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A relevância do uso de técnicas qualitativas em pesquisas sobre a biomedicina.

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Academic year: 2017

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* Texto baseado na apresentação da mesa redonda “Pesquisa Qualitativa em Saúde”, no IV Fórum de Investigação Qualitativa e III Painel Brasileiro-Alemão de Pesquisa, realizado em Juiz de Fora, agosto de 2005 1 Departamento de Planejamento e Administração em Saúde, Instituto de Medicina Social, UERJ. Rua São Francisco Xavier 524/7º andar/Bloco D, Maracanã. 20559-900 Rio de Janeiro RJ. kenneth@uerj.br

A relevância do uso de técnicas qualitativas

em pesquisas sobre a biomedicina

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The relevance of qualitative techniques in biomedical research

Resumo Ao observar-se a forma como estudos qualitativos e quantitativos são relatados na lite-ratura biomédica, vê-se que, além da virtual au-sência dos primeiros, há uma forma diferenciada na sua apresentação. Os autores de estudos quali-tativos parecem necessitar quase que invariavel-mente de explicar a necessidade de sua opção pelo qualitativo, o que não ocorre com os estudos quan-titativos. Este texto se apóia na epistemologia com-parativa de Ludwik Fleck como forma de explorar essas diferenças empiricamente, ilustrando, com base em dois estudos que abordam diferentes as-pectos das práticas no campo biomédico, como a investigação com base em técnicas qualitativas pode iluminar diferentes questões desse campo. O artigo conclui com a exposição de algumas característi-cas estruturais do campo biomédico que, por um lado, não seriam bem exploradas a não ser pelo emprego das técnicas qualitativas utilizadas nos respectivos estudos, e que, por outro lado, ajudam a entender o menor valor atribuído às mesmas no interior do próprio campo.

Palavras-chave Biomedicina, Epistemologia, Ci-ências sociais em saúde

Abstract On observing how qualitative and

quantitative studies are reported in the biomedi-cal literature it becom es evident that, besides the virtual absence of the form er, they are presented in different ways. Authors of qualitative studies seem to need alm ost invariably to explain why they choose a qualitative approach whereas that does not occur in quantitative studies. This pa-per takes Ludwik Fleck’s com parative epistem ology as a m eans of exploring those differences em -pirically, illustrating on the basis of two studies dealing with different aspects of biomedical prac-tices how qualitative m ethods can elucidate a variety of questions pertaining to this field. The paper concludes presenting some structural char-acteristics of the biom edical field which on one hand, would not be explored properly without em ploying qualitative m ethods and, on the other hand, can help understanding the little value giv-en to qualitative techniques in this area.

Key words Biom edicine, Epistem ology, Social sciences in health

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Charles Taylor1, ao discutir o papel fundamental

do círculo hermenêutico para as ciências do ho-mem, contrasta o modo de produção de conheci-mento destas, necessariamente qualitativo por conta desta característica, com uma concepção de ciência (até certo ponto datada) como a aplicação de técnicas quantitativas a dados brutos. Como este modelo é difusamente percebido como a “ver-dadeira ciência”, segue-se uma assimetria funda-mental na apresentação de pesquisas empíricas, onde com freqüência os autores sentem-se com-pelidos a justificar sua escolha metodológica, ao contrário dos que adotam técnicas quantitativas. Similarmente, num livro de introdução à

me-todologia qualitativa, Maykrut e Morehouse2

fa-zem a observação de que, ao contrário dos mé-todos quantitativos, com freqüência demanda-se dos primeiros justificativas filosóficas para demanda-seu emprego. Segundo estes autores, isto se deve à incompreensão dos princípios filosóficos subja-centes à investigação qualitativa; esta explicação é parcial, como comentarei mais adiante, mas o que desejo assinalar é uma certa percepção de “inferioridade epistemológica” que leva às situa-ções descritas tanto por Taylor quanto pelos dois últimos autores.

A área de saúde, de um modo geral, confirma esta regra; basta contemplar qualquer periódico médico para ver-se a predominância quase abso-luta de artigos com base em métodos quantitati-vos, em especial as técnicas estatísticas. Mais ain-da, ao longo do tempo, esta é uma tendência cres-cente, reduzindo-se cada vez mais o espaço para textos baseados em técnicas qualitativas. Apenas a título de ilustração, uma busca na base de da-dos Ovid em três das mais importantes revistas médicas – New England Journal of Medicine, Lan-cet e British Medical Journal – pelo unitermo “qua-litative research” no triênio 2004 a 2006 não iden-tificou nenhum artigo nas duas primeiras, e ape-nas um na última. Outro unitermo, “focus group”, não identificou no mesmo período nenhum arti-go na primeira, três na segunda e sete na última. O total de artigos publicados pelas revistas no período citado foi, tam bém respectivam ente, 4.433, 5.183 e 7.099. Com todas as limitações ine-rentes à busca por unitermos em bases bibliográ-ficas, trata-se de forte evidência da predominân-cia da lógica quantitativa na publicação.

Esta ampla hegemonia obscurece um aspecto fundamental, contudo: a de que a base de onde surgiu o moderno conhecimento na área de saú-de (em particular da medicina), a clínica, é uma técnica essencialmente qualitativa. A medicina

moderna nasce, segundo Foucault3, a partir do

surgimento de uma disciplina eminentemente qualitativa, a anátomo-clínica, e um de seus

atri-butos certamente é o que Ginzburg4 define como

paradigma indiciário, isto é, um modo de produ-ção de conhecimentos que se concretiza na indivi-dualização de singularidades a partir de indícios recolhidos de forma não-sistemática. Isto se re-flete na forma como médicos hierarquizam e se-lecionam diferentes estratégias de validação e in-corporação de novos conhecimentos, levando-os a adotar uma estratégia que é, ela própria, intuiti-va e indiciária, com grande intuiti-valorização da experi-ência; mas ainda assim, essa estratégia se rende a um corpo de literatura que é, como já visto

ante-riormente, quase totalmente quantitativista5.

A articulação entre a perspectiva epistemoló-gica de que só aquilo que é mensurável e generali-zado é verdadeiramente “científico” e a estratégia de legitimação da biomedicina frente à sociedade pela sua “cientificidade” são o ponto de emergên-cia da co-produção de duas tendênemergên-cias que se re-forçam mutuamente. Por um lado, a produção textual na qual o que é quantificável constitui a quase totalidade do que é publicado; por outro, uma prática profissional em cujo interior as téc-nicas direcionadas à singularidade e à subjetivi-dade dos pacientes é desvalorizada e relegada a segundo plano, ao menos no plano do saber, a começar pelo ensino. Como compreender esta di-vergência? Este texto pretende apontar para uma possibilidade de resposta a esta questão, bem como apresentar dois exemplos de estudos sobre a própria medicina onde o uso de técnicas quali-tativas foi fundamental para por em relevância os aspectos singulares e subjetivos usualmente im-perceptíveis pela quantificação. Preliminarmente, contudo, e atendendo ao chamado dos autores citados no início deste texto, devo explicitar o re-ferencial teórico que o embasa.

A referência teórica central deste texto é a

epis-temologia comparativa de Ludwik Fleck6,7. As

próximas linhas apresentarão um esboço breve de seus desdobramentos teóricos; a atualidade e importância de Fleck são comentadas, entre

ou-tros, por Ian Hacking8 e Thomas Kuhn9,10.

Dois conceitos são centrais em Fleck: o coleti-vo de pensamento (Denkkollektiv) e ao estilo de pensamento (Denkstil). O primeiro é definido como [...] uma comunidade de pessoas intercam-biando idéias mutuamente ou mantendo intera-ção intelectual; tam bém verem os por im plicaintera-ção que esta tam bém provê o “suporte” especial para o desenvolvim ento histórico de qualquer cam po do pensam ento, bem com o do nível de cultura e

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constrição definida do pensamento, e até mais; [...] a totalidade da preparação ou disponibilidade in-telectuais para uma forma particular de ver e agir

ao invés de qualquer outra6. Note-se que o estilo

de pensamento não é uma característica opcio-nal que pode ser voluntariamente adotada, mas antes uma imposição feita pelo processo de socia-lização representado pela inclusão em um coleti-vo de pensamento.

Fleck distingue duas áreas de importância no interior de um coletivo de pensamento na ciência

moderna6, uma compreendendo os experts que

efetivamente produzem conhecimento, por ele chamada de círculo esotérico (ele ainda detalha mais esta região, descrevendo o círculo mais in-terno de experts especializados e o círculo exin-terno de experts generalistas), e o outra constituída pe-los “leigos educados”, o círculo exotérico. Esta to-pografia permite a distinção entre formas

dife-rentes de comunicação6; a ciência dos experts é

caracterizada pelo periódico técnico/científico e pelo livro de referência, o primeiro representando o diálogo intenso, fragmentado, pessoal e crítico dentro de um campo dado do conhecimento, e o

segundo, a organização sinóptica deste6; o círculo

exotérico é alimentado pelos periódicos de ciên-cia popular ou de divulgação, que são uma “ex-posição artisticamente atraente, vívida e legível [...] com uma atribuição de valores apodíctica para simplesmente aceitar ou rejeitar um dado ponto

de vista6”. Finalmente, a introdução ao círculo

eso-térico – comparada por Fleck a um ritual de

inicia-ção6 – é baseada num quarto tipo de meio textual

científico, o manual básico6.

Estes elementos permitem a construção da ge-ografia de um campo intelectual, descrevendo não apenas pessoas e lugares, mas as trocas que ocor-rem entre eles. Note-se que eu não pretendo atri-buir a estes objetos mais valor do que o de uma notação conveniente – transformar o modelo de Fleck num relato ontologicamente fundado seria ir contra a própria lógica de suas idéias.

As instituições médicas (incluindo a saúde pública, a assistência à saúde e as escolas médi-cas), o conhecimento e prática médicos são per-meados por um estilo de pensamento

específi-co11. Um complicador adicional é o fato de que a

medicina, enquanto prática social, extrai sua le-gitimidade de sua “cientificidade”, embora não seja ela própria uma ciência em sentido estrito, isto é, ela depende do conhecimento produzido por outras disciplinas. Sendo assim, uma pri-meira explicação para a menor valorização de técnicas qualitativas passa pela necessidade de se identificar ao modelo das ciências “duras” do

campo biomédico, em particular das biociências de um modo geral (como por exemplo a biolo-gia molecular) e a epidemiolobiolo-gia, ambas emba-sadas em extenso instrumental matemático.

Deste modo, torna-se inteligível a assimetria apontada no início deste texto; o próprio estilo de pensamento da medicina tende a valorizar um con-junto de técnicas que, num certo sentido, lhe são externas, ou ao menos externas ao que este tem de mais específico, isto é, a metodologia clínica.

Como exemplo das questões levantadas até aqui, comentarei rapidamente dois estudos em-píricos realizados em momentos diferentes, que tiveram como objeto algum aspecto do campo de atuação da biomedicina: o primeiro sobre a

experiência da internação hospitalar12, o

segun-do sobre o atendimento ambulatorial13.

O primeiro estudo baseou-se na observação participante de estudantes de medicina treinados nessa metodologia, que acompanharam todo o período de internação de dezenove mulheres, com duas a três visitas de trinta a quarenta minutos cada. O segundo utilizou também a observação participante, com os mesmos estudantes acom-panhando consultas ambulatoriais num perío-do de cerca de seis meses. O último estuperío-do foi baseado num conjunto de entrevistas com in-formantes-chave, selecionados entre os profes-sores mais respeitados (identificados por outro conjunto de entrevistas, com estudantes de me-dicina) de duas tradicionais faculdades de medi-cina do Rio de Janeiro.

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a explicar tanto as dificuldades na interação com pacientes naquilo que escapa a esse modelo (tudo que diz respeito à subjetividade, por exemplo) quanto a valorização dos aspectos mais “duros” do modelo mesmo quando esse não auxilia ou até entra em conflito com as situações encontra-das na prática.

Estas inferências, formuladas com base em processo interpretativo orientado pela epistemo-logia fleckiana, dificilmente seriam alcançadas de outra forma. O conjunto destes estudos permi-tiu explicitar um estilo de pensamento pouco re-flexivo com relação às suas próprias bases, que valoriza excessivamente determinados processos de produção de conhecimento sem que estes se-jam propriam en te apreen didos criticam en te, con t r ad izen d o em p ar t e as obser vações d e

Maykrut e Morehouse2 relatadas no início deste

texto. Se de fato as concepções filosóficas subja-centes às técnicas qualitativas são pouco conhe-cidas, isto não autoriza supor por outro lado

que inversamente os pressupostos subjacentes às técnicas quantitativas sejam melhor compreen-didos. Em particular, estes estudos colocaram em questão a idéia de que a prática médica seja kno-wledge-driven, ou seja, que o conhecimento téc-nico determine de forma unívoca as ações dos médicos.

Tendo em vista o gap descrito acima, a realiza-ção de mais estudos baseados em metodologias qualitativas, bem como a publicação deles resul-tantes, poderá, em princípio, permitir a apreen-são mais ampla das ricas inter-relações que cons-tituem a atenção à saúde. Por sua vez, uma maior visibilidade dos aspectos singulares e subjetivos dos saberes e práticas da saúde poderá, talvez, trazê-los da relativa penumbra que ora ocupam. Fica portanto o desafio a pesquisadores, profissi-onais e, talvez, sobretudo, a editores de publica-ções científicas, de promover uma maior produ-ção e divulgaprodu-ção de estudos baseados em técnicas qualitativas sobre a biomedicina.

Referências

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Artigo apresentado em 07/08/2006 Aprovado em 27/06/2007 1.

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