A ESCRITURA DO ESPETÁCULO EM BODAS DE SANGUE
Flávia MAROUETTI*
À c o l e g a Josélia Maria Costa Hernandez
O SIGNOS VISUAIS
"Se as paixões se e x c i t a m no o l h a r e crescem p e l o a t o de v e r , não s a -bem como se s a t i s f a z e r ; o v e r abre t o d o o espaço ao d e s e j o , mas v e r não b a s t a ao d e s e j o . 0 espaço visí-v e l a t e s t a ao mesmo tempo minha po-tência de d e s c o b r i r e minha impo-tência de r e a l i z a r . Sabemos o quanto pode s e r t r i s t e o o l h a r de-s e j a n t e . " ( 3 , p. 23)
E é com esse o l h a r c h e i o de d e s e j o que contemplamos a obra de G a r c i a L o r c a .
* Aluna do prograM de Pos-graduaçâo.
Itinerários, Araraquara. 5: 181-210.1993
-Seu t e x t o nos o f e r e c e , mesmo na l e i t u r a , a r i q u e z a do v i s u a l . Em suas indicações cênicas, podemos p e r c e b e r a r i q u e z a simbólica do cenár i o , da indumentácenária, dos acessócenários, da i l u m i nação, do g e s t o e da marcação. Esses signos s o -mados à música e à p a l a v r a constróem uma renda d e l i c a d a que nos e n v o l v e e nos prende p e l o f a s -cínio que só a b e l e z a e a d o r podem causar.
I n i c i a r e m o s nossa análise desse u n i v e r s o t r i s t e e b e l o , p e l o que na peça c o n s t i t u i seu s u p o r t e , sua base: o cenário. No e n t a n t o , e l e não será separado da p a l a v r a , p o i s ambos const i const u e m um constodo impossível de d i s s o -c i a r .Analisaremos, p o r t a n t o , os s i g n o s v i s u a i s r e c o r r e n d o ao t e x t o sempre que necessário, já que aqueles se completam mutuamente.
O CENÁRIO
O cenário apresentado no início da peça é
a s a l a da casa do n o i v o . Esta é de c o r amarela, podendo s e r r e l a c i o n a d a com o amanhecer, com o início da v i d a . Esses d o i s elementos somados nos levam a a s s o c i a r o n o i v o à v i d a , ou p e l o menos, à p o s s i b i l i d a d e de v i d a .
Segundo Jean C h e v a l i e r & A l a i n Gheerbrant em seu Dicionário de Símbolos, ( 1 , p. 40-42) ,0 amarelo é a c o r da l u z , da v i d a e da p l e n i t u d e e está a s s o c i a d a à renovação. E l a também se en-c o n t r a p r e s e n t e no mundo en-c t o n i a n o ; é a en-c o r da t e r r a fértil, das espigas maduras do verão, mas também anunciam o outono. 0 amarelo é, então, a cor a n u n c i a d o r a do declínio, da aproximação da m o r t e , tornando-se um s u b s t i t u t o do negro. O Noivo e n c o n t r a - s e , p o r t a n t o , associado à t e r r a fecunda, àquela que pode g e r a r v i d a .
Essa associação está não só r e l a c i o n a d a com o cenário, como também com o t e x t o . No p r i -m e i r o quadro do p r i -m e i r o a t o , a -mãe do Noivo
14). A correspondência e n t r e a t e r r a fecunda e o Noivo é r e a f i r m a d a p e l a posse d e s t e de uma v i n h a , símbolo de sangue e de v i d a . O v i n h o , p r o d u t o f i n a l extraído da v i n h a , é t i d o como o sangue da t e r r a .
Outra alusão que nos l e v a a l i g a r o Noivo à t e r r a fecunda é aquela f e i t a p o r sua mãe r e -f e r i n d o - s e às árvores p l a n t a d a s p e l o m a r i d o . Em três anos apenas, e s t e p l a n t o u árvores em suas t e r r a s e todas vingaram, símbolo da f e r t i l i d a d e da t e r r a , com exceção de uma, de nome Júpiter, a sua p r e f e r i d a , que dava f l o r e s encarnadas, mas que secou.
A essa árvore, Júpiter, podemos a s s o c i a r a f i g u r a do marido*, gue na visão da mãe é o r a d o r de v i d a na família e, como a árvore, ger o u f l o ger e s encagernadas e depois mogergereu. As f l o r e s encarnadas nos remetem às f i g u r a s dos f i -l h o s ; um, morto p e -l a f a c a , o que e x p -l i c a a constância do vermelho, e o o u t r o a i n d a v i v o , mas que também está marcado p e l o f a d o da
famí-l i a - a f a c a e o sangue. Esses d o i s efamí-lementos aludem a i n d a ao d e s e j o de vingança da Mãe - ár-v o r e sem f r u t o s .
Retomando os elementos l e v a n t a d o s nesse p r i m e i r o quadro, temos a s e g u i n t e associação: o
Noivo é a t e r r a fecunda, a p o s s i b i l i d a d e de v i d a ; e l e é o ouro e o sangue da t e r r a ( t r i g o e v i n h a ) , mas como o t r i g o e a v i n h a p r o d u t i v a , e l e tem um c i c l o de v i d a e morte a c u m p r i r .
No segundo quadro, o cenário apresentado é o da casa de Leonardo, novamente uma s a l a . Esta é c o r - d e - r o s a , o que nos f a z lembrar o crepús-c u l o , o crepús-caminho do s o l para o p o e n t e , o término do d i a , da v i d a .
Enquanto o Noivo está l i g a d o à t e r r a f e -cunda e ao amanhecer, Leonardo c o n s t i t u i a ima-gem do crepúsculo e da água negra, a que não é benéfica à v i d a . Essa correlação é e x p l i c a d a p e l a c a n t i g a de n i n a r que abre o quadro.
A água está associada ao r i o , l u g a r de morte na peça e l u g a r , segundo E l i a d e em seu
Tratado de história de las religiones, morfologia y dinâmica de lo
sagrado, ( p . 352-354) onde os a n t i g o s a c r e d i t a v a m que a alma se d i s s o l v e s s e . Será nessa água negra que a alma da n o i v a irá se d i s s o l v e r e se p e r d e r no f i n a l da peça.
Leonardo é, p o r t a n t o , o símbolo do d e s e j o s e x u a l que conduz não à v i d a , mas sim à m o r t e , a água negra incapaz de g e r a r v i d a .
No t e r c e i r o quadro temos a descrição da casa da Noiva, uma "cueva" casa cavada na r o cha, ornada com uma c r u z de grandes f l o r e s c o r -d e - r o s a . Dois elementos nos s a l t a m aos o l h o s l o g o de início. O p r i m e i r o é a c r u z , símbolo da m o r t e , formada p o r f l o r e s c o r - d e - r o s a , que nos remete ao crepúsculo, ao vermelho e ao sangue, e também à c o r r e l a c i o n a d a com Leonardo. 0 s e -gundo é o m a t e r i a l de que é f e i t a a casa da Noiva e onde e l a se e n c o n t r a .
A casa é cavada na r o c h a , t e r r a seca e e s -téril, e n d u r e c i d a e i s o l a d a , sem v i d a p o r t a n t o . A região é d e s c r i t a como desértica e m u i t o q u e n t e , assim sendo associaremos a Noiva ao elemento f o g o , e s t e r i l i z a d o r , que destrói a v i d a . Também não podemos d e i x a r de chamar a atenção p a r a a p a l a v r a "cueva", que d e s i g n a a habitação da Noiva, "cova" termo que nos remete à m o r t e .
0 t e x t o do t e r c e i r o quadro, que é o do pe-d i pe-d o pe-de casamento, e x p l i c i t a a secura pe-da t e r r a , a ausência de água n e l a e a sua localização e n -t r e r i b a n c e i r a s .
agora a n o i v a ao f o g o . A ligação e s t a b e l e c i d a e n t r e as três personagens é a de um triângulo, N o i v o , Noiva e Leonardo, sendo que nenhum dos pares tem p o s s i b i l i d a d e de g e r a r v i d a .
No segundo quadro do segundo a t o , o cená-r i o cocená-rcená-responde ao e x t e cená-r i o cená-r da "cueva" da N o i v a , que é d e s c r i t a em t o n s brancos a c i n z e n -t a d o s e a z u i s f r i o s , e a i n d a , com -t o n s sombrios e p r a t e a d o s . O a c i n z e n t a d o e o a z u l f r i o lem-bram a m o r t e . Os t o n s p r a t e a d o s nos remetem à f a c a , elemento que c o r t a t o d o o t e x t o desde o início e que tem uma carga simbólica m u i t o grande. Nessa cena, o que vemos é a comemoração do casamento e as cores que se nos apresentam em cena são t o d a s sombrias, remetendo à morte e à f a c a .
Para r e i t e r a r a análise do cenário, u t i l i -zaremos a c a n t i g a entoada p e l a empregada, e que f a z alusão ao Noivo e ao sangue derramado:
"Porque o n o i v o é um pombo com t o d o o p e i t o em b r a s a , e o campo espera o rumor
do sangue derramado." ( 2 , A t o I I , Quadro I I , p. 90)
a empregada vêm c o n v e r s a r em roupas I n t i m a s . Nesse espaço íntimo há um desnudarse das p e r -sonagens que é acompanhado p e l a indumentária. É somente nesse momento, que temos a revelação p o r p a r t e da Noiva de sua insatisfação com o casamento próximo.
Esse espaço íntimo é usado p a r a a r e v e -lação dos s e n t i m e n t o s da N o i v a , como também p a r a os de Leonardo. É nessa cena que a Noiva aparece d i a n t e de Leonardo só de anáguas e com as f l o r e s de l a r a n j e i r a do casamento e ambos expõem seus s e n t i m e n t o s um em relação ao o u t r o .
A peça até esse momento mostrava as l i gações s o c i a i s dos personagens, p o r i s s o o c e nário e r a sempre o da s a l a . Quando os v e r d a d e i r o s s e n t i m e n t o s são r e v e l a d o s , a cena é t r a n s -f e r i d a p a r a um ambiente íntimo, onde a
" c u r i o s i d a d e " da sociedade é b a r r a d a .
J u n t o com o bosque, o pátio i n t e r n o da casa da Noiva é o l o c a l onde encontramos a explosão de v i d a nas personagens. No pátio a e x -plosão a i n d a é tímida e c o n t i d a , somente nó bosque é que e l a será completa e irreversível. O cenário e s c o l h i d o para a fuga de Leonardo com a Noiva é o do bosque, à n o i t e , com grandes t r o n c o s úmidos e um ambiente e s c u r o .
paço das paixões. É no bosque que veremos e c l o -d i r o amor e n t r e Leonar-do e a Noiva, assim como o ódio e a vingança do Noivo, o espaço do bos-que se opõe ao espaço s o c i a l das casas. Como vimos nos cenários a n t e r i o r e s , as cenas se pas-savam t o d a s nas s a l a s das casas, ou d e f r o n t e d e l a s , ou s e j a , é sempre o espaço s o c i a l , r a c i o n a l o da razão. Nesse espaço r a c i o n a l , v e -mos o g e s t o d e n u n c i a r os s e n t i m e n t o s r e p r i m i d o s das personagens: a Mãe do Noivo com seu ódio c o n t i d o , a Noiva e Leonardo sufocando sua paixão e, p o r f i m , o Noivo que é em t o d o o t e x t o , a própria a l e g o r i a do r a c i o n a l . Assim, o espaço a n t e r i o r m e n t e a n a l i s a d o é o da não v i d a , que se opõe completamente ao do bosque.
Não é sem intenção que o único espaço men-cionado a n t e r i o r m e n t e , que d e i x a vazar um pouco da r e a l i d a d e dos s e n t i m e n t o s das personagens é o pátio i n t e r n o da casa da Noiva, p o i s é mais r e s e r v a d o , embora a i n d a não se c o n s t i t u a no e s -paço i d e a l para a paixão porque, mesmo lá, os amantes sentem a presença da sociedade, quer na f i g u r a da empregada, quer na c a n t i g a que l h e s chega dos convidados v i n d o s para as bodas.
a morte er p o r f i m , o que chamaremos de um c o r o
de l e n h a d o r e s , no s e n t i d o grego do termo.
A q u i faremos um parênteses para a n a l i s a r
e s s e s personagens que, a nosso v e r , compõe o bosque, sendo e l e s mesmos p a r t e desse cenário.
Os l e n h a d o r e s , como já dissemos, assumem a pos-t u r a do c o r o grego e prenunciam a morpos-te de Leo-nardo e do Noivo, anunciando o f i m de um c i c l o .
Na f a l a dos lenhadores temos:
"19 l e n h a d o r - Já estamos p e r t o .
2 2 l e n h a d o r - Uma árvore de q u a r e n t a anos. Da-q u i a pouco a
c o r t a r e m o s ." ( 2 , A t o I I I , Quadro I , p. 123)
Os l e n h a d o r e s , assim como a Lua que surge na f i g u r a de um jovem l e n h a d o r , c o n s t i t u e m uma a l e g o r i a da m o r t e , p o i s são e l e s que c o r t a m as árvores, que as derrubam; como a árvore é o símbolo da v i d a , segundo E l i a d e , aqueles são os que a destroem.
Há, também, uma correlação e n t r e a Lua e o vampirismo, p o i s aquela busca o sangue quente p a r a se aquecer. Em C h e v a l i e r , ( 1 , p. 561-6) a Lua é apresentada para o homem como o símbolo da passagem da v i d a à morte e da morte à v i d a . A Lua dos impulsos p r i m i t i v o s é a Lua dos aman-t e s , mas a que enconaman-tramos em Bodas de Sangue é a
fúnebre, a que l e v a os amantes a uma emboscada. A morte surge como uma v e l h a mendiga, c r i a n d o uma oposição c l a r a e n t r e a r i q u e z a da v i d a e a pobreza da morte. Como símbolo dessa pobreza, e l a vem esmolar um pouco de c a l o r , de v i d a - de "ouro".
No f i n a l da cena do bosque a morte se t r a n s f i g u r a em um grande pássaro negro, no e x a t o momento da morte de Leonardo e do N o i v o , c r i a n d o , desse modo, a imagem das aves de r a -p i n a que " f a r e j a m " o sangue e vivem dos cor-pos m o r t o s . Assim é c a r a c t e r i z a d a a M o r t e : men-d i g a / a v e men-de r a p i n a , que se esconmen-de e n t r e as
Como o bosque é símbolo da vida/paixão, a Lua e a Morte são indispensáveis a sua c a r a c t e -rização, p o i s não há v i d a sem a morte. Lua e M o r t e se associam para p e r d e r os amantes. A Lua/lenhador d e r r u b a as árvores com sua c l a r i -dade, impedindo que os d o i s j o v e n s amantes se escondam; a mendiga/pássaro i n d i c a o caminho que levará Leonardo e o Noivo à m o r t e .
Outro elemento que c a r a c t e r i z a o bosque é o som de v i o l i n o s . 0 v i o l i n o é um i n s t r u m e n t o nobre na o r q u e s t r a e seu som é, ao mesmo tempo, t r i s t e e sensível. Sua presença a q u i c o r r e s -ponde ao "canto" do v e n t o nas árvores do que, o que empresta um tom melancólico ao bosque. 0 v i o l i n o somado à n o i t e f a z com que o c e nário do bosque s u r j a d i a n t e de nós como um l o -c a l um t a n t o fantasmagóri-co, que a-companha a trama e os seres fantásticos que a l i se a p r e -sentam.
quando uma v i d a t e r m i n a v a , e r a c o r t a d o o f i o por e l a s t e c i d o .
Para j u s t i f i c a r m o s essa imagem das Parcas
teremos que a n t e c i p a r a análise da p a l a v r a , p o i s a associação só é possível quando somamos as f i g u r a s à c a n t i g a entoada p o r e l a s :
"Meada, meada, que queres f a z e r ? Jasmim de v e s t i d o , c r i s t a l de p a p e l .
Nascer p e l a s quatro, morrer p e l a s dez.
Ser f i o de lã,
cadeia a teus pés e laço que aperte amargos lauréis.
19 r a p a r i g a
2 9 r a p a r i g a
Menina O f i o tropeça pelo pedernal
Os montes a z u i s o deixam passar. C o r r e , c o r r e , c o r r e ;
por fim chegará: A faca - é de pôr; o pão, de t i r a r .
noivo carmesim, na margem calada, estendidos v i .
Menina C o r r e , c o r r e o f i o , c o r r e até a q u i .
Cobertos de barro Já os s i n t o v i r . Corpos e s t i r a d o s
panos de marfim." ( 2 , A t o I I I , último Quadro, p. 143-5)
Pela c a n t i g a , vemos que as f i a n d e i r a s s i n -t e -t i z a m a v i d a dos -três j o v e n s . A paixão de Leonardo e a Noiva, sua f u g a , o ódio do Noivo, e, p o r f i m a morte de Leonardo e do Noivo.
O branco a b s o l u t o , sem nenhum c i n z a , nem mesmo p a r a a p e r s p e c t i v a , c r i a uma l u m i n o s i d a d e que cega o observador e c o n f e r e ao quadro a l g o de s o b r e n a t u r a l , p o i s as cores dos v e s t i d o s s a l t a m na imensidão branca, dando a noção de um espaço f o r a da r e a l i d a d e , e t r a n s f o r m a n d o a s i -l h u e t a das jovens em aparições.
A seqüência espaço/cor que acompanha o c a -minho trágico das personagens pode s e r assim d e s c r i t o :
Sala do "* Sala de •*• Cueva da •> Bosque -*• Sala das Noivo Leonardo Noiva Parcas
4 4 4 4 4
Amarelo Rosa Rocha/azul Negro Branco
4 4 4 4 4
Possibil. Sangue prenuncio Paixão Ausência de vida de morte
Morte
de vida e de esperança
ACESSÓRIOS E INDUMENTÁRIA
Os acessórios e a indumentária vêm r e f o r -çar a a l e g o r i a p r e s e n t e nas p a l a v r a s e no cená-r i o .
Toda a indumentária p r e s e n t e na peça obe-dece aos t o n s e s c u r o s , ou ao branco. Há uma ausência de cores quentes nas roupas das p e r s o n a -gens .
0 p r e t o é a c o r predominante, quando substituído, o é p e l o a z u l e s c u r o , ou o verde e s -c u r o .
relação ao casamento próximo, e l a se despe l i -t e r a l m e n -t e e f i g u r a -t i v a m e n -t e nesse quadro. O branco é a c o r da s i n c e r i d a d e , do r e t i r a r a máscara s o c i a l .
A mãe do Noivo e o Noivo aparecem sempre de negro. A Mãe em seu e t e r n o l u t o e o Noivo como p r e n u n c i o de seu f u t u r o trágico. Um aces-sório que nos chama a atenção em sua v e s t i m e n t a é o relógio usado no d i a de seu n o i v a d o . O r e -lógio e a sua c o r r e n t e , são dourados, o que nos remete à f i g u r a já f e i t a p e l a Mãe a n t e r i o r -mente, de s e r o Noivo, ouro da t e r r a .
0 v e s t i d o da Noiva em c o r p r e t a também chama a nossa atenção. A Noiva t r a z , a i n d a , em seus c a b e l o s e no v e s t i d o , f l o r e s de l a r a n j e i r a de c e r a branca, presas por a l f i n e t e s .
O v e s t i d o p r e t o remete ao l u t o e não ao casamento, e também à f a l t a de pureza em seus s e n t i m e n t o s : a n o i v a não d e s e j a o N o i v o , mas sim, Leonardo. Se o branco na cena do pátio r e -f l e t e a s i n c e r i d a d e de seus s e n t i m e n t o s , o p r e t o na cena do casamento i n d i c a o o p o s t o .
A angústia e a aflição v i v i d a s p e l a Noiva são r e t r a t a d a s p e l o t e x t o e p e l a cena da en-t r e g a dos a l f i n e en-t e s que prendem as f l o r e s , às duas j o v e n s . A Noiva p o s s u i d o i s a l f i n e t e s
(novamente uma ligação com a l g o que f u r a e pode m a t a r ) , d o i s e n f e i t e s a princípio, mas que po-dem s e r tomados como sua divisão e n t r e h o n r a r o compromisso com o Noivo, ou s e g u i r seu d e s e j o , sua paixão. É uma divisão e n t r e a razão/ não v i d a e a paixão/vida.
As f l o r e s de l a r a n j e i r a ainda terão p a p e l de destaque quando da v o l t a da Noiva do bosque. Após sua fuga,as f l o r e s v o l t a m s u j a s de sangue, ou s e j a , de f l o r e s a r t i f i c i a i s , símbolo da nãov i d a se transformam em símbolo da paixão p r o i -b i d a e p u n i d a , já que o sangue que as r e c o -b r e é símbolo da v i d a , mas também da morte dos d o i s j o v e n s .
Um o u t r o elemento l i g a d o à n o i v a que chama a atenção p e l o destaque que l h e é dado no t e x t o é a meia que o Noivo l h e dá no d i a do n o i v a d o . A meia de seda é rendada e p o s s u i uma seqüência de desenhos: no t o r n o z e l o uma a n d o r i n h a ; na b a r r i g a da perna um barco e na coxa uma r o s a , que é d e s c r i t a logo a d i a n t e como tendo e s p i n h o s e cabo.
solidão. A ligação da a n d o r i n h a à água é um p r e -n u -n c i o da ligação e -n t r e a Noiva e Leo-nardo, seu mergulho nas "águas negras" e sua p o s t e r i o r s o
-lidão.
O segundo desenho é o de uma b a r c a , sím-b o l o de viagem, de t r a v e s s i a r e a l i z a d a s e j a pe-l o s v i v o & , s e j a p e pe-l o s mortos. Observamos que a f i g u r a da b a r c a , além de s e r elemento l i g a d o à água, é o e l o de ligação e n t r e a f i g u r a da so-lidão a da a n d o r i n h a , e a da r o s a , que simbo-l i z a a taça da v i d a , a asimbo-lma o coração e o a m o r . ( l , p. 121-2)
A r o s a também é uma a l e g o r i a da m a n i f e s -tação o r i u n d a das águas p r i m o r d i a i s , sobre as q u a i s se e l e v a e desabrocha. A r o s a , além de símbolo do amor, é também símbolo de sangue derramado e tem e s t r e i t a ligação com as águas.Sua localização na coxa é símbolo da posse erótica e temporária, vem desenhada com seus espinhos e cabo.Os espinhos t a n t o podem ser r e l a c i o n a d o s com a traição, da q u a l o Noivo será vítima, como com a d o r que a paixão da Noiva p o r Leonardo acarretará a e s t e s . ( 1 , p. 788-90)
s i m b o l i z a a vingança desejada p e l a Mãe e o seu temor p e l o único f i l h o .
O machado, levado p e l o s l e n h a d o r e s , se-gundo C h e v a l i e r , é o s i n a l da intervenção do meio s o c i a l na consciência i n d i v i d u a l , o que eqüivale d i z e r : uma interdição da sociedade na paixão de Leonardo e da Noiva. O machado l e v a a morte às árvores, assim como a sociedade mata, impede a v i d a , a paixão de Leonardo e da N o i v a . 0 machado f u n c i o n a a i n d a como uma metáfora da Lua, e s t a com seus r a i o s "derruba" as árvores e r e v e l a os amantes.
Por último, temos o acessório que as j o -vens de a z u l trazem para a cena; o n o v e l o
en-carnado. A alusão a essa meada que está sendo enovelada é uma c l a r a associação com a v i d a dos d o i s j o v e n s que t e r m i n o u . A c o r encarnada r e -força essa idéia, p o i s remete ao sangue p o r e l e s derramado e que t e r i a t i n g i d o o f i o de suas v i d a s ( d e s t i n o ) , agora já c o r t a d o e sendo e n r o l a d o .
ILUMINAÇÃO
" e s p l e n d o r a z u l " que a cena a d q u i r e com seu s u r g i m e n t o marca a personagem enquanto i d e n t i ficação mas também l h e empresta uma s i g n i f i -cação, segundo Y. Santos - "A simbólica da l u z , das c o r e s , do espaço e do tempo"; o a z u l é o símbolo do i n f i n i t o , é a mais p r o f u n d a das c o -r e s , a mais i m a t e -r i a l - o a z u l é f e i t o apenas de transparências, i s t o é, de v a z i o de água, v a z i o de c r i s t a l ou diamante. O a z u l é a mais f r i a das cores e, em seu v a l o r a b s o l u t o , a mais p u r a , à exceção do v a z i o t o t a l do branco neu-t r o .
A l u z empregada na personagem Lua desmate-x i a l i z a - a , t r a n s f o r m a n d o - a em s e r imaginário;
sugere a idéia de e t e r n i d a d e inumana e t r a n s
-m i t e na c o r o f r i o que a personagem d i z t e r : "Deixa-me e n t r a r . Venho f r i a
de paredes e c r i s t a i s . A b r i t e l h a d o s e p e i t o s onde me possa aquecer. Tenho f r i o , minhas c i n z a s de s o n o l e n t o s m e t a i s
buscam a c r i s t a do fogo
" ( 2 , A t o I I I , Quadro I , p. 125)
a b s o l u t o , o que i m p l i c a r i a numa iluminação tam-bém branca e m u i t o f o r t e , a ponto de f a z e r a
s a l a r e l u z i r , como i n d i c a o a u t o r . A s i m b o l o g i a do branco é a do a b s o l u t o , do desvanecimento e p o r i s s o e l a é usada em m u i t a s c u l t u r a s como a cor do l u t o .
A iluminação r e v e l a d e t a l h e s da p e r s o n a l i -dade e dos s e n t i m e n t o s dos personagens que às vezes a p a l a v r a não f a z . É como se a l u z se o b s t i n a s s e em r e v e l a r um segredo que as p e r s o -nagens l u t a m p o r o c u l t a r .
O GESTO E A MARCAÇÃO
O g e s t o e a marcação são m u i t o r i c o s em Bodas de Sangue. Como os demais elementos cênicos, e l e s são carregados de s i m b o l o g i a , r e v e l a n d o sempre o d e s e j o mais íntimo das personagens, bem como seus s e n t i m e n t o s .
Analisaremos os gestos e a marcação que consideramos mais s i g n i f i c a t i v o s , que servirão de amostra de como esses s i g n o s são t r a b a l h a d o s na peça.
Logo no p r i m e i r o a t o temos uma marcação m u i t o b o n i t a e s i g n i f i c a t i v a da Mãe em relação ao mundo e x t e r i o r .
a p o r t a . Aparece uma v i z i n h a v e s t i d a de e s c u r o , de lenço na cabeça." ( 2 , A t o I , Quadro I , p.
1 9 ) . Observamos que a Mãe se mantém de c o s t a s p a r a o e x t e r i o r . 0 espaço e x t e r n o é sempre o espaço da v i d a , enquanto que o i n t e r n o é o e s paço da morte. Com essa marcação o a u t o r r e -v e l a , já no p r i m e i r o quandro do p r i m e i r o a t o , a p o s t u r a dá v e l h a em relação à v i d a .
A Mãe apenas v i v e para seus mortos e p a r a o d i a da vingança, ou s e j a , e l a v i v e em função da m o r t e . Essa marcação é r e a f i r m a d a com o g e s t o na saída da v i z i n h a . " D i r i g e - s e para a p o r t a da esquerda. Em meio do caminho, pára e benze-se l e n t a m e n t e . " ( 2 , A t o I , Quadro I , p. 26)
Em t o d a a cena com a v i z i n h a , a Mãe perma-nece de c o s t a s para o e x t e r i o r , mesmo t r a t a n d o de assuntos do e x t e r i o r - o casamento de seu f i l h o . 0 g e s t o da v i z i n h a de benzer-se à saída reforça a s i m b o l o g i a da morte l i g a d a à mãe e a sua família.
será c o n f i r m a d a p o s t e r i o r m e n t e p e l a marcação da c r i a d a , em c o n s t a n t e i r e v i r no fundo da cena, e, p e l o desencontro do Noivo e da Noiva em quase t o d a a cena. Quando o Noivo e n t r a , e l a s a i , e, v i c e - v e r s a .
Como pudemos v e r p o r e s t a amostra da marcação e do g e s t o , e s t e s são elementos i m p o r t a n -t e s na revelação dos personagens. Porém, -t o d a essa b e l e z a v i s u a l é acompanhada, e mesmo sub-jugada, p e l a b e l e z a da p a l a v r a na obra de G a r c i a L o r c a .
A PALAVRA
Todos os elementos cênicos a n t e r i o r m e n t e a n a l i s a d o s estão p r e s e n t e s na p o e s i a de G a r c i a L o r c a . A mesma rede de símbolos que é o f e r e c i d a ao e s p e c t a d o r p o r meio do v i s u a l c o n s t i t u i a base da rede poética. Lorca t e c e uma d e l i c a d a renda, onde a cada laçada é preso o u t r o símb o l o , t o r n a n d o cada p a l a v r a uma jóia i n d i s p e n -sável; em seu t e x t o nada se e n c o n t r a em excesso. 0 t e x t o d i r e c i o n a a atenção do e s p e c t a -d o r p a r a o símbolo v i s u a l e -d e t e r m i n a o seu s i g n i f i c a d o em cada cena.
p a l a v r a . É a f a l a da Mãe, logo no p r i m e i r o qua-d r o , que vemos s e r f e i t a alusão ao Noivo como f l o r e t r i g o . Mais a d i a n t e no t e x t o , na cena do casamento, a c a n t i g a entoada p o r uma das r a p a -r i g a s d i z : " 0 Noivo pa-rece a f l o -r do o u -r o . " ( 2 , A t o I I , Quadro I , p. 8 2 ) ; e sua mãe r e f e r e - s e a e l e como "boa semente".
No último a t o vemos a reiteração dos e l e -mentos f l o r e o u r o :
"Mãe - G i r a s s o l de t u a mãe, espelho da t e r r a . " Mendiga
-Assim f o i . Nada mais. Tinha de s e r .
Por cima da f l o r de ouro - s u j a a r e i a . " ( 2 , A t o I I I , último Quadro, p. 149)
O mesmo o c o r r e com os o u t r o s d o i s p e r s o n a gens do triângulo amoroso. Leonardo é r e l a c i o -nado com a água, p o r meio da c a n t i g a de n i n a r de seu f i l h o . Não só se e s t a b e l e c e a relação água-Leonardo, como também é p r e n u n c i a d o seu f i m trágico nas águas. Lembramos que a n t e r i o r -mente mencionamos que Leonardo é a água, e tam-bém o c a v a l o que aparece na c a n t i g a .
Neste t r e c h o da c a n t i g a vemos:
"Sogra - Dorme, meu r o s a i ,
As patas, f e r i d a s , as c r i n a s , geladas, e dentro dos olhos um punhal de p r a t a Entravam no r i o ,
a i , a i , como entravam! O sangue c o r r i a
mais f o r t e do que a água"
(2, A t o I , Quadro I I , p. 28)
A c a n t i g a i n d i c a o f i n a l trágico dessa paixão, quando o sangue v a i c o r r e r p e l a s águas do r i o - a morte de Leonardo e do Noivo p e l a f a c a à b e i r a do r i o .
A f a c a é o u t r o elemento que estará cons-t a n cons-t e m e n cons-t e sendo modalizada p e l a s p a l a v r a s . A e l a , é a s s o c i a d a a f i g u r a da s e r p e n t e , a n i m a l que p i c a e mata de s u r p r e s a , quase sem s e r v i s t a .
A vingança da Mãe também é a s s o c i a d a à s e r p e n t e . E l a d i z : no p r i m e i r o quadro do p r i -m e i r o a t o . "...Passa-m-se os -meses, e o deses-p e r o deses-pica-me os o l h o s e até as deses-pontas dos
cabe-l o s . " ( 2 , A t o I , Quadro I , p. 12)
"Noiva - Porque eu me f u i com o o u t r o , me f u i .
- Tu também t e r i a s i d o . Eu e r a uma mulher abrasada, c h e i a de chagas por dentro e por fora, e t e u f i l h o e r a um pouquinho de água, de quem eu esperava f i l h o s , t e r r a , saúde; mas o outro e r a um r i o escuro,
c h e i o de ramas, que aproximava de mim o rumor de seus juncos e seu c a n t a r e n t r e d e n t e s . E eu c o r r i a com t e u f i l h o , como quem l e v a s s e uma c r i a n c i n h a de água e o o u t r o me mandava centenas de pássaros que me impediam de andar, e deitavam e s c a r c h a nas minhas f e r i d a s de pobre mulher emurchecida, de r a p a r i g a a c a r i c i a d a pelo fogo. Eu não q u e r i a , - e s c u t a bem! - eu não q u e r i a . Teu f i l h o e r a o meu f i m e eu não o e n g a n e i ; mas o braço do outro me a r -r a s t o u como um golpe de ma-r, como a cabeça de um mulo e me t e r i a a r r a s t a d o sempre, sempre, sempre, embora eu f i c a s s e v e l h a e todos os f i l h o s de t e u f i l h o me puxassem pelos cabelos." ( 2 , A t o I I I , último Quadro, p. 15 3-4).
Todas as c a n t i g a s p r e s e n t e s no t e x t o possuem uma d u p l a função, a de p r e n u n c i a r , a n t e c i -par o desfecho trágico das personagens e a de a m p l i a r a carga dramática das cenas. É o que o c o r r e , p o r exemplo, com a canção do casamento:
"Criada - Desperte a n o i v a Na manhã da boda. que os r i o s do mundo Levem t u a c o r o a ! " d e s e j a à n o i v a união com Leon.
( 2 , A t o I I , Quadro I , p. 66) As personagens fantásticas, como a Lua, a mendiga e as moças da s a l a branca possuem a m a i o r i a de seus t e x t o s em v e r s o . Como nas can-t i g a s , esses seres revelam a verdade f i n a l do t e x t o ; t a n t o é assim, que o último diálogo en-t r e Leonardo e a Noiva, onde en-t o d o o seu d e s e j o é e x p r e s s o , e o t r a v a d o e n t r e a Noiva e a Mãe, onde a Noiva e x p l i c a sua f u g a , são f e i t o s em v e r s o .
A FÁBULA
U t i l i z a r e m o s p a r a a n a l i s a r a fábula de
Bo-das de Sangue, os c o n c e i t o s de S o u r i a u .
Bodas de Sangue é uma peça de fábula s i m p l e s onde uma situação de c o n f l i t o é levada ao extremo, até o momento em que e l e se t o r n a i n -sustentável e explode.
O nó da ação dramática se c o n c e n t r a no de-s e j o amorode-so, e p r o i b i d o , de Leonardo e da N o i v a .
A fábula c o n c e n t r a seu f o c o sob os a c o n t e -cimentos que antecedem e levam a essa explosão e r e t r a t a o e c l o d i r das paixões e suas conse-qüências .
Assim, teríamos:
A t r i b u i d o r do Bem = Eros/Tânatos S u j e i t o = Leonardo e a Noiva
Bem Desejado = Realização da paixão - v i d a A d j u v a n t e = Empregada da Noiva
Oponente = Sociedade
CONCLUSÃO
Em Bodas de sangue vimos como uma d e l i c a d a rede de símbolos pode s e r t e c i d a e n t r e o espetáculo e o t e x t o . E, como a cada d e t a l h e d e l i -cado dessa renda, pode se esconder ou r e v e l a r uma personagem, um s e n t i m e n t o .
A peça de G a r c i a Lorca se m o s t r a , em v e r -dade, uma b e l a metáfora sobre a v i d a e suas paixões o amor, o d e s e j o , o ódio e a morte.
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