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Democracia e mobilização social: participação autônoma e instituições políticas na transição brasileira.

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RESUMO

DEMOCRACIA E MOBILIZAÇÃO SOCIAL:

PARTICIPAÇÃO AUTÔNOMA E INSTITUIÇÕES

POLÍTICAS NA TRANSIÇÃO BRASILEIRA

Alberto Tosi Rodrigues

Universidade Federal do Espírito Santo

O artigo propõe uma leitura das mobilizações e desmobilizações políticas da sociedade como a contrapartida dos processos de ampliação e estreitamento dos canais institucionais que regulam a interação dos atores, isto é, como movimentos de “socialização” ou “privatização” do conflito sócio-político. Tomando o caso empírico brasileiro, discute a transição e a “consolidação” democráticas do ponto de vista da permeabilidade do sistema político à participação autônoma da sociedade mobilizada.

PALAVRAS-CHAVE: mobilização; democracia; transição; conflito político.

I. INTRODUÇÃO

No âmbito da sociologia política, o pensamento conservador sempre indicou uma correlação direta entre a mobilização social e a eclosão de disfuncionalidades políticas sistêmicas de caráter desorganizador e desagregador.

Para citar um autor que teve influência im-portante no debate brasileiro desde os anos ses-senta, Samuel Huntington traçou um modelo — compartilhado no essencial com diversos outros pesquisadores — segundo o qual os processos de modernização socioeconômica gerariam a dis-seminação rápida de certas aspirações (de con-sumo, bem-estar etc), por parte das camadas su-balternas da sociedade, que remeteriam ao siste-ma político usiste-ma carga de desiste-mandas que, nos paí-ses “em desenvolvimento”, dificilmente poderia ser processada e atendida, gerando uma mobili-zação política vista sempre como anômica. “A relação entre mobilização social e instabilidade po-lítica parece ser razoavelmente direta. A urbani-zação e os aumentos nos índices de alfabetiza-ção, educação e exposição aos meios de massa provocam um incremento das aspirações e ex-pectativas, as quais, se não satisfeitas, galvani-zam os indivíduos e os grupos para a política. Na ausência de instituições políticas fortes e adaptá-veis, tais acréscimos de participação redundam em instabilidade e violência. [...] Quanto mais rápida a instrução da população, mais freqüente é a derrubada do governo” (HUNTINGTON, 1975, p. 60).

Nos anos setenta, sob os impactos da crise estagflacionista do capitalismo central, esse mes-mo conservadorismes-mo, por meio da célebre

Trilateral Comission, passou a associar as

disfuncionalidades do sistema político provocadas pelos processos de mobilização social à incapaci-dade dos governos de lançar mão de mecanismos adequados de gestão econômica (basicamente, relacionados à crise fiscal do Estado) e de implementação de políticas públicas em geral. Assim foi introduzido o debate sobre a “governabilidade” dos regimes democráticos: a mobilização “excessiva” da sociedade foi diretamente vinculada à sobrecarga de demandas sobre o sistema político e, por fim, à paralisia decisória e à incapacidade dos governos dos pa-íses capitalistas centrais de viabilizar políticas ca-pazes de debelar a crise (cf. CROZIER; HUNTINGTON; WATANUCKI, 1975). As difi-culdades do enfrentamento da crise econômica foram atribuídas, assim, ao próprio processo político democrático e, mais especificamente, lo-calizadas, pelos conservadores, “nos dispositivos institucionais da democracia de massa do Estado social” (OFFE, 1984).

Deste ponto de vista, quanto maior a diferen-ciação social e, com ela, quanto mais as condi-ções para a organização e a mobilização da socie-dade se fizessem presentes, numa palavra, quan-to maior a participação, maiores seriam os

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extensão, a eclosão dos regimes autoritários nos sessenta e setenta foi compreendida e até mesmo justificada como uma restauração legítima dos meios governativos por parte de Estados nacio-nais ameaçados pelo achaque de massas mobili-zadas pela ação do populismo irresponsável.

No Brasil, durante três décadas, entre os anos trinta e sessenta deste século, processou-se a in-corporação clientelista das massas urbanas ao processo político.

Tal incorporação se fez, fundamentalmente, por via do corporativismo de Estado e da prática populista, que têm, por sua vez, raízes culturais e organizacionais mais profundas no patrimonialismo, no patriarcalismo e no coronelismo tradicionais. Não discutirei aqui tais matrizes políticas, mas é importante apontar ao menos que se, por um lado, o patriarcalismo (cf. DUARTE, 1939; HOLANDA, 1992), o patrimonialismo (cf. FAORO, 1979; SCHWARTZMAN, 1988) e o coronelismo (cf. LEAL, 1975) dizem respeito aos processos his-tóricos de privatização do público em contextos de ausência de competição ou de competição

po-lítica controlada, por outro lado o populismo (cf. WEFFORT, 1980) e o corporativismo populista (cf. DINIZ e BOSCHI, 1991) são respostas institucionais ao advento da competição política

imposta por uma ampla diferenciação social (cf. SANTOS, 1993).

Como se sabe, o movimento de 1964 pôs fim ao ciclo populista. Após uma década de regime burocrático-militar, mais especificamente após o momento de maior repressão social e fechamen-to político (1968-1974), os nós tradicionais da política brasileira foram, em parte, desatados. Do final dos anos setenta em diante desencadeou-se uma mudança nos mecanismos pelos quais as li-deranças políticas usualmente convocam as mas-sas, urbanas e rurais, a tomar parte nos conflitos políticos. Nesta mudança, quebrou-se a exclusi-vidade dos padrões populistas de articulação lide-rança/massa e de mobilização política da socie-dade. Embora o antigo formato persista ainda de modo considerável — em processos eleitorais de nível e abrangência variados, e especialmente como prática incorporada à cultura política — e embora lideranças à direita e à esquerda valham-se dele ainda agora para orientar a própria condu-ta, sua vigência passou a ser contrastada pela emergência de um setor organizado da sociedade civil que logrou articular, além de uma nova

dis-posição para o “combate” político em moldes mais autônomos, também um novo tipo de ética públi-ca.

As bases sociais do conflito político brasileiro cindiram-se, no período, entre um setor organi-zado, cuja participação autônoma expandiu-se — das reivindicações localizadas para a participação no espaço público de abrangência nacional —, e um desorganizado, que permaneceu como objeto da manipulação populista ou de usos de “novo” tipo. Durante a transição à democracia, esses novos contornos assumidos pelas práticas políti-cas da sociedade interagiram de modo importan-te com o processo de reinvenção da ordem institucional. Mais uma vez, colocou-se o contraponto entre as reivindicações expressas pelas mobilizações políticas da sociedade organi-zada, por um lado, e as “necessidades objetivas” postas pela tecnocracia do Estado em termos de governança do aparelho estatal com vistas ao combate à crise econômica associada à inflação crescente e ao endividamento externo.

O objetivo deste artigo é, contra o pano de fundo deste painel rapidamente pincelado, levan-tar elementos analíticos que permitam uma leitu-ra das mobilizações sociais diversa da posta pelo conservadorismo sociológico. Uma leitura que encara as mobilizações e desmobilizações da so-ciedade organizada como a contrapartida dos pro-cessos de ampliação e estreitamento do sistema

político ou, em outros termos, como movimen-tos de “socialização” ou de “privatização” do

conflito sóciopolítico. Tomando, também, o pro-cesso brasileiro de “transição” e “consolidação” democráticas, pretendo levantar alguns elemen-tos relacionados à tensão que se estabelece entre os processos de mobilização social e a constru-ção das novas instituições políticas da democra-cia.

II. O PROCEDIMENTO DEMOCRÁTICO Bobbio (1985 e 1988) ensina que a democra-cia é, basicamente, um método. Com o advento da modernidade, a antiga democracia encontrou-se com o liberalismo para uma associação reci-procamente proveitosa: este último proveria à primeira as garantias civis indispensáveis à liber-dade dos atores e a primeira daria ao último um método, um procedimento para a tomada das de-cisões coletivas.

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democrati-zação, Robert Dahl (1971) propôs uma definição mínima para o procedimento democrático. Seria uma poliarquia o regime que desenvolvesse

sufi-cientemente a institucionalização dos procedimen-tos e a ampliação da participação da cidadania.

Qualquer processo de tomada de decisões in-clui, segundo Dahl, dois estágios analiticamente distinguíveis: a composição da agenda política (isto

é, a decisão sobre que temas serão objeto de de-liberação) e a decisão propriamente dita (“estágio

decisivo”), isto é, os resultados (cf. DAHL, 1989, p. 107). Para que uma dada ordem política seja considerada democrática, pressupõe-se que as decisões só podem ser legitimamente tomadas pelos próprios membros da associação, isto é, por aqueles aos quais as decisões se aplicam e que estão, ao cabo, obrigados a cumpri-las. E que esta tomada de decisão se faça em condições de igual-dade. Supõe-se que cada membro adulto da

as-sociação “é o melhor juiz de si mesmo”, ou seja, é um cidadão.

Sob uma ordem política democrática, teremos um processo político plenamentedemocrático se for observado um conjunto de critérios

ideal-tí-picos, a saber:

(1) No processo de tomada de decisões, os cidadãos devem ter condições adequa-das e iguais entre si para introduzir ques-tões na agenda política e para expressar as razões pelas quais preferem um determi-nado resultado a outro.

(2) No estágio decisivo do processo de to-mada de decisões, deve ser assegurada a cada cidadão igual oportunidade de expres-sar sua escolha; e essa escolha deve ser computada com peso igual ao das esco-lhas dos demais cidadãos. (Esse critério não implica em proibição de representação proporcional ou delegação de poderes para certas decisões).

Atendendo a estes dois primeiros critérios, sustenta Dahl, já se pode falar em governo de acordo com o processo democrático.

(3) O terceiro critério procura responder à objeção pela qual se questiona a capacida-de intelectual dos componentes da demos

para tomar determinados tipos de decisão. Dahl lembra que a democracia está histó-rica e teohistó-ricamente associada ao problema do esclarecimento, uma vez que trata-se

da tomada de decisão acerca do que as pessoas querem ou do que pensam ser o melhor, o que requer algum grau de infor-mação. Daí o acréscimo de um terceiro critério, pelo qual “cada cidadão deve ter oportunidades adequadas e iguais para des-cobrir e validar (dentro do tempo permiti-do pela necessidade de uma decisão) a es-colha sobre a matéria a ser decidida que melhor serviria aos interesses dos cida-dãos” (DAHL, 1989, p. 112).

(4) Mas há ainda o risco de que a agenda de temas a serem decididos seja excessi-vamente limitada. O controle sobre a agen-da pode ser expropriado ao conjunto agen-da cidadania por indivíduos ou oligarquias, como no caso de detentores de cargos exe-cutivos que pretendam esvaziar as atribui-ções do parlamento, por exemplo. Daí o acréscimo do critério pelo qual “a demos

deve ter a oportunidade exclusiva de deci-dir que matérias serão colocadas na agen-da de matérias a serem decidiagen-das por meio do processo democrático” (DAHL, 1989, p. 113). Sem prejuízo da possibilidade de delegação, por parte da demos, da decisão

sobre algum tema da agenda.

(5) Há, finalmente, o risco de que a demos

seja excessivamente restrita. Ou seja: qual o tamanho da cidadania para que um siste-ma seja democrático? Essa questão envol-ve tanto o problema da inclusão (quais

pessoas devem ser legitimamente incluí-das na demos) quanto o problema do

es-copo da autoridade (em que medida o

po-der decisório da demos pode ser

legitima-mente alienado). Daí o quinto critério ge-ral, pelo qual “a demos deve incluir todos

os membros adultos da associação, exceto visitantes e pessoas que se comprove se-rem mentalmente incapazes” (DAHL, 1989, p. 129).

Em suma, do ponto de vista da teoria demo-crática, os dois critérios básicos, na acepção de Dahl, garantem já a vigência de uma democracia, ou melhor, de um processo democrático em

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plena-mente democrático com respeito à agenda e com relação à demos. Num limiar ainda superior, um

processo que em adição propicie o controle final da agenda por sua demos é plenamente democrá-tico com relação a sua demos. Mas apenas se a demos for inclusiva o suficiente para atender ao

quinto critério poderemos descrever o processo de tomada de decisão como plenamente demo-crático” (DAHL, 1989, p. 130, sem grifo no

ori-ginal) .

E sustenta que, embora trate-se de critérios ideal-típicos, não se pode simplesmente acusá-los de irreais ou descolados da realidade. Argu-menta que a pressuposição de igualdade política não cai por terra frente às desigualdades de re-cursos dos diferentes atores, que obviamente existem na realidade. Pelo contrário, afirma que o fundamental é que as desigualdades de recur-sos (econômicos, ideológicos, de status etc) não

redundem em desigualdades formais dos cidadãos individuais frente ao processo político. “Quando diferenças nos recursos políticos tornam os ci-dadãos politicamente desiguais, então essa desi-gualdade necessariamente revela-se como uma violação dos critérios” (DAHL, 1989, p. 131; ver também BEETHAN, 1994 e SAWARD, 1994). III. BRASIL AUTORITÁRIO:

DESMOBI-LIZAÇÃO, CONTROLE E RENASCI-MENTO

A história da passagem da autocracia estabelecida pelos militares em 1964 para um re-gime que pudesse ser submetido à prova dos cri-térios de Dahl, como sabemos, foi complexa, longa e truncada. E, ainda assim, os resultados da pro-va são controversos.

Sob o regime burocrático-militar, o Estado não só havia aprofundado o capitalismo brasileiro como, do ponto de vista de suas relações com a sociedade, também ampliara a significação políti-ca do corporativismo tradicional, ao mesmo tem-po em que banira — ao menos como prática vi-gente, no período — o padrão populista de com-petição, responsável pela mobilização das massas urbanas até então. Houve enfim um re-estreitamento da arena política, possibilitado pela

reação militar à radicalização da instabilidade po-lítica e econômica do final do período populista e que foi garantido pelo aprofundamento da tutela corporativista (O’DONNELL, 1976).

Ao mesmo tempo em que o Brasil se urbanizava

radicalmente (com o predomínio numérico, pela primeira vez na história, da população urbana so-bre a rural), se re-industrializava soso-bre novas ba-ses (essencialmente, com base no capital exter-no), promovia uma reestruturação ocupacional de grandes proporções (com predomínio do setor secundário, em detrimento do primário, e com amplo crescimento relativo do terciário), sem fa-lar na melhoria sensível de alguns indicadores so-ciais, como escolaridade (SANTOS, 1985), o corporativismo era retomado pelo regime como a tecnologia institucional mais adequada ao con-trole dos atores sociais tradicionais, notadamente as classes trabalhadoras.

Deve-se considerar que as metas econômicas e políticas do regime militar, em resposta ao “pretorianismo” (HUNTINGTON, 1975, p. 204-273) vigente na crise do populismo, eram “lim-par o mercado de produtores ‘ineficientes’, he-rança das primeira etapas de industrialização e, não casualmente, em sua grande maioria capita-listas locais; por termo às demandas ‘excessivas’ ou ‘prematuras’ de participação política e econômica do setor popular; eliminar eleições e partidos políticos, que haviam sido canais de trans-missão dessas demandas [...]; ‘disciplinar’ a força de trabalho em suas relações diretas com os em-presários; e subordinar as organizações de classe — sobretudo os sindicatos — que podiam sus-tentar o ressurgimento das lideranças e deman-das que se buscava eliminar. A obtenção dessas metas aparecia como a estabilização das relações sociais a partir da qual, por sua vez, começavam a ser possíveis as inversões internas e externas [...]” (O’DONNELL, 1976, p. 16).

A retomada do corporativismo estatal é o ins-trumento fundamental para a consecução desses objetivos. Em contraste com o corporativismo populista, essa nova intervenção autoritária do Estado caracteriza-se pela concomitante “estatização” das organizações da sociedade e “privatização” de certas áreas do Estado, de modo segmentário, isto é, diferenciado segundo o re-corte de classe. Grosso modo: houve uma

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fi-nanciamentos, isenções e incentivos. Consolidam-se nesConsolidam-se momento os “anéis burocráticos”, típi-cos do “modelo político brasileiro”. Estabeleceu-se, enfim, — há um certo consenso entre os ana-listas sobre isso — um novo pacto de dominação ou uma nova aliança de classes, setores ou gru-pos sociais, estruturada num tripé apoiado sobre o Estado, o capital estrangeiro e, subordinadamente, o capital nacional (cf. CAR-DOSO, 1975).

Sob tais condições de fechamento político extremado, não se pode, de modo abrangente, falar em participação política da sociedade nos dez primeiros anos de regime militar. A partir do go-verno Geisel e especialmente sob o gogo-verno Figueiredo, porém, ganham visibilidade três di-nâmicas (evidentemente interligadas) nesse sen-tido: a chamada abertura política, especialmente

no que diz respeito à legislação restritiva das li-berdades mínimas, à dinâmica parlamentar e à retomada da importância do processo eleitoral (cf. VELASCO E CRUZ e MARTINS, 1983; DINIZ, 1985); o desenvolvimento do associativismo e a

erupção dos movimentos sociais urbanos (cf.

BOSCHI, 1987; SADER, 1988; DOIMO, 1995); e o surgimento do novo sindicalismo combativo,

cuja fachada mais visível aparecia no ABC paulista nos últimos anos da década de setenta (cf. KECK, 1988). No plano partidário, a reforma de 1979 deu à luz tanto a continuidade dos partidos vigen-tes no bipartidarismo (PMDB e PDS, como su-cedâneos de MDB e Arena), quanto a retomada das tendências populistas — desta vez como far-sa — à direita (PTB) e à esquerda (PDT), sendo surpreendida, no entanto, pelo surgimento do PT, cujas bases sociais fundamentais se constituíram a partir da modernização econômica apontada. No início da década de oitenta, por sua vez, surgem a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), como as expressões mais importantes da organização autônoma das classes trabalhadoras urbanas e rurais e significando, nesse particular, um corte nítido com respeito ao populismo e ao coronelismo, respectivamente.

Eclodem também, e não por coincidência, as grandes mobilizações de massa com a Campanha das “Diretas Já” de 1984 (cf. RODRIGUES, 1993 e 1995), à qual se segue o estabelecimento do governo civil da Aliança Democrática, as tentati-vas fracassadas de conter o processo inflacioná-rio que se agudizava crescentemente desde 1983,

a tentativa de reformulação do marco legal do novo regime com o processo Constituinte de 1987-88 e, finalmente, a primeira eleição presi-dencial desde 1960, em 1989.

O que importa destacar aqui é que a ampla modernização econômica operada pelo regime militar entre 1964 e 1984, do mesmo modo que vinculou-se à repressão extremada da participa-ção social pretoriana-populista no momento ini-cial — da qual o “novo” corporativismo que des-taquei acima foi um aspecto importante —, tam-bém viabilizou a diferenciação social com base na qual se deu, na última década do regime, a explosão associativa e o surgimento dos movi-mentos sociais urbanos, do novo sindicalismo e do PT.

IV. CONJUNTURA, PROCESSO, MOBILIZA-ÇÃO

Para acionar aqui os elementos analíticos ne-cessários ao estudo de situações relacionadas à ampliação da participação da sociedade organiza-da no conflito político, é preciso estabelecer al-guns pontos básicos sobre conjunturas conflitivas e processos de mobilização social, importantes para a seqüência do raciocínio.

Conflitos políticos são situações em que se verifica a oposição entre atores portadores de objetivos, recursos e estratégias diferenciadas. Seu resultado não pode ser estabelecido a priori,

ape-nas pela avaliação de capabilities intrínsecas ou

estoques de recursos disponíveis aos atores polí-ticos. Ele deve antes estar relacionado à análise do próprio desenrolar do processo conflitivo, que inclui tanto constrangimentos de ordem institucional quanto a oposição de outros atores e, inclusive, a intervenção de eventos absoluta-mente aleatórios ou imprevisíveis.

“É extremamente difícil prever o resultado de uma disputa observando o princípio, porque nem sequer sabemos quem mais vai entrar nela. A conseqüência lógica de se insistir demasiadamente no determinismo das origens privadas do

confli-to é atribuir um valor de zero ao processo

políti-co” (SCHATTSCHNEIDER, 1967, p. 50, sem grifos no original; ver também HINDESS, 1982, p. 500).

Um conflito, por sua vez, estabelece-se entre agentes numa arena específica (ou ao mesmo

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geralmente utilizada, arena refere-se às condições

dadas de um conflito ou conjunto de conflitos, bem como a seus modos de ação específicos (voto, greves, demissões etc) e às limitações acer-ca dos possíveis resultados. Por exemplo: se fa-lamos de um conflito na arena parlamentar, os resultados possíveis serão provavelmente leis, re-gulamentações, fiscalizações etc. Do mesmo modo, agenda pode ser definida como a pauta de

temas e/ou questões em torno da qual os confli-tos são armados, cujo conteúdo é também ele objeto do conflito, bem como a disposição tem-poral desses temas. Por exemplo: pode haver um conflito tanto em torno de um programa de privatizações quanto um conflito para que o tema das privatizações possa entrar na agenda.

Em suma, a conjuntura é um momento de um processo político mais longo, balizado por certos parâmetros políticos (e econômicos, sociais, cul-turais, ideológicos etc) estruturados, no qual de-terminados atores, portadores de recursos e es-tratégias, confrontam-se conflitivamente em tor-no de arenas e agendas específicas, com vistas à obtenção de certos resultados. No decorrer do processo conflitivo conjuntural, as estruturas que servem de balizamento aos atores, as arenas e agendas em torno das quais os atores conflitam, os recursos de que dispõem, os objetivos que ini-cialmente buscavam, e inclusive os próprios atores enquanto entidades unitárias, estão sujeitos a trans-formações diversas, desejadas ou não, esperadas ou não. E conflito político é toda situação em que os obstáculos à consecução dos objetivos de de-terminados atores incluem a oposição de outros atores (cf. HINDESS, 1982, p. 498). Em decor-rência, o resultado final do conflito é função direta de sua abrangência.

Valho-me aqui de três proposições de Schattschneider, pelas quais estabelece-se uma relação direta entre, de um lado, a abrangência do conflito e o perfil dos atores (se individuais ou

coletivos, se muitos ou poucos, se de direita ou de esquerda), e, de outro, a composição e a reso-lução da agenda política.

(a) em primeiro lugar, a de que o resultado de qualquer conflito político é função de seu alcance, de sua possibilidade de

en-volver um número maior ou menor de atores;

(b) em decorrência disso, a proposição de que a estratégia política mais importante é

aquela pela qual os atores se ocupam de expandir ou controlar o alcance dos con-flitos; e

(c) a de que, implícita às anteriores, reside a idéia de que a restrição do conflito aos limites de seus contendores iniciais tende a perpetuar a correlação de forças dada a princípio, enquanto que a expansão do al-cance do conflito tende a desequilibrá-lo em favor dos contendores interessados em (e que se mostrem efetivamente capazes de) ampliá-lo.

Conforme a propensão dos atores e a situação dada, as estratégias tenderão, pois, à “privatização” ou à “socialização” do conflito.

Conforme a imagem sugerida por Schattschneider, “o conflito político não é como uma partida de futebol, que se efetua num campo medido, por um número pré-determinado de jo-gadores, e na presença de um público rigorosa-mente excluído do campo de jogo. A política é muito mais semelhante ao jogo original e primiti-vo do futebol, no qual todo mundo era livre para participar, uma partida em que toda a população de um povoado podia jogar contra toda a popula-ção de outro povoado, correndo livremente para um ou outro lugar pelo campo aberto. Muitos conflitos são estreitamente confinados por meio de uma variedade de estratégias, mas a qualidade distintiva dos conflitos políticos é que a relação entre os ‘jogadores’ e o público não foi definida precisamente, e em geral não há nada que evite que os espectadores participem do jogo” (SCHATTSCHNEIDER, 1967, p. 24).

Mas é claro que o alcance de um conflito será função também da escala de organização, moti-vação e potencial de mobilização dos atores e, ao mesmo tempo, do grau de competitividade do sis-tema, isto é, da natureza das instituições políti-cas. É preciso atentar, em especial, para aqueles conflitos capazes de hegemonizar a grande arena política nacional.

A discussão do quesito participação requer, na nova situação de articulação e organização que se abriu na sociedade brasileira a partir da década de setenta, a abordagem de algumas perspectivas analíticas que podem ajudar a esclarecer o fenô-meno da mobilização política da sociedade, tanto

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A primeira questão é: como conceituar a mobilização política da sociedade num contexto de ampliação da arena política — tanto do

pon-to de vista dos novos espaços institucionais fran-queados paulatinamente pela transição à demo-cracia, quanto do ponto de vista do ingresso no jogo de novos atores políticos? Como passa a se dar a relação entre o conflito político, as novas regras do jogo e os novos jogadores (postos ao lado dos antigos)? Como analisar o impacto des-ta ampliação sobre os desdobramentos do jogo? Como compreender as mobilizações sociais, não como meras irrupções esporádicas ou como com-portamentos anômicos de massa, mas como lan-ces políticos que são parte do próprio conflito democrático?

A literatura sobre mobilizações dispõe de res-postas diversas sobre estas questões. Este não é o local para uma resenha exaustiva — que pode ser encontrada em Mann (1991) e Tarrow (1988, p. 421-428) — mas posso indicar aqui algumas respostas pertinentes à questão geral da relação entre, de um lado, a mobilização social de massa, por vezes chamada de “protesto político”, e de outro o sistema político institucionalizado, em especial a institucionalidade política democráti-ca.

Nem toda literatura trata das mobilizações como participação de massa em grandes ques-tões de política nacional, que é nosso interesse mais imediato aqui. Inicialmente ligada à psicolo-gia social da virada do século (cf. LE BON, 1954; CANETTI, 1983) ou à sociologia do desenvolvi-mento dos anos cinqüenta e sessenta (cf. SMELSER, 1963; além do já citado HUNTINGTON, 1975), a pesquisa sobre mobili-zações ganhou grande impulso do final da década de sessenta até a década de oitenta, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, motivada pelas ondas de protesto político que irrompiam. Enquan-to os estudiosos europeus enfatizavam as causas estruturais dos movimentos, as identidades coletivas que eles expressavam e suas relações com o capitalismo avançado (cf. TILLY, 1978; TOURAINE, 1981; entre outros), os americanos preferiam um enfoque “atitudinal”, destacando a participação (ou constrangimentos à participação) dos grupos organizados no protesto de massa e suas formas de ação coletiva (cf. GAMSON, 1968; LIPSKY, 1970; OBERSCHALL, 1973; OLSON, 1978; entre outros). Nos trabalhos an-teriores à década de oitenta, salvo algumas

exceções, a ênfase na novidade dos movimentos (então chamados “novos movimentos sociais”) fez com que a institucionalidade política

apare-cesse na análise como categoria residual, sim-plesmente como fonte de satisfação das deman-das ou de repressão ao protesto. Mas a partir da década passada, tanto na Europa quanto nos Es-tados Unidos, surgiram estudos mais específicos que procuraram trazer o processo político ao centro

da abordagem das mobilizações sociais (cf.

TILLY, 1978 e 1985; OFFE, 1985; DOBRY, 1986; TARROW, 1989; GAMSON, 1990; entre outros). Desta literatura mais recente, interessa aqui destacar duas possibilidades analíticas abertas na interface das mobilizações com o sistema políti-co institucional: uma que parte da políti-conjuntura, outra que parte do processo. A primeira é o mo-delo de análise de conjunturas fluidas, isto é,

con-junturas de crise política conjugadas, no correr do curto prazo, a amplos processos de mobilização de massa, desenvolvido por Michel Dobry (1983 e 1986). A segunda é a perspectiva de análise de ciclos de protesto e reforma, isto é,

uma agregação de episódios de mobilização e a aferição das respostas dadas pelo sistema políti-co, no correr de um prazo mais longo, desenvol-vida por Sidney Tarrow (1988 e 1989).

Na perspectiva de Dobry, a especificidade das conjunturas de crise política está justamente nas complexas relações que se estabelecem entre as mobilizações e as mudanças no estado dos siste-mas políticos. “Em oposição a todas as forsiste-mas de reificação das instituições [escreve ele] trata-se, desde logo, de abordar as ‘estruturas’, ‘orga-nizações’ ou ‘aparelhos’ levando em conta sua sensibilidade às mobilizações, aos lances desferi-dos, à atividade tática dos protagonistas das cri-ses. Mas trata-se também de decifrar simultane-amente as lógicas de situação que, em tais

con-textos, tendem a se impor aos atores e tendem a estruturar suas percepções, seus cálculos e seus comportamentos” (DOBRY, 1986, p. 39-40, sem grifo no original).

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conter setores sociais organizados e conjun-turalmente mobilizáveis. Tal ampliação em torno de grandes questões faz com que todos os prota-gonistas deixem de basear seus cálculos políti-cos nos referenciais rotineiros, ou seja, na lógica dos campos sociais específicos aos quais nor-malmente sua atividade política está confinada. Em tais conjunturas, passam a referenciar sua atividade tática em uma lógica de situação de cuja

elaboração participam e por cujos contornos são influenciados, lógica que perpassa o confinamento dos diferentes espaços sociais e das diferentes arenas políticas rotineiras que convivem numa so-ciedade complexa e cria uma base temática co-mum sobre a qual o conflito conjuntural passa a ocorrer.

Por exemplo, no Brasil de 1984 (na campanha das “Diretas Já”) ou de 1992 (na campanha pelo

impeachment de Collor), sindicalistas e

operári-os, capitalistas e líderes de entidades empresari-ais, deixaram de operar politicamente a partir da lógica normalmente empregada nas relações en-tre empresários e trabalhadores; os estudantes deixaram de agir a partir da lógica própria às ques-tões universitárias; e mesmo os congressistas deixaram de agir exclusivamente a partir da lógi-ca e da rotina próprias aos jogos de força parla-mentares; e assim fizeram todos estes atores ci-tados, para passarem a agir em torno da grande questão política nacional colocada na agenda (elei-ções diretas ou impeachment). Abandonaram com

isso, por um momento, suas arenas políticas setoriais, ou seja, os espaços socialmente circuns-critos nos quais rotineiramente atuavam, para jo-garem o grande jogo (ampliado) da política naci-onal, durante a vigência da conjuntura crítica. Ou, dito de outro modo, estas arenas restritas mo-mentaneamente se fundiram numa grande arena política nacional.

Como conseqüência imediata disso que aca-bamos de dizer, os recursos políticos de que os

atores se valem em situações rotineiras mudam de valor (podem ampliar-se ou reduzir-se), mo-dificando o peso relativo dos contendores. Dada a rapidez com que isso ocorre nas conjunturas de crise, toda a rotina estratégica que geralmente empregam se desestrutura. Ocorre uma situação de incerteza generalizada entre os diferentes

atores, aumentando a dificuldade de cada um para calcular as próprias ações e as dos adversários, bem como antecipar os possíveis resultados de-las. Como as situações são novas e as interações

pouco ou nada comuns, aumenta muito o grau de

imprevisibilidade do jogo, assim como também

podem tornar-se instáveis tanto os objetivos

pon-tuais e certas preferências dos atores quanto até mesmo certas regras do jogo político. Como re-sultado, os atores ficam mais dependentes ainda dos lances desferidos pelos demais jogadores para decidirem quais serão seus próprios lances se-guintes. Isto é, a perturbação da capacidade de cálculo dos atores, em vista da rapidez, incerteza e imprevisibilidade do jogo conjuntural, aumenta a interdependência tática entre esses atores.

A estes momentos de instabilidade, de imprevisibilidade, de rompimento com procedi-mentos políticos rotineiros e de mudança nas are-nas de jogo, Dobry chama de conjunturas políti-cas fluidas. No centro da crise, está a ampliação

do jogo, isto é, a mobilização política (conjuntural)

da sociedade. Nessas conjunturas, o espaço so-cial se simplifica, pois tudo passa a girar em

tor-no de algumas poucas ou mesmo de uma única “grande” questão política jogada na arena nacio-nal e, ao mesmo tempo, o jogo político torna-se infinitamente mais complexo, pela precariedade e pela velocidade das relações. Até que, ao final, o esgotamento da questão central leve à desmontagem da lógica de situação e o jogo

po-lítico tenda a reestruturar-se em torno de novas e antigas arenas setoriais e de relações institucionalizadas (em parte, as mesmas de an-tes, em parte, novas relações). Em suma, o jogo volta ao “normal”, mas as cartas podem estar sig-nificativamente reembaralhadas (cf. RODRIGUES, 1993, cap. 1).

A partir desta discussão, é possível fazer pelo menos duas inferências, a saber. Em primeiro lu-gar, se tomarmos um lapso de tempo maior, pode ser possível detectar mais de uma (talvez várias) conjunturas de mobilização como a descrita aci-ma, em torno de questões nacionais, ao lado de outras, de abrangência mais restrita, em torno de questões setoriais. Tal observação, em perspecti-va temporal mais alongada, poderia permitir de-tectar conexões e inter-relações entre estes dife-rentes episódios, aparentemente isolados, bem como seus respectivos impactos sobre o jogo político institucional “rotineiro”. Em segundo lu-gar, nesse lapso mais longo talvez fosse possível considerar também os eventuais vínculos exis-tentes entre as respostas institucionais dadas pelo

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sistema político, de algum modo, reformulou-se em resposta ao advento das mobilizações que ori-ginaram conjunturas críticas ou não. E se reformulou-se, verificar se o fez no sentido de atender a demandas ou de dotar-se de instrumen-tos capazes de oferecer desestímulos a novas pressões sociais (isto é, desenvolver “tecnologias de contenção”).

Parecem ser estas as questões colocadas por Sidney Tarrow. Como vimos acima, na literatura mais recente sobre mobilizações a principal novi-dade talvez seja o fato de haver-se rompido as barreiras analíticas entre política “institucional” e “não-institucional”. Com isso, emergiram algu-mas formulações importantes acerca das interações entre mobilização e instituições.

Em primeiro lugar, considere-se o conceito de

estrutura de oportunidades políticas e, ligado a

ele, também a preocupação que se passou a ter com a relação entre a emergência, a estratégia e a dinâmica dos movimentos de protesto e contes-tação, de um lado, e o quadro cultural e as tradi-ções da política nacional, de outro. Ou seja, se não há solução de continuidade entre a política feita nas instituições e a feita nas ruas (como

também o demonstra o modelo analítico de Dobry), ambas devem estar sujeitas a conjuntos de constrangimentos ou de oportunidades que dificultam ou facilitam a ação de alguns sujeitos políticos em detrimento de outros, conforme a situação (o que se costuma chamar de “seletividade

estrutural”).

Mais especificamente, deve-se considerar — na avaliação do impacto político das mobilizações — o grau de abertura ou fechamento do sistema

político, isto é, o perfil do regime; a estabilidade

ou instabilidade dos alinhamentos políticos pac-tuados ao nível da política institucional; a presen-ça ou ausência de aliados e grupos de apoio com lastro organizacional e engajamento institucional consolidado; presença ou ausência de divisões dentro das elites políticas e seu grau de tolerância ao protesto; a capacidade ou incapacidade do governo na formulação de políticas, bem como seu grau de agilidade na elaboração de respostas a demandas. É claro que esta chamada “estrutu-ra de oportunidades” deve ser conside“estrutu-rada em sua variação ao longo do tempo, o que nos obriga a pensar a relação entre as mobilizações e a institucionalidade política a partir de um registro temporal mais alongado, que extrapola as lides

específicas da análise de conjuntura (cf. TARROW, 1988, p. 429; 1989, p. 32-40, p. 82-90).

Em segundo lugar, considere-se a importân-cia do espaço social constituído pelos movimen-tos sociais, no interior do qual arregimentam

ade-sões, travam a batalha do convencimento, com-petem com outros potenciais movimentos e de-senvolvem identidades políticas. Conforme o enfoque de cada autor, esse espaço social pode ser chamado de “setor dos movimentos sociais”,

sub-cultura dos movimentos sociais” ou “rede

de movimentos sociais”. Este setor, sub-cultura ou rede de movimentos, tal como o entende Tarrow, abrange todos os indivíduos e grupos que estejam engajados em alguma forma de ação direta visando fins coletivos ou bens públicos.

Isso inclui as organizações formais que dão su-porte a movimentos sociais (ONGs, por exem-plo), mas também se estende ao conjunto de par-ticipantes esporádicos ou àqueles que emprestam apoio informal aos movimentos (no Brasil, por exemplo, OAB, ABI, Igreja Católica etc). E pode também incluir eventualmente os grupos de inte-resse comuns (inclusive sindicatos e centrais sin-dicais). Não me parece de outra natureza a noção de “campo ético-político” desenvolvida por Doimo (1995) na análise dos movimentos sociais brasileiros da década de 1970, e que também tem relações com as “matrizes discursivas” de que fala Sader (1988), a propósito dos mesmos mo-vimentos. Na visão de Tarrow, “pessoas e gru-pos podem mover-se para dentro ou para fora do setor de movimento social, e mesmo organiza-ções fundadas para atividades não-movimentalistas podem cooperar com ele por breves períodos [...]. O tamanho, o caráter e a composição do setor de movimento social mudam ao longo do tempo, assim como os grupos se mobilizam e desmobilizam, os temas entram e saem da agen-da política e as elites respondem com diferentes combinações de facilitação, repressão, indiferen-ça e reforma” (TARROW, 1988, p. 432).

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Em terceiro lugar, considere-se o tema dos

ciclos de protesto e o das relações estabelecidas,

dentro destes ciclos, entre protesto e reforma política. Baseado nos trabalhos de Tilly sobre os movimentos do século XIX e no de Pizzorno so-bre conflito industrial, Sidney Tarrow observou que a magnitude do conflito, seus canais de difu-são, as formas de ação empregadas, além dos próprios atores e dos tipos de organização, vari-am enormemente ao longo do tempo. Ao tomar em consideração o ciclo, abandona a idéia de “es-tabilidade estrutural” dos sistemas políticos para trabalhar com a idéia de “estabilidade dinâmica”, o que implica compreender as mobilizações como sucessivas realizações, embora em diferentes for-matos, de um mesmo princípio de interação en-tre os atores sociais mobilizados e a institucionalidade. Tal abordagem permite identi-ficar, ao longo do período, diferentes fases de consenso e mobilização, de mudança ideológica ou organizacional, e de transformações institucionais, todos fatores que impactam a emer-gência de uma dada questão na agenda política. Assim, lançam-se novas luzes sobre conjunturas de forte mobilização de massa, pois se de um lado elas se explicam pelo sucesso das bandeiras ou da organização dos movimentos, e pela estrutura de oportunidades encontrada no momento, “por outro podem ser explicadas por externalidades nos ciclos de protesto, no qual grupos que emergem na crista da onda do protesto podem aproveitar-se da atmosfera geral de descontentamento cria-da pelos esforços de outros durante as fases ini-ciais do ciclo” (TARROW, 1988, p. 434-435).

Ciclos de protesto podem ser definidos, em suma, como agregações de episódios de mobilização parcialmente autônomos e indepen-dentes. Em seu curso, novas formas de ação emergem e evoluem, o setor (rede ou sub-cultu-ra) dos movimentos cresce e muda sua composi-ção, e as oportunidades políticas surgem ou ces-sam, em parte em conseqüência dos temas pos-tos na agenda, das práticas mobilizatórias e das conquistas obtidas pelos próprios movimentos que brotam no correr do ciclo.

Tarrow pensa os ciclos de protesto como algo análogo ao ciclo econômico, isto é, como uma série de decisões individuais e coletivas tomadas num contexto marcado pela ação de fatores sistêmicos que não são uniformemente experi-mentados, mas antes difusamente percebidos. Os fatores que desencadeiam o ciclo são

“estrutu-rais”, por certo, mas uma vez o ciclo desencade-ado há uma retroalimentação em que resultdesencade-ados de protestos passados catapultam as expectati-vas frente a novos confrontos. Tal enfoque, por-tanto, privilegia a percepção do processo em

an-damento, sem esquecer as especificidades dos lances conjunturais. “Um ciclo de protesto é fun-damentalmente um processo político” (TARROW,

1988, p. 435, sem grifo no original).

Nesse sentido, o ciclo pode ser analisado em três fases. Uma fase ascendente, que dá origem

ao ciclo a partir de uma situação estrutural de acúmulo de “injustiças” ou de repressão sobre certos setores sociais (como na primeira década do regime militar brasileiro), e/ou pelo apareci-mento de novas oportunidades de ação política (como em sua segunda década). Dada essa situ-ação, o surgimento de movimentos disruptivos se difunde como que “por imitação”. Nessa fase, o protesto se espalha de um grupo a outro e ten-de a pressionar a estrutura ten-de oportunidaten-des po-líticas visando a abertura de novas oportunidades (como o processo brasileiro de “descompressão” e “abertura” política). Estas mobilizações desen-rolam-se num sentido crescente até o pico do

ci-clo. Nesse momento, descrito na literatura como “momento de loucura” (moment de folie, moment of madness), chegamos a uma situação que pode

ser satisfatoriamente analisada como uma “con-juntura fluida”, vista acima (como na campanha pelas “Diretas Já”). A ela segue-se uma fase des-cendente, de desmobilização, resultado do

des-gaste do tema central que monopolizava a agen-da, e marcada pela reciclagem dos movimentos e organizações, bem como de suas temáticas (cf. TARROW, 1989, p. 50-56). Acrescente-se que o momento descendente poderia ser visto, também, como a porta de entrada para uma nova fase as-cendente.

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ângulo, o que temos até aqui chamado de “estru-tura de oportunidades políticas”. Pois o que apa-rece, do ponto de vista dos movimentos, como mudanças nas oportunidades de ação, do ponto de vista institucional pode ser percebido como mudanças no regime político.

V. MOBILIZAÇÃO, TRANSIÇÃO, “CON-SOLIDAÇÃO”

Já nos perguntamos qual o efeito do engajamento de um grande número de novos atores num conflito político dado. Mas a mesma pergunta poderia ser feita de outro ângulo: sob que condições institucionais seria facultada e/ou facilitada ou, por outro lado, restringida e/ou difi-cultada, a entrada num dado conflito de um am-plo espectro de novos atores individuais ou coletivos? Ou, por outra: qual o impacto sobre uma institucionalidade, digamos, “pouco toleran-te à participação”, da entrada de um grande nú-mero de novos atores na disputa em torno dos conflitos políticos principais da agenda?

É claro que o desejo contido nestas indaga-ções é o de relacionar a compreensão das mobili-zações conjunturais e dos ciclos de protesto à configuração do regime político. Mais especifi-camente, o interesse aqui é relacionar estes ele-mentos aos processos de democratização, ou do que se convencionou chamar de “transição” de regime autoritário e “consolidação” da democra-cia.

Como seria impossível aqui, mais uma vez, uma resenha exaustiva da enorme literatura dis-ponível, tomarei como exemplo representativo do que se pode chamar de “primeira geração” de estudos sobre a transição, os trabalhos de O’Donnell e Schmitter sobre o sul da Europa e a América Latina, em especial suas generalizações conceituais. Quase década e meia depois de publicada, esta análise da transição de regime au-toritário e “consolidação” democrática parece ter se tornado uma espécie de senso comum acadê-mico. No entanto, o papel nela atribuído à mobilização política da sociedade organizada, creio, não corresponde ao que se verificou empiricamente durante a alongada transição bra-sileira.

Desde logo estes autores frisam a indeterminação e incerteza características da tran-sição de regime. Trata-se de situação, afirmam, em que várias alternativas estão postas (ingresso

na democracia, volta ao autoritarismo, vazio de poder), mas nenhuma está firmada; situação em que a virtù dos agentes prevaleceria sobre a for-tuna das determinações estruturais; intervalo de

regime situado entre a desestruturação do autoritarismo e o estabelecimento de alguma for-ma de democracia; em que as regras do jogo são, antes de tudo, objeto do conflito; regras que “de-finirão, em larga escala, os recursos a serem despendidos e os atores com permissão de entra-da na arena política” (O’DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 23).

Debalde tanta indeterminação, parece haver porém um caminho “normal” pelo qual passaria o processo. O princípio de tudo é a “ liberali-zação”, momento da reconquista de direitos

for-mais elementares pelos cidadãos, da aquisição de liberdades cuja conseqüência é baixar o custo da expressão de interesses individuais e coletivos. Uma vez reduzido este custo, a tendência é a erup-ção de focos de descontentamento e contestaerup-ção ao regime, que terão um “efeito multiplicador”. O próximo passo é a “democratização”,

entendi-da como o conjunto de “processos mediante os quais as regras e procedimentos da cidadania são aplicados a instituições políticas previamente dirigidas por outros princípios [...], ou são ex-pandidos, para incluir pessoas que antes não go-zavam desses direitos nem estavam submetidas a essas obrigações [...] ou, ainda, estendidos de forma a dar conta de temas e instituições que pre-viamente não se encontravam sujeitas à partici-pação dos cidadãos [...]” (O’DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 25-26).

Assim, embora distintas, liberalização e demo-cratização estão associadas, uma vez que quanto mais avança a primeira, mais difícil se torna manter as restrições ao efetivo advento da segunda.

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autorita-rismo. Mas a efetividade das alianças e oposições esboçadas só se manifesta quando ocorre, a par-tir da chamada “ressurreição da sociedade civil”, a mobilização política de um amplo leque de for-ças sociais.

De modo muito semelhante às fases do ciclo de protesto de que fala Tarrow, O’Donnell e Schmitter vêem três fases no processo de mobilização social durante a transição de regime. Na primeira — quando novos atores começam a perceber seu espaço potencial, mas antes de uma “explosão” mobilizatória oposicionista — os bran-dos/moderados parecem representar a melhor al-ternativa; na segunda, quando os protestos alcan-çam o pico, a situação de “desordem” parece fa-vorecer os duros, que acenam com o golpe, acuando os brandos/moderados; na terceira, quando se dá uma desmobilização relativa, “a ca-pacidade de tolerância dos vários atores aumen-tará. Os elementos brandos e indecisos no regi-me já liquidado, assim como as classes e setores sociais que lhe deram apoio, terão aprendido a lidar com novos conflitos e demandas, com mo-dificações nas regras do jogo e arranjos institucionais, assim como com níveis e padrões de demandas e de organização populares que ja-mais teriam aceito no início da transição” (O’DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 53-54). Ou seja, no curso da transição de regime au-toritário — que se afigura, na descrição de O’Donnell e Schmitter, como leito de um “ciclo de protesto” típico — a liberalização, sua primei-ra fase, desprende energias estancadas e possibi-lita a descoberta de espaços públicos desativados e identidades coletivas esquecidas ou até então não configuradas: “ela pode envolver o ressurgi-mento dos partidos políticos anteriormente exis-tentes ou a formação de novos partidos para exer-cer pressão a favor da democratização ou mes-mo de uma revolução; o aparecimento repentino de livros e revistas dedicados a assuntos há mui-to suprimidos pela censura; a conversão de anti-gas instituições — sindicatos, associações de clas-se e universidade — de agentes de controle go-vernamental em instrumentos para expressão de interesses, ideais e de raiva contra o regime; a emergência de organizações de base que articu-lam exigências há muito reprimidas ou ignoradas pelo regime autoritário; a expressão de preocu-pações éticas por parte de grupos religiosos e es-pirituais previamente conhecidos pela sua pruden-te acomodação às autoridades; e assim por

dian-te” (O’DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 85). Tornam-se apoiadores da transição mesmo os grupos privilegiados que inicialmente apoiaram o regime autoritário e que agora não vêem mais necessidade em sua permanência, seguidos por profissionais liberais e setores assalariados de clas-se média, que trazem à cena pública a interven-ção de suas entidades de classe, que ganham o

status de “entidades representativas da sociedade

civil” e, também, pela re-articulação dos traba-lhadores e do movimento sindical operário. E isso sem contar “a literal explosão dos movimentos de base”, especialmente ligados a igrejas.

Configura-se o que Tarrow chama de setor

(sub-cultura ou rede) de movimentos sociais, que forma o caldo a partir do qual conjunturas de ação coletiva disruptiva emergem em meio ao cenário das transições de regime (“conjunturas fluidas”, na linguagem de Dobry; “revolta popular”, para O’Donnell e Schmitter). “Em alguns casos e em momentos particulares da transição [descrevem eles] muitas dessas diversas camadas da socie-dade reúnem-se para formar o que denominamos ‘revolta popular’. Sindicatos, movimentos de base, grupos religiosos, intelectuais, artistas, clérigos, defensores dos direitos humanos e associações profissionais apóiam-se mutuamente em seus es-forços pela democratização e formam um todo maior que se identifica a si mesmo como ‘o povo’,

el pueblo, il popolo, le peuple, ho laos. Esta frente

emergente exerce forte pressão para expandir os limites da mera liberalização e da democratização parcial. A fantástica convergência que essa re-volta envolve é ameaçadora, tanto para os bran-dos do regime, que patrocinaram a transição na esperança de controlar suas conseqüências, quan-to para alguns dos seus quase-aliados, os opo-nentes moderados do regime, que esperavam do-minar, sem essa ruidosa interferência, a competi-ção subseqüente pelas mais altas posições do go-verno” (O’DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 91-92).

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e políticas substantivas; um sentimento de desi-lusão ética com relação aos compromissos ‘rea-listas’ impostos por pactos e/ou pela emergência de padrões autoritários de liderança no interior de alguns dos grupos que a compõem – todos estes são fatores que levam à dissolução da revolta. A ascensão e declínio desta revolta deixa muitas esperanças frustradas e muitos atores desiludi-dos” (O’DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 94-95).

Abrem-se, ao longo destes diferentes momen-tos do ciclo transicional, espaços para a celebra-ção de pactos (ou para um ciclo de reformas, como

diria Tarrow), dados entre grupos restritos de atores, visando redefinir as regras sob as quais atuam, por meio do estabelecimento de garantias mútuas. Trata-se, na acepção de O’Donnell e Schmitter, de uma forma de entrada na democra-cia “por meios não-democráticos”, já que os pac-tuantes (via de regra “oligarquias”) “tendem a reduzir a competição e o conflito; buscam limitar a responsabilidade junto ao público mais amplo; intentam controlar a agenda de prioridades políti-cas; e distorcem deliberadamente o princípio da igualdade entre os cidadãos. Não obstante, estes pactos podem alterar relações de poder; promo-ver novos processos políticos e conduzir a resul-tados não antecipados” (O’DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 68).

Ou seja, este tipo de mudança política pactua-da, apesar de ser capaz de abrir novas possibili-dades para a democracia, implica na constituição de repertórios de contenção institucionais, for-mulados na medida em que diferentes pactos são celebrados.

Segundo nossos autores — embora ressaltem sempre que nos casos reais as fases não são tão linearmente dispostas — poderíamos distinguir três momentos aos quais corresponderiam três tipos de pactos: o momento militar, equacionado

pelo pacto entre duros e brandos em torno da liberalização política e da disposição de volta dos militares aos quartéis; o momento político,

sacu-dido já pelas mobilizações, no qual a necessidade de restabelecimento dos mecanismos básicos da competição política poderia equacionar-se por um pacto destinado a “limitar a agenda de alternati-vas políticas, compartilhar proporcionalmente da distribuição de benefícios, [e] restringir a partici-pação dos não pactuantes na tomada de decisões. Em troca, os pactuantes concordam em

renunci-ar ao apelo à intervenção militrenunci-ar e ao empenho pela mobilização das massas” (O’DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 73); e finalmente o mo-mento econômico da transição, em que se faria

mister enfrentar o legado de crise econômica e de aumento de desigualdades sociais geralmente herdados do autoritarismo e que poderia ser equacionado, por sua vez, nos casos em que fos-se possível, por um pacto entre organizações corporativas do capital e do trabalho nacional-mente centralizadas.

O desfecho “normal” da transição, neste mo-delo, seria marcado por pactos políticos apoia-dos sobre tecnologias de contenção, como se mobilizações sociais fossem, ao mesmo tempo, um recurso necessário para ajudar a “distender” o autoritarismo, e uma inconveniência a ser dis-pensada tão logo os recursos acumulados pela oposição “democrática” fossem suficientes para a celebração de acordos intra-elite. Nesse desfe-cho, dá-se a convocação de eleições razoavelmen-te competitivas para os cargos fundamentais do governo, cujas regras, pactuadas entre os princi-pais atores do processo, quando estabelecidas com sucesso representam as bases de um “con-senso contingente”, em torno do qual a nova de-mocracia se estabelece. O impacto destas elei-ções fundadoras, para O’Donnell e Schmitter, será diferenciado conforme os resultados obtidos pe-las forças mais à direita ou mais à esquerda. Se-gundo os autores, haverá maiores chances de estabilização se os resultados do centro-direita forem satisfatórios.

Em suma, a “transição se encerra quando a ‘anormalidade’ já não constitui a característica principal da vida política; acontece quando os atores estabelecem — e respeitam — um conjun-to de normas mais ou menos explícitas que defi-nem os canais a serem utilizados para acesso a cargos de governo, os meios que podem empre-gar legitimamente em seus conflitos, os procedi-mentos a se aplicar na tomada de decisões esta-tais, e os critérios usados para excluir do jogo. Em outras palavras, a normalidade torna-se uma característica principal da vida política quando aqueles que estão ativos na política nutrem a ex-pectativa de que todos ajam de acordo com as regras — e ao conjunto dessas regras de jogo

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Uma vez que os procedimentos principiam seu processo de rotinização, estes autores tendem a considerar que adentramos o momento de “con-solidação” da democracia. O que se espera desta fase é que nela seja possível estruturar e legitimar as coletividades, identidades políticas, arranjos específicos e recursos que tenham surgido du-rante a transição. Trata-se da institucionalização da incerteza própria à democracia, a partir de um quadro de referências “estabilizado”. Não se tra-ta de um simples prolongamento da transição. A consolidação tem, na perspectiva destes autores, uma dinâmica própria. Os dias tormentosos, conflitivos e incertos em que os regimes autori-tários são derrubados vão, paulatinamente, sen-do substituísen-dos por momentos de “normalização”, de “rotinização” — agora em padrões democráti-cos — da vida política. “Enquanto que durante a transição uma forma pura de causalidade política tende a predominar, numa situação de mudança rápida, alto risco e escolha estratégica indeterminada, durante a consolidação os atores têm [...] que organizar suas estruturas internas mais previsivelmente, consultar seus ‘constituin-tes’ mais regularmente, mobilizar seus recursos com mais confiança, considerar as conseqüênci-as de longo prazo de suconseqüênci-as ações mais seriamente, e geralmente experimentar os constrangimentos impostos por deficiências materiais e resistênci-as normativresistênci-as profundamente arraigadresistênci-as de modo muito mais perceptível” (SCHMITTER, 1985, p. 6).

A partir do funcionamento regular de um legislativo eleito livre e competitivamente, tido sempre como instituição central da nova demo-cracia, seriam definidas algumas questões cruciais: a natureza e o caráter da representação territorial; a relação entre os partidos (no plano eleitoral e no parlamento); a autonomia das agên-cias estatais e para-estatais; as estratégias das associações de interesses; as formas de relacio-namento com as pressões sociais etc. É, enfim, o processo de estabilização da representação se estruturando, via dois canais genéricos de aces-so: o territorial, controlado por partidos; e o fun-cional, manipulado por associações de interesse. Qual seria o sentido, pois, da eventual presen-ça de protestos políticos ou mobilizações de mas-sa, se as demandas sociais passam a ser expres-sas pelos canais rotineiros, pelo voto ou pelo pertencimento organizacional estruturado?

Para Schmitter e O’Donnell, após a entrada em operação dos processos acima e a rotinização da alternância (ou de um maior realinhamento) dos partidos no poder, estaria completada a regulação interna das principais instituições de-mocráticas: competição partidária, atuação das associações de interesses, parlamento funcionan-do, poder executivo responsável. Padrões con-tingentes se tornariam então estruturas firmadas, práticas e normas seriam convertidos em leis ou regulamentos embasados na autoridade do Esta-do e na letra da Constituição. No que tange aos atores e arenas do conflito que se impõem na passagem dos regimes autoritários aos democrá-ticos, observa Schmitter que “[...] assim como O’Donnell e eu propusemos que os movimentos

foram o espaço crucial para a determinação dos resultados da derrocada do regime autoritário e que os partidos foram centrais na transição para

a democracia, agora proporei que o parlamento e

[...] as associações de interesse são os espaços

onde a consolidação será decidida” (SCHMITTER, 1985, p. 22, sem grifos no origi-nal).

Em suma, o que se passaria da transição à consolidação da democracia seria uma transfor-mação das contingências engendradas no perío-do conflitivo de derrocada perío-do autoritarismo em um padrão institucional estruturado, rotinizado, normalizado. Um processo no qual atores políti-cos de vocação disruptiva, de um lado, ou re-pressiva, de outro, simplesmente sairiam de cena, ou então transformar-se-iam em grupos institucionalizados (internamente falando) com interesses estruturados, ocupando posições dife-renciais com relação à institucionalidade político-jurídica. Um processo no qual as próprias regras constitutivas do regime deixariam de ser objeto do contencioso e passariam a balizar expectati-vas mutuamente normalizadas. Um processo ao cabo do qual estariam recolocadas em seus devi-dos lugares – com ou sem rearranjos — inclusi-ve aquelas relações de assimetria social que enra-ízam a dominação política numa dominação econômica.

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parla-mento, como arena por excelência do conflito regrado, e dos grupos de interesse corporativo organizados como atores políticos privilegiados de um jogo cujas regras tendem a ser universal-mente conhecidas e rotineirauniversal-mente aceitas, por-que anteriormente pactuadas.

Esse modelo parece-me empiricamente insu-ficiente. Ao contrário de Huntington, que vê a mobilização social como erupção disfuncional e produz uma análise que é antes uma explicação conservadora da emergência do autoritarismo enquanto resposta institucional à mobilização, O’Donnell e Schmitter vêem a mobilização social do ponto de vista de sua funcionalidade no que respeita ao processo de erosão da institucionalidade autoritária. Porém, assim como no primeiro, nos segundos também não há instrumentos analíticos para dar conta da erupção de conjunturas de for-te mobilização social em confor-textos institucionais democráticos. Mobilizações em contextos demo-cráticos, se levarmos tal modelo ao pé da letra, constituiriam anomalias. O enfoque funcional e a insistência na disjuntiva transição/mobilização

versus consolidação/desmobilização, inerentes ao

modelo O’Donnell/Schmitter, limitam seu poder compreensivo e, além do mais, não permitem que se leve em consideração a contribuição da mobilização da sociedade organizada para a cons-trução positiva de uma institucionalidade demo-crática.

Pretendo, a título de um comentário final, des-tacar que no processo brasileiro de transição e consolidação democráticas as novas instituições

não rotinizaram uma competição política de molde poliárquico porque os pactos da transição, por

terem sido firmados entre atores de perfil oligárquico, deram sobrevida ao padrão autoritá-rio anteautoritá-rior de relação entre a sociedade e o Esta-do; e também porque, em função disso, as refor-mas institucionais oferecidas pelo sistema políti-co políti-como resposta às mobilizações da transição tiveram por objetivo limitar o alcance da sociali-zação da política em vez de institucionalizar a competição ampliada; e, finalmente, porque a ex-clusão social, subproduto da modernização con-servadora, compôs um campo social cindido en-tre a sociedade organizada e mobilizada, de um lado, e uma massa inorgânica e desmobilizada, de outro, inviabilizando com isso o engajamento de amplas faixas da população no processo de participação política. Desenvolverei esse raciocí-nio mais abaixo.

Por hora, lembro que O’Donnell, em artigo mais recente (1996), insinua que, para formações sociais como as latino-americanas, o cotejo dos processos efetivos de construção democrática com o modelo da poliarquia de Dahl tende a des-tacar apenas as lacunas e insuficiências dos sis-temas políticos reais. Suas positividades, assim, deveriam ser buscadas em uma tradição política própria. Penso, diferentemente, que o construto de Dahl, justamente por seu caráter ideal-típico, é o instrumento mais adequado para desvelar o peso negativo da tradição política clientelista e au-toritária de países como o Brasil sobre as possi-bilidades presentes de institucionalização da de-mocracia. É justamente do advento da “demo-cracia por meios não-democráticos” que estes li-mites emergem. Se reconstruirmos, porém, o processo de mobilização crescente da sociedade organizada durante a transição, veremos que sem-pre houve uma alternativa histórica a esta contra-dição “em termos”.

VI. DEMOCRATIZAÇÃO SEM DEMOCRACIA É certo que, conforme esperado pelo modelo O’Donnell/Schmitter, a arena parlamentar ganha peso significativo durante e após a redação e pro-mulgação da Constituição brasileira de 1988. Não, porém, na condição de locus institucional em que

se processam as demandas societais.

A imagem que se incorporou ao senso comum acadêmico de um contraponto linear entre uma transição conflitiva e uma competição política democrática estável centrada na arena parlamen-tar e na representação societal via grupos de inte-resse, no caso do Brasil, não corresponde aos fatos, entre outras, pelas seguintes razões.

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o autoritarismo (cf. SALLUM JR., 1995), que não pode ser discutida nos estreitos limites deste tra-balho, amalgamou-se às outras dificuldades en-contradas pela rotinização democrática da com-petição política, confrontando, no conflito transicional, a tendência à socialização do jogo político própria à lógica da sociedade organizada e mobilizada à tendência à privatização do jogo, própria à lógica tecnocrática dos administrado-res econômicos sob uma situação de crise fiscal e endividamento externo (cf. LOUREIRO, 1997). A heterogeneidade da coalizão que possibili-tou a transição inviabilizou, nesse sentido, a efetivação das expectativas por ela própria susci-tadas — basicamente a idéia de que deveriam ser

institucionalizadas novas articulações entre as

associações de interesse emergentes e o poder público, este último a ser remodelado. Nem o Estado nem sua forma de intervenção nos pro-cessos econômico e político foram substancial-mente alterados, o que representou uma longa sobrevida do padrão corporativista e autoritário de relação com a sociedade organizada. O efeito da eclosão da participação organizada e autônoma dos novos e antigos atores sóciopolíticos foi tor-nar letra morta boa parte deste tipo de regula-mentação, o que, no entanto, não resolve o pro-blema institucional. Mas é certo também que, pelo lado da sociedade, a setorização dos atores tradi-cionais (as organizações sindicais e empresari-ais) impossibilitou a formulação de projetos glo-bal ou parcialmente consistentes ao nível das as-sociações de interesse e deslocou para o Executi-vo e o Congresso — em especial no momento Constituinte — o gerenciamento da instituciona-lização, fazendo chegar à instância legislativa de-mandas dispersas e/ou de cunho exclusivamente corporativo (DINIZ, 1992).

Em segundo lugar, a tendência recente à cons-tituição de uma sociedade “moderna, dinâmica e pluralista” (DAHL, 1989), que servisse de base a uma competição política em moldes horizontais (à imagem do sistema político americano) não chegou a ser capaz — em especial por conta da resistência ferrenha das velhas estruturas clientelistas e da direita que delas se vale — de dotar o novo regime, que se desenhava, de uma institucionalidade formal tipicamente poliárquica, apesar de atuar de fato nesse sentido. A complexificação social que se observou ao longo das décadas de sessenta, setenta e oitenta teve impacto não imediato e pouco evidente sobre as

mudanças na institucionalidade política formal, embora tenham impactado diretamente o proces-so de emergência de novos atores e a mobilização política da sociedade. O sistema político, preso ao padrão clientelista, respondeu com um ciclo de reformas parcial e limitado (e sobretudo in-capaz de instituir um padrão efetivamente poliárquico) ao ciclo de protestos deflagrado na transição.

Assim, se por um lado, “houve mudanças subs-tanciais nos padrões associativos e nas formas de mobilização”, isto é, “intensificou-se o pro-cesso de urbanização, aprofundou-se a diferen-ciação social, ampliou-se e fortaleceu-se a capa-cidade de organização”, e, em função disso, “[a]mpliaram-se substancialmente as pressões e demandas sobre o sistema institucional e o siste-ma político”, por outro lado, no entanto, “os efei-tos políticos dessas mudanças foram superesti-mados”, tanto pelos próprios atores políticos en-volvidos quanto pelas formulações teóricas dos analistas. As limitações de ordem política ao al-cance dessas mudanças sócio-econômicas podem ser atribuídas, por seu turno, a duas causas, a saber. Por um lado, como notaram Camargo e Diniz, “o processo de mudança obedeceu antes a uma lógica incrementalista do que a uma

dinâmi-ca de ruptura com padrões já estabelecidos, tan-to no que se refere a segmentan-tos da elite quantan-to às organizações populares” (1989, p. 11). Dito de outro modo: os pactos que coroaram o desfecho da transição limitaram o alcance da retomada do processo de mobilização política crescente da sociedade, desencadeado pela complexificação social produzida pela modernização econômica. Como apontei em outro trabalho, no episódio de-cisivo da campanha pelo restabelecimento de elei-ções diretas para a Presidência da República, em 1984, a “lógica da negociação” prevaleceu sobre a “lógica da ruptura”, isto é, o refluxo da ampli-ação havida na arena política em direção a uma

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