esta ditadura da razão, sonhada por Freud, tam bém não é isenta de perigo. Tam bém nela, qual será a natureza da violência que se deve exercer de direito para m anter essa ordem , que não deixa de lem brar o projeto platônico? Com o um tal projeto se m anteria sem violência e que fazer da violência que sim plesm ente não desapa-rece com a violência do direito?

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REFERÊNCIAS

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Alain Vanier

Referências

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