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Cinema: direito, mas nem tanto

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expediente é recorrente: a licença poética. Na transposição de determi-nadas histórias para a tela – seja da TV ou do cinema –, tal liberdade é absolutamente esperada, quando não bem-vinda. E por diversos motivos, entre eles a necessidade de síntese em função do tempo (sobretudo em ilmes) ou a “simpliicação esquemática” (considerando um target menos esclarecido, como, a audiência majoritária da TV aberta). No entanto, é cada vez mais esfumaçada a linha que separa uma versão verossímil de seu paralelo no real, e, nesse sentido, distorções grosseiras acabam embutindo “verdades absolutas” no imaginário coletivo. No âmbito do subgênero “ilmes de tribunal” e correlatos, os exemplos estão aí – às pencas.

Exibido no inal de 2008 pela TV Globo, o especial Nada Fofa deve ter inco-modado os mais puristas pelo tratamento dissonante com a realidade do Judiciário brasileiro. Não se trata de ignorar aqui a proposta do projeto: entretenimento de fruição leve. Ou seja, o espectador acompanharia a rotina de uma advogada aus-tera, Nádia Wolf (Letícia Spiller), que um amigo imaginário de nome Pintonildo “orienta” a ser mais “fofa” com as pessoas – daí o título. Mas o episódio se ressente de uma indeinição, entre ser uma comédia de tribunal e explorar uma sugerida esquizofrenia da protagonista, o que, nesse caso, justiicaria toda e qualquer impro-priedade de realismo. Ao tentar os dois caminhos, o programa escrito por Fernanda Young e Alexandre Machado – dupla que assinava o seriado Os Normais – incorre em erros básicos de pesquisa. Na encenação de um julgamento de assédio sexual, por exemplo, o telespectador é surpreendido (se leigo não for) pela resolução do caso a partir de um júri popular – quando, no sistema judiciário brasileiro, segundo a Constituição de 1988, membros leigos da sociedade só julgam casos de atentado contra a vida. Para deixar mais claro: homicídio, aborto e incentivo ao suicídio. O que, convenhamos, já não é pouco.

Por Fábio Fujita

DIREITO,

MAS NEM TANTO

Como o cinema distorce a figura dos operadores do direito (especialmente a do advogado),

ratificando “verdades absolutas” sobre o universo jurídico

VIOLÊNCIA

Do nacional Meu Nome Não É Johnny, em que a juíza Marilena Soares (Cássia Kiss) releva a pena do personagem João

Guilherme (Selton Mello), às pirotecnias do seriado Prison Break, das histrionices de Legalmente Loira aos decotes de

Erin Brockovich (Julia Roberts) e as bizarrices do seriado global Nada Fofa, histórias de tribunal sempre dão bom ibope.

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processo direto na história dos EUA: uma indenização de US$ 333 milhões.

Erin Brockovich, o ilme, não deixa

de ser uma espécie de “versão séria” da comédia adolescente Legalmente Loira, que, em linhas gerais, estrutura sua vi-são em pilares não muito diferentes. O ilme trata da patricinha dourada Elle Woods (Reese Witherspoon), que, ao tomar um fora do namorado, decide entrar para a escola de direito de Har-vard a im de mostrar ao ex que não era uma menininha fútil e mimada. Logo no primeiro ano, como estagiária, ela acompanha o julgamento de um caso de homicídio ocorrido no campus. Em plena sessão, a ré decide substituir seu advogado pela própria Elle (!), sua amiga, o que é aceito pela juíza – pau-tada pela idéia de que só uma pessoa ambientada com o mundo da acusada estaria apta a defendê-la.

Na avaliação da advogada Manue-la Lourenção, da Trung & Lourenção Advogados, “a maioria dos ilmes de tri-bunal tenta fazer uma oposição entre a visão tradicional que se tem da justiça, burocrática, lenta e formal, com uma posição ativa, jovem e audaciosa”. “É uma visão um tanto utópica”, ela air-ma, “pois esse tipo de atitude raramente é tolerado. Mas existem correntes den-tro do direito que pregam o uso alterna-tivo da lei, a informalidade processual e a proximidade das partes com o juiz”, completa, lembrando que a Justiça nem sempre é morosa como se crê – embora, mesmo nessas circunstâncias, as audiências não sejam o megasshow mostrado em produções comerciais como Legalmente Loira.

Sobre bandidos e azarados

Mais bem-sucedido nesse embate entre as linhas conservadora e progres-sista, ainda que de forma inconscien-te, é o ilme nacional Meu Nome Não

É Johnny na igura da juíza Marilena

(Cássia Kiss). A austeridade esperável de sua proissão pode ser medida no julgamento do personagem João Gui-lherme (Selton Mello) – um rapaz bem-nascido que, por causa do vício pelas drogas, transformou-se num trai-cante de ocasião. Durante a audiência a juíza impede que outra ré, ex-viciada, prossiga com a leitura de um trecho da Bíblia, espécie de defesa paliativa

para tentar explicar seu “desencami-nhamento” quando se envolveu com entorpecentes. “Isso aqui é um tribu-nal. Limite-se a responder o que lhe for perguntado”, assevera a juíza. Tal postura é contrastada pelo que vem a se-guir, quando o próprio João Guilherme interrompe o depoimento da colega, o que numa sessão é uma quebra de pro-tocolo raramente tolerada. Mas a juíza o deixa falar, tocada pela intervenção desabrida e corajosa do réu, que assume toda a culpa pelo crime (lagrante de posse de cocaína).

A decisão de condená-lo a uma pena alternativa – dois anos em clínica de recuperação – pode ser entendida como condescendência da juíza pelo

fato de o criminoso ser egresso da classe média. Mas, não fosse por essa leitura macrocósmica do universo do acusa-do – pessoa viajada, letrada, poliglota, com endereço ixo –, João Guilherme poderia ter terminado na vala comum dos criminosos irrecuperáveis. Limitar-se à aplicação prática (e pragmática) da lei talvez explique muito da “crise de reputação institucional” na qual o judiciário, não só no Brasil, sempre es-teve mergulhado de alguma maneira. O desfecho trágico de Thelma & Louise

se justiica em função disso: a dupla de mulheres (Susan Sarandon e Geena Davis), que viaja de carro pelos cafun-dós americanos e se envolve numa série de “crimes involuntários” ao longo do percurso, constata: para não serem pre-sas, teriam de morrer. Porque a justiça

jamais entenderia que não eram bandi-das, apenas azaradas.

Errol Morris, documentarista ven-cedor do Oscar por Sob a Névoa da

Guerra, conseguiu usar o cinema

exa-tamente para dar sua contribuição na mudança desse establishment. Em 1985 Morris fazia entrevistas com detentos de um presídio no Texas para um ilme sobre o tema. Entre os encarcerados es-tava Randall Adams, que airmava ser inocente da acusação de ter assassinado um policial em 1976. O cineasta leu os autos do processo, pesquisou outras fon-tes, reuniu provas e testemunhos, con-vencendo-se da sinceridade de Adams a ponto de abandonar o projeto inicial para rodar um novo ilme, A Tênue

Li-nha da Morte, documentário realizado

para comprovar justamente a inocência daquele homem.

O policial assassinado havia sido al-vejado após interceptar um carro numa região perigosa de Dallas. A polícia lo-cal não tinha pistas, até chegar a um trombadinha de 16 anos, David Harris, que andara se gabando, a amigos, de ter assassinado um tira nas cercanias. Harris conirmou à polícia que estava no carro de onde o tiro saiu, mas que fora Randall Adams, a quem dera caro-na, que havia disparado. Tanto a arma como o carro do crime haviam sido roubados pelo adolescente, o que já era evidência bastante generosa de que Harris tinha mais motivos para temer a polícia do que o caronista.

Do ponto de vista da lei, o puzzle era simples: fosse Adams o culpado, havia um crime testemunhado; fosse Harris – menor de idade – não havia nada. No mundo dos maniqueísmos, Adams acabaria condenado à pena capital. Mas, com o ilme-denúncia de Morris, o caso seria reaberto levando Adams à liberdade em 1989. Harris, por sua vez, seria executado em 2004, por outro de seus homicídios.

Fosse um ilme de icção, A Tênue

Linha da Morte seria criticado, aqui

mesmo, pelo inal feliz de construção aparentemente esquemática – injus-tiça, danação, evolução, reviravolta, desfecho. Não sendo, airma-se como bom exemplo de que o mesmo cine-ma que distorce a realidade também é capaz de fazer justiça. Apesar da tal licença poética.

Na cartilha de Erin,

basta um decote

para acessar

documentos

confidenciais. Fica

a tese de que a

presença forasteira

pode trazer

refrigério às formas

de fazer justiça

Além disso, a própria igura da advo-gada não se esquiva de alguns dos mais descabidos clichês. Ao encarnar o estilo “durona”, de personalidade inquebran-tável, Nádia Wolf ratiica uma ideia um tanto rasteira sobre o que seria o peril de um bom advogado. Corrobora nesse sentido a presença desse amigo imagi-nário, supostamente um boneco de pro-grama infantil a que ela assistia quando criança. Porém, o fato de Pintonildo ser um “pintinho cor-de-rosa gigante” não parece ter sido uma escolha gratuita dos realizadores. O signo evidentemente fá-lico ajuda a ressaltar certa solidão da protagonista, não à toa uma fracassada nos relacionamentos amorosos. Como se, por trás da retórica invariavelmente contundente que caracteriza seu êxito na proissão, se escondesse uma mulher carente que a formalidade do universo advocatício não poderia revelar.

Advogado, um ser humano

É evidente que a opção por um júri popular num julgamento de assédio pode ter relação com a necessidade de potencializar os desdobramentos dra-máticos da história. Se há, de fato, um elemento que tanto as séries televisivas quanto o cinema gostam de explorar nesse assunto é a complexidade intrínse-ca do sistema judiciário, em suas divisões labirínticas, em suas instalações grandi-loquentes, em suas esferas burocráticas, justamente por dar margem a uma série de possibilidades dramáticas, alimen-tando a criatividade dos roteiristas. O melhor representante disso talvez seja

O Processo, a leitura cinematográica de

Orson Welles para o clássico de Franz Kafka, mas, em ambos, livro e ilme, a questão é notadamente metafórica.

Numa vertente mais “pirotécnica”, por assim dizer, cabe menção ao bem-sucedido seriado Prison Break, antes exclusividade da TV paga, agora exibi-do em rede aberta no Brasil. Na trama, um jovem é condenado por um crime que não cometeu. Para livrá-lo do cor-redor da morte, o irmão opta por uma solução inusitada: blefar um assalto para ser detido e, assim, encarcerado na mesma cela do mano para pôr em prática, juntos, um inusitado plano de fuga (o irmão-coragem leva consigo, tatuado no corpo, nada menos que o mapa do presídio).

Se a ideia soa estapafúrdia, não deixa de ser verossímil dentro da sea-ra fabular em que se insere. Ainal, a própria justiça “concorda” em juntar o condenado ao irmão recém-detido, como se escolher onde (e, no caso, com quem) ser preso pudesse ser determina-do pelo próprio réu. De certa forma, esse é o mesmo expediente imaginativo que aparece em Batman – O

Cavalei-ro das Trevas, quando o promotor da

ictícia Gotham City não hesita em es-murrar uma testemunha impertinente durante uma audiência. Como se tudo normal fosse.

No que se refere à postura emperti-gada dos bacharéis, também o cinema é pródigo em reairmá-la – para o bem e para o mal. Billy Wilder fez aquele que

talvez seja o melhor ilme de tribunal da história, Testemunha de Acusação, em que transforma Charles Laughton no obstinado Wilfrid Robarts, advogado que, mesmo com a saúde em franga-lhos, aceita defender um homem acu-sado de matar uma viúva rica para em-bolsar a dinheirama. Se é verdade que Laughton não se esquiva de certos luga-res-comuns – retórica articulada, estilo canastrão – é porque a verossimilhança também tem a ver com clichês. O que o difere de uma Letícia Spiller e sua “fo-ice”, por exemplo, é a composição de personagem: o espectador reconhece o advogado ali encarnado não pelo “falar bem”, mas por entender sua psicologia a partir de características como a iro-nia (“Devo fechar a janela, sir Wilfred?” “Por Deus, criatura, quero que feche a boca. Se soubesse que falava tanto, não

teria saído do meu coma”) e a própria debilidade física. O advogado é, antes de tudo, um ser humano.

Direito repaginado...

...e cheio de defeitos, por supues-to. Não é à toa que a imagem-padrão que se difunde da categoria padece de credibilidade. Está mais atrelada a certo oportunismo predador, na mesma medida em que a imprensa é pintada como “o quarto poder”. Essa construção aparece bem delineada no ilme Erin Brockovich, de Steven Soder bergh. Julia Roberts dá vida à perso-nagem-título, uma mulher que, após perder uma ação judicial contra um sujeito que lhe bateu o carro, se vê em apuros inanceiros. Ela atribui sua da-nação ao advogado que fracassou em sua defesa. Por isso, exige que ele lhe dê um emprego. Ele concorda, admi-tindo-a como arquivista. Nesse trabalho que havia de ser burocrático, ela se de-para com um caso envolvendo a con-taminação de lençóis freáticos numa região do Texas, desencadeado pelo uso inconsequente de uma substância radioativa por parte de uma empresa de eletricidade. Ela compra a causa dos moradores da região após descobrir que mais de 600 deles passaram a contrair câncer e outras sequelas.

A despeito de a história ser “baseada em fatos reais”, não deixa de ser pouco crível a forma como a trama acompa-nha a cruzada da heroína – uma mu-lher de modos broncos, que sempre diz ter “menos de US$ 100 na conta”, tendo de cuidar sozinha de três ilhos – num meio que lhe é desconhecido, senão hostil. Ela própria alimenta essa hos-tilidade, ao repetir ao chefe que odeia advogados, que estes “complicam o que não é complicado”. Na cartilha de Erin, basta um decote generoso para conven-cer o atendente de departamento a lhe dar acesso a documentos conidenciais que comprovam os meandros sinistros do caso que investiga. A tese que ica é que essa presença forasteira, de alguém “não-viciado” nos trâmites jurídicos, pôde trazer um refrigério nas formas de fazer justiça. A empresa condenada pela contaminação, a PG&E, teve de desembolsar aos moradores, defendidos por uma mulher não-advogada, aquele que viria a ser o maior montante em

O signo fálico

ressalta a solidão

da protagonista,

como se por trás

de tanto êxito se

escondesse uma

mulher carente que

o mundo advocatício

não poderia revelar

Referências

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